quarta-feira, 26 de abril de 2017

“MODERNIZAÇÃO” À BRASILEIRA: de volta à senzala?




“MODERNIZAÇÃO” À BRASILEIRA: de volta à senzala?

Alder Júlio Ferreira Calado

Neste momento (manhã-tarde do dia 25/04/2017), estamos a acompanhar, indignados, a sessão da Comissão Especial da Câmara dos Deputados, ultimando acertos (na verdade, desacertos) para a votação  de sua famigerada “Reforma Trabalhista”, destinada, conforme apregoam Governo e setores dirigentes e dominantes da sociedade brasileira, a “modernizar” a legislação trabalhista do Brasil, especialmente alterando profundamente a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ainda que esta venha sendo, há vários anos, e em diversos de seus artigos, alterada.

O que, de fato, pretendem os dirigente, as grandes empresas e os demais segmentos componentes do Capitalismo no Brasil, e que condições têm permitido tal desfecho? Eis o que, em breves linhas, tratamos de refletir.

Uma primeira observação a assinalar: a chamada “Reforma Trabalhista” forma apenas uma parte da sanha “reformista” das forças dominantes no atual contexto nacional e internacional. No caso da sociedade brasileira, este componente “reformista” só pode ser melhor entendido, se e quando situado num contexto mais amplo de “Reformas”, a incluir a “reforma”, previdenciária, a “reforma” educacional, a “reforma” política  e a “reforma” tributária, sem esquecermos outros pontos fulcrais em disputa (reforma agraria, reforma urbana, medidas de proteção sócio- ambiental...). Por mais aguerrida que venha a ser qualquer resistência pontual aos crescentes ataques dos setores dominantes e dirigentes aos direitos sociais, conquistados a duras penas, não apenas resulta ineficaz e insuficiente, como ainda pode acabar transformando-se numa armadilha da sanha capitalista, posto que, sendo o objetivo central do modelo vigente o de manter-se e ampliar-se indefinidamente, a mera reação pontual  não lhe constitui barreira maior. Ademais, por outro lado, a alternativa de saída das classes subalternizadas cada vez mais se revela, mais do que em reações pontuais, em seu empenho de construir um novo modo de produção, um novo modo de consumo e um novo modo de gestão societal, alternativos ao Capitalismo, o que deve ser ensaiado, desde já, ainda que num processo molecular.

Com efeito, os desafios se têm revelado cada vez mais complexos, em sua tessitura integral. Por exemplo, as lutas em defesa da natureza e dos humanos já não se limitam ao plano meramente socioambiental, à medida que combater, a sanha do hidro-agronegócio se acha organicamente articulada a diversos outros projetos seus. Tais como a avidez privatista, a sobrevivência dos paraísos fiscais, ao controle crescente dos aparelhos de Estado, o desmonte dos direitos sociais, ainda que constitucionalmente assegurados, etc. Uma simples ilustração desta tese: No presente ainda que nos fosse possível enfrentar exitosamente as reformas em curso (trabalhista, educacional, previdenciária, política, tributária...), ainda assim, outros tantos desafios se acham igualmente em curso: A reforma agrária segue paralisada; os códigos florestal, de mineração e outros se revelam tímidos ou inócuos; o deficit habitacional continua crescente, enquanto se constata maior o número de residências fechadas do que o número de famílias sem teto...



Antes de reavivarmos a memoria de iniciativas experiências moleculares grávidas de alternatividade, que já se acham em processo, tratamos  de chamar a atenção para algumas condições que propiciaram este estado de coisas, em especial, no caso da sociedade brasileira, e o fazemos, perguntando-nos:
- Teriam as forças dominantes e dirigentes, seja no âmbito do Estado, seja no âmbito do Mercado, tamanha facilidade de organização e de implementação de sucessivos ataques às classes subalternizadas, se estas tivessem mantido seu ritmo organizativo, formativo e de mobilização, como foram capazes de manter nas décadas dos anos 70 e 80?
- A correlação de forças profundamente desigual, nos dias correntes tem ou não a ver com este abandono pelas forças e movimentos populares, de seu compromisso transformador e de fidelidade aos interesses da Classe Trabalhadora?
- O massacrante desempenho das forças dominantes e dirigentes seria o mesmo, se os movimentos sociais e as demais organizações de base se tivessem mantido enraízadas, no campo e na cidade, nos núcleos, nas pequenas comunidades, nos conselhos populares, etc., gozando da confiança e do apoio das massas populares?
- Hoje, se queixa, com razão, do alto nível de alienação reinante, tornando populações inteiras reféns da saga midiática, inclusive nas redes sociais, se as experiências formativas tivessem sido mantidas ao longo das últimas décadas, teríamos ou não melhores condições de enfrentamento desses desafios?
- Se o compromisso de classe e o estilo de vida de dirigentes e coordenadores de nossas organizações de base e movimentos populares se revelassem convincentes, as camadas populares revelariam forte descrença nas lideranças e nos própros movimentos sociais, em grande parte?
- Em que medida deixamos de testemunhar nosso apreço pelo exercício da autonomia, frente ao Mercado e instâncias governamentais, de modo a arrefecer nossa capacidade de denúncia aos malfeitos, preferindo certo silenciamento frente aos desmandos cometidos por governos aliados?

Tratemos, enfim, de considerar pistas de superação do atual estado, a partir da imperiosa necessidade de exercitarmos a auto-crítica, não tanto em palavras, mas em gestos concretos, coletivos e pessoais. Aqui, não se trata de uma verborragia de auto-culpabilidade, mas de uma auto-avaliação prospectiva, com ênfase em nossos compromissos de retomada, em NOVO ESTILO de nossa presença e participação cotidianas junto às comunidades do campo e da cidade, de modo a reconquistar a confiança da Classe Trabalhadora e das Massas Populares, em função de cujas lutas nos dizemos comprometidos.

Nesse sentido, nem precisamos partir da estaca zero. Em nossas próprias organizações de base, podemos encontrar, ainda que molecularmente, experiências de alternatividade, no campo e na cidade, às quais devemos nos voltar, não tanto como “professores”, mas como parceiros a nos somarmos a essas iniciativas, nas perspectiva da construção processual de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal, por meio da retomada de nossos compromissos organizativos, formativo e de mobilização.

João Pessoa, 26, de abril de 2017.


segunda-feira, 17 de abril de 2017

THOMAS MÜNTZER, FIGURA-ALVO DE UM CAPÍTULO NEBULOSO NAS ORIGENS DA REFORMA

THOMAS MÜNTZER, FIGURA-ALVO DE UM CAPÍTULO NEBULOSO NAS ORIGENS DA REFORMA

Alder Júlio Ferreira Calado

Até o dia 31 de outubro deste ano, vêm se sucedendo diversos eventos comemorativos dos 500 anos da Reforma. Sob distintos aspectos, as Igrejas reformadas e outros segmentos cristãos, inclusive a Igreja Católica Romana – o Papa Francisco já esteve, e vai estar a participar de alguns deles, realimentando as incessantes buscas de reconstrução da unidade dos cristãos, em novo estilo, que vá além de meras formalidades. Esforço, aliás, que o Bispo de Roma vem testemunhando, também, em relação a outras comunidades cristãs não reformadas (caso das Igrejas Ortodoxas).

A Reforma constitui, sob diversos ângulos de análise, um relevante marco, na história do Cristianismo e do próprio Ocidente. Não parece suscitar dúvidas razoáveis o reconhecimento das múltiplas contribuições oferecidas, ontem e hoje, pelas Igrejas Reformadas, o que não invalida, por outro lado, o reconhecimento de sombras, em sua trajetória (hoje, por exemplo, desponta inquietante a onda de fundamentalismos), algo também presente em outras instituições religiosas. Com efeito, sob distintos aspectos, têm vindo a lume, tanto no plano cultural, quanto na esfera política, bem como no terreno econômico, sobre tais contribuições, têm se pronunciado, inclusive no mundo acadêmico, figuras de ampla respeitabilidade, a exemplo de Max Weber, para mencionar um único autor.

Como ignorar, por exemplo, a densa contribuição do movimento reformador liderado por Lutero, e, alguns séculos antes dele, pelos movimentos pauperísticos da Idade Média, animados por personalidades como a de Valdo, e, mais tarde, por outros movimentos liderados por figuras como as de John Wycliffe, Jan Hus, etc. E não se trata de movimentos meramente contestatários daquela (des)ordem estabelecida pelos privilegiados de então, por meio de gravíssimos e rotineiros  vícios, com terríveis consequências para a enorme maioria daquelas populações  (exacerbado clericalismo, escandaloso comércio do sagrado – simonia -, vendas de indulgências, luxúria das autoridades eclesiásticas, corrupção sistêmica, acesso oportunista a cargos eclesiásticos por meros interesses econômicos e políticos, opressão dos fiéis, especialmente dos camponeses,  com cobranças de dízimo, vida desregrada dos clérigos, negação objetiva dos valores do Evangelho, exclusivismo da leitura da Bíblia apenas pelo clero, até por conta da proibição da leitura da Bíblia, na língua do povo nativo (pois só em Latim era permitido ler a Bíblia, sendo o segmento clerical o único que entendia esta língua... Aqui se destaca sua ação de denúncia. Cumpre, porém, ter presente, ao mesmo tempo, sua ação anunciadora do Reino de Deus, na medida em que  tais movimentos reformadores, para além de suas denúncias proféticas que, por vezes, lhes custaram a vida, também cuidaram de protagonizar fecundas iniciativas de anúncio, de alternatividade – a começar pela anúncio e a do testemunho de um estilo de vida simples, pobre e a serviço dos pobres e marginalizados, em coerência com o Evangelho. Sua ação profética, vale ressaltar, comportava uma denúncia e um anúncio: não basta apenas denunciar, é preciso também anunciar, isto é, sinalizar atitudes concretas alternativas (“Não são os que dizem: ´Senhor, Senhor´..., mas os que fazem a vontade do meu Pai”).

Mais. As contribuições do Movimento Reformador transpõem os espaços eclesiásticos: alcançam, de algum modo, o universo das relações humanas e sociais. A despeito dos contratestemunhos, cumpre sempre ter presente a ação de reformadores tais como John Wesley, para quem “Minha Paróquia é o mundo”, algo similar ao que hoje anuncia o Bispo de Roma, com a expressão  “Saída em missão”....

Sua ação profética deve incidir, também,  em outros planos, No terreno cultural-educativo, por exemplo, o Movimento Reformador mostrou-se um grande incentivador do letramento popular. A restituição da Bíblia aos cristãos implicou o incentivo progressivo de parcelas de cidadãos e cidadãs à aquisição do seu direito à leitura, o que, por sua vez, lhes propicia o empoderamento de instrumentos relevantes ao exercício crítico, numa perspectiva emancipadora. É claro que são bem mais amplas as contribuições protagonizadas pelo Movimento da Reforma. Mas, nessas linhas, miramos um foco específico: o caso ainda mal resolvido em relação à figura do teólogo Thomas Müntz. Para tanto, fornecemos uma brevíssima notícia biográfica deste teólogo, com o propósito de realçar aspectos mais fortes de sua contribuição ao enfrentamento dos desafios do seu tempo; e, por último, assinalamos a necessidade de extrairmos algumas lições para hoje de seu legado.

Uma breve notícia biográfica acerca do teólogo Thomas Müntzer


Em que pese um relativo desconhecimento ainda vigente, Thomas Müntzer (1490-1521) situa-se, ao lado de Lutero, nas origens da Reforma do século XVI, como uma das principais referências de protagonista deste Movimento. Por volta de 1515, ele é reconhecido com Lutero como partícipes de um grupo especial de pregadores da Reforma, com relativa aproximação pelos objetivos comuns: levantar sua voz contra os desatinos da alta hierarquia eclesiástica, protagonista de graves e numerosos escândalos que eles trataram de denunciar, com vigor, culminando, no caso de Lutero, com a afixação na porta da igreja de Wittemberg, em 31 de outubro de 1517 *(véspera da Festa de Todos os Santos), suas famosas 95 teses, contestando os desmandos da hierarquia eclesiástica. A essa altura, tanto Lutero quanto Müntzer seguiam irmanados, na luta comum contra os escândalos eclesiásticos. Não tardam, porém, a se desentenderem. O ponto  de dissenso começa a aparecer e a ganhar força, a partir do clamor dos camponeses contra a opressão sofrida pelas injustiças sociais por eles sofridas da parte, não apenas dos hierarcas, mas igualmente da parte dos príncipes feudais. Até certo ponto, Lutero também manifestava preocupação com os “excessos” cometidos, reconhecendo a justeza do grito dos camponeses. À medida, contudo, que os camponeses iam despertando sua consciência crítica, estimulados, inclusive, pelos sermões de Müntzer, de um lado, e de sua crescente familiarização com a Bíblia, até então mantida afastada de seu alcance, os camponeses, animados em especial pelos Anabatistas, passaram a aumentar o poder de sua oposição, a ponto de inquietarem o próprio Lutero, que temia a retirada de apoio por parte dos príncipes, às suas atividades reformistas. A partir daí, vai arruinando-se a relação entre Lutero e Müntzer. Este, por sua vez, vai progressivamente intensificando sua ação solidária junto aos camponeses, principalmente por meio de seus sermões, cada vez mais apreciados por crescentes parcelas de camponeses e outras camadas populares da Alemanha.
Além de sua intervenção por meio dos sermões, há de se reconhecer a grande influência de sua presença e participação nas reuniões e manifestações dos camponeses, sempre no sentido de incentivo. Com relação ao temário explorado em seus sermões, cumpre destacar o tom milenarista preponderante, além do exaustivo recurso a fontes bíblicas. Neles, todavia, são muito frequentes as citações literais ou indiretas, tanto do Antigo quanto do Novo Testamentos.
Ainda quanto às suas incursões pelos textos bíblicos, convém sublinhar sua posição atípica, em relação aos pregadores convencionais. Suas constantes incursões bíblicas não o afastavam da ideia de que a Palavra de Deus não se esgota nos textos da Sagrada Escritura. O Espírito Santo continua a revelar-Se e a inspirar, nos dias de hoje, aquelas pessoas que se dispõem a escutar o que o Espírito lhes tem a inspirar. Este traço assinala uma herança das ideias pregadas pelo Abade Gioacchino da Fiori, formulador da chamada Era do Espírito Santo. Ele entendia que, ao longo da história do Povo de Deus, três épocas deviam ser observadas: A Era do Pai, isto é, aquela em que o Povo de Deus se regia pela estrita obediência ao Pai; A Era do Filho, correspondendo ao tempo da revelação de Deus feita por e em Jesus, o Cristo; e a Era do Espírito Santo, caracterizada pela ação da liberdade, em que o Espírito Santo inspirava diretamente, para além dos textos escriturísticos, a ação dos cristãos.

Que linha de argumentação Müntzer seguia, em seus apreciadíssimos sermões? Como teólogo de sólida formação bíblica, suas homilias se caracterizavam sobretudo por dois traços: de um lado, partindo das condições sociais concretas da enorme maioria dos seus ouvintes – e falando-lhes em linguagem bem ao seu alcance! -, Müntzer recorria a numerosas citações bíblicas – do Antigo e do Novo Testamentos. Em especial, os livros proféticos e os de caráter apocalíptico. Em busca de oferecer aos seus ouvintes, em grande parte, aliados e comprometidos com a luta contra as injustiças e as tremendas desigualdades sociais, é compreensível como se apoia em textos de conteúdo invectivo contra os poderosos, socorrendo-se de autores bíblicos como Isaías, Jeremias, Ezequiel e outros. Ao mesmo tempo, recorre a textos vétero e neotestamentários de apelo apocalíptico, que inspiram esperança numa vida alternativa àquela então reinante, ameaçadores aos poderosos e opressores.

Daí, por exemplo, o foco que elegeu para um dos seus famosos sermões, em que trata de refletir sobre o segundo capítulo do Livro de Daniel. Neste capítulo do Livro de Daniel, encontra-se o relato do sonho enigmático tido pelo rei da Babilônia (atual Iraque). O rei Nabucodonosor saiu profundamente perturbado de um sonho terrível. Como de hábito, recorreu aos seus magos e astrólogos, deles exigindo, não apenas que interpretasse, mas também que lhe narrassem o sonho que tivera. Tarefa que resultou impossível para os seus súditos, razão porque mandou matar a todos os sábios daquela região, ordem que alcançaria até sábios que não prestavam culto ao rei, como Daniel e seus companheiros Ananias, Misael e Azarias, judeus, que haviam sido trazidos como escravos para a Babilônia. Daniel, tendo orado ao seu Deus, com seus companheiros, teve a visão e interpretação do sonho do rei. Por meio de um súdito do rei, fez chegar até ele seu pedido para atender às suas exóticas exigências, de contar e interpretar seu sonho. Chamado à presença do rei Nabucodonosor, Daniel, invocando o poder de seu Deus, graças a quem veio a saber contar e interpretar o sonho do rei, cumpriu o prometido. O rei vira em sonho uma enorme estátua, cuja cabeça era de ouro, enquanto de prata eram o peito e os ombros; de bronze, eram sua barriga e os quadris, tendo as pernas de ferro, tendo os pés, parte de barro, e parte de ferro. Quanto à interpretação, isto representava a sucessão de ruínas a ser enfrentada, cada qual à sua vez, a começar pela Babilônia... Narrativa e interpretação que o rei reconheceu como fiéis, ainda que a contragosto: pelo sonho, era constrangido a reconhecer que havia um Deus superior a reis e imperadores, inclusive a ele. Não teve alternativa, senão a premiar a Daniel, e a mandar difundir o nome do Deus de Daniel como o único poderoso...

Naquele contexto de crescente efervescência das massas camponesas, como expressão de resistência às multiformes manifestações de exploração, dominação e marginalização sofridas, o papel desempenhado por Müntzer, para além de sua dimensão profética (de denunciar aquela estrutura iníqua, e, ao mesmo tempo, de anunciar possibilidades alternativas), tem muito a ver também com sua dimensão formativa, à medida que ele ia transformando espaços que, em tese, tendiam ao imobilismo, em espaços formativos possíveis às vítimas daquele sistema. Seus sermões e suas visitas constantes a essa gente sofrida repercutiam fortemente no coração e nas mentes daqueles camponeses, passando de mero sentimento a ações mais contundentes de resistência, o que acabou desaguando em conflitos crescentes, em especial entre 1524 e 1525, cujo desfecho foi marcadamente trágico, com milhares de mortes, inclusive com a prisão, tortura e decapitação de Thomas Müntzer, em maio de 1525.

Eis alguns traços da trajetória existencial de Müntzer, em quem encontramos uma profunda busca de coerência entre sentir-pensar-agir, em relação ao que parece ter tido um reconhecimento bem aquém do que se lhe seria devido, inclusive a julgar por uma comparação com figuras outras. Esta situação merece de nossa parte uma reflexão crítico-avaliativa, na perspectiva da Tradição de Jesus.

Que lições nos é possível extrair do legado de Thomas Müntzer, em vista de um exitoso enfrentamento dos desafios de hoje?

Como sucede a qualquer instituição social, as grandes datas comemorativas também propiciam potencialmente o exercício de um olhar (auto)avaliativo, com propósito prospectivo. As breves notas aqui alinhavadas, buscam inspirar-se neste horizonte. O propósito de avaliar procura levantar aspectos felizes e outros sombrios, fios  também presentes, em qualquer percurso existencial, afinal as ambiguidades também são marcas presentes no processo de humanização, a não confundir com certa tendência hoje dominante, de transformar tal traço numa condição determinista da vocação humana, portanto, a legitimar uma síndrome da ambiguidade... Com amparo na Tradição de Jesus, entendemos que as ambiguidades fazem, sim, parte de qualquer percurso existencial, não poupando, por certo, as instituições e as organizações sociais, inclusive as instituições cristãs, e, dentre elas, as Igrejas Reformadas. Por outro lado, uma coisa é constatar este fato; outra é convertê-lo num determinismo do qual nem vale a pena tentar livrar-nos, donde a tendência acentuada, hoje, a uma legitimação normótica ou até de uma exaltação à conduta ambígua como modelo ou estilo de vida pessoal e coletivo...

Um primeiro ponto a merecer atenção: a que se deve a secundarização, anonimato ou mesmo ampla ignorância de figuras – mulheres e homens – portadores de uma história de vida tão densa? De vez em quanto, temos voltado a este intrigante fenômeno – o da invisibilização de figuras talentosas ou especiais. Uma dessas personalidades é o teólogo Thoma Müntzer, cujo reconhecimento público se mostra bem aquém dos seus méritos, não apenas para o Movimento da Reforma, como também para o Ocidente e para os humanos, em geral. Com efeito, afora da Alemanha – em especial junto à população da antiga Alemanha Oriental, trata-se de um nome pouco conhecido, inclusive no plano acadêmico. Müntzer, portanto, faz parte daquela galeria de mulheres e homens portadores de uma memória perigosa, subversiva, a ser evitada, o quanto possível...

Outro aspecto que nos chama a atenção, enquanto uma outra lição daí a recolher, nos remete, do ponto de vista dos critérios característicos do Movimento de Jesus, à sua postura ética de integridade. Sua ação se fazia, concatenando – e não cindindo – espaços eclesiais e espaços societais. O que buscava mudar o impelia a lutar, não apenas por mudanças internas das estruturas eclesiásticas, mas igualmente empenhar-se na luta pela mudança do modelo societal em vigor.

Ao fazê-lo, buscou inspiração em fontes não apenas escriturísticas, mas também apoiando-se na memória perigosa de movimentos e figuras precursoras da Reforma: os movimentos pauperísticos (Valdenses, por exemplo) e em figuras emblemáticas, tais como Pierre Valdo (ou Valdès), John Wycliffe, Jan Hus... Não para copiá-los, mas para neles buscar inspiração em práticas e gestos que orientaram os lutadores e as lutadoras, de então. Como costumava lembrar Eduardo Galeano, “O passado tem muito a dizer ao futuro”...

Como não reconhecermos, ontem e hoje, a força transformadora do exemplo, da pedagogia do exemplo: “Não são os que dizem: ´Senhor, Senhor´... mas os que fazem a vontade do meu Pai.” Disto não tem sido exemplo nossa história recente e atual, a debater-se triste e tragicamente com graves cisões entre o dito e o feito: “Tra il dire e il fare, c´è in mezzo il mare”...

Há, também, a sublinhar o papel transformador do processo formativo. Ao seu modo, e segundo as possiblidades do seu tempo, Müntzer cuidou também de alimentar o processo formativo dos camponeses, favorecendo a formação de um pensamento crítico de seus contemporâneos, ao qual se articulavam dinamicamente práticas consequentes.

Temos como igualmente decisiva sua proximidade com os mais vulneráveis, com os “de baixo”, não apenas por via dos sermões, mas igualmente pela sua presença exemplar.

Isto não quer dizer que as opções de um Müntzer, àquela época, ou as de Camilo Torres, na Colômbia dos anos 60 tenham que ser reeditadas, por várias razões, inclusive porque outras são as condições objetivas de hoje, sem esquecermos a necessidade de reavaliarmos o sentido e o alcance das estratégias militares no processo revolucionário. Se estas, bem ou mal, atenderam às demandas políticas de determinado tempo ou conjuntura, elas merecem ser repensadas, à luz de uma reavaliação do próprio conceito de Revolução.

Convém, ainda, buscar extrair adequada lição de exercício de uma mística revolucionária, no sentido evangélico, para os tempos de hoje. Aqui sublinhamos que, sem tal empenho, corremos o risco de perder de vista nossa condição humana de pessoas limitadas, a necessitarmos, dia a dia, de autocrítica, em busca de um esforço ininterrupto de superação de nossos próprios limites, donde também o necessário apelo à Fonte do discernimento e da sabedoria.

João Pessoa – Olinda, 15 de abril de 2017.
  

sábado, 8 de abril de 2017

O PLANETA E OS PEQUENOS PAGAM A CONTA QUANDO OS GRANDES PROSPERAM E FAZEM A FESTA


Alder Júlio Ferreira Calado


Tombam as matas, a terra está deserta
E a madeira de lei pra onde vai?
“Tanta gente sem terra!” – exclama um pai
“Tanta terra sem gente ” - um outro alerta
“Só queremos justiça, não oferta!”
Na história saída, então, nos resta
Mesmo à custa de luta indigesta
Uma pista certeira nos aponta
O Planeta e os pequenos pagam a conta
Quando os grandes prosperam e fazem a festa...

Ferem a terra, e a deixam esburacada
Em jornada  tão longa, quase eterna
Com o sim serviçal de  quem governa
O que ganham, porém, é quase nada
Empreiteiras enricam na roubada
Ferro, ouro, petróleo extraem desta
Só doença aos pequenos é o que resta
Com penúria o pobre se defronta
O Planeta os pequenos pagam a conta
Quando os grandes prosperam e fazem a festa...

Da saúde do rio o que se diz?
Que está afracando sempre mais
Poluído, seu peixe já não traz
Bem conhecem esse mal pela raiz
Os que vivem do rio ora infeliz
Se o envenenam, sua água pra que presta?
Natureza ofendida, então, desconta...
O Planeta e os pequenos pagam a conta
Quando os grandes prosperam e fazem a festa.

Quanta fé no Pré-sal já se alimenta!
Põe-se nele “a” saída pro Brasil
“Ele vai resolver problemas mil”...
“Da pobreza, a Nação será isenta”...
Propaganda enganosa se fomenta
Muito rico é o País – ninguém contesta
Quanto às massas, têm vida bem funesta
A bem poucos riqueza só desponta
O Planeta e os pequenos pagam a conta
Quando os grandes prosperam e fazem a festa

Do Pré-sal se promete em vão partilha
Propaganda custosa tem lugar
Parlamento e Governo a divulgar
Que pra todos, enfim, a coisa brilha
- Qual padastro falante engana o filhos –
Por que, então, confiar que a coisa presta
Se a partilha do bolo é desonesta?
Ri de nós, o inimigo, e nos afronta
O Planeta e os pequenos pagam a conta
Quando os grandes prosperam e e fazem a festa.

Vejam o caso da tal Transposição:
Velho Chico agoniza – e tempo faz!
Os que vivem à sua margem não têm paz
Há meio século, e seu grito é em vão
Trinta e cinco por cento da vazão
E o que diz quem da nave está à testa?
Só às multi o Governo atenção presta
E nos pobres o hidro-fúndio monta
O Planeta e os pequenos pagam a conta
Quando os grandes prosperam e fazem a festa.

Não à-toa se apega a burguesia
Apoiada no Estado serviçal
A projetos gigantes como tal
Não se importa se o erário se esvazia
Ou que sobre pro Povo essa sangria
Pois a este, migalha é o que resta
O filé vai pra gente desonesta
Num modelo que a Terra e o Homem afronta
O Planeta e os pequenos pagam a conta
Quando os grades prosperam e a fazem a festa.




Campina Grande, 18 de junho de 2010
Em solidariedade às Pessoas Atingidas por barragens e pelaTransposição, e em homenagem a F

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Paulo Freire vagueia no universo atiçando as centelhas da utopia

Paulo Freire vagueia no universo
atiçando as centelhas da utopia


Alder Júlio Ferreira Calado
La Insignia. Brasil, janeiro de 2005.
Nota de Rolando Lazarte.

No dia 19 de setembro de 2000, Paulo Freire foi homenageado na cidade de Recife, Pernambuco, por ocasião da data do aniversário do seu natalício. Como membro do Centro Paulo Freire de Estudos e Pesquisas, o sociólogo, poeta e escritor Alder Júlio Ferreira Calado, pronunciou algumas palavras que a Faculdade de Filosofia de Caruaru-FAFICA, publicou sob o apropriado título de Tecelão da Utopia: uma leitura transdisciplinar de Paulo Freire (Caruaru: Edições FAFICA, 2000). Existe no nordeste brasileiro um ritmo musical, o "martelo agalopado", no qual as rimas que se oferecem à leitora e ao leitor a seguir -e que encerram a reflexão do professor Alder Júlio-foram escritas. O autor dos versos é professor no Curso do Magistério do MST-Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, colaborador em programas de pós-graduação em sociologia e educação, e assessora vários movimentos populares e pastoriais sociais.
Paulo vive nas lutas do seu Povo
Por trabalho, por terra, por justiça
Belos sonhos eu ele nos atiça
De forjar, desde agora, um mundo novo
Irrompendo, qual pinto sai do ovo
Nos instiga a mexer com a fantasia
Que o Espírito de Luz nos irradia
Das infindas galáxias surge emerso
Paulo Freire vagueia no Universo
Atiçando as centelhas da Utopia.
Recordando seus textos principais
É possível se ter u´a foto sua
De erudito, profeta, homem da rua
De filósofo, de sábio perspicaz
A lutar por justiça e pela paz
Pedagogo da Fé, da rebeldia
Contra quem do oprimido tripudia
Pretendendo mantê-lo bem disperso
Paulo Freire vagueia no Universo
Atiçando as centelhas da Utopia.
Educar praticando a Liberdade
É lição número um a se aprender
Avivando a fagulha em cada ser
Contagiar mais pessoas sim, quem há-de?
Trabalhando no campo ou na cidade
O Oprimido tem sua Pedagogia
Como classe, é aí que se inicia
Um caminho instigante e controverso
Paulo Freire vagueia no Universo
Atiçando as centelhas da Utopia.
Mais que ler as letrinhas do alfabeto
Educar é sinônimo de mudança
Que um olhar penetrante sempre alcança
Entre as nuvens de um tempo tão repleto
De falácia, arrogância e desafetos
Algo novo que emerge em rebeldia
Só mudando o sistema é que se cria
Desse estado de coisas o reverso
Paulo Freire vagueia no Universo
Atiçando as centelhas da Utopia.
Se importante é o ato de se ler
Também é o trabalho de Extensão
Quando a troca se dá, não é em vão.
Aprendendo e ensinando com prazer
Comunica a todos o saber
Todos dão e recebem, com alegria
Ganham todos, e tudo se avalia
Se respeitam saberes mais diversos
Paulo Freire vagueia no Universo
Atiçando as centelhas da Utopia.
Ensinou ser vida na escola
Expressão do viver de nossa gente
Um espaço a pensar o que se sente
Que as fronteiras da sala extrapola
Vai beber da herança quilombola
O legado indígena concilia
Sobrevive com arte a travessia
Do invasor põe em prática o lado inverso
Paulo Freire vagueia no Universo
Atiçando as centelhas da Utopia.
Uma ação cultural é necessária
Liberdade é bandeira essencial
A um projeto que enfrente o Capital
Em batalha travada em qualquer área
Até mesmo no camp´ Reforma Agrária
Quando encara, resiste ou negocia
Do peão fala alto a ousadia
Quando enfrenta o gigante mais perverso
Paulo Freire vagueia no Universo
Atiçando as centelhas da Utopia.
Pés de jambo, jaqueiras, goiabeiras
Nos quintais de recife existem tantos
Testemunhas de sonhos e de encantos
Pois as árvores têm feições fagueiras
Muita vez Paulo à sombra das mangueiras
Introspecto em seu mundo, refletia
Que, somente se inspira rebeldia,
O passado não é tempo adverso
Paulo Freire vagueia no Universo
Atiçando as centelhas da Utopia.
Formação na esperança, passo urgente
Cidadãos bem autônomos educar
Na cidade, na roça, desde o lar
Quem e cala ante o mal, foge, consente
Venha, então, engrossar essa corrente
Contrapondo o Trabalho à sangria
Da pilhagem burguesa que se amplia
Você acha que brinco ou desconverso?
Paulo Freire vagueia no Universo
Atiçando as centelhas da Utopia.

Paulo Freire: Sua visão de mundo, de homem e de sociedade.

Paulo Freire: Sua visão de mundo, de homem e de sociedade. 
Alder Júlio Ferreira Calado (*)


No denso e vasto depósito da cultura hebraica, temperada pelos valores do Cristianismo primitivo, louva-se a atitude do sábio que consegue recolher do baú do seu itinerário existencial coisas novas e velhas. Traço que pode servir de estímulo ao leitor e à leitora contemporâneos em busca dos achados de mulheres e homens, de ontem e de hoje, cuja contribuição ao processo de humanização tem-se revelado de amplo reconhecimento por sucessivas gerações.Graças a essa curiosa predisposição, conseguimos perceber uma das marcas freqüentemente recolhidas das leituras dos bons clássicos: a de propiciarem ao leitor, à leitora, a descoberta, a cada revisitação, de algum novo detalhe em seus escritos. É o que também experiencio - e, por certo, não sou o único - ao voltar a incursionar pelos escritos freireanos, tal é a densidade do seu legado biobibliográfico.
Ao voltar a percorrer paisagens do baú freireano, não me anima qualquer pretensão a identificar qual "a" chave de interpretação do seu pensamento, o que, aliás, resultaria em vão. Um outro traço próprio dos bons teóricos de ontem e de hoje é justamente o de não se deixarem enjaular em nenhuma grade interpretativa excludente; é o de repelirem pretensos proprietários. Marx e Freire, a exemplo de tantas outras figuras de reconhecida contribuição ao patrimônio cultural do seu tempo, nem sempre se reconheceram em interpretações de pretensos seguidores.
Ocorre aí algo semelhante ao que se passa com as causas mais generosas do Gênero Humano. Socialismo, Comunismo não são propriedade exclusiva de ninguém. Têm, sim, a ver com aqueles e aquelas que, mais pela sua práxis do que por discursos bem tecidos, os fizerem por merecê-los.
Por outro lado, o fato de se repelir qualquer pretensão ao monopólio de interpretação do pensamento de um autor, não significa abdicar de critérios éticos de interpretação, como procedimento capaz de reduzir a carga de arbítrio, de modo a evitar trair o pensamento do autor, sob o belo argumento de sua reinvenção.
Das novas nuanças recolhidas desta mais recente revisitação da maioria dos livros de Paulo Freire, teria a sublinhar especialmente os textos que se reportam à sua visão de mundo, de homem e de sociedade. Nesta nova incursão, busquei, mais do que "pinçar" passagens isoladas, recolher aspectos que considero centrais do seu pensamento, de modo contextualizado e com reiterada incidência em outros ensaios. As indicações que seguem entre parênteses[1], com as iniciais dos textos ou ensaios referidos, assinalam tal intento.
Busquei, enfim, dedicar especial atenção a termos, expressões ou conceitos recorrentes, que Paulo Freire tornou tão caracteristicamente seus, de modo a integrarem o que ousaria chamar de universo vocabular freireano.
No que tange à estrutura ou esqueleto do presente texto, inicio por uma breve referência a algumas das fontes inspiradoras do seu pensamento ou a reconhecidos interlocutores e interlocutoras. Em seguida, cuido de percorrer um roteiro que se inicia enfatizando a unidade dialética com que Paulo Freire apreende os laços orgânicos observáveis nos pólos mundo-homem-sociedade, ao que se segue um esforço de apreensão analítica dos sentidos de cada pólo da tríplice relação, terminando com algumas considerações, à guisa de síntese.

1. Em busca de fontes do pensamento e de interlocutores de Paulo Freire
O gosto extraordinário pelo estudo da língua pátria o levaria, ainda cedo, ao cultivo de boas leituras. Cita, com certa freqüência, autores que costumava ler atentamente, a começar pelos da região: Carneiro Ribeiro, Ruy Barbosa, Gilberto Freyre, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, entre outros. É provável que a estes tenha recorrido, antes por uma opção estética - a boniteza do discurso literário - do que por uma motivação político-ideológica, ainda que esta não possa ser descartada. De fato, em mais de um de seus textos, refere-se, com nítida satisfação, à criatividade estética que aqueles autores conseguiam imprimir em suas obras, que certamente exerceram notável influência em seu cotidiano de jovem professor de gramática.
Não tardaria, porém, a associar a fruição dos estudos do idioma à de clássicos do pensamento nacional (Tristão de Athayde, por exemplo) e internacional (Jacques Maritain, Bernanos, Mounier) (cf. C, 1980:14-15). Autores como estes passam a constituir uma referência de peso, na trajetória da reflexão humanística exercitada por Freire.
Sua curiosidade epistemológica, no entanto, o estimularia a empreender vôos cada vez mais ousados, no plano filosófico, como no terreno inter/transdisciplinar, de modo a percorrer leituras de Psicologia, Antropologia, Pedagogia, Sociologia, Serviço Social, História, entre outras "disciplinas". Seu interesse por temas igualmente afetos a certas abordagens teológicas, mais precisamente ao campo da Teologia da Libertação - de cuja formulação filosófica ele termina sendo um dos expoentes - remete ao adjetivo "transdisciplinar", acima mencionado.
Em seus escritos, aparecem não raro referências - é claro que a uns mais e com maior densidade do que a outros - a autores tais como Sócrates, Aristóteles, Hegel, Marx, Lênin, Mao Tsé-Tung, Jaspers, Makarenko, Gramsci, Ivan Illich, Fromm, Niebuhr, Lukács, Goldman, Marcuse, Sartre, Beauvoir, Jacques Maritain, Emanuel Mounier, Piaget, Tristão de Athayde, Elza Freire, Guerreiro Ramos, Álvaro Vieira Pinto, Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, Lauro de Oliveira Lima, Rui Celso Beisiegel, Carlos Rodrigues Brandão, Francisco Weffort, C. Wright Mills, Amílcar Cabral, Samora Machel, Zevedei Barbu, Camilo Torres, Che Guevara, Georges Snyders, Karel Kosik, Adam Schaff, José Luis Fiori, Clodomir Moraes, entre tantas outras personagens.
Ao mencionar essa lista incompleta de nomes, cumpre insistir na diversidade de grau - de um para outro - com que se dá efetivamente uma eventual influência. Além do que, nem sempre se trata de referências explícitas. Situações, passagens e relatos diversos há, em que se nota, por exemplo, uma clara influência socrática, sem que venha acompanhada necessariamente da respectiva referência.
A propósito deste autor, vale destacar um aspecto: de tal modo Freire incorpora a inspiração socrática, que ela lhe sobrevém naturalmente como coisa tornada sua. Não seria esta a razão que explica o uso recorrente de vocábulos como partejar, partejamento, (quando fala, por exemplo, em "sociedade em 'partejamento'": EPL, 1989:35), que remete, como se percebe, à maiêutica socrática?
A título de ilustração da influência socrática no filosofar freireano, lembraria seu procedimento no episódio do diálogo travado com um camponês chileno, que ele reproduz em Pedagogia da Esperança (PE, 1998: 46-50). Igual influência socrática se percebe na ênfase dada à importância do autoconhecimento, no aprofundamento introspectivo da condição humana.
Influência ainda maior parece mais observável em casos de autores marxistas, corrente à qual se revela especialmente vinculado. Feito um balanço judicioso de seus escritos, torna-se difícil identificar uma fonte que o tenha mais inspirado, ao longo de sua existência.
Seguem, a esse respeito, alguns pontos que atestam suas afinidades à visão marxista de mundo, de homem e de sociedade. Um primeiro aspecto a considerar, tem a ver com a grade teórico-metodológica de caráter dialético e de orientação hegeliano-marxista que adota, no exercício de leitura do mundo e da realidade. Parece inegável, por exemplo, sua opção pela análise dialética, não apenas como instrumento analítico, mas também como perspectiva.
Embora não seja apanágio do Marxismo, parece pacífica a compreensão de que tem sido principalmente desta corrente sua investida mais historicamente consistente na leitura da realidade, como produto e expressão de uma teia de relações. Se desde Heráclito, e passando por significativas contribuições em outros períodos da História, até Hegel, já eram relativamente familiares as noções básicas da Dialética, é sobretudo a partir de Marx e Engels, que se vai tirar lição prática de princípios, tais como o da interação universal, o da unidade dialética dos contrários, o da mudança universal, o da transformação da quantidade em qualidade...
É bem nessa perspectiva teórico-metodológica que também apontam os escritos de Paulo Freire. E, a despeito de isso se produzir em uns mais do que em outros de seus textos, é principalmente no conjunto de seus escritos, que melhor se verifica tal orientação metodológica e ideopolítica.
Sua reiterada referência à condição humana como um ser de relações atravessa, explicitamente ou não, o conjunto de seus escritos. Nela radica fundamentalmente seu conceito de dialogicidade. Ocorre que o exercício do diálogo supõe uma condição de igualdade entre os dialogantes. Graças à maior proximidade de Freire à perspectiva marxista, é que - diferentemente de certas interpretações que se pretendem ideologicamente assépticas de Freire - compreende-se que a proposta freireana de diálogo não possa ser entendida como uma experiência incondicional, mas, antes, historicamente situada. Diálogo se dá entre semelhantes e mesmo entre diferentes, desde que não antagônicos.
Situação ainda mais complicada, quando se trata de uma sociedade atravessada por profundos antagonismos de classe. Como empreender diálogo entre forças antagônicas? Nada surpreendente a posição freireana de "Nenhuma vinculação dialogal entre estas elites e estas massas" (EPL, 1989: 47).
Tal como para a grade marxista de leitura da realidade social, também para a de Freire, as relações dominantes numa sociedade de classes, enquanto esta persistir, só podem ser de exploração, de dominação e de alienação, até porque "se há algo intrinsecamente mau, que deve ser radicalmente transformado e não simplesmente reformado, é o sistema capitalista mesmo, incapaz, ele sim, de resolver o problema com seus intentos 'modernizantes' ". (ACL, 1984:58).
Eis a razão por que o conceito de classes sociais passa a ser uma chave indispensável de leitura e de interpretação dos fenômenos nela registrados EPL, 1989; PO, 1970; ACL, 1984; EM, 1999). A despeito de necessárias atualizações no dizer, o essencial desta avaliação vai acompanhar Paulo Freire, ao longo de seu percurso histórico (cf. PE, 1992; ASdM, 1995; PA, 1996).
Traço igualmente forte da/na práxis freireana, que também remete talvez mais diretamente a Marx do que ao Marxismo (pelo menos em algumas de suas formulações), é a sua convicção tantas vezes reiterada, de que a libertação não irrompe como dádiva da classe dominante, mas como obra dos próprios trabalhadores. Para Freire, com efeito, a Pedagogia do Oprimido consiste naquela "que debe ser elaborada con él y no para él, en tanto hombres o pueblos en la lucha permanente de recuperación de su humanidad." (PO, 1970: 40).
Pensamento estreitamente ligado a um outro valor
tão caracteristicamente freireano: o de autonomia
Outra presença marcante do referencial marxista no pensamento freireano, ao longo de seus textos, é a do conceito Trabalho. Ao se (re)ler textos seus como Cartas à Guiné-Bissau, A Importância do Ato de Ler, entre outros, percebe-se o alto grau da influência recebida por Freire do referencial marxista. Chama especialmente a atenção o enfoque do Trabalho, em sua omnilateralidade, destacando bem noções tais como a dimensão educativa do trabalho, a associação trabalho intelectual - trabalho manual, bem como sua dimensão transformadora. Eis por que não hesitava em afirmar que "Vai chegar um dia em que, em São Tomé e Príncipe, ninguém trabalhará para estudar nem ninguém estudará para trabalhar, porque todos estudarão, ao trabalhar." (IAL, 1982: 71).
Tal é o lugar que Freire atribui ao Trabalho no processo de libertação, ao ponto de afirmar que, vitimado pela violência desumanizante imposta pelo sistema de opressão, o ser humano, no esforço de resgate de sua verdadeira condição, não tem outra opção a não ser a de encampar "La lucha por la liberación, por el trabajo libre, por la desalienación" (PO, 1970:38-39). Ao que também acresce a necessidade de se articular adequadamente estudo e trabalho, tarefa a ser proposta especialmente à juventude, sem qualquer caráter impositivo, mas sim pelo convencimento, até porque
"Uma sociedade que sonha com ir se tornando, no desenvolvimento de seu processo, uma sociedade de trabalhadores, não pode deixar de ter, no trabalho livre, na produção do socialmente útil, uma fonte fundamental do homem novo e da mulher nova, coincidentes com tal sociedade." (CGB, 1978: 72).
De suas leituras de Hegel e de Lukács, Freire também recolhe alguma inspiração em forma de expressões tais como "seres para si" (PO, 1970:38), expressão análoga ao conceito de "classe para si". Condição, por sua vez, constitutiva do seu caráter de autonomia, à medida que
"Su lucha se da entre ser ellos mismos o ser duales. Entre expulsar o no al opresor desde "dentro de sí. Entre desalienarse o mantenerse alienados. Entre seguir prescipciones o tener opciones. Entre ser espectadores o actores." (PO, 1970: 45).
À semelhança de outros, Paulo Freire manteve sempre viva a idéia, o valor da autonomia, como elemento essencial à condição humana. Terá sido mera coincidência o fato de que justamente Pedagogia da Autonomia tenha sido um de seus últimos escritos?
O referencial marxiano ou marxista faz-se ainda presente nos escritos de Freire, pelo menos quanto a dois aspectos: a aposta na transformação, na reinvenção do mundo e no papel do intelectual orgânico (individual ou coletivo), ainda que, quanto a este último ponto, Freire, ao enveredar por categorias gramscianas, o faz de maneira mais livre, nem sempre remetendo explicitamente à fonte.
No tocante ao aspecto da necessidade de mudar o mundo, o homem, a sociedade, dificilmente se lê um de seus textos que não venha carregado deste valor, de uma maneira algo obstinada. De tal modo é o compromisso de Freire com a mudança, que já no processo de alfabetização, isso parecia claro: "o processo de alfabetização deve relacionar o ato de transformar o mundo com o de pronunciá-lo. Não há "pronúncia" do mundo sem consciente ação transformadora." (ACL, 1978: 50).
No que tange ao papel do intelectual orgânico, o texto que reúne suas cartas dirigidas aos educadores-educandos da Guiné-Bissau constitui uma referência privilegiada, a não perder de vista. Ao mesmo tempo que combate o espontaneísmo da ação político-educativa, sublinha o papel dos animadores e animadoras não só do processo de alfabetização, como também o seu compromisso com a organização da sociedade, numa perspectiva crítico-transformadora, revolucionária, pois para Marx (cf. Tese 11, ad Feuerbach) como para Freire saber é sobretudo transformar: "Sólo existe saber en la invención, en la reinvención, en la búsqueda inquieta, impaciente, permanente que los hombres realizan en el mundo, con el mundo y con los otros." (PO, 1970: 77).
Nesse mesmo sentido, reiteradamente sublinhava a importância da "questão fundamental da leitura da palavra, sempre precedida pela leitura do mundo. A leitura e a escrita da palavra implicando uma re-leitura mais crítica do mundo como "caminho" para "re-escrevê-lo", quer dizer, para transformá-lo." (PE, 1998: 44; ALMLP, 1990).
Também sobre ele a figura de Che Guevara exerce verdadeiro fascínio, sobretudo como revolucionário que não abria mão de sua condição de ser amoroso, apesar e para além do desgaste que o Capitalismo confere à palavra amor. Daí a razão por que não hesita em citar o Che, numa de suas confissões a Carlos Quijano:
"Déjeme decirle, a riesgo de parecer ridículo, que el verdadero revolucionario está guiado por grandes sentimientos de amor. Es imposible pensar en un revolucionario auténtico sin esta cualidad." (ap. Freire, PO, 1970: 106).
Como se pode perceber, apresenta-se bem nitidamente a influência do pensamento marxista nos escritos de Paulo Freire. Daí sua viva reação às críticas e cobranças infundadas, a esse respeito. Em seus escritos, percebe-se um tom de justa indignação em face da dúvida sobre sua posição de marxista, ao que responde, ora revelando-se solícito às críticas como elemento necessário ao desenvolvimento pessoal (ver, por exemplo, sua autocrítica diante das considerações feitas por um homem do povo, após sua conferência sobre a questão da violência, feita no bairro de Vasco da Gama, na periferia de Recife, bem como sua receptividade às críticas das mulheres estadunidenses quanto à sua linguagem machista, relatada em PE, 1998); ora advertindo sobre o risco de se generalizar uma crítica feita em cima de uma afirmação do autor, num dado momento, estendendo-a ao conjunto dos escritos (cf. ACL, 1978: 131), ora mostrando a impertinência da crítica, ora contestando a pretensa uniformidade de critérios de fidelidade à corrente.
No caso de quem o acusava de haver preferido a categoria "oprimido", em vez da categoria "classe", argumenta que, ao dar-se o trabalho de reler sua Pedagogia do Oprimido, constatou que a categoria "classe" aparece às dezenas de vezes, e que não faz parte do seu estilo limitar-se a reproduzir literalmente frases de efeito, tão ao gosto de pretensos marxistas que se arrogam a condição de exclusivos guardiães da pureza doutrinária, contestada pelo próprio Marx, em relação a alguns em quem não se reconhecia ("Eu só sei que não sou marxista", escreveria ele, em uma de suas cartas).
Em outras fontes também bebeu Paulo Freire. Amplo é o leque de interlocutores com quem se punha a dialogar. Andarilho dos quatro cantos, sempre soube retirar fecundas lições de sua condição de peregrino. E uma das marcas mais destacadas do peregrino é sua capacidade de, ao sair pelo mundo afora, inebriado pela curiosidade epistemológica e embalado pela aventura da Utopia, estabelecer relações amorosas com as gentes dos distintos continentes. Experiência da qual resulta um profundo aprendizado, sobretudo no caso deste extraordinário aprendiz, ou melhor, deste educador-educando.
Uma ligeira olhadela sobre a bibliografia que lhe serve de apoio, ou de ponto de partida, para suas densas elaborações teóricas, oportuniza identificar um leque de figuras com quem Paulo Freire interage. Chama a atenção, entre outros aspectos, a diversidade de nacionalidades, a indicar sua fina sensibilidade para as relações de espacialidade, que tão bem sabia administrar, de modo a curtir amorosamente sua condição de nordestino nascido em Recife e, ao mesmo tempo, sem xenofobia, abrir-se ao diálogo de saberes com outras gentes e outras pessoas. Admira e externa gratidão para com Tristão de Athayde, Álvaro Vieira Pinto, a quem (juntamente com o prof. Guerreiro) atribui a paternidade do conceito conscientização (cf. C, 1980: 25), tomado como uma espécie catalisador heurístico. Com Erich Fromm se afina extraordinariamente, desde muito cedo, bem como com expoentes do Personalismo, notadamente com Mounier. Da corrente existencialista, dialoga com Jaspers, com Marcel, com Sartre, entre outros. Apóia-se com freqüência em Niebuhr. Ainda figuram entre seus interlocutores nomes como Amílcar Cabal, Samora Machel, L. Goldman, Marcuse, Simone de Beauvoir, entre outros. Desta última, fazendo-se uma analogia com o filosofar de Paulo Freire, pode-se dizer que em ambos é muito forte a ênfase no ser humano como devir.

2. Mundo-homem-sociedade: uma relação dialética
O primeiro aspecto que trato de salientar nos escritos freireanos acerca do tema em análise, diz respeito ao dialético entrelaçamento da abordagem que Paulo Freire sempre apresenta das três dimensões aqui focalizadas, ou seja: de sua concepção de mundo, de homem e de sociedade.
Partindo, não raro, de uma inquietação situacional, ou seja, do pólo "mundo" - que ele aborda dentro de uma pluralidade semântica -, Paulo Freire logo trata de associá-lo e estendê-lo aos demais pólos da relação ("homem" e "sociedade"). E, ao fazê-lo, não lhes concede um espaço simétrico: às vezes, ocupa-se bem mais amplamente do pólo "homem" ou do pólo "sociedade".
O elemento "sociedade" desponta em vários dos escritos freireanos como um espaço fortemente condicionante da ação humana, mas nunca determinante, por si só, do destino humano. Nos momentos mais desafiadores da trajetória humana, sempre irrompe o "inédito viável" como uma luz no fim do túnel, pro-vocando, con-vocando os humanos, com o sopro da Liberdade, a não sucumbirem à tentação de quaisquer determinismos.
De todos os modos, porém, os três pólos nele se manifestam sempre como uma unidade dialética, em que um se acha necessariamente remetido aos demais, e vice-versa, mediante uma espécie de ímã relacional, em virtude do qual nenhum deles se basta, visto que "Estar no mundo implica necessariamente estar com o mundo e com os outros." (ASDM, 1995:20). Eis por que os pólos desta relação se distinguem, mas não se cindem, não se separam. Movem-se, antes, pela complementaridade. O que seria o pólo "mundo" desconectado dos demais? Até que ponto o elemento "mundo" manteria o seu sentido, descolado do pólo "homem" ou do pólo "sociedade"? Onde estaria a consciência de "mundo"? De modo semelhante, o mesmo se aplica aos demais pólos da relação. O pólo "homem" sustentar-se-ia apenas sobre si mesmo, sem qualquer consideração ao seu contexto? Ou o que se dá, é, antes, como ele próprio afirma: "Ninguém nasce feito: é experimentando-nos no mundo que nós nos fazemos" (PolEd, 1993:79)? Conseguiria o pólo "homem" entender-se como um ente puramente abstrato, um texto sem contexto, desligado do mundo e da sociedade? Esta, por sua vez, o quê viraria fora do mundo e sem o pólo "homem"? Ainda que não se encontre uma posição explícita de Paulo Freire justamente acerca do conjunto desses pólos, não há dúvida, porém, de que sua aposta recai mesmo é na relação:
"Descubro ahora que no hay mundo sin hombre... como no hay hombres sin mundo, sin realidad, el movimiento parte de las relaciones hombres-mundo."(PO, 1970: 93 e 97).
Por outro lado, seria possível ao ser humano realizar sua vocação ontológica de ser mais, fora da boniteza do mundo, da natureza? O que seria do ser humano sem "Sombra e luz, céu azul, horizonte fundo e amplo"? É o próprio Paulo Freire quem responde: "Sem eles apenas sobrevivo, menos do que existo." (ASdM, 1995:16). Posição, aliás, por ele sustentada há quase trinta anos antes, como ele o fez em Comunicação ou Extensão[2]:
".. o homem, que não pode ser compreendido fora de suas relações com o mundo, de vez que é um "ser-em-situação" (...) Não há, por isso mesmo, possibilidade de dicotomizar o homem do mundo, pois que não existe um sem o outro." (CE, 1979:28).
Reconhecido e apreciado tal vínculo, convém assinalar o caráter dessa relação, que é, antes de tudo, de complementaridade, de afirmação do seu valor recíproco. Não se trata de uma relação de senhor (o ser humano) e escravo (a natureza), conquanto seja difícil negar a empolgação de Paulo Freire diante do fenômeno humano, ao ponto de, em certas passagens, parecer dar margem a uma interpretação antropocêntrica dessa relação, a despeito de que sobre tal risco já parece prevenido, em Pedagogia do Oprimido, ao apostar na vocação de nossa época, cujo sentido se afirma "más antropológico que antropocéntrico" (PO, 1970:38).
Por outro lado, não seria demais cobrar dele, homem de seu tempo, impregnado dos impactantes e absorventes desafios sócio-políticos da segunda metade do século XX, desde o contexto ocidental, uma postura ecologicamente mais equilibrada?
Tento, em seguida, enfocar sua visão de cada pólo individualmente tomado da relação mundo-homem-natureza.

3. Aspectos de sua visão do pólo "mundo"
Convém prevenir, de partida, que não é comum aos escritos de Paulo Freire a referência a este pólo exclusivamente mediante o termo "mundo". Não raro, ele aparece como sinônimo ou com uma idéia próxima ora de realidade, ora de sistema, ora de natureza... Em Educação como Prática da Liberdade, por exemplo, este pólo aparece como a realidade objetiva, a implicar "relações pessoais e impessoais, corpóreas e incorpóreas", enfim, realidade na qual o homem não apenas vive e está, mas com a qual vive e está, em virtude de sua inserção na malha das "relações que o homem trava no mundo com o mundo" (EPL, 1989:39).
Daí por que o pólo "mundo" nele aparece revestido de uma pluralidade de sentidos, ora traduzindo aspectos da materialidade da natureza, ora implicando uma rede de relações sociais. O seu "mundo" começa do mais "imediato e particular: a rua, o bairro, a cidade, o país, o quintal da casa onde nasci." (ASdM, 1995:24), ou de sua recifencidade, desdobrada ou remetida sucessivamente à sua condição de pernambucano, de nordestino, de brasileiro, de latino-americano, culminando com sua condição de cidadão do mundo, terminando por afirmar que "Ariano Suassuna se tornou um escritor universal não a partir do universo, mas de Taperoá." (PE, 1998:88). Por outro lado, os humanos, como seres de relação ontologicamente vocacionados a ser mais, não se contêm no seu pedaço, e sentem-se, ipso facto, arrastados pela curiosidade e pelo gosto da aventura a contemplar outras paisagens, pois, se se fecham em seu mundo, correm o risco de sentirem-se de tal modo próximos do mundo natural, que se sentirão antes parte dele do que como seus transformadores (cf. CE, 1979: 32).
Mas, o pólo "mundo" também compreende os elementos da natureza, seus encantos e mistérios, suas paisagens deslumbrantes, a exemplo da especial atração que as árvores lhe despertavam:
"As árvores sempre me atraíram. As frondes arredondadas, a variedade do seu verde, a sombra aconchegante, o cheiro das flores, os frutos, a ondulação dos galhos, mais intensa ou menos intensa em função de sua resistência ao vento. As boas vindas que suas sombras sempre dão a quem a elas chega, inclusive a passarinhos multicores e cantadores. A bichos, pacatos ou não, que nelas repousam." (ASdM, 1995:15).
Vale destacar, nesta e noutras passagens, a presença relacional de uma variedade de elementos da natureza: flores, frutos, galhos, vento, pássaros, bichos, cheiro, cores, luz, forma... Em Educação como Prática da Liberdade, apresentados como apêndice, encontram-se belos quadros (refeitos por Vicente de Abreu, após terem sido apreendidos os originais de Francisco Brenand), onde figuram situações existenciais das relações homem-natureza. E especificamente sobre esta, notam-se explícitas referências pictoriais a terra, água, sol, vegetais, animais, humanos...
O encantamento nele exercido pelas árvores é igualmente testemunhado em outras ocasiões, como em suas visitas às gentes da África, como em terras da Guiné-Bissau, na reunião com os camponeses à sombra daquela "enorme árvore centenária", por ele interpretada como sendo "uma espécie de centro político-cultural da população" (CGB, 1978:61).
Por vezes, ainda, o mesmo pólo "mundo" passa a ser tomado em seu sentido de realidade social, espaço histórico e, portanto, contraditório, mutável. É o mundo da opressão de classe e de múltiplas contradições. É o mundo da opressão objetiva, cujo sentido, por contemplar mais diretamente o ângulo societário, entendo mais oportuno abordá-lo no espaço destinado à análise específica do tipo de sociedade, como se verá mais detidamente no terceiro tópico do presente texto.

4. Aspectos de sua visão do pólo "homem"
A obra de Paulo Freire é um hino de exaltação à condição humana. Empolga-o sua natureza relacional, a transcender seu caráter de mero ser de contatos. Em Educação como Prática da Liberdade e em Educação e Mudança, por exemplo, ele destaca bem, não apenas a natureza relacional do ser humano, como igualmente o caráter plural de tais relações:
"Há uma pluralidade de relações do homem com o mundo, na medida em que responde à ampla variedade dos seus desafios." (EPL, 1989: 39-40; citação de igual teor em EM, 1979:62).
É este traço constitutivo que ele toma como elemento distintivo entre existir - condição genuinamente humana - e o simplesmente viver - condição animal também característica dos humanos, e por estes transcendida. Eis como, a propósito desta relação, Freire se pronuncia: "Existir ultrapassa viver porque é mais do que estar no mundo. É estar nele e com ele." (EPL, 1989: 40}. Sem esquecer de acrescentar: "e com os outros", como ele próprio explicita em outras passagens (cf. ASdM, 1996: 20). Vale destacar aqui a influência que nele exercem correntes filosóficas tais como o Existencialismo e o próprio Marxismo.
Ser de relação como modo de existir é vocação ontológica dos humanos, completada por outros traços, a exemplo de sua natureza também inconclusa. Inconcluso, aliás, não afeta apenas a condição humana, pois "onde há vida há inacabamento", sendo que "entre homens e mulheres o inacabamento tornou-se consciente". (PA, 1996:55). Este traço de inconclusão Freire estende aos espaços societários, inclusive como condição de quem se reconhece como ser biófilo, portanto ser de esperança, na medida em que "Só na convicção do inacabado pode encontrar o homem e as sociedades o sentido da esperança. Quem se julga acabado está morto." (EPL, 1989:53)
O ser humano, mesmo guardando sua dimensão cósmica, não "cai da estratosfera". Tem sua raiz na terra. Ao sentir-se parte efetiva e afetiva do Planeta Terra, sabe-se enraizado num pedaço de terra, numa determinada região, com a qual ou na qual se sente mais intimamente identificado, sem deixar de manter-se aberto aos valores de gentes de outras terras. Referindo-se ao seu retorno ao Brasil, após tantos anos de exílio, Paulo Freire declarou nunca haver pensado antes "sofrer tão profundamente a falta do Recife. A falta do céu, do mar, da pitangada, do sorvete de verdade... dos amigos, da maneira dolente de se falar o português do Brasil." (EECV, 1991:71).
Tal é a sua paixão pela terra-raiz que, embora humildemente relutante em se julgar poeta, produz um belo poema de amor à sua terra: "Recife sempre" (cf. a versão integral publicada em AH, 1987: 153-160).
Por Paulo Freire o ser humano é também entendido como um ser que se faz , em suas relações no mundo, com o mundo e com os outros, pelo trabalho livre, graças ao exercício de sua condição de ser curioso/crítico/criativo. Faz parte da condição de quem existe, tornar-se continuamente para ser mais., afinal de contas, afirma Freire, "Não nasci... Vim me tornando" (PolEd., 1993::87). Qualquer semelhança do pensar freireano com o de clássicos e contemporâneos seus não é mera coincidência, como é o caso da conhecida formulação de Simone de Beauvoir, segundo a qual "mulher não nasce, mulher se torna".
Inspirado nesta perspectiva, podemos estender a validade de tal premissa para outras situações. Não apenas para o ser humano, em geral, como igualmente para diversas expressões culturais específicas do seu existir. É assim que, nas relações sociais de gênero, a afirmação de Beauvoir ganha vigência não apenas para o pólo feminino, tornando-se conseqüente também dizer que o pólo masculino pode até nascer macho, mas para ser homem, tem que se tornar, ou mais freireanamente dito, tem que ir se tornando. O mesmo se diga a propósito das relações étnicas: negro de pele pode até nascer, mas Negro fundamentalmente tem que ir se tornando, à medida que passa a assumir a grade de valores ocidentais já não como "a", mas como uma referência entre outras, destacando-se a que se reporta à da Mãe-África.
Uma das conseqüências impactantes de tal compreensão reside na sua capacidade de ajudar a superar a tendência a se reduzir a negritude à sua dimensão biológica (pigmentação), bem como a tendência a se reduzir a condição humana à dimensão macho/fêmea com que se nasce. É tal distinção que ajuda a compreender o fato de se encontrarem homens com sensibilidade normalmente atribuída a mulheres, do mesmo modo que mulheres cuja grade de valores tem mais a ver com perfil de machos ou de fêmeas do que com de mulheres ou de seres humanos integrais. De modo semelhante, ocorre no campo étnico. Há pessoas louras que encarnam melhor os valores de negritude do que outras nascidas com pele escura, do mesmo modo como se encontram trabalhadores que encarnam mais os valores do patronado do que os de sua classe...
Digna de nota é a reiterada e entusiástica referência de Paulo Freire ao ser humano enquanto ser curioso, um pressuposto do existir humano. É a curiosidade que impulsiona o ser humano a sair de si, em busca de aventuras e descobertas, de modo a sentir-se constantemente motivado a ir em busca do "inédito-viável".
Por mais prazeroso que lhe resultasse o ato de escrever - e como e quanto escreveu! -, Paulo Freire preferia combinar tal atividade com outros quefazeres. Por maior que fosse seu encanto de ensinar - o que fêz uma enormidade! -, nunca pretendeu fazer só isso: "Mas o que eu não faço é ficar apenas como professor". (EECV, 1991: 97).
Não é surpresa que, a aceitar o convite de permanecer uma temporada de dois anos nos Estados Unidos, na Universidade de Harvard, preferiu ficar seis meses, e depois seguir para Genebra, para trabalhar no Conselho Mundial de Igrejas, que, à época, oferecia privilegiadas condições para uma relação orgânica - inclusive de militância como Educador - especialmente com os países e as gentes da África, em suas lutas de descolonização. Eis por que ele estava "absolutamente convencido de quão útil e fundamental seria para mim correr mundo, expor-me a contextos diversos, aprender das experiências, rever-me nas diferenças culturais." (PPP, 1986}.
Em Paulo Freire a curiosidade constitui uma característica que o transforma em ser indagador, fazendo-o "reconhecer a existência um ato de perguntar ." (PPP, 1986:51). Atributo que se manifesta de modo mais elaborado sob a forma de curiosidade epistemológica (PA, 1997).
Ser de relação no e com o mundo e com os outros, o ser humano abre-se ao desconhecido, a aventuras, a correr mundo, para transformá-lo e transformando-se, e, ao fazê-lo, assume sua condição de ser político, de militante, de protagonista, pois "Já não se satisfaz em assistir. Quer participar." (EPL, 1989: 55).
De tal modo a dinâmica praxística o vai envolvendo, que já não há como se isolar das práticas participativas e transformadoras, posto que não apenas a militância lúcida o ajuda a superar suas propensões individualistas, como também porque "o educador, o intelectual engajado, cimentado com o oprimido, não pode limitar-se a conscientizar dentro da sala de aula. Deverá aprender a se conscientizar com as massas.", até porque "a organização da sociedade é também tarefa do educador. (...) E, para isso, o seu método, a sua estratégia é muito mais a desobediência, o conflito, a suspeita do que o diálogo. (...) O papel do educador de um novo tempo... é mais a organização do conflito, do confronto do que a ação dialógica." (EM, 1979:12-13; cf. também CGB, 1978: 165).
Condição que o remete a tornar-se ser da práxis, em sua determinação de buscar reinventar o mundo, uma vez que é um ser do trabalho e da transformação do mundo, por sua ação e por sua reflexão devidamente articuladas na e pela práxis.
Práxis que o leva a tornar-se mais preparado para o exercício da autonomia, nos desafios do dia-a-dia. Autonomia em Paulo Freire é bem mais do que um vocábulo da moda. Trata-se, antes, da experiência da busca de Liberdade, por caminhos pontilhados de riscos, de desafios e de rebeldia. Embora ontologicamente vocacionado à Liberdade, só a quem se atreve a correr risco a Liberdade se deixa alcançar.
Vocacionado à Liberdade, o ser humano busca responder através de sua disposição de cavar, sem cessar, espaços de autonomia, em vista de um renovado compromisso com a causa emancipatória, seja no plano pessoal, seja no âmbito coletivo.
Ao longo de sua trajetória, ele mesmo se viu com freqüência confrontado a situações embaraçosas, das quais soube se sair, graças à sua paixão pela Liberdade, ao sue cultivo da virtude da rebeldia. Ocorrem-me, de passagem, dois incidentes. O primeiro incidente se deu por ocasião dos preparativos de uma viagem sua aos Estados Unidos, atendendo a convite de universidades. Ao se dirigir à respectiva embaixada , para apanhar o passaporte com o visto de entrada, deparou-se com um atendente que, antes de lhe entregar o documento, teve a petulância de perguntar-lhe se era filiado ao Partido Comunista. Paulo Freire não hesita em repelir a pretensão inquisitorial do funcionário da embaixada, respondendo que, qualquer que fosse a posição da embaixada quanto ao visto - afinal estava viajando para atender a convite de universidades estadunidenses - não tinha por que lhe prestar contas de suas opções político-ideológicas. Sua ida aos Estados Unidos era apenas resposta a convite do interesse de cidadãos estadunidenses. Silenciado pela firmeza de caráter do interlocutor, o funcionário desconversa e lhe devolve o passaporte, com o visto assinado.
Outro episódio se passa, por ocasião de uma proposta que lhe fora feita por uma editora francesa, de publicação de um de seus livros. Alegando falta de rigor e de espírito científico, a tal editora se mostrava resistente a incluir a dedicatória do seu livro, dirigida aos seus familiares mais íntimos. Mais: pretendia pagar ao autor apenas 5% da primeira edição, ficando as outras de exclusividade da editora... É claro que Paulo Freire recusou com toda a ênfase.. O livro seria publicada por Éditions du Cerf. (cf. AH, 1987: 92).
Ser livre, em Feire, é conquistar e exercitar a faculdade de dizer a sua palavra, de pronunciar o mundo; é a condição do ser humano de responder com solicitude à sua vocação de protagonista de seu destino. Instiga-o a posicionar-se diante de "sua ontológica vocação de ser sujeito" (EPL, 1989: 36), o que implica coragem, denúncia, rebeldia, valentia do amor, pelo que tem a oferecer "mãos de trabalho, não de mendicância".
Trilhar tais veredas demanda um custo. Liberdade tem preço: o preço da honradez e da ética. Só enquanto é capaz de desalojar o opressor, de extrojetá-lo de sua consciência, é que o oprimido se sente aproximar-se do horizonte da Liberdade, e vê-se encorajado a superar a esquizofrenia pessoal e coletiva que o leva, com espantosa freqüência, a pensar uma coisa, sentir uma segunda e fazer uma terceira. É o estigma da dualidade criada pela opressão. Só a partir de sua decisão de romper progressivamente com as práticas e os métodos do opressor (individual ou coletivo), é que o oprimido (enquanto pessoa e enquanto grupo/classe) vai sendo capaz de recuperar sua condição de biófilo, de ser livre ou em contínuo processo de libertação.
A aposta freireana na força libertária da autonomia não diz respeito apenas à relação do oprimido em face do opressor. Tem que se manifestar também nas relações entre os parceiros e aliados. Entre os componentes do partido, do sindicato, da universidade, da escola, dos movimentos populares, dos espaços eclesiais, etc., não faz sentido baixar a guarda quanto ao exercício da autonomia, que deve caracterizar as relações entre protagonistas. Nas relações entre dirigentes e base, não deve haver lugar para atitudes verticalistas. O respeito à autoridade só se faz por merecer, quando a recíproca também se cumpre, Nada de obediência cega, pois, como afirma Giulio Girardi, "Toda obediência incondicional, a quem quer que seja, é um ato de imoralidade." Esta também é bem a posição de Paulo Freire, pelos inumeráveis exemplos de situações por ele referidas.
A autocrítica é outra importante condição de humanização, na perspectiva de Paulo Freire. Tendo em vista o caráter perfectível próprio do ser humano, não há como atribuir-lhe uma criticidade absoluta e ininterrupta. Ou uma sabedoria ou uma ignorância também absolutas. Se assim é, nada mais natural que reconhecer a condição falível de todo ser humano, de ateu a papa; de santo a pecador. Por outro lado, reconhecida a falibilidade, não há como se pensar um ser humano que busque ser mais, sem que aceite a necessidade da autocrítica. Até como pressuposto para a legitimidade do exercício da crítica a outrem, importa começar de si.
E, também aqui, várias foram as circunstâncias em que Freire se viu confrontado com o desafio da autocrítica. Foi bem o caso de quando, ao receber críticas de feministas - de que ainda mantinha uma postura discursiva machista, ao usar sempre o plural masculino para sujeitos de ambos os gêneros, mesmo quanto as mulheres formavam maioria - tratou de reconhecer e superar tal postura, não sem alguma hesitação. (cf. PE, 1998: 67).
Muitos anos antes mesmo desse episódio, quando, jovem professor em Recife, ouve de um homem do povo uma intervenção que Freire guardaria como uma lição inesquecível. Após uma bela conferência sua, acerca do problema da violência em família, de que eram vítimas as crianças por parte dos próprios pais, aquele homem do povo toma a palavra e lhe pergunta se ele conhece mesmo as condições concretas, em que vivem os pais "violentos", e passa a fazer um paralelo entre as condições de vida destes, em relação às do conferencista... (cf. PE, 1998: 25-26).
A vocação humana para a Liberdade também implica aprendizado dos intelectuais mediante sua inserção nos meios populares. Atitude freqüente entre os chamados intelectuais acadêmicos é a de não raro se acharem no direito de ditar ordens para que o povo cumpra, sem participar das decisões, a não ser de decisões superficiais, pro forma. Atitude que tem a ver com um forte ranço autoritário, herdado de não poucos processos característicos de tendências vanguardistas. Em múltiplas experiências de militância (partidária, sindical, acadêmica, eclesial e até no movimento popular), observa-se uma considerável reiteração de tais práticas.
A superação de descaminhos desse tipo dificilmente se dá, se os animadores/militantes/assessores continuam distanciados das bases que dizem representar. A convivência ou a proximidade com as gentes se apresenta como um requisito básico de uma prática de Educação Popular conseqüente.
Também neste particular, é digna de nota o esforço de Paulo Freire de jamais abrir mão de algum tipo de relacionamento (direto ou indireto) com a gente do povo, com as pessoas simples, com quem sempre tanto aprendeu, como ocorreu em sua visita de trabalho junto aos camponeses de Dominica, uma ilha do Caribe. Homem de classe média, de hábitos urbanos, hospedado numa casa de camponeses, teve que lidar com algumas situações embaraçosas (para o visitante, não para os camponeses!), relativas ao cotidiano daquela gente (Como andar por caminhos lamacentos? Onde ficará o banheiro? Como fazer para tomar banho?):
"Foi então que percebi o quanto estava distante da vida concreta, do cotidiano dos camponeses e camponesas, apesar de haver escrito o livro, cuja leitura em seus círculos de estudo os fizera me convidar para vir com eles conversar." (PE, 1998: 164-165).
Situações como esta passam a ter, na concepção freireana de ser humano, um efeito ao mesmo tempo epistemológico e ético. Ainda que ao intelectual aliado das classes populares não seja cobrado morar na favela, vestir igualzinho aos seus moradores, comer o mesmo prato e partilhar semelhantes situações, até porque isso, por si, não apagaria suas marcas "de fora", não se deve desconhecer, por outro lado, que o distanciamento ou o sistemático isolamento dos intelectuais, em relação ao meio popular, produz um efeito de certo alheamento das condições concretas. E isso tem conseqüência também epistemológica, na medida em que o priva de um olhar mais "de dentro", limitando não raro a qualidade de sua análise e de sua intervenção, como aliado.
Maior ainda do que o efeito epistemológico é o de caráter ético, do qual passamos a nos ocupar, a seguir.
Em Paulo Freire, o ser humano historicamente situado (no mundo e com o mundo), ao se apresentar como ser de relações, mostra-se perfectível, inacabado, em permanente devir. Impulsionado pela sua curiosidade, como caminheiro em busca de novas paisagens, vocacionado a ser mais. Graças ao seu potencial criativo, crítico-propositivo, exercitado pelo trabalho transformador de si, do mundo e da história, em direção aos utópicos rumos da Liberdade, também cuida de tornar o seu cotidiano um mostruário do seu projeto, empenhando-se em que suas práticas sejam capazes de sinalizar o tipo de sociedade e de mundo que se acham comprometidos em construir. Eis aqui explícita sua inquietação de caráter ético, na medida em que trata de estabelecer critérios de conduta e de ação capazes de articular adequadamente seu pensar, seu sentir e seu agir.
São bastante freqüentes as passagens dos textos freireanos que situam a ética como um dos valores axiais do ser humano, razão por que não hesita em declarar que "falo da ética universal do ser humano da mesma forma como falo de sua vocação ontológica para o ser mais" (PA, 1997: 21), a despeito das vicissitudes sócio-existenciais, afinal de contas se trata de um ser historicamente condicionado, não determinado.
É uma constante nos escritos de Paulo Freire sua inquietação ética, seu permanente cuidado com articular teoria e prática, sua busca de coerência. Lembro de já haver lido em algum dos seus textos (não saberia precisar, no momento), que ele leva tão a sério a questão ética, a ponto de, em última instância (já que uma se acha ligada à outra, mas não são a mesma coisa) preferi-la à dimensão política.
Num tempo em que se torna quase um hábito, na intelectualidade, o crescente hiato entre o dito e o feito, e em que, sob a inspiração de certas formulações pós-modernas, até se tenta fazer do passado tabula rasa, não sendo raro os que sugerem que esqueçam seus escritos recentes e menos recentes, é confortador ouvir Paulo Freire, também a este respeito:
"Até hoje, sem exceção, nenhum dos poucos livros que escrevi deixou de ser uma espécie de relatório, não burocrático, é certo, de experiências realizadas ou realizando-se em momentos distintos da atividade político-pedagógica em que me acho engajado desde o começo de minha juventude." (CGB, 1978: 173).
A visão freireana de ser humano é, em resumo, de caráter omnilateral. Feito para ser mais, o ser humano é ontologicamente chamado a desenvolver, nos limites e nas vicissitudes de seu contexto histórico, todas as suas potencialidades materiais e espirituais, buscando dosar adequadamente seu protagonismo no enorme leque de relações que a vida lhe oferece, incluindo as relações no mundo e com o mundo, as relações intrapessoais, interpessoais, estéticas, de gênero, de etnia, de produção. "Daí sua ação não poder incidir sobre as partes isoladas, pensando que assim transforma a realidade, mas sobre a totalidade." (EM, 1999:21).
Trata-se, com efeito, de um processo no qual a educação cumpre um papel indispensável. Não pelo fato de ela em si bastar como alavanca do desenvolvimento social, mas porque, sem ela, este não se alcança. Eis, em breve, como Freire aposta na educação integral do ser humano:
"La educación debe ser considerada como um proceso de desarrollo integral del hombre" de modo que "es necesario considerar todo el proceso de formación humana para que el hombre, dearrollandose continuadamente, tome siempre más conciencia de sus posibilidades de participar como productor, como consumidor o usuario, como creador o innovador de los dinamismos socio-económicos que transforman sus medios." (ECS, s/d: 35-36).

5. Sua visão de sociedade
Na visão freireana de sociedade, esta constitui um espaço contraditório de relações sociais historicamente tecidas. "Fechada" - é como ele via a sociedade brasileira, nos anos 60. Não tardaria a enfrentar traços semelhantes, em outras sociedades latino-americanas. E para além delas, afinal o Capitalismo se estende pela maior parte das por onde, "andarilho da Utopia", teve que peregrinar.
Sociedade de contradições extremadas, terreno propício para a formação de situações de dualidade, algo como uma esquizofrenia individual e coletiva, a afetar opressores e oprimidos, estes, sobretudo, condicionados a uma situação "en la cual ser es parecer, y parecer es parecerse con el opresor" (PO, 1970: 41). Terreno fértil para a fermentação da diversidade de justificativas ideológicas introjetadas pelo opressor e alimentadas pelo oprimido coisificado.
Apesar de toda a carga ideológica administrada aos oprimidos, estes, uma vez estimulados a recuperar sua identidade de sujeitos de sua história. Mediante debates, encontros, engajamento nas lutas, passam a se conscientizar, a descobrir a sociedade em que vivem. À medida que constroem ferramenta capaz de romper o véu ideológico em que se acham envoltos os mecanismos de opressão, vão descobrindo o caráter histórico, e portanto mutável, da sociedade. De meros integrantes acríticos de uma classe sofrida ("classe em si"), passam também a identificar-se criticamente enquanto membros de uma classe, sabendo a favor de quê e de quem e contra quê e contra quem são historicamente desafiados a lutar. E aqui, vão percebendo que sempre vale a pena dialogar com os iguais e com os diferentes, com quem vão aprendendo e se completando; nunca, porém, com os antagônicos: é trabalho perdido, além de ameaça de suicídio, é pretender o diálogo do pescoço com a guilhotina,,, (cf. EPL, 1989, 47; PO, 1970: 188-190).
Eis por que, para Paulo Freire, a tarefa histórica dos oprimidos é libertar-se e, em se libertando, libertar os próprios opressores. Na busca de tal vocação histórica, os oprimidos precisam de alimentar um rumo utópico, sob pena de se perderem nos labirintos e armadilhas interpostos ao seu caminhar, afinal, como afirmava José Dolores, personagem do filme Queimada, "É melhor saber para onde ir, sem saber como, do que saber como e não saber para onde ir." Não se trata evidentemente de nenhum rumo acabado, pré-estabelecido. Mas, antes, de uma espécie de bússola que lhe permita não se perder na travessia. O próprio Paulo Freire reconhece tal necessidade:
"Ao falar de projeto global da sociedade, não faço como se estivesse tomando-o como uma idéia abstrata, um desenho arbitrário, algo acabado na imaginação de uma liderança. Refiro-me, sim, a um certo número de metas, solidárias entre elas e coerentes com um certo objetivo no campo da organização econômica e social" (CGB, 1978: 121-122, Carta no 3).
Essa leitura - questionam não poucos - não parece bem apropriada à realidade social dos anos 60 e 70, mas anacrônica para a atual conjuntura? Homem do seu tempo, o Paulo Freire dos anos 90 mantém-se ainda aferrado a tal visão de sociedade, após a queda do Muro de Berlim, do desabamento dos regimes do Leste europeu e do fracasso do "socialismo"? Por certo, homem do seu tempo, Paulo Freire sempre teve o cuidado de se atualizar, de exercitar uma interlocução com outras correntes de pensamento e de, qual abelha em busca do néctar, recolher elementos variados, desde que não antagônicos à sua Utopia de reinvenção do mundo e das relações sociais e humanas.
Para tanto, ao acolher positivamente os avanços tecnológicos, nunca abdicou de fazê-lo, de modo crítico, a exemplo de como se posiciona frente à utilização de novas tecnologias, no caso específico da penetração da informática nas escolas: "Já disse que faço questão de ser um homem do meu tempo. O problema é saber a serviço de quem, e de quê, a informática estará agora maciçamente na educação brasielira" (SED2,1984: 83).
Toda essa atualização se dá, por conseguinte, com base em princípios éticos e políticos, que não se desmancham com as intempéries conjunturais. Ou seria um mero acaso o que, num dos seus últimos escritos, deixa registrado: "Sou professor contra a ordem capitalista vigente que inventou essa aberração: a miséria na fartura." (PA, 1997:115)?

Referências bibliográficas
FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade, 19ª ed,, Rio: Paz e Terra, 1989.
____________. Extensão ou Comunicação?, 4ª ed., Rio: Paz e Terra, 1979.
____________. Pedagogía del Oprimido, 8a ed., Buenos Ayres: Siglo Veintuno, 1973.
________ ___. Conscientização: teoria e prática da libertação. Uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Moraes, 1980.
___________ . Educación para el cambio social. Buenos Ayres: Tierra Nueva, s/d. (em co-autoria com Ivan Illich e Pierre Furter).
____________. Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos, 3ª ed., Rio"Paz e Terra: 1978.
____________. Educação e Mudança, 23ª ed., Rio: Paz e Terra, 1999.
____________. Cartas à Guiné-Bissau. Registros de uma experiência em processo, 2a ed., Rio: Paz e Terra, 1978.
____________. Sobre Educação (Diálogos), vol. II, Rio: Paz e Terra, 1984 (em parceria com Sérgio Guimarães).
____________. Essa Escola chamada Vida, 7ª ed., São Paulo: Ática, 1991 (em co-autoria com Frei Betto).
____________ Por uma Pedagogia da Pergunta, 2ª ed., Rio: Paz e Terra, 1986 (em co-autoria com Antonio Faundez).
____________. Aprendendo com a própria História. Rio: Paz e Terra, 1987 (em co-autoria com Sérgio Guimarães).
____________. A Importância do Ato de Ler. Em três artigos que se completam, 39ª ed,, São Paulo: Cortez, 2000.
____________. Alfabetização: leitura da palavra, leitura do mundo. Rio: Paz e Terra, 1990 (em co-autoria com Donaldo Macedo).
____________. Pedagogia da Esperança. Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido, 5ª ed., Rio: Paz e Terra, 1998.
___________. Política e Educação, 5ª ed., São Paulo: Cortez, 2001.
___________. À Sombra desta Mangueira. São Paulo: Olho d'Água, 1995.
____________. Pedagogia da Autonomia, 6ª ed., Rio: Paz e Terra, 1997.

(*) Sociólogo-Educador Popular, professor-pesquisador na FAFICA (Caruaru - PE); no CESA-AESA (Arcoverde - PE); no Curso de Magistério do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra, em Bananeiras, Paraíba. Tem colaborado com Programas de Pós-Graduação da Universidade Federal da Paraíba. Assessora movimentos sociais populares e pastorais sociais, desde meados dos anos 60. É autor de Tecelão da Utopia: uma leitura transdisciplinar de Paulo Freire, entre outros escritos. É membro do Centro Paulo Freire e de alguns Grupos de Pesquisa, na região Nordeste.
[1] Entre parênteses se acham assim assinaladas as iniciais dos textos trabalhados: Educação como prática da Liberdade (EPL); Pedagogía del Oprimido (PO); Extensão ou Comunicação? (EC); Ação Cultural para a Liberdade (ACL); Educación para el cambio social (ECS; Cartas à Guiné-Bissau (CGB); Educación para el Cambio Social (ECS); Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire (C); Sobre Educação: diálogos, vol. II (SED1); A Importância do Ato de Ler (IAL); Política e Educação (PolEd); Educação e Mudança (EM); Essa escola chamada vida (EECV); Apendendo com a própria História (AH); Por uma Pedagogia da Pergunta (PPP); Alfabetização. Leitura do mundo, leitura da palavra (ALMLP); Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido (PE); À Sombra desta Mangueira (ASdM); Prdagogia da Autonomia (PA).
[2] A introdução do livro feita pelo autor vem datada de junho de 1968.



João Pessoa, 08 de março de 2002.