terça-feira, 29 de agosto de 2017

NOTAS PARA UMA SOCIOLOGIA DA AGENDA: serrando as jaulas, ensaiando passos libertários...

NOTAS PARA  UMA SOCIOLOGIA DA AGENDA: serrando as jaulas, ensaiando passos libertários...

Alder Júlio Ferreira Calado

O cotidiano expressa uma intrincada rede de relações, da qual cada um de nós, em grupo ou a título pessoal, atua como tecelã(o), a costurar - sozinho ou em mutirão - uma enorme diversidade de fios existenciais, dia após dia. Dependendo da qualidade do fio relacional e do perfil de quem tece, o produto da tecedura caminhará na direção da excelência ou da mediocridade. Ninguém escapa de tecer, de algum modo ou em algum momento, um produto misturado, de qualidade alternada. Aí não reside o problema. Desafio é o empenho de quem tece, no sentido de fazer prevalecer uma tecedura de boa qualidade - materialmente consistente e esteticamente gratificante a quem tece e a quem dele fará uso. Num relance autoavaliativo, como apreciamos a qualidade de nossa tecelagem cotidiana, que tem lugar numa imensa diversidade de espaços sociais e de situações existenciais - do espaço subjetivo ao ambiente familiar; da convivência laboral aos espaços lúdicos; de nossas relações cósmicas às experiências místicas, etc., etc.?  Questionamentos como este nos induzem a pensar numa Sociologia da agenda, entre outras possibilidades de abordagem crítica do alvo de nossas inquietações: como anda nossa agenda? Uma das razões da escolha de uma abordagem sociológica deve-se à complexidade e extensão do seu campo de atuação, uma vez tratar-se de um saber que navega pelo “social”, que, como se sabe, comporta dimensões econômicas, políticas e culturais, trabalhados em suas necessárias interconexões, a possibilitar uma interpretação inter/transdisciplinar, apelando a uma multiplicidade de saberes.  Ocupando-se  a Sociologia, por excelência, das relações sociais, tanto nas macro quanto nas micro-esferas da realiade, e seus entrelaçamentos, as relações do dia-a-dia bem se prestam a uma leitura, sob esta ótica. É o que buscamos fazer, nas linhas que seguem. Começamos por explicitar algumas balizas teórico-conceituais, com o propósito de nos ajudarem, quanto a uma interpretação crítica de nossa agenda como expressão das relações do nosso dia-a-dia. Em seguida, ensaiamos passos de uma crítica de nossa agenda, em diferentes campos de nossa atuação.

1. Balizas teórico-conceituais

Em sua complexidade e em sua extensão, a Sociologia, desde seus clássicos, inclusive Ibn Kaldhun, procura acercar-se da realidade social, como seu campo por excelência. Observar, interpretar e analisar críticamente a tecedura dos fios relacionais do cotidiano interpessoal, comunitário, societal constituem um desafio de monta, para quem ousa  buscar  conhecer, interpretar e extrair ensinamentos úteis ao processo de humanização.

Um primeira cautela a ter-se em conta, nesta direção, é a consciência da complexidade e extensão da realidade social. Dela podemos apenas acercarmos, nunca dela possuir um conhecimento acabado. A realidade social, sendo histórica, está sempre em movimento, de modo a revelar-se-nos apenas em algumas de suas facetas, fazendo-nos escaparem tantas outras, por outro lado, não se trata de algo completamente fora do nosso alcance de sujeitos cógnocentes desde que, sabendo-a em constante movimento, nos diponhamos a acompalha-la, também em movimentos, não nos quedamos estacionado, à espera de os fatos sociai venham espontaneisticamente ao nosso encontro; ao contário, temos que nos mexer, por meio de passos metodicos, em busca de aprendêe-la, ao menos parciamente, já que, no todo escapa a nossa observação. Dentre os passos que nos permitem a cercar-nos dela, sublinhamos: - a observação contínua – trata-se de buscar, acompanhar, o movimento da Realidade, atentando aos multiplos e sucessivos sinais por ela emiditos nas relações do dia a dia  Neste sentido, avaliamos como profundamente fecundo o paradigma indiciário, isto é, aquele  atinente aos sinais, que a vida social, a convivência com a natureza e seus distintos viventes, com os semelhantes, com os diferentes, e até antagonicos, estão sempre a nos oferecer. Não basta, porém, limitar-nos a uma observação qualquer. É preciso exercitar,  sistmática e metodicamente, atentando para os significados dos sinais e das circustancias típicas e atípcas. Mais 2 pontos, importa igualmente registrar-los, uma vez que nossa memória não é capaz, de reter toda a diversidade de manifestações da realidade social. Sendo assim, após observa-la, cuidadosamente, a apartir dos registros sistematicos elaborados, buscar interpretar os seus significados, como condição essencial de uma compreensão adequada da mesma realidade. Passo que também não nos garante uma intervenção exitosa na mesma realidade, mas disto nos aproxima, sendo um passo necessário, mas não suficiente, uma vez que intervir exitosamente na realidade social, em especial em suas raízes mais fundas, demanda-nos recorrer a passos complementares, que envolvem outros saberes e outras práticas sociais.

2. Por uma sociologia de nossas agendas
  
Nossas agendas implicam uma enorme diversidade de atividades, que tem lugar em uma múltipla  gama de espaços socioambientais – cósmicos, biológicos, ecológicos, societais, comunitários, éticos, estéticos, econômicos, políticos, culturais... uma densa, complexa e extensa rede de relações interconectadas, tal como vem bem assinalado no belo poema/canção “Tudo está interligado” ( https://www.youtube.com/watch?v=1do_VBZG9Ps ) .

É justamente aí que se dão nossas relações do dia-a-dia, em função (ou disfunção) das quais organizamos nossas agendas. Se, por um lado, ainda quando nossas agendas se materializam mais diretamente em apenas algumas dessas esferas, é certo, por outro lado, que, direta ou indiretamente, se acham conectadas com todas as demais, estejamos ou não conscientes disto. Neste caso, a busca de nos conscientizarmos progressivamente desta dinâmica interação nos ajuda sobremaneira a lidar melhor, inclusive, no âmbito da(s) com que lidamos mais diretamente. E a recíproca também vem ao caso: nossa não ou insuficiente consciência desta interação empobrece ou esvazia nossa ação libertária, no chão do dia-a-dia.

O que acima vem assinalado não é uma quimera ou jogo de palavras. Para verificarmos o impacto de sua inscidência no nosso dia a dia, é suficiente que nos façamos perguntas do tipo:

- De uma simples lista de nossos sonhos e projetos, quais e quantos conseguismos realizar? E de tantos não realizados, quais e quantos nos mantemos empenhados, em materializar?

- Que fatores nos impedem de alcança-los, trata-se de fatores apenas externos ou, em larga medida, essa não realização, tem mais a ver com a pouca disposição e vontade, de nossa parte de buscar realiza-los?

- Em nosso calendário de atividades a curto, medio e longo prazos, para onde tem apontado: para uma perspectiva de mero cumprimento de rotina (profissional e de outras áreas) ou para um horizonte libertário, horizonte idenfificavel, pela qualidade dos fruto produzidos?

Por outro lado, desponta igualmente útil ao nosso processo de humanização perguntarmo-nos o lugar que em nossas agendas ocupam eventualmente diversas atividades voltadas para além do campo profissional ou estritamente familiar. Sabemos que o processo de humanização incide numa ampla diversidade de fios existenciais ou de quefazeres, que também devem refletir-se, de algum modo, em nosso cotidiano. Fios existenciais que vão da experiência intra-intersubjetiva à dimensão cósmica; do cuidado com a Mãe-Natureza aos cuidados hidro-agroecológicos; de uma saudável erótica ao exercício da mística; das relações sociais de gênero às de etnia; do movimento do corpo às atividades lúdicas; das relações políticas, econômicas e culturais, inclusive ao exercício das artes, em sua bela diversidade... Daí resulta irrenunciável a pergunta: que lugar tais dimensões constitutivas do nosso processo de humanização têm em nossas agendas?


Seria longa a lísta de perguntas. Contentemo-nos por enquanto,  com estas, com o proposito de que nos ajudem a compreender melhor nossas limitações pessoais e  grupais. Com efeito, não se trata de uma auto-avaliação extritamente pessoal, mas também coletiva. Como educadores (individuais e coletivos) somos chamados constantemente a nos reeducar, sempre a partir do que fazemos em nosso dia a dia, e tomando tempo para revisarmos a qualidade de nossas ações, de nossa rotina, como se nos dissessem: “Dize-me da qualidade do teu dia-a-dia,  e dir-te-ei do horizonte que persegues – libertário ou de estério rotina.” Seres vocacionados a buscarmos uma vida em plenitude, porque vocacionados à Liberdade, cuidamos de potencializar nossos dons e talentos, nesta direção, tal como atletas empenhados em superar seus próprios limites, como arqueiros que buscam alcançar seu alvo, por meio do cotidiano exercício do arco e da flecha. Aqui, tem especial lugar o trabalhar a dimensão volitiva (o querer, a vontade), de forma processual, mas efetiva, tentando, sem cessar, ensaiar passos libertários, ao tempo em que buscando serrar as prórias jaulas, manifestas sob múltiplas formas de aprisionamento.




João Pessoa, 29 de agosto de 2017.









terça-feira, 22 de agosto de 2017

RENÚNCIAR-DENUNCIAR-ANUNCIAR

RENÚNCIAR-DENUNCIAR-ANUNCIAR


Alder Júlio Ferrreira Calado


Para quem acompanha, de perto, a trajetória e o legado de Charles de Foucauld, resulta famíliar a profunda interrelaçã destes  três verbos – renunciar-denunciar-anunciar. Muito emblemática, portanto, a escolha temática para um Encontro de membros desta família, bem como de consagrados e consagradas à vida religiosa.

Renunciar – Responder, com generosidade, aos apelos do Espirito Santo, ontem como hoje, implica necessariamente a cada discípulo/discípula de Jesus, disposição de renunciar, com alegria e esperança, a muitas iniciativas e projetos que não condizem com o Projeto do Reino de Deus. O chamamento e a resposta generosa ao mesmo, de buscarmos uma vida em plenitude, já a partir deste mundo, implica escolhas difíceis entre vida e morte, graça e pecado, altruísmo em interesses pessoais... A vida em plenitude assemelha-se à bela paísagem contemplada do alto de uma montanha: só quem se dispõe a escalar-la, consegue desfrutar tal paisagem, afinal “quem quer colher rosas, deve suportar os espinhos.”.
No segmento de Jesus, sofrimento, paixão, morte e outras provações precedem a Ressureição. Em nosso percurso existêncial, são muitas as situações de renuncia, a que devemos estar preparados, com serenidade e confiança, aquela mesma confiança que movia o Apóstolo Paulo a dizer: “Eu conheço Aquele a quem dei a minha adesão.” (Scio Cui Credidi: 2 Tm 1, 12).

Isto é tanto mais frequênte quando se vive -  e é o que sucede - num tempo de profundas contradições, desigualdades sociais e agressões contra Mãe Terra e toda a comunidade dos viventes. Aí, somos chamados a testemunhar atitudes de renuncia, inclusive diante da crescente tendência ao consumismo, à idolatria do ter, do poder e do prestígio.
Denunciar – A começar de nós mesmo, é preciso renovar, dia após dia, o compromisso de buscarmos a justiça do reino de Deus, o que acarreta inevitavelmente o combate às mais diversas formas de prisão e de egoísmo, de poder, de contratestemunhos, vale dizer, denunciar. Em conexão com Renunciar e com o Anunciar, não podemos e não devemos prescindir da vigorosa denuncia a toda forma de escravidão, de egoísmo, de morte, de agressão à Mãe Terra , às mais distintas formas de violência contra as mulheres, contra os povos originários, contra as comunidades quilombolas, contra os povos das águas e das florestas, contra as crianças, os jovens do meio popular, as pessoas idosas, e a toda a comunidade dos viventes. Abastecidos e Energizados pelo dom da profecia somos chamados, como cidadãos e como cristãos a combater todas as manifestações de escravidão do nosso mundo, a começar de nós mesmos. Com efeito, observando o nosso mundo, percebemos um complexo e vasto leque de males, a insidirem  nas relações sociais, econômicas, políticas e culturais do nosso dia-a-dia. No plano econômico, por exemplo, cabe-nos denunciar a crescente concentração de riquezas em mãos de poucos, e em detrimento de crescentes maiorias de nossa gente, gerando níveis insuportáveis de desigualdades sociais, com desastradas consequências, tais como aumento da violência social, da precarização das moradias, do desemprego estrutural e conjuntural, do sub-emprego e das manifestações injustas do trabalho terceirizado, da manutenção e ampliação do latifúndio, do Hidro-Agronegócio, dos estragos e tragédias socio-ambiêntais provocadas pelas trans nacionais e grandes empresas de mineração, das diferentes formas de envenenamento das fontes, dos rios, das oceanos, das plantações, dos solos, lençois freáticos, dos animais e dos humanos.

Ainda no plano das denúncias, cabe-nos, sobretudo, identificar, denunciar e combater as causas estruturais desses males sociais e socioambientais, expressas pelo próprio sistema capitalista hegemônico.

Anunciar  - Tão densa e tão relevante se mostra esta dimensão do exercício da profecia, que, sem prejuízo da consideração singular das demais, apresenta-se como uma síntese capaz de comportar as precedentes. Com efeito, o simples anunciar – em especial, por gestos – as veredas da justiça, da misericórdia, da solidariedade, da partilha, do perdão,do amor, da paz... implica renúncia, implica denúncia. Na parábola do bom samaritano, por exemmplo,  episódio relatado em Lc 10, 25-37. Esta passagem do Evangelho nos impacta, de vários modos, a compeçar pela densiade de verbos nela contidos (perto de uma dezena!): ver, aproximar-se, enfaixar (as feridas da vítima do assalto), pôr (sobre elas vinho e óleo), montá-lo no seu animal, conduzi-lo a uma hospedaria, deixá-lo aos cuidados da hospedaria, arcar com os custos...

Trata-se de uma iniciativa propositiva, de enorme carga protagônica. Movido pela com-paixão, traduz com atos concretos seu sentimento de compromisso com a vida. Isto é anunciar por gestos concretos! Assim procedendo, o bm samaraitano, sem o dizer, está praticando renúncia: tal como sucedeu ao sacerdote e aolevita que, indiferentes à dor da vítima do assalto, passaram ao largo do caminho, ele poderia arrumar alguma autojustificativa, e fazer o mesmo... A atitude do  samaritano acena, igualmente, para uma postura denúncia – ainda que implícita -, à medida que desmascara a postura de indiferença e de omissão.

Todas estas atitudes – de renúncia, de denúncia, de anúncio, e cada uma ao seu tempo e em seu contexto – seguem fundamentais, frente aos desafios pessoais e coletivos de hoje. Dada, porém, a complexidade de nossa atual realidade social, eclesial e psicológica, a do anúncio parece despontar como mais urgente. Tanto ou mais do que ontem, as posturas propositivas parecem merecer mais credibiliade e mais eficácia. Se olhamos,por exemplo, o atual contexto sócio-político, percebemos a fragilização dos atos de mera denúncia, uma vez que isto se faz de modo tão frequente, que soa abusivo e de pouca credibiliade, fato que nos remete à conhecida afirmação feita pelo Papa Paulo VI, em sua Exortação Apostólica intitulada “Evangelii nuntiandi”: “Os homens de hoje escutam mais as testemunhas do que aos mestres. E, se escutam também estes, é porque eles são testemunhas.” (EN, n. 41).
Ainda no plano político, às forças sociais historicamente comprometidas com a construção de um modelo societal alternativo à barbárie capitalista, já não basta apenas reagir à sucessão de desmontes das políticas públicas, mas são chamadas a se reorganizarem de tal modo, a ousarem iniciativas  alternativas ainda que moleculares, como já acontecem em numerosas experiências grávidas de alternatividade, espalhadas pelo Brasil e pelo mundo, a exemplo das experiências agroecológicas e de convivência com o Semi-árido.







João Pessoa, 22 de agosto de 2017



segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Entrevista ao "Jornal A Margem", 14a. Edição.

Entrevista com Alder Júlio, sociólogo, professor, educador popular e, como ele gosta de dizer, um xucuru desaldeado que no fim da década de 1970 ajudou a construir importantes instrumentos de organização da classe trabalhadora e que ainda hoje continua lutando ao lado do povo por uma sociedade sem exploração.


A Margem: Como o senhor iniciou a sua trajetória política? O que o motivou?

Alder Júlio: Eu sou natural de Pesqueira- PE, e como sabem, lá é um território indígena, de um povo originário e com quem tenho muita afinidade. Me sinto de fato um xucuru desaldeado e ao mesmo tempo com uma identidade negra, afrodescendente. São duas referências que eu trago em mim e que tem uma grande importância nessa trajetória, inclusive política. Passei 8 anos da minha vida no seminário. Estudei em Pesqueira, Aracaju e Santa Maria no Rio Grande do Sul. Minha vida de seminarista me distanciou, no começo, dessas lutas, mas em 1963, quando tinha em torno de 15 anos, participei de uma ocupação que houve na serra Ororubá em terras indevidamente apropriadas por fazendeiros da região. Era o governo Arraes e aí havia as Ligas Camponesas, que tiveram a iniciativa de ocupar aquelas terras. Fui chamado a participar por um padre lá em Pesqueira, que era assistente da Juventude Agrária Católica (JAC). Outro ponto importante na militância ocorreu em Santa Maria (RS). Era 1968. Na reunião que fizemos, a Juventude Operária Católica (JOC) estava cumprindo uma tarefa organizada pela Ação Popular. Havia um cuidado grande de atualizar seus militantes. A nossa tarefa consistia em levar ao cemitério, durante a noite antes do dia de Finados, panfletos contra a ditadura. Estávamos há poucos dias da edição do AI-5. Isso me marcou. Voltei para o Nordeste. Continuei meus estudos em Ciências Sociais. Comecei no batente muito cedo, 22 anos, no sertão de Pernambuco, Arcoverde, dando formação para os professores de lá. No final dos anos 1970 havia uma efervescência daqueles movimentos recém-insurgidos para a criação do PT. A gente tratava de granjear parceiros, principalmente do mundo rural, na Paraíba, na parte do Cariri, São Sebastião do Umbuzeiro, Camaraú e outros lugares. Eu ia para animar, para assessorar encontros de trabalhadores do sindicato rural. Esse é um ponto da minha trajetória que me marca bastante. Aí vieram os tempos de ocupação, que se intensificaram. A partir do surgimento da CUT, do PT. Coube a mim acompanhar a formação do PT na região de Arcoverde, em meia dúzia de municípios como Sertânia, Pesqueira, Venturosa, Pedra, Belo Jardim e outros da redondeza.

A Margem: Como foi essa organização?

Alder Júlio: A ênfase era a parte da nucleação, que era uma experiência fundamental. Não importa o nome que a gente empreste a essa experiência. Uns chamavam de conselhos populares, outros de células, outros círculos, pequenas comunidades etc. O nome não importa muito. Qual era o teor da experiência? Era a convicção de que as coisas tinham que se desenrolar desde a base. E a base a quem competia decidir eram esses núcleos organizados de maneira autônoma, não isolada mas interconectada com outras instâncias. Eram esses núcleos as células vivas do movimento, entendendo o partido, o sindicato como um movimento e não depois como uma institucionalidade terrível em que a gente hoje mergulhou.

A Margem: Gostaria que o senhor falasse um pouco mais da importância dos núcleos para a formação de militantes com uma perspectiva ativa, crítica, formuladora e não simplesmente “tarefeira”. Como era o dia a dia dos núcleos?

Alder Júlio: Esses núcleos eram formados por local de trabalho, estudo e moradia. Funcionavam com reuniões semanais em que se discutia a conjuntura de maneira aberta, não havia a figura que apontasse o que era certo e o errado. Havia uma cobrança dos protagonistas de participação, de ouvir fraternalmente as divergências e tomar uma deliberação. A deliberação tomada ia para outras instâncias, porque o núcleo não era isolado. O núcleo tomava as decisões a partir dos desafios da conjuntura, locais também, dos encaminhamentos que eram feitos, a partir das consultas de outras instâncias indicavam que os núcleos tomassem e havia a eleição de delegados e delegadas. Eu friso muito essa concepção de delegação. É um princípio basilar que a gente abandonou em grande parte. Não é a mesma coisa a delegação de um mero representante. A delegação respeita a decisão do coletivo. Mesmo divergindo do coletivo, o delegado tinha que contar o que de fato tinha sido deliberado pelo conjunto. Outra marca desses núcleos era o princípio da coordenação colegiada. Tínhamos uma certa ojeriza à figura do salvador da pátria, do que manda, do que aponta. A gente preferia errar em conjunto a acertar a partir da cabeça de uma pessoa. Havia esse sentimento da corresponsabilidade na tomada de decisão. A coordenação era mero instrumento de cumprimento das decisões, não era a dona, era um instrumento de cumprimento por um período. Findo esse período, o coordenador tinha que voltar para as bases. E quem era a base vinha a ocupar cargo de coordenação. Esse é um princípio revolucionário.

A Margem: O que o senhor fala faz lembrar da Comuna de Paris. Parece que é uma forma da classe trabalhadora se organizar, porque é do coletivo, não é na da centralização, que os trabalhadores tiram a sua força. Essa forma existia no início do PT?

Alder Júlio: Sim, no PT e na CUT na região de Arcoverde. Vocês tem que dar o devido desconto. A minha empolgação sugere que as coisas funcionassem de maneira perfeita. Estou talvez caricaturando pela emoção, havia muitas deficiências também. Mas certamente o ponto é a referência, a consciência disso, ainda que não se atingisse de maneira satisfatória, mas a referência ajudava a caminhar, saber para onde a gente estava indo. Um filme muito importante na época, “Queimada” tem uma frase de Zé Dolores que expressa bem o que estou falando: “É melhor saber para onde ir sem saber como, do que saber como e não saber para onde ir”. Essa frase tem uma força crítica e autocrítica bastante interessante. A autocrítica é uma palavra hoje muito esquecida e ainda menos colocada em prática. Voltando àquela época, além do princípio da delegação havia o princípio da alternância de cargos e funções. Trata-se de um mecanismo revolucionário que consiste em não permitir que as mesmas pessoas permaneçam o tempo todo à frente daquela coordenação. Mas permitir que haja uma alternância constante. A gente perdeu isso. Outro ponto era a autonomia que se concretizava a partir de atos concretos. Um deles era da aposta no autofinanciamento, uma autonomia em relação ao mercado, é claro, mas uma autonomia também em relação ao Estado. Eu me lembro muito bem dessa força de se dizer que a gente vive a partir do tostões que a gente  arrecada entre os militantes. Havia inclusive a orientação, sabendo que se tratava de militantes pobres, muitas vezes desempregados, de contribuir de acordo com as suas possibilidades. Viver, organizar suas atividades a partir do valor da arrecadação autônoma dos seus militantes (mulheres e homens). Faço um parêntese aqui para avançar um pouco mais e dizer que em 1994, no processo eleitoral (eu ainda estava ligado ao PT), escutei com indignação a informação veiculada pela televisão de que o PT tinha sido agraciado com uma contribuição da Odebretch. Evidentemente a gente é tomado de revolta, de indignação, aguardando que logo logo surja um desmentido e vem uma nota assim: “o PT não fez nada de ilegal”. Saí, porque pensei: não estou lutando necessariamente pela legalidade ou qualquer legalidade, estou lutando por legitimidade!

A Margem: O senhor identifica que já a partir daí as coisas começaram a desandar? Como o senhor viu essa passagem?

Alder Júlio: Com muita indignação e também com muita solidão. Porque eram poucos os que acreditavam que a gente estava se afastando daquilo que era basilar. A autonomia estava sendo ferida de morte. De maneira progressiva, a prática foi de apostar no “entrismo”, de entrar nos espaços estatais e pretender mudar a sociedade porque somos bons e eles maus. Isso é uma traição terrível ao que a gente tanto estudava, discutia, debatia, lia dos clássicos, de que é preciso entender a natureza do Estado moderno, que veio para cumprir uma função, mas que a maior parte das vezes é uma função subordinada a determinações da classe dominante. No Manifesto Comunista o Estado é mencionado como um comitê da burguesia, como não levar a sério isso? A gente não se negava a participar do processo eleitoral, mas não como um dogma, uma cláusula pétrea. Dependendo da conjuntura, decidia se entraria ou não. E entrando tinha que ter normas, critérios. Se houver necessidade, aliança com força dos parceiros, com forças parecidas a nós, ou até mesmo diferentes, mas nunca antagônicas. O pessoal foi tomando gosto exagerado pela eleição enquanto eleição. Então aumenta o número de vereadores, prefeitos, deputados etc. Em um primeiro momento as alianças eram com os parceiros clássicos: o PSB, o PCdoB, depois esse espectro foi se alargando, até o momento que vocês já conhecem de entrar todo mundo! Entra qualquer coisa, por que qualquer coisa valia para chegar lá. A gente lutava fundamentalmente para a construção processual de uma nova sociedade, não de um novo Estado. A moçada de hoje não entende o escândalo que é um deputado ter seu comitê próprio, ter seu jornal próprio. Isso é impensável! Ninguém é candidato de si mesmo! A ultima coisa que se discutia na época era a questão da candidatura. E mesmo assim não se discutia candidatura de forma direta. Se discutia a conjuntura, nessa conjuntura quais eram as prioridades para quem quer buscar uma nova sociedade? Qual era o jeito de atuar nessa conjuntura? Se fosse partidariamente, tudo bem, mas como construir? Que perfil de candidatura se defendia? Por ultimo, quem dentre nós seria mais aconselhável a cumprir essa tarefa? Repare, por último.

A Margem: A que o senhor atribui essa mudança organizativa?

Alder Júlio: Atribuo a nós dos movimentos sociais. Entendo que os indivíduos também têm um papel importante na história, mas para quem almeja uma nova sociedade tem que partir do coletivo. Se esses movimentos sociais tivessem permanecido fiéis às características de suas origens, de estar enraizado nas lutas sociais do campo e da cidade… a presença, a participação efetiva desses militantes nessas lutas populares, então, dá confiança ao povo, o povo se sente irmanado, o povo sente que não está só. Tem gente de fato sofrendo com ele, alegrando-se com ele, cobrando com eles, conquistando aqui e acolá...Também chorando derrotas, dividindo aquele momento. Na época, a gente tinha um esforço muito grande no processo formativo. E hoje?  Em parte tem. Tem a Escola Florestan Fernandes, mas não atende os milhares de militantes.  É interessante ver que por lá passam lideranças... Agora, imagine, se bases tivessem essa formação que as lideranças têm iriam permitir manipulação? Nunca!

A Margem: Há posições que atribuem essa transformação à conjuntura econômica e política, ao neoliberalismo, à piora das condições de vida...

Alder Júlio: E eu não contesto! Mas ficar nisso é perigoso porque a gente está elegendo o elemento externo como o responsável e tirando a cota direta de responsabilidade que a gente tem neste processo.
A Margem: Daí a importância do processo formativo…

Alder Júlio: O processo formativo continua sendo de capital importância. Não estou falando em escolaridade, mas de uma formação contínua que só pode ser protagonizada pelas forças portadoras de alternatividade. Por exemplo, cultivo a memória histórica, não com saudosismo, mas para saber na humanidade como foram as conquistas, como foram as lutas, o que a gente deve aprender com elas, das vitórias e das derrotas também, da experiência da humanidade.  Isso era muito levado em conta nos estudos. Também dos clássicos. Falo não só de Marx, mas também de Rosa Luxemburgo, Gramsci, por exemplo. Falo também dos contemporâneos de grande referência, como István Meszáros, Michael Lowy. A gente tem que entender que teoria e prática são faces da mesma moeda, são experiências indissociáveis a tal ponto que eu costumo dizer: diga qual a sua prática do cotidiano que eu vou dizer qual a sua teoria e no que ela se baseia.  A gente buscava aprofundar os processos formativos nos núcleos, mas também em outras experiências maiores, com jornais, com boletins, com revistas. A gente abandonou isso ou pelo menos reduziu mais do que devia. É claro que houve todas essas sucessões de desvios, mas há certamente um lastro político nessas opções éticas. Por exemplo, o aliancismo, que é uma opção ao mesmo tempo ética e política. A ideia que está por trás é de chegar ao poder “de qualquer jeito” então “tudo vale”. Se a gente não respeita esse processo formativo continuado, a gente não vai muito longe, como de fato não foi. É importante dizer também que o processo formativo não procura apenas, por exemplo, estudar a trajetória da humanidade, dos movimentos sociais, das revoluções, a biografia dos clássicos como um Marx, uma Rosa Luxemburgo, com a finalidade de reeditá-los. Isso não tem sentido! A gente colhe o espírito da coisa para poder ficar mais forte e enfrentar de maneira adequada os desafios de hoje. Não querer fazer deles um receituário, que seria inclusive contradizê-los! Muita coisa continua válida, certamente, mas outras coisas não. Os desafios são de outra ordem. Isso é tarefa nossa, dos revolucionários de hoje.

A Margem: Como o senhor vem percebendo o momento atual?

Alder Júlio: Não estou surpreso. Muito tristemente impactado, mas não surpreso. Eu lamento ter que dizer isso, mas há de se reconhecer que tivemos muitas ocasiões de evitar esse estrago, que me parece mais profundo do que podemos imaginar. Vai demandar décadas para superarmos. Claro que, para superar em décadas, nós devemos começar desde já. Então, retardaríamos infinitamente se só começarmos depois. Quando eu digo isso penso, por exemplo, no último congresso do PT. Com tristeza constato que não há sinais que apontem a possibilidade de autocrítica. Muito pelo contrário. As mesmas figuras, os mesmos barões, as mesmas baronesas, intervindo e dizendo no que não dá mais para acreditar. Eu volto a dizer que hoje a palavra de ordem para mim é autocrítica! Não como uma palavra abstrata, mas como manifestação de sinais concretos. Por exemplo: como é que a gente vai refazer esse caminho, em novo estilo, com essas figuras que não reconhecem os erros?

A Margem: Como o senhor vislumbra esse processo de autocrítica?

Alder Júlio:  É uma iniciativa que depende muito menos de quem está no controle atual e muito mais das forças populares, os movimentos sociais! Quando atuávamos prezando pela autonomia, não tendo essa estreiteza de liames com o Estado e muito menos com os governos correspondentes, fossem eles quais fossem, tínhamos muito mais capacidade de deliberação, de atuação. Quanto mais nos encostamos nos espaços palacianos, mais perdemos força para dizer a verdade, para dizer o que temos que dizer. E é esse dizer que faz a diferença. Então lamento também constatar que os movimentos sociais, em grande parte, principalmente as lideranças, se deixaram cooptar. Muita gente foi se acomodando em espaços governamentais. Assim que força temos de denunciar o que anda errado? Nenhuma! As bases ficam também muito bloqueadas. Se as bases tivessem aquela formação que estamos cobrando, seriam capazes de romper também com os dirigentes. Mas não é assim. Notamos dirigentes hoje que vêm de décadas à frente do movimento. Isso é bom? Não é! Para ninguém, nem para eles nem para o movimento. Não houve a rotatividade dos movimentos sociais nessa direção. E nas forças partidárias menos ainda. Há quanto tempo os dirigentes de hoje estão mandando nas “cartas”? E isso é culpa apenas deles? Não! É também culpa de quem deve deliberar. É culpa também de quem permitiu que isso acontecesse.


A Margem: Em um dos seus textos, o senhor fala sobre a crise de referências e valores e afirma que um dos caminhos para reassumir essas referências, de acordo com as urgências atuais, é o exercício da mística revolucionária. O que seria isso?

Alder Júlio: A mística atravessa toda a luta, o processo formativo, o processo organizativo, atravessa tudo! Mas, particularmente no processo formativo, ela deve ter lugar preponderante. Essa foi uma característica do conjunto dos revolucionários mais caros à nós. Estou falando da mística como categoria laica, como categoria de revolucionários e revolucionárias. Também não estou falando da mística como, de certa maneira, ela foi institucionalizada. A mística não é um ritual, que começa... aquela coisa toda, ler uma poesia...Ela tem um alcance mais profundo, pessoal e coletivamente, na medida em que é um exercício diário. É fazer uma análise crítica dos meus passos, por onde eu andei, que atividades eu ando desenvolvendo. Dessas atividades, quais os frutos maus ou bons que têm dado? O revolucionário tem que, a cada dia, colocar-se diante dos desafios que ela/ele individualmente está vivendo e, é claro, do ponto de vista coletivo também. Fazer essa avaliação processual. A mística faz com que a gente veja, individual e coletivamente, o que anda bem na nossa ação e o que anda mal; a cada dia buscar melhorar, buscar ser um pouquinho mais revolucionário hoje do que ontem e amanhã mais do que hoje também. O revolucionário que se descuida disso tem dias contados. É claro que os equívocos fazem parte também.  Nós somos seres inacabados, seres inconclusos, limitados, precisamos exatamente ter consciência disso, para poder minimizar as chances de reincidir, mesmo que a gente continue com as falhas. Mas teremos a chance de falhar menos se fizermos a mística revolucionária.

A Margem: O senhor falou anteriormente sobre teoria e prática, de se estar muito atento às decisões que se toma. A questão da mística então está relacionada com articular passado, presente e futuro na ação cotidiana a partir de um projeto político de sociedade?

Alder Júlio:  É perfeitamente isso. Acrescentaria os riscos que a ausência da mística revolucionária produz. Por exemplo: um equívoco gravíssimo é o de confundir os grandes atos públicos como sendo a manifestação de atos revolucionários. Não estou negando a sua importância, Mas estou dizendo do risco de reduzirmos o sentido revolucionário apenas a esses macro-espaços se eles não estiverem revestidos também nos micro-espaços, nos espaços do cotidiano. A semente que você está produzindo naqueles seus atos costumeiros, naqueles atos quase invisíveis está carreganda de energia revolucionária? Estes são tão importantes quanto as grandes manifestações. Não se está enxergando que na história de todos os revolucionários/as, as pequenas coisas eram enfrentadas como grandes coisas também. Outro equívoco, que é muito comum, acho que ainda hoje, naquele tempo era mais, é confundir a revolução com o processo militar. Falta de formação completa, de estudo, falta de intimidade com o próprio processo revolucionário. Ora, quando você confunde o processo revolucionário com aquelas questões militares, você está sucumbindo à um equívoco tremendo, porque se é assim, o sistema estará sempre mais além. A guerra do golfo, por exemplo, quando você vai ver que depois disso os armamentos se multiplicaram e se sofisticaram, e achar que vai vencer a partir disso... Não dá! É um reducionismo e ao mesmo tempo um vício grande. Há grande tentação de a gente vencer pela força das armas, quando a gente consegue de fato alguma vitória, a gente vai instaurar a nova sociedade entre aspas, por quê? Porque a gente vai instaurar essa nova sociedade a partir da voz das armas, a partir da razão da força. Isso não tem sustentabilidade. Eu posso manter-me ali, no alto, um tempo, mas logo logo a história me desmente e me desmonta também.

A Margem: O que não significa dizer que possa haver um processo revolucionário sem uma ruptura, não é?

Alder Júlio:  Com certeza, não houve nenhuma experiência histórica nessa direção. Todas tiveram, só que as que obtiveram êxito e continuidade não estavam apostando nisso.  Isso é, digamos assim, um incondicionamento menor em relação ao maior. É preciso ter forte o rumo de sociedade que a gente quer.


A Margem: Temos vivido um momento carente de alternativas. Como o senhor vê a bandeira do “Fora Temer”?

Alder Júlio: Com muita indignação e ao mesmo tempo sem surpresa. Eu diria que as esquerdas partidárias, sindicais, populares, eclesiais estavam nesse momento num consenso muito forte em cima da interpretação do caso: “foi golpe ou não foi golpe”? E eu não sei se esse lado é mais fecundo que a gente pode testemunhar. Não sou o dono da verdade, estou falando aqui pela minha experiência. Nos anos 70/80, não tínhamos a questão jurídica como uma referência forte. Quando entramos nesse embate de se foi golpe ou não nos submetemos, mesmo que implicitamente, querendo ou não, à legalidade. Esse é um ponto. Outro ponto é dizer: “pois bem, vejam onde chegamos? Quem era essa figura horrenda que está aí? Quem era há oito anos ? Não individualizo apenas a figura do presidente. Quem eram aqueles outros também?” Como é que a gente pode chegar a confiar nesse pessoal? Como é que a gente não aceita uma parcela de responsabilidade grave nesse desfecho? É claro que eu estou contra Temer. Acho Temer uma figura desprezível. Não penso que mereça da gente tanta atenção. Merece atenção do ponto de vista da luta de classes, das forças que ele representa, forças das quais fomos aliados até pouco tempo. Não tem nada a ver com PSDB, com Temer, nada a ver com a própria luta parlamentar. Não a acentuo como a principal, nunca acentuei, hoje menos ainda. Só que, evidentemente, eu estou a favor da pauta e, embora respeite muito as pessoas que estão muito fortemente energizadas por essa argumentação do “Fora Temer”, não me alio muito a ela. Primeiro que é todo o conjunto, não apenas Temer. Na verdade a questão é todo aquele conjunto de forças –  no judiciário, no legislativo, no executivo também – é o conjunto da obra que a gente tem que ver.  Agora, eu não quero ficar só nisso viu? Eu quero dizer que eu sou um homem de esperança. Quero dizer em que me apoio para conservar essa esperança.

A Margem: Claro! E é isso que queremos ouvir. Que mensagem o senhor nos deixa?

Alder Júlio:  Para apostar nessa esperança eu me sinto um ser histórico. Eu aposto numa retomada das forças grávidas de alternatividade, das lutas sociais em novo estilo. Essa retomada, essa busca de nos reenraizarmos nas camadas populares, das periferias urbanas, do campo, por toda parte. Um chamamento ao nosso reenraizamento como primeiro passo. Vejo essa perspectiva em alguns movimentos, como o movimento das comunidades populares, quase desconhecido, mas que continua há quase 50 anos na luta. Muita gente não gosta porque não é algo que dê resultado grande e imediato. Mas se quisermos retomar temos que acreditar nessas forças moleculares que andam acontecendo. Por exemplo, há também um vasto leque de experiências agroecológicas espalhadas por esse semiárido. Essa esperança me é garantida por buscar teimosamente lutar a cada dia, a cada ato, a cada momento por um novo modo de produção, por um novo modo de consumo e por um novo modo de gestão societal. São três coisas que estão interligadas, eu não posso falar em uma sem implicar na outra. Repare, eu não estou idealizando. Nessa altura da vida não dá para ir mais em idealizações, não é? Eu estou dizendo que eu aposto nos frutos que eu constato. Quando eu falo dos anos 1980 não o resgato como algo saudosista. Apenas os princípios que, ao meu ver, continuam atualizados. Princípios que apontam para essa direção de uma nova sociedade. Como por exemplo, retomar o processo formativo. Alguém diz: “mas a gente se forma na luta” porque há sempre uma tendência a idealizar aqueles movimentos de rua como sendo suficientes. São necessários, continuam sendo e vão continuar sendo. Mas não são suficientes. Por isso que eu digo que a formação estritamente política é importante mas também não é suficiente, mesmo que a gente alargue o campo da política para além da relação sociedade/Estado. Mesmo que eu pense a relação também da política do cotidiano. Temos que trabalhar outras dimensões do ser humano: a dimensão de gênero, a dimensão de orientação sexual, a dimensão de espacialidade, a dimensão étnica, a condição de pai, de filho, de companheiro, a condição cósmica que me faz entender como ser entre outros também, que eu devo respeitar, que eu devo ter em conta. O processo formativo tem que ter um espectro muito mais amplo, correspondente ao próprio processo de humanização. Trabalhando todos os componentes de maneira articulada. Este é um processo complexo e longo, interminável. Aliás, eu só entendo revolução como um processo interminável. Revolução nunca vai estar pronta. Revolucionários e revolucionárias nunca vão estar acabados.





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sábado, 5 de agosto de 2017

PASTORAIS SOCIAIS NA PARAÍBA - EM BUSCA DO REINO DE DEUS E SUA JUSTIÇA, EM TEMPOS TORMENTOSOS E DE ESPERANÇA CONTRA TODA ESPERANÇA: memória, discernimento e compromissos...

PASTORAIS SOCIAIS NA PARAÍBA - EM BUSCA DO REINO DE DEUS E SUA JUSTIÇA, EM TEMPOS TORMENTOSOS E DE ESPERANÇA CONTRA TODA ESPERANÇA: memória, discernimento e compromissos...

Alder Júlio Ferreira Calado

As Pastorais Sociais do Regional Nordeste II (da CNBB), de cuja caminhada fazem parte também as Igrejas particulares da Província da Paraíba, em vista de uma (re)avaliação retroprospectiva de sua trajetória de quase meio século, vêm promovendo – inspiradas, inclusive, na bela contribuição  do livro “Pastoral Social – Dimensão socioestrutural da caridade cristã”, do Pe. Francisco Aquino Junior - reuniões, encontros, círculos bíblicos,  preparatórios para as assembléias provinciais, nessa direção. A Assembléia das Pastorais Sociais da Província da Paraíba está marcada para os dias 11 e 12 de agosto de 2017, a realizar-se em Campina Grande – PB.

Com base no tema proposto para esta Assembléia, cuidamos de fornecer, a título de “aperitivo” ou de problematização,
Alguns elementos que nos permitam pistas de reflexão sobre tantos desafios – velhos e novos – com que nos deparamos. Distribuimos esses subsídios em três momentos organicamente articulados: 1) uma breve rememoração das origens de nossa caminhada; 2) um leve ensaio de discernimento sobre aspectos de nossa gesta político-pastoral; e 3) uma reflexão sobre nossos compromissos ante os desafios sócio-eclesiais de hoje.

1) Em busca de nossas raízes...

Ao longo destas últimas décadas, muita água tem rolado debaixo da ponte. Atravessamos distintas conjunturas sócio-eclesiais, em que nossa gente experimentou momentos de profundas turbulências, dentro e fora dos espaços eclesiais, mas também de muitas lutas, alguns avanços significativos, certos reveses, sem perder a esperança. Com efeito, no curso deste período de cerca de meio século, experimentamos como e com as classes populares sucessivos desafios de monta: o tempo-auge da Ditadura empresarial-militar do Governo Médici (1969-1973), associado às ditaduras do Cone Sul (Chile, Argentina, Uruguais...), às quais Eder Sader se referia como a um “rumor de botas”; vivemos com garra e esperança a crescente resistência à(s) Ditadura(s), o (re)ascenso dos movimentos sociais (partidários, sindicais, populares, estudantis, eclesiais...); as mobilizações pela Anistia, pelas Diretas-Já, pelo impedimento de Collor, pela Constituinte, pelas políticas sociais, pelos direitos humanos, pelas conquistas significativas da primeira década deste século, do ascenso de governos pós-neoliberais na América Latna, contra sucessivas ofensivas neoliberais no país, na América Latina  e no mundo...

  No plano interno à(s) Igreja(s), após um promissor ascenso das CEBs, das PCIs, das Pastorais Sociais (CIMI, CPT, CPO, , CPP, PJMP, PMM, Pastoral Negra, Pastoral da Criança, Pastoral Universitária, etc.), de movimentos (ACR, MER – hoje, MCP, ACO/MTC, MEB, MCU, Movimentos Fé e Política, etc.), serviços (Comissão Justiça e Paz, CDDHs, Cáritas, CEBI, etc.), associações (PATAC, AMC, AMINE, GP-NE, Fraternidade do Discípulo Amado, Escolas de Formação Missionária, além de outras modalidades de atuação eclesial, no campo social, eis que irrompe, expande-se e se fortalece,  a pontir do longo pontificado do Papa João Paulo II (sucedido pelo Papa Bento XVI, da mesma linha pastoral), uma forte ofensiva reacionária e restauradora da Cristandade, com enorme incentivo ao crescimento de movimentos eclesiásticos conservadores. Fenômeno que coincide com o impetuoso ascenso de movimentos similares, no plano de Igrejas neo ou pós-pentecostais...

No decorrer da década de 1980, em especial a partir de  meados desta década, o Vaticano desencadeia uma ofensiva de grande intensidade contra a Igreja na Base e a Teologia da Libertação, no momento em que se apresentava de reconhecida fecundidade profético-pastoral o trabalho da Igreja dos Pobres. Apenas duas ilustrações a este respeito , mais precisamente duas iniciativas (dentre diversas outras protagonizadas pela Igreja na Base):
= a coletânea “Teologia e Libertação”, apoiada por mais de uma centena de bispos latino-americanos, e que contou com a efetiva participação dos principais figuras da Teologia da Libertação latino-americana, com dezenas de livros versando sobre os temas-chave deste novo jeito de teologizar (a partir da vida do povo dos pobres), abrangendo temas como Reino de Deus, Antropologia cristã, Memória do povo cristão, Cristologia, Pneumatologia, entre diversos outros temas-chave, sempre tratados com um novo olhar, isto é,  deste modo latinoamericano de produção  teológica, desde o chão experiencial da vida dos pobres;
= a organização da CEHILA - Comisión de Estudios de la Iglesia Latinoamericana y del Caribe, que se empenhou num projeto pioneiro de pesquisa, de registro e de publicação de um número considerável de livros, recuperando – tanto em linguagem acadêmica, quanto em linguagem popular (CEHILA popular) - sob a perspectiva do povo dos pobres, as trajetórias históricas de diversas Igrejas particulares do continente latinoamericano.

Estas e outras iniciativas, sobretudo após o pontificado do Papa João Paulo II (depois sucedido pelo do Papa Bento XVI), passaram a enfrentar uma sequência de questionamentos, desaprovações, censuras, punições. Montou-se uma poderosa estratégia de desmonte das iniciativas da Igreja na Base, inclusive da Teologia da Libertação, que lhe servia de suporte teórico, principalmente após o Concílio Vaticano II e, em especial, a partir da Conferência Episcopal Latino-americana, realizada em Medellín, na Colômbia  (1968), que havia proclamado a “opção preferencial pelos pobres”.

  fecunda em que se deu tal retrocesso nas organizações de base da Igreja Católica implicando perseguição à Teologia da Libertação e algumas de suas figuras exponenciais; a estratégia de desmonte ou esvaziamento da chamada “Igreja na Base” (desmembramento autoritário da Arquidiocese de São Paulo, contra a vontade do arcebispo e seus auxiliares; fechamento do ITER; intervenção nas universidades e institutos católicos; nomeação e transferência de bipos, com perfil de obediência incondicional à nova linha pastoral imposta por Roma; advertência e medidas punitivas a figuras representativas da Teologia da Libertação; oposição explícita a figuras eclesiais comprometidas com a causa dos pobres, entre outras medidas tomadas.

Em nosso Regional Nordeste II, inclusive na Província da Paraíba, nossas Pastorais Sociais viveram momentos profundamente traumáticos, sobretudo em consequência da sucessão de Dom Helder Câmara por Dom José Cardoso Sobrinho. Tempos de profundo e prolongado desmonte da Igreja dos Pobres, inclusive com a expulsão de vários padres da Arquidiocese de Olinda e Recife, que tiveram acolhida pastoral, na Arquidiocese da Paraíba, por Dom José Maria Pires.

Foi, por outro lado, durante esse periódo de gandes provações, que, gaças ao acolhimento de pastor por parte de Dom José Maria Pires, prosperaram fecundas iniciativas pastorais. Já em meados/finais dos anos 60, começavam a dar sinais alvissareiros, em especial no Agreste paraibano, iniciativas de evangelização animadas pelos pobres do campo, por meio de suas comunidades, a exemplo das que se organizavam em tono da região de Mogeiro, onde tiveram lugar importantes iniciativas litúrgico-pastorais, inclusive com círculos bíblicos, com profundo teor formativo, como foram relatadas no livro de autoria do Pe. Gabriele, “Um Saberzinho de nada”, bem como, um pouco mais tarde, as ações de resistência ao latifúndio, em tempos de Ditadura Empresarial-Militar. Ganhou ampla repercussão a resistência dos posseiros de Alagamar, com as imagens de Dom José Maria, Dom Hélder e Dom Francisco Mesquita, a tangeremo gado das plantações dos agricultores.    

Na década de 1980, uma outra experiência pastoral de reconhecido alcance formativo, em terras paraibanas, mais precisamente no município de Pilões: o Seminário Rural, pouco depois substituído pelo Centro de Formação Missionária (CFM), em Serra Redonda. Uma fecunda experiência, inspirada e animada por uma Equipe de Formadores coordenada pelo Pe. José Comblin. Experiência que, em seguida, teria desdobramentos frutuosos, com mais uma meia dúzia de novas experiências formativas, missionárias, contemplativas, de peregrinação...

Nas décadas seguintes, nossas Pastorais Sociais, em estreita e orgânica parceria com outras organizações de base eclesiais (ACR, MER, CDDHs, o CEDUP, o MTC, o MAC, Comissão de Justiça e Paz, Movimento Fé e Política e outras) e com movimetnos populares do campo e das periferias urbanas, inclusive com organizações como o CENTRU, Fundação Margarida Alvesas organizações de convivência com o Semiárido,  continuaram sua trajetória de resistência e de avaços, em várias frentes, tais como em sucessivas conquistas de assentamentos da Reforma Agrária, com um saldo superior ao do período dos governos do PT; os excelentes frutos das organizações de base, empenhadas em relevantes iniciativas de convivência com o Semiárido (ASA, Cáritas, PATAC, várias iniciativas fecundas atuando na Borborema, no alto Sertão, no Cariri; iniciativas desenvolvidas no âmbito da Pastoral da Criança; o empenho na defesa e na promoção dos grupos indígenas, das comunidades quilombolas, dos trabalhos junto a distintos grupos de Mulheres; iniciativas de grande valia, no terreno agroecológico e de tecnologias alternativas de convivência com a região; empenho nos trabalhos de memória histórica (Memorial das Ligas Camponesas da Paraíba), entre outras.

2) Ensaio de discernimento

No curso de nossa trajetória, temos muito a render graças a Deus, bem como a celebrar. De fato, ao nos pormos a rememorar feitos e gestas de cinco décadas, sentimo-nos profundamente tocados com tantas conquistas significativas alcançadas. Ao mesmo tempo, temos consciência de muitas limitações que também nos acompanha(ra)m. Como nosso desejo é seguir avançando, em nossa caminhada, somos chamados a uma constante (re)avaliação retroprospectiva. Para tanto, inspiramo-nos em balizas que provêm, não da posição de uma corrente teológica – eventualmente esposada por uns, em desfavor de outros -, mas se acham inspiradas nos textos fundantes de nossa crença comum: o Evangelho, a cujas diretrizes somos todos chamados a responder, com generosidade, lembrados do que Jesus nos adverte: “Não foram vocês que escolheram, mas fui Eu quem os chamei, para que vocês vão e dêem fruto, e este fruto permaneça.” (Jo 15, 16). De que fruto se trata, senão de respondermos ao que o Espírito do Ressuscitado nos inspira de justiça, de paz, de solidariedade, de partilha, de amor, de misericórdia? Em especial, em nossas relações com o povo dos pobres? A despeito de nossos limites, não era um tanto isso que buscávamos testemunhar naquelas primeiras décadas, e que, em grande medida, deixamos para trás, seduzidos pelos atalhos político-eleitoreiros movidos pelo aliancismo, em que acabomos por privilegiar? Os bons frutos que semeamos, junto com o povo dos pobres, permaneceram mesmo ou restaram como “coisas do passado”?



Busquemos fazê-la, também em mutirão, por meio de questionamentos que nos ajudem, nesta empreitada.

Tendo sob nossa mira auto-avaliativa, significiativas conquistas alcançadas  vale a pena que nos perguntemos, por exemplo:
= Que condições objetivas e subjetivas nos permitiram alcançar tais conquistas, em especial aquelas que se mostram bem resistir à nova ofensiva neoliberal?
= Elas têm ou não muito a ver com o nosso jeito de nos organizar? Quem tomava as decisões? Como elas eram tomadas? A quem recorríamos para obtermos ajuda e apoio?

= Até que ponto conseguimos, a contento, dar sequência ao processo de formação contínua, que nos forneceu preciosas ferramentas conceituais e da prática prática, no processo dessas conquistas, e para além delas?
= Há ou não diferença considerável entre “conquistas” concedidas (de cima para baixo) e conquistas resultantes de nosso processo de luta, com autonomia, seja em relação ao Mercado, seja em relação ao Estado?
= Sem ignorar vantagens (em geral, mais de ordem pessoal do que em relação às nossas organizações de base), qual é mesmo o verdadeiro saldo de nossa opção por ocupar os espaços governamentais?
= Quais os verdadeiros frutos de nossa opção, a partir das últimas décadas, por aproximar-nos, como nunca antes havíamos feito, do campo partidário e eleitoral, distanciando-nos (em alguns casos, até abandonando) a saudável postura de um necessário distanciamento crítico das instâncias governamentais e das forças do Mercado?
= Mesmo no plano especificamente eclesial, constatamos diferenças acentuadas entre a forma de nos organizarmos nas décadas de 70 e 80 e como vimos nos organizando nas últimas décadas. Trata-se de diferenças  substancialmente favoráveis ou, antes, em grande parte, equivocadas? Um exemplo concreto: nos círculos de cultura, nos núcleos, nos encontros, nas assembleias ou nas reuniões ordinárias, tínhamos sempre o cuidado de superar a tendência a uma aposta desmedida no protagonismo individual, em prejuízo do protagonismo comunitário. Será que tal postura não foi significativamente negligenciada ou mesmo abandonada, em favor de uma aposta cega em “salvadores” individuais ou de pequenos grupos?
= Diferentemente de um apoio crítico a forças partidárias aliadas, que mantínhamos,  nas primeiras décadas, será que não nos afastamos demasiado desta saudável postura ético-política, à medida que passamos a um alinhamento quase automático ou incondicional a forças partidárias, ainda quando tínhamos consciência  do seu perigoso distanciamento das bases e de posições ético-políticas, que sempre defendemos? (  Pensemos, por exemplo, na campanha “Ética na Política”, em meados dos anos 90.

= No modo de nos organizarmos junto com o povo dos pobres, inclusive no processo formativo, quando é que mais nos aproximamos do núcleo da mensagem do Evangelho e da Tradição de Jesus (cf., por ex., Mc 10, 42-45: “Entre vocês não seja assim”...), com a qual tão bem se afina o espírito das conclusões de Medellin, hoje atualizado na gesta de Francisco, Bispo de Roma:
* nas primeiras décadas de nossa caminhada pastoral, quando lutávamos por uma nova sociedade, ou
*nas últimas décadas, quando preterindo do sonho da construção de uma nova sociedade, sucumbimos à ilusão de lutar por um “novo Estado”? Em termos de denúncia-anúncio, o que nos inspira o Espírito do Ressuscitado? Aonde nos tem levado a teimosia de nos conformarmos com as estruturas do Estado? Serão mesmo estruturas renováveis ou, antes, isto tem significado tentar pôr “remendo novo em pano velho”? “Pelos seus frutos, vocês os conhecerão.”).

3. Renovando/atualizando nossos compromissos de cidadã(o)s e de cristã(o)s

Sabemos que só faz sentido para nós ensaiarmos passos de avaliação de nossa caminhada, se - e somente se – implicar sinceros propósitos de mudança e conversão, tanto no plano comunitário, quanto no âmbito pessoal. Eis o sentido do que estamos propondo como pistas de uma (auto)avaliação retroprospectiva, à luz da caridade assumida como dimensão pastoral socioestruturante: não nos basta rememorar o que foi (bem ou mal) feito. É fundamental voltarmos os olhos e o coração para frente, como é que vamos caminhar, daqui por diante. Que passos somos historicamente chamados a ensaiar, em vista de testemunhar, nos vários campos de atuação sócio-pastoral, nossa ação transformadora em nós, seja nos espaços de atuação cidadã, seja ao interno de nossa(s) Igreja(s)?
Nesse sentido, graças a Deus e à generosa dedicação de vários grupos espalhados pela nossa Paraíba, alegramo-nos com diversas experiências fecundas que já vêm acontecendo, e que somos chamados a consolidar e ampliar. Por outro lado, há também muita estrada a percorrer, nessa direção. Exemplifiquemos algumas urgências a serem enfrentadas, no campo e na cidade, a desafiarem nossa ação pastoral e – conforme a natureza de cada um desses sujeitos e sua adequada relação: no caso das Pastorais Sociais, sempre atuando como um serviço cristão no meio do povo dos pobres, sem reivindicar “paternidade” em sua ação de caridade gratuita, pela força do Ressuscitado.
·        Considerando que o amor cristão nos move a agir em atos concretos, convém lembrar, para além de nossas fronteiras paroquiais e diocesanas, a marca universal ( isto é, tomando em consideração as dores, as lutas e as esperanças de toda a humanidade) de nossa vocação de Batizados – “ sacerdote, profeta e rei” ( isto é: pastores, profetas e cidadãos ). Neste sentido, sem prejuízo de nossa ação pastora local, sentimo-nos comprometidos com os grandes dramas presentes da humanidade, seguindo os passos da Tradição de Jesus. Fazendo nossas estas situações dramáticas, lançamos sobre cada uma delas nosso olhar solidário, em relação às graves consequências das guerras em curso, a afligirem enormes parcelas das populações do Oriente Médio, da África e de outras regiões,  na Ásia, em nossa América Latina...

Solidarizamo-nos com as vítimas da profunda chaga social das migrações forçadas e dos refugiados, em várias partes do mundo. Trazemos como tarefa também nossa tomar conhecimento e combater as causas das diversas e crescentes formas de violência espalhadas pelo mundo, inclusive entre nós: as várias formas de agressão contra a Mãe-Terra; genocídio; etnocídio; racismo; feminicídio; misoginia; tráfico de pessoas, de armas e de drogas; formas modernas de escravidão, homofobia, xenofobia, ódio de classe, as situações sofridas pelos povos de rua, os sem-terra, os sem-teto, os povos das águas, das florestas, os povos tradicionais, ribeirinhos, os desempregados, os sub-empregados....

Eis um panorama de nosso campo de missão. Assustam-nos sua complexidade e vastidão, quando temos consciência de nossas limitações ( pessoais e coletivas ). Consola-nos, todavia, o lembrete paulino acerca da Graça: “ A minha graça te basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza.” ( 2cor 12,9 ). Sabemos, por um lado, que, dadas as nossas limitações, sentimo-nos impotentes para responder, a contento, a tais desafios, mas, por outro lado, somos chamados e encorajados a enfrentá-los, a curto, médio e longo prazos, a partir do chão do dia-a-dia. Uma primeira pista, neste sentido, é atentarmos para o alcance sistêmico, globalizado desses desafios, profundamente interconectados pelo modelo capitalista, apontando pra necessidade e urgência de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal, em harmonia com a dignidade do planeta e de toda a comunidade dos viventes.
Sucede que é, a partir do local, que somos chamados a agir  na atualidade  de modo a nos comprometer com efetivas mudanças, a partir do chão de nossa realidade.

Alguns questionamentos nos sirvam de aperitivo para uma busca de discernimento sobre os desafios nossos a merecerem prioridade de enfrentamento, de nossa parte.

= Examinando nossa ação pastoral, à luz da ação transformadora da Caridade cristã, como prosseguirmos, em novo estilo, nossa ação pastoral, frente aos graves desafios da atual conjuntura? Sucumbindo a velhos esquemas de fazer Política, com falsas polarizações, ou (re)orientando nossa ação pastoral, de modo a recuperar o espírito de enraizamento, convívio e comprometimento com o povo dos pobres, do campo e da cidade, desde suas necessidades e aspirações libertadoras?

= Conforme os critérios da Caridade socioestruturante (também) da vida pastoral e do Reino de Deus e Sua justiça, que experiências frutuosas, em curso, merecem continuar sendo animadas e consolidadas por nós?
* no âmbito dos trabalhos atinentes aos cuidados sócio-ambientais comprometidos com a nossa “Casa Comum”, seja no âmbito da produção, seja no tocante ao consumo, seja no plano da gestão comunitária?

* No tocante às experiências no terreno das relações sociais de gênero (trabalhos de apoio, de acompanhamento, de formação, de defesa e promoção da dignidade das mulheres vítimas de violência de todos os tipos, a começar pelo feminicício?

* Nos trabalhos e experiências, no âmbito das relações étnicas, de defesa e promoção dos direitos dos povos originários, das comunidades quilombolas, dos povos das águas, das florestas, dos ribeirinhos, dos pescadores...?

* Nos trabalhos e experiências mais diretamente voltadas para as relações geracionais, na defesa e promoção dos direitos das crianças, dos adolescentes, dos jovens, das pessoas idosas?

* Nos trabalhos e experiências com os Trabalhadores e Trabalhadoras do campo e da cidade, incluindo as experiências de acompanhamento e apoio às vítimas do desemprego, do sub-emprego, do trabalho terceirizado, das vítimas de tráfico humano, de armas e de drogas, das formas dissimuladas de trabalho escravo?

* Nas experiências de solidariedade e acompanhamento do cotidiano do povo da rua, das vítimas de migração forçada, dos refugiados, das vítimas de prostituição, das vítimas de expulsão em razão de barragens, de implantação de equipamentos montados a pretexto de renovação de fontes energéticas, à revelia ou sem a participação das comunidades locais?

·        Movidos pela convicção da necessidade e urgência de uma (auto)avaliação retroprospectiva, como vamos nos organizar para retomar, em novo estilo, nossos compromissos nos mais distintos trabalhos e experiências pastorais, priorizando e pondo em prática critérios organizativos (animação dos círculos de cultura, dos círculos bíblicos, do protagonismo de todos na tomada de decisões pela base, na alternância de cargos e funções, na observância do princípio da delegação, no cuidado da relação com as diferentes instâncias pastorais, na promoção da autonomia relativa frente ao Mercado e ao Estado...) e formativos ( formação permanente a ser assegurada não apenas aos coordenadores, mas igualmente à base, na perspectiva de uma  Educação integral, em diálogo com a Educação Popular).
       João Pessoa/Olinda, 5 de agosto de 2017