terça-feira, 26 de janeiro de 2021

DEMAIS SÉRIA É A SAÚDE COLETIVA PARA FICAR SOB A ÉGIDE DO MERCADO

DEMAIS SÉRIA É A SAÚDE COLETIVA

PARA FICAR SOB A ÉGIDE DO MERCADO


 Alder Júlio Ferreira Calado


São duzentos e vinte os milhares

De pessoas tombadas por COVID

Cuja culpa o Governo condivide

Entre nós há fatores singulares

A tornarem infelizes nossos lares

As políticas de morte têm destroçado

O Governo é fábrica de ogivas

DEMAIS SÉRIA É A SAÚDE COLETIVA

PARA FICAR SOB A ÉGIDE DO MERCADO


Na saúde, no Ensino, no Ambiente

A tragédia se agrava, dia a dia

Supressão de direitos faz sangria

Previdência, trabalho intermitente

Índio, Negro - elo frágil da corrente

O conjunto dos pobres maltratados

Da ciência, desprezam-se os dados

Pras mulheres, não há perspectiva

DEMAIS SÉRIA É A SAÚDE COLETIVA

PARA FICAR SOB A ÉGIDE DO MERCADO


Só boicote tem feito Bolsonaro

Ao combate geral contra o corona

Bons ministros da área ele destrona

Em inúmeras vezes, deixou claro

Pra pobreza, ele quer o desamparo

Quer fazer do Brasil seu cadeado

Seu projeto é o de Trump: está fechado

E assim, o Brasil fica à deriva

DEMAIS SÉRIA É A SAÚDE COLETIVA

PARA FICAR SOB A ÉGIDE DO MERCADO


Qual raposa que muda o próprio pêlo

Mas seus hábitos, porém, sempre mantendo

Segue sempre perita em remendo

Investindo em discurso “novo” e “belo”

Logra mesmo cravar ser velho apelo

No discurso, demoniza o Estado

Mas, de fato, o assalta, deixa arrasado

Iracúndia, destarte, desperta e aviva

DEMAIS SÉRIA É A SAÚDE COLETIVA

PARA FICAR SOB A ÉGIDE DO MERCADO


Noticia a imprensa que empresários

Sob o influxo de Skaf, grão financista

Na indústria, tão pouco ele invista

A pretexto de serem “solidários”

Mas de olho, de fato, no erário

Vêm propor parceria com o Estado

Competindo aos senhores do “doado”

Vacinar, mas de forma privativa 

DEMAIS SÉRIA É A SAÚDE COLETIVA

PARA FICAR SOB A ÉGIDE DO MERCADO



Eis que volta sua velha estratégia

Ao combate do vírus estão prontos

E assim refazendo os seus contos 

Aos patrícios prometem prenda Régia

E bem junto ao chefe da turma “egrégia”

Para o SUS a metade tem doado 

E a outra metade aos empregados 

E com isto, do público se esquiva

DEMAIS SÉRIA É A SAÚDE COLETIVA

PARA FICAR SOB A ÉGIDE DO MERCADO



João Pessoa, 26 de janeiro de 2021 


segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

BEM MAIS FRIO QUE O FRIO QUE BATE EM NÓS / É A FRIEZA DO MUNDO OCIDENTAL

 

Alder Júlio Ferreira Calado

 


Uma notícia tocante veio a público

Pelo papa Francisco divulgada

Justo à hora do Angelus da jornada

Um mendigo, de frio, viera à "lona"

Ali próximo à Praça, àquela zona

Como pode justo ali ocorrer tal?

Para a  Cúria um incômodo vendaval

Que faziam os clérigos reinois

BEM MAIS FRIO QUE O FRIO QUE BATE EM NÓS

É A FRIEZA DO MUNDO OCIDENTAL


Dia vinte do mês inda corrente

Noticia a imprensa italiana

Um registro do qual ninguém se ufana

Eis que um corpo mendigo - pobre gente

Fora achado de frio, padecente

Se chamava Edwin - golpe letal

Aos 46, cessa o ideal

Isto tolhe inclusive nossa voz

BEM MAIS FRIO QUE O FRIO QUE BATE EM NÓS

É A FRIEZA DO MUNDO OCIDENTAL


Edwin, cidadão nigeriano

Imigrante jogado em Roma eterna

Mais abrigo teria em caverna

Que no gélido solo do Vaticano

Neste mundo de luxo e tão insano

Onde muito se diz, pouco real

Se promete o bem, e faz-se mal

Curiais jamais sofrem vida atroz

BEM MAIS FRIO QUE O FRIO QUE BATE EM NÓS

É A FRIEZA DO MUNDO OCIDENTAL



Corajosa, humilde e transparente

Atitude do Papa, em divulgar

Ante o fato, assumindo seu lugar

Solidário a Edwin e sua gente

Só em Roma, mais oito, recentemente

A política adotada é banal

De Jesus tão distante do ideal

É urgente Clamar, em alta voz

BEM MAIS FRIO QUE O FRIO QUE BATE EM NÓS

É A FRIEZA DO MUNDO OCIDENTAL


Sua vida constante risco encerra

Ou naufragam no mar, fugindo à guerra

Ou sucumbem na Europa, marginais

Ressalvando acolhidas fraternais

Desemprego lhes sobra, e como tal,

Falta pão, sem trabalho, sem teto, vida normal (?!)

Acumulam-se “contra”, faltam prós

BEM MAIS FRIO QUE O FRIO QUE BATE EM NÓS

É A FRIEZA DO MUNDO OCIDENTAL


De novembro pra cá, morreram dez

Só de frio, no âmbito de Roma

Pois o culto a Mamon a tantos doma

Da mensagem cristã, eis um revés

Nada disso Jesus pregou nem fez

O efeito devasta e é letal

Onde reina o império do capital

Dos humanos ele é o grande algoz

BEM MAIS FRIO QUE O FRIO QUE BATE EM NÓS

É A FRIEZA DO MUNDO OCIDENTAL


Sobre o Papa Gregório - século seis

Conta o Papa Francisco, impactado

Quando um pobre do frio é tragado

Se suspendam as missas, desta vez

E qual Sexta Sagrada, assim fareis

Lembra Cristo na cruz, e como tal

De Jesus esta vítima é sinal

Que a lição recolhamos, eu e vós

BEM MAIS FRIO QUE O FRIO QUE BATE EM NÓS

É A FRIEZA DO MUNDO OCIDENTAL



Edwin representa nossas gentes

Índios, negros, há séculos reduzidos

Ainda hoje, impactam seus gemidos

Solidários, ouvimos: são pungentes

São ouvidos em vários continentes

Em regime de feição colonial

O escravismo dá origem ao Capital

Provocando um monstro vil, feroz 

BEM MAIS FRIO QUE O FRIO QUE BATE EM NÓS

É A FRIEZA DO MUNDO OCIDENTAL




João Pessoa, 25 de janeiro de 2021


quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

 Quando emergem as correntezas subterrâneas: testemunho acerca da ação missionária de Frei Roberto Eufrásio de Oliveira


 Alder Júlio Ferreira Calado 



Somos gente nova vivendo a união

Somos povo semente de uma nova nação ê, ê 

Somos gente nova vivendo o amor 

Somos comunidade, povo do senhor, ê, ê


Vou convidar os meus irmãos trabalhadores 

Operários, lavradores, biscateiros e outros mais 

E juntos vamos celebrar a confiança 

Nossa luta na esperança de ter terra, pão e paz, ê, ê [..] 

(Zé Vicente, “Baião das Comunidades”)



Parte expressiva das agruras dos tempos presentes, agravadas por uma conjuntura de pandemia e de pandemônio, associa-se também ao modo de como as igrejas cristãs se têm fortemente distanciado da Tradição de Jesus de Nazaré, a quem dizem obedecer, mas cujas práticas sinalizam um horizonte não apenas distanciado, mas com frequência, também contrário ao proposto pelo movimento de Jesus. No caso específico da Igreja Católica Romana (mas também de outras igrejas cristãs), resulta impactante seu distanciamento das origens do cristianismo, pelo menos no que diz respeito a segmentos consideráveis de seu universo de seguidores. Revisitando as primeiras comunidades cristãs, nos primeiros séculos, surpreendem-nos agradavelmente os testemunhos proféticos e fraternos daquelas comunidades, como podemos observar por relatos constantes dos Atos dos Apóstolos (cf. At 2;4). Tomando o cuidado de evitar certas tendências idealizadoras, importa reavivar a memória e o compromisso destes grupos e comunidades cristãs dos primeiros séculos e, em certa medida, também presentes e atuantes - ainda que com exceções, como "minorias abraâmicas" - em distintos períodos históricos. No atual contexto sócio- eclesial, deparamo-nos com um clero fechado em si mesmo, quando muito, recorrendo às mídias católicas sob o pretexto de evangelização ou de missão. Trata-se de uma proposta que, apenas excepcionalmente, apresenta ou testemunha sua raiz.


Nem a figura carismática do Papa Francisco, em seus pronunciamentos, escritos e testemunhos têm conseguido mover o comportamento habitual conjunto de bispos e padres. Salvo algumas exceções sempre honrosas, a enorme maioria das dioceses e paróquias segue surda e muda em relação aos constantes apelos do Papa Francisco, a começar de sua Exortação apostólica "Evangelii Gaudium", proposta como programa de igreja para os próximos anos. Em consequência também desta desatenção, a enorme maioria das dioceses e paróquias vive um estado de inércia, no que toca ao essencial de sua missão: evangelizar, anunciar e testemunhar a Boa Nova de Jesus de Nazaré, junto aos pobres (cf. Lc 4,16-19). Nelas, a vida dos pobres tem preocupação superficial, longe de ocupar a centralidade recomendada pelo Evangelho e pelo Papa Francisco. O que se tem, em grandes proporções, é um clero, em grande parte, pouco preparado intelectualmente, menos ainda, do ponto de vista pastoral e de uma espiritualidade encarnada.


Alegra-nos, no entanto, constatar que, entre as "minorias abraâmicas" de missionários e missionárias, comprometidos com o anúncio e o testemunho do legado de Jesus, também merecem reconhecimento e aplauso de nossa parte os bons frutos que vêm sendo produzidos nas “correntezas subterrâneas”. Neste sentido, nas linhas que seguem, cuidamos de focar um exemplo ilustrativo de missionário - a figura de Frei Roberto Eufrásio de Oliveira - que, há 50 anos, vem peregrinando pelo campo e pelas periferias urbanas, no Nordeste brasileiro, notadamente em Sergipe, Paraíba, Pernambuco e Ceará. 


Este ano, e mais precisamente em 19 de Junho, Frei Roberto estará completando 50 anos de ordenação presbiteral, razão propícia para quê, juntando-se às comunidades, grupos e pessoas, componentes do movimento missionário que tem animado, cuide-se de exercitar a memória e celebrar as sementes espalhados cujos frutos vêm sendo colhidos, por conta desta atuação missionária, no Nordeste.


Prestes a completar seus 76 anos, em 4 de julho próximo, Frei Roberto Eufrásio de Oliveira é um religioso Missionário, atuando em vários estados do Nordeste. Cearense de Ubajara, logo cedo sentiu os sinais de sua vocação missionária, ainda junto aos seus pais e irmãos. Teve uma formação muito voltada para os temas despertados pelo Concílio Vaticano II, em especial em sua dimensão de igreja povo de Deus. Com seu estilo de vida simples, alegre, criativo e discreto, Frei Roberto se tem dedicado, ao longo destas décadas, a viver como pobre no meio do povo dos pobres, dele fazendo o seu tesouro, dócil ao que o Espírito do Ressuscitado o inspira. Eis porque quando alguém que o conhece menos, busca rastrear seus passos de missionário, se sente profundamente impactado pela qualidade e pela quantidade de suas ações fecundas de missionário, junto ao povo dos pobres, no meio rural e nas periferias urbanas, caracterizados por um abençoado rosário de obras, fazendo-nos evocar o que assinala o Evangelho: "a árvore se conhece pelos frutos" (cf. Mt 7,16).


Mesmo já vindo acompanhando, há algumas décadas, sua ação profético missionária, nos sentimos alegremente surpresos pela qualidade e quantidade de seus frutos. Também tal constatação nos faz vir à lembrança um escrito que se apresenta no topo de uma cisterna situada no Santuário das Comunidades, a 5 km de Caruaru, no sítio Juriti: "gente simples fazendo coisas pequenas em lugares pouco importantes consegue mudanças extraordinárias”.


Na oportunidade da celebração dos 50 anos de sua ordenação presbiteral, externou Frei Roberto sua intenção de comemorar este feito junto daqueles grupos e comunidades com quem ele partilhou, em momentos distintos, esta sua atividade profético-missionária, no Nordeste. Desde o início, fez questão de acentuar que não se tratava de um convite voltado a celebrar apenas sua vida missionária pessoal, mas sobretudo de chamar amigos e amigas de tantas comunidades com quem trabalhou, para ajudá-lo a agradecer a Deus pela graça de ser missionário entre o povo dos pobres. Achou por bem compartilhar entre amigos e amigas de vários estados do Nordeste, por onde passou, uma carta convite explicitando e sugerindo atividades de exercício da memória histórica e  avaliação prospectiva e celebração desta temporada, não se esquecendo de convidar principalmente para os compromissos daí resultantes, em relação aos próximos anos. Vale a pena, a este respeito, transcrever a íntegra de seu convite 


Choró Limão, 26/11/2020

Estimado (a)

“Quando a memória de um povo é destruída, atinge-se sua identidade profunda... nossa tarefa histórica no momento é restaurar a memória destruída pelos colonizadores...”

América Latina: Da conquista à nova evangelização. Pág.58

Em junho 2021 fecha o ciclo de 50 anos de vivência humana e eclesial na esteira do movimento conciliar suscitado pelo espírito renovador e reecriador da terra e dos humanos nos anos de 1962 a 1965, lançado pelo Papa camponês João 23. Centenas de pessoas percorreram esse caminho do espírito, e ajudaram a edificar a história de uma igreja povo de Deus, enraizada em Jesus de Nazaré, nos apóstolos e profetas, e mártires das origens do cristianismo, centrada na opção evangélica pelos pobres e por sua libertação integral.

Assim proponho utilizar esta data jubilar para propiciar um encontro de todas as pessoas, como você que ao longo da vida ajudaram a construir esta etapa preciosa da história. E continuam apostando nas energias criadoras e mobilizadoras do espírito criador.

Sou cidadão cearense, filho de Paulo Eufrásio e de Virginia Eufrásio Sampaio, nascido no município de Ubajara na serra da Ibiapaba Ceará, nossa família camponesa e me considero descendente dos indígenas e dos negros.

Em quatro estados do Nordeste vivi meus 50 anos após a conclusão dos estudos.

1.    De 1970 a 1988 na Diocese de Propriá no estado de Sergipe

2.    De 1989 a 2000 na Arquidiocese da Paraíba

3.    De 2008 a 2013 na Cidade Ouricuri, Diocese de Salgueiro no sertão do Araripe Pernambuco.

4.    De 2016 a 2020 no município de Choró no sertão central, na Diocese de Quixadá.

O que está sendo pensado e preparado olhando para o mês de Junho de 2021:

1.    No dia 10 de Janeiro está acertado um encontro na Diocese de Propriá articulado por Zé Pipiu.

2.    No dia 17 de Janeiro acontecerá um encontro em Café do Vento na Paraíba articulado por Alder Julio.

3.    No dia 23 de Janeiro acontecerá um encontro em Ouricuri sendo Paulo Pedro o articulador.

 

Nesses encontros programados vamos preparar juntos, a celebração desta história de 50 anos, construída e vivida nestas diferentes dioceses.  Queremos preparar um encontro de pessoas que percorreram essa história, promover a comunicação de testemunhos vividos, das experiências construídas, do dinamismo iluminador da vida dos pobres e excluídos em nossas vidas. Queremos perceber juntos o espírito que nos alimentou em todos esses anos, alimentar nossa esperança comum considerando os desafios estruturais na cidade e na Igreja e finalmente agradecidos olhar para frente.

 

O que estamos propondo aos participantes desses encontros desde agora:

 

·   Que cada um faça o resgate das etapas significativas de sua história, lembrando a área de atuação e anotando as energias irradiadoras de sua presença e ação ali onde Deus o enviou.

·   Cada participante vá pensando em propostas para a celebração destes 50 anos. Será possível pensar num calendário de minha presença nas comunidades de onde vêem os representantes dos encontros preparatórios?

 

Esta história de 50 anos de caminhada e evangelização nos sertões nordestinos não é a história de Frei Roberto. Mas sim a história de todos nós, que conduzidos pelo espírito de Deus procuramos seguir Jesus, despertando trabalhadores do campo e da cidade na construção do Reino de Deus.”




Resulta deveras vasto e profícuo o trabalho deste Missionário. Ainda na década dos anos 70, graças à iniciativa de um pequeno grupo de missionários e missionárias, entre os quais Frei Enoque Salvador e o próprio Frei Roberto, foi fundada a associação de missionários e missionárias do Nordeste, que, enfrentando conjunturas adversas, vem resistindo até hoje. A AMINE (Associação dos Missionários e Missionárias do Nordeste), com efeito, tem se dedicado, durante estas décadas, a promover as missões populares, em um estilo bastante inovador, à medida que não se limita a reunir a comunidade para realizar, em três ou quatro dias, as missões populares. A AMINE cuida de preparar e organizar as missões populares, no campo e nas periferias urbanas, em três diferentes momentos interconectados, assegurando um antes um durante e um depois, isto é, combinando com as comunidades que demandam a realização dessas missões populares o compromisso de assegurar, seis meses ou um ano de preparação antes de sua realização, do que elas/eles chamam de "pré missão", isto é, um  breve período de preparação, durante o qual são acordados temas, metodologia, tarefas e responsabilidades, como pré-requisito para a realização das missões populares propriamente ditas, durante uma semana. Também, faz parte desta mesma empreitada o compromisso com a realização da "pós missão", isto é, um tempo de retorno àquelas comunidades, em busca de acompanhamento e incentivo dos frutos dos trabalhos, durante as fases precedentes. Estes registros podem ser encontrados em um dos livros escritos por Frei Roberto, "Experiência missionária no Nordeste”, inicialmente publicado pela Editora Ideia, de João Pessoa, em 2005. Estas missões populares têm tido uma grande recepção por parte de muitas comunidades, espalhadas pelo Nordeste. São, de fato, bastante frequentes os convites recebidos pela AMINE. Esta atividade constitui uma das experiências missionárias mais de perto acompanhadas e protagonizadas também por Frei Roberto e várias equipes de missionários e missionárias da AMINE.



Em áreas do sertão sergipano, ao redor do município de Poço Redondo e Diocese de Propriá, ele teve sua primeira incursão missionária. Aqui, bem nos lembramos do grande pastor e profeta Dom José Brandão, Bispo daquela Diocese. Naquela reunião, Frei Roberto protagoniza relevantes e memoráveis incursões missionárias junto ao povo dos Pobres, principalmente os do campo, graças a várias iniciativas que ele cumpre junto com aquela gente. Parte desta experiência se acha registrada em seu livro intitulado "Caminhando com Jesus" publicado há uns 10 anos, e recentemente reeditado. Nele, entre auspiciosos relatos, se acha um que desperta especial atenção. Trata-se do convite feito por comunidades pobres daquela região do Sertão , para que Frei Roberto comparecesse até aquelas comunidades em uma missão popular. Era costume que padres, quando vindos àquela região, ficassem hospedados na casa de um fazendeiro, que havia construído uma capela. Mas, o fazendeiro fazia exigências amargas para aquele povo. Ao saber da presença de Frei Roberto naquela região, o fazendeiro não hesitou em ir até o Frade, suplicando que ele viesse se hospedar em sua residência, mantendo a tradição. Frei Roberto, agradecendo-lhe pelo convite, ponderou que já estava bem hospedado, em uma casinha de um mendigo daquela região. Surpreso com a recusa de Frei Roberto, o fazendeiro reagiu raivoso, dizendo que ele não lhe daria a chave da capela, e voltou revoltado, pronto para relatar o acontecido ao próprio Bispo. Da parte de Frei Roberto, ele seguiu sua missão, hospedado na casa daquela figura acolhedora de mendigo. São fatos como este que bem caracterizam a coerência missionária de Frei Roberto, em relação ao discipulado de Jesus de Nazaré e do seu Movimento.


As missões populares correspondem a uma das dimensões mais preciosas da Teologia da Enxada, experiência nordestina, inspirada pelo teólogo padre José Comblin, em conjunto com jovens seminaristas preocupados com terem uma formação voltada a serviço de seu povo, em especial da zona rural, donde provinham. Experiência também correspondente a uma dimensão da Teologia da Libertação, tendo início no final dos anos 60. Neste sentido, a Teologia da Enxada também é um dos campos privilegiados da ação missionária de Frei Roberto. Após o período de expulsão - 1972 -, de exílio no Chile, Padre José Comblin retorna ao Brasil, para dar continuidade às suas atividades formativas, no Nordeste, em especial no campo. Frei Roberto é um daqueles e daquelas que, em Itamaracá - PE, em 1980, com a coordenação do Padre José Comblin, estiveram reunidos durante vários dias para repensarem  o prosseguimento da caminhada missionária no Nordeste. Até os primeiros anos da década de 1970, as atividades de formação daqueles jovens que compunham os núcleos de Tacaimbó - PE e de Salgado de São Félix - PB, contaram com o acompanhamento da equipe de formadores e formadoras, coordenada pelo padre Comblin, mesmo durante sua ausência do Brasil, em razão de sua expulsão do país (1972). Tendo retornado ao Chile, mais precisamente a Talca, os trabalhos de formação deram prosseguimento, com a participação de formadores e formadoras (Padre Renê Guerre, Padre Joseph Servat, irmã Maria Emília Ferreira, entre outros), mas com o retorno de Comblin ao Brasil, havia a necessidade de uma reorientação do processo formativo, razão por que foi organizado aquele encontro em Itamaracá, a partir do qual se decidiu iniciar, já em 1981, na área chamada Avarzeado do município de Pilões - PB, ainda integrante do território da arquidiocese da Paraíba, a experiência do Seminário Rural. Poucos anos após sua criação, teve que ser fechado, por imposição de Roma, o que abriu a possibilidade de fundação, agora em Serra Redonda -PB, do Centro de Formação Missionária, experiência bem acolhida por Dom José Maria Pires, Bispo da Paraíba. Frei Roberto também participou desta experiência que resultou em várias outras, que ele também animou, em especial as escolas de Formação Missionária, onde a cada ano, atuava e atua como professor de história da igreja e como animador da liturgia, com cantos populares e com visitação às casas, durante o período de formação.



Articulando e alternando suas atividades junto a estas primeiras experiências, Frei Roberto passa, no início dos anos 90 a iniciar uma nova experiência missionária, desta feita na região compreendida entre os municípios de Capim e Cuité - PB, onde atuou cerca de 5 anos, como missionário a serviço da causa do povo dos pobres. Sobre este período, na jornada do dia 17 de Janeiro realizada em Café do Vento, no sítio onde se encontra o Centro de Formação Padre José Comblin, animado pelo padre Hermínio Canova, também presente nesta reunião, foram impactantes vários depoimentos de pessoas, mulheres e homens, que acompanharam de perto os passos missionários Frei Roberto. Tais testemunhos sublinhavam vários pontos da frutuosidade daquela ação missionária, destacando-se a organização de missões populares, os trabalhos de mutirão de construção de casas populares, a defesa dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras do campo, o incentivo às atividades culturais, como as cantorias, o Cordel, a organização de iniciativas de trabalhos artesanais para as mulheres, entre outros.


Na segunda metade dos anos 90, Frei Roberto, missionário itinerante, passa a dividir suas atividades com o padre Vicente Zambello, Padre "Fidei donum", em duas áreas pastorais pertencentes ou vizinhas no território de Bayeux (Mutirão) e em Várzea Nova, pertencente ao município de Santa Rita. Em sua distribuição de trabalhos, enquanto o Pe. Vicente assumia mais diretamente os trabalhos missionários na comunidade Mutirão, numa área elevada do município de Bayeux. Coube a Frei Roberto acompanhar mais de perto a comunidade de Várzea Nova. De vez em quando, alternando trabalhos e atividades em uma e outra destas áreas pastorais, Padre Vicente e Frei Roberto protagonizaram, sempre junto com as respectivas comunidades, iniciativas profético missionárias de grande alcance. No que diz respeito ao processo formativo destas comunidades e ao serviços litúrgicos, articulados a atividades de cidadania, isto é, de tomada de consciência comunitária dos seus direitos de cidadãos e cidadãs como resultado destes trabalhos pastorais e missionários, várias foram as oportunidades em que, conscientes de seus direitos negadas, estas comunidades se uniram em protesto público, de reivindicações de vários tipos, entre os quais, o da luta pela construção de barreiras na BR, e de passarelas de prevenção de frequentes e tais ocorrências de acidentes. O mesmo ocorre em relação à luta pela água. Naquelas comunidades, sobre este ponto, foram candentes os testemunhos ouvidos espontaneamente da parte daquelas e daqueles que acompanharam de perto estas iniciativas, tendo, inclusive, sido lembrado o nome de uma mulher missionária muito admirada pela sua coragem profética, pelo anúncio e testemunho cristão: referimo-nos à animadora Margarida Lucena de Freitas, que fez sua Páscoa há poucos anos atrás, e cujo legado há de ser cultivado por aqueles e aquelas que a conheceram de perto e com ela lutaram pelas mesmas causas do Reino de Deus e sua justiça. 


Frei Roberto também atuou junto a algumas Comunidades Quilombolas, ao redor da cidade de Serra Redonda, acompanhando e incentivando a consciência negra naquela gente. Outra experiência vivida por Roberto teve um caráter mais explicitamente contemplativo trata-se do seu recolhimento, em companhia de Frei Eliomar, em um período de cerca de 3 anos, em um eremitério próximo ao município pernambucano de Bom Conselho. Tratou-se de uma experiência de contemplação e de revisão, em um clima de oração mais continuada e de contemplação de revisão de vida.


Outra experiência vivida por Frei Roberto, a merecer igual registro, se passou em um distrito próximo a cidade de Caruaru, no distrito chamado Rafael, onde atuou, sempre como missionário itinerante, durante uns três anos.


Experiências vivenciadas por Frei que alcançam frutos mais alvissareiros, prendem-se ao seu tempo Missionário junto com as comunidades urbanas e rurais do município de Ouricuri, no alto sertão pernambucano, há cerca de 10 anos, durante os quais acompanhou de perto e animou relevantes iniciativas protagonizadas por movimentos sociais populares, de organização das lutas socioambientais daquela região, entre outras atividades desenvolvidas naquele lugar.



Ao fazer-nos ressoar a palavra do Evangelho, segundo o qual, quem encontra onde está o seu tesouro aí está o teu coração, também Frei Roberto houve por bem compartilhar sua imensa alegria e seu zelo pelo tesouro que encontrou e cuja alegria quer compartilhar com aquelas e aqueles que acompanharam sua saga missionária, uns por 50 anos, outros por 40, por 30, por 20, por 10... A razão pela qual decidiu convidar - ver convite acima - comunidades distintas e seus amigos e amigas, para se associarem a esta iniciativa de Ação de Graças, de exercício da memória, de renovação e fortalecimento dos compromissos missionários, para celebrar ou concelebrar estes 50 anos de sua ordenação presbiteral. Neste sentido, de acordo com o cronograma de visitas por ele proposto, o primeiro lugar a visitar foi o sertão sergipano, mais precisamente no município de Itabi, por meio da ação dos trabalhadores e trabalhadoras Rurais e seu sindicato, 


Justamente nesta região sertaneja, em volta dos municípios de Itabi, Poço Redondo e outros, foi iniciada a ação missionária de Frei Roberto, de Frei Enoque e outros companheiros e companheiras de caminhada, onde se deu um forte impacto da ação missionária, especialmente por meio das missões populares, muito incentivados pelo bispo de então, Dom José Brandão. Junto aos antigos amigos e amigas e atuais comunidades daquela região, é que se deu, na sede do sindicato rural de Itabi, o encontro comemorativo, com a participação de cerca de 40 pessoas.



-O que podemos recolher como aprendizado deste exercício de memória  da saga missionária de Roberto?


A caminhada frutuosa do missionário Frei Roberto nos traz, nos remete ao Espírito característico das primeiras comunidades cristãs, tal como relata o livro Atos dos Apóstolos, tal caminhadas inserem-se diretamente no seguimento de Jesus e seus discípulos e discípulas, ao longo de toda a tradição de Jesus e de seu movimento. Também nos faz lembrar vários movimentos e comunidades que têm sido fiéis à Tradição de Jesus, ao exemplo de movimentos tais como o dos Valdenses, o movimento dos Espirituais Franciscanos, o das Beguinas, para mencionarmos apenas três ilustrações. Mais recentemente, a trajetória missionária de Frei Roberto e outros itinerantes também nos reforçam a segunda memória de experiências recentes, tais como a do Concílio Ecumênico Vaticano II, a do Pacto das Catacumbas (1965), das CEBS e da Teologia da Libertação, implantados sob os auspícios da conferência de Medellín (1968)(1979), entre outras.


As comemorações já realizadas ou ainda em curso dos 50 anos da memória da ordenação presbiteral de Frei Roberto nos reforçam, igualmente, aspectos impactantes desta caminhada profético-missionária, nos reforça os compromissos de seguirmos firmes, a enfrentar os grandes desafios. Durante o encontro de Café do Vento (Sobrado - PB), em preparação ao grande encontro de comemoração dos 50 anos, compareceram dezesseis participantes: Hermínio Canova (anfitrião e também celebrante de seus 50 anos de ordenação presbiteral em 29 de Novembro de 2020), Frei Roberto Eufrásio de Oliveira (figura principal dos encontros comemorativos), Maria José (Café do Vento), João Batista (Luiz Gomes - RN), Tancredo, Maria do Céu, Dona Santa (Cuité, Capim e arredores), Maria da Soledade, conhecida como Neném, Luiz Henrique, Domingos (Escola de Formação Missionária de Santa Fé, membros da coordenação), Cícero e Andrea (Várzea Nova), Elenilson Delmiro dos Santos (grupo Kairós), Alder Júlio Ferreira Calado (grupo Kairós). O encontro foi iniciado com a oração com a leitura do Evangelho do dia. Após a partilha da palavra de Deus, encerrou-se com o canto “Baião das comunidades”. Em seguida, coube ao padre Hermínio dar as boas vindas e fazer uma breve reflexão sobre a relevância, no Cristianismo, de se fazer memória. Não se trata de trazer à tona meras lembranças que inspirem saudosismo, mas de um exercício que induz compromissos, de um exercício empenhativo. Elenilson, também, reforçou o sentido da memória. O ponto seguinte foi o de exercitar-se uma reflexão sobre nossa atual realidade. E o fizemos por meio de sete palavras-chave, precedidas por uma outra que serve de pano de fundo às demais: vivemos em uma verdadeira mudança de época, algo que se passa em raros momentos da história.


Vivemos uma profunda crise sócio ambiental, a Mãe Terra geme. Conforme estudos recentes da parte de cientistas, que se têm debruçado sobre as possíveis origens da covid-19, inclui-se a hipótese de que ela manifeste uma reação do planeta contra as atitudes seres humanos de profunda e Crescente agressividade para com a mãe natureza e toda sua comunidade de vivente . não tendo opção quanto ao salvamento de seus filhos e filhas (humanos, animais, vegetais…), como uma mãe amorosa que também ama profundamente todos os seus filhos e filhas, não apenas os humanos, sente-se constrangida a emitir um duro sinal aos agressores, como meio de alertá-los do crime que vêm praticando contra o planeta e a comunidade dos viventes.


Também, nossa realidade vem marcada por uma profunda crise ética, em que se observa uma reviravolta dos valores, inclusive da própria verdade, hoje frequentemente tratada como uma "pós-verdade", Isto é, como se os humanos passassem a entender a verdade conforme seus próprios caprichos, ou seja, "a verdade é aquilo que eu quero que ela seja". Além disto, há uma subversão dos princípios e valores em que tantos dizem basear sua vida, a exemplo de tantos segmentos da população que se confessam cristãos (católicos, ortodoxos, reformados), ainda que suas atitudes se distanciem visivelmente dos princípios mais elementares do Jesus de Nazaré e das primeiras comunidades cristãs.


Nosso mundo vem, igualmente, sendo marcado por profunda crise econômica, muito visível quando se busca observar o modo de produção capitalista, é demoníaco hoje, principalmente por seu segmento financista, cujos agentes não cessam de acumular escandalosos lucros, justamente em tempos de pandemia, testemunhando assim que o seu Deus é o Deus Mamon, que nada tem a ver com o Deus anunciado e testemunhado por Jesus de Nazaré.


Outro ponto que acentuamos, nesta lista de palavras-chave, foi a crise política, de gestão societal cada vez maior, percebemos que o estado (antigo, medieval, moderno, contemporâneo) não responde minimamente às aspirações da enorme maioria dos países, nos diversos continentes, contribuindo junto com as forças do mercado capitalista, para agravar em ainda mais as desigualdades espantosos de que é vítima acrescente maioria dos habitantes da terra.


A crise religiosa constituiu outra palavra-chave, no sentido de que as grandes forças malignas que marcam o atual modo de produção de gestão e de consumo têm uma enorme contribuição da parte de lideranças religiosas que, em que pese seus discursos em contrário, só tem contribuindo para com o atual e perverso modo de produção, de consumo e de gestão societal.


Por último, frisamos, como palavra-chave, o lugar das igrejas cristãs, em especial a Igreja Católica Romana, como agentes de fortalecimento desta crise à medida que se empenham em justificar, apelando ao nome de Deus, as atitudes mais perversas dos dirigentes atuais, seja em escala mundial ( a medonha figura de Donald Trump), seja em âmbito nacional (bolsonarista).


Como arremate das presentes linhas, compartilhamos mais dois aspectos. Um primeiro consiste em destacar que, para além da figura de Roberto, é considerável o número de missionárias e missionários brasileiros nordestinos, nascidos ou não no Brasil, que igualmente merecem uma reflexão e um tributo mais explícitos, oportunamente. Com efeito, muitos são os nomes que vêm espontaneamente à memória, quando registramos estas linhas. Irmã Sarita Furtado, irmã Agostinha Vieira de Melo, irmã Jacinta, irmã Hermínia travessão lá no santuário das cebs, em Caruaru parênteses, Padre Vicente zambello, Padre Hermínio Canova que, ainda em novembro passado, completou seus 50 anos de ordenação presbiteral, diáconos como Paulo Carlos de Souza, de Jataúba, diácono José Duran, apenas para citar alguns exemplos, aos quais devemos acrescentar uma gama de leigas e leigos, a exemplo de José Duda (de Jataúba), de Elvira Galindo (Alagoinha/Pesqueira), José Sena (Pesqueira), dentre tantas e tantos outros. Outro aspecto que temos a realçar diz respeito a uma explicação do título destas linhas: "quando emergem as correntezas subterrâneas ". a utilização de parábolas, figuras de linguagem constitui, desde os tempos de Jesus (Suas tão luminosas parábolas), passando pelas místicas e místicos da Idade Média e em outros períodos, fato é que a linguagem simbólica tem-se apresentado como um segundo recurso comunicativo. Mais recentemente, a memória a imagem criada pelo Frei Carlos Mesters se reporta às CEBs como um conjunto imenso de riachos que vão alimentar “o rio das CEBs”. Ainda mais recentemente, figuras tais como a de José comblin, João Batista Magalhães Sales e outras, trazem em seus escritos ou em suas falas a expressão "correntezas subterrâneas", para designarem o modo de organização das pequenas comunidades, cuja atuação se dá, de preferência, junto aos pobres do campo e das periferias urbanas, gente humilde, anônima, invisibilizada, como se fossem correntezas que circulam abaixo da superfície, e, como o da comemoração dos 50 anos de ordenação presbiteral de Frei Roberto é assim que costumam funcionar estas forças eclesiais, na simplicidade, na descrição, no entusiasmo.


 João Pessoa, 21 de janeiro de 2021 






quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Por uma igreja pobre, servidora e laica: a contribuição do Movimento dos Valdenses

 Por uma igreja pobre, servidora e laica: a contribuição do Movimento dos Valdenses


 Alder Júlio Ferreira Calado


Um dos grandes empecilhos presentes no processo de formação, vivenciado nos seminários, tem a ver com a pouca criticidade dos ensinamentos relativos à história da igreja. Com muita frequência, o que se tem é mais uma história eclesiástica, defesa incondicional da hierarquia, em tom apologético, acrítico. Em verdade, uma compreensão crítica, baseada nos fatos históricos, nos acontecimentos e situações vivenciados pela Igreja Católica Romana e também outras igrejas mui raramente é exercitada. A posição que prevalece é um olhar complacente, condescendente ou mesmo cúmplice dos graves malfeitos protagonizados pela hierarquia eclesiástica, em diversos períodos da história da igreja. Não raramente, aqueles grupos, movimentos e figuras que discordassem dos princípios impostos pela hierarquia, não eram tratados apenas como meros dissidentes, mas como heréticos, alvo, por conseguinte, de intensa perseguição e graves punições, inclusive a fogueira, da parte da hierarquia eclesiástica.


Ao longo de dois mil anos de cristandade são impactantes os graves malfeitos praticados por papas, bispos e o clero em geral contra quem não se submetesse incondicionalmente às suas ordens e normas, mesmo quando estas se chocassem visivelmente com os textos evangélicos. Toda esta estrutura punitiva não foi, contudo, suficiente para inibir ou dissuadir muitos dos membros desta igreja, que preferiram obedecer, conforme o conselho presente nos Atos dos Apóstolos, mais a Deus do que aos humanos. Isto se deu com vários grupos, movimentos e pessoas, ao longo da história da cristandade, em especial durante a chamada Baixa Idade Média. A partir do século XI e XII, observa-se uma sucessão de grupos, movimentos e pessoas que se insurgiram contra os preceitos impostos pela hierarquia, razão pela qual tiveram que pagar um preço muito alto, inclusive com a sua própria vida. No século XII, por exemplo, tem início um movimento animado pela figura de Pierre Valdès (ou Valdo), um rico comerciante que, profundamente tocado pela exortação do Evangelho, segundo a qual dificilmente um rico entrará no reino dos céus, decidiu desfazer-se de sua riqueza e dividi-la com os pobres, em uma atitude de obediência aos ensinamentos do Evangelho em torno de 1160. Na região sudeste da França, perto de Lyon e da Provence, é que tem início este movimento, chamado de movimento dos Valdenses, em referência a figura de Pierre Valdo. Tocados pelo chamamento missionário, este movimento de homens e mulheres passa a alimentar-se da palavra de Deus, especialmente do Evangelho, que os move à pregação em praça pública, em um contexto em que a pregação era tida como prerrogativa exclusiva do clero. Buscando, todavia, obedecer mais a Deus do que à hierarquia, estes homens e mulheres ousam sair em missão, a pregarem e a testemunharem o Evangelho do Reino de Deus e sua justiça, procedimento que passa a ser punido, de forma contundente, pela alta hierarquia, incluindo perseguições e castigos infligidos a este movimento, por longos séculos.


O movimento dos Valdenses não era aceito pela hierarquia, não apenas por ousarem pregar o Evangelho em público, mas também por ousarem fazê-lo, utilizando-se da língua comum, tendo traduzido o Evangelho para a língua do povo, para o vernáculo. Apenas ao clero era permitido, não apenas pregar, como também ler a sagrada escritura e, em latim, sendo às massas populares permitido tão somente ouvir, em segunda mão, a palavra de Deus, o que os membros deste movimento não se puseram de acordo. Guiados pelo sopro frontal, pelo Espírito Santo, os Valdenses não cessavam de espalhar-se por aquela região, de modo a assustar ainda mais os hierarcas. Estes ainda sofriam fortes denúncias feitas pelos Valdenses, com relação ao seu agir aético e distante dos valores do Evangelho, à medida em que se impunham como componentes de um estado, de um império, com alianças seguidas com reis e príncipes, ao tempo em que desprezavam os pobres, os desvalidos mais ainda: metiam-se em situações de corrupção e de devassidão, perdendo cada vez mais a confiança dos pobres, dos que não compunham a nobreza e seus cúmplices. Os valdenses expandiam fortemente sua ação missionária passando da região em torno de Lyon, na França, para a região da provence francesa e, em seguida, para a região italiana dos Alpes, do Piemonte. Os hierarcas, por sua vez, não pouparam os Valdenses, Contra eles movendo seguidas perseguições, das quais a chamada "Semana Sangrenta", na região francesa do Luberon, constitui uma forte ilustração das perversidades do massacre impetrado contra milhares de membros do Movimento dos Valdenses, em 1545.


Não eram apenas os Valdenses, também conhecidos como "os pobres de Lyon" que teimavam em seguir os conselhos evangélicos, mesmo contra as ordens e as normas dos hierarcas eclesiásticos. Havia, também, outros movimentos que seguiram passos semelhantes. o próprio movimento em torno de Francisco de Assis (os Valdenses surgiram cerca de 20 anos antes do nascimento de Francisco de Assis) também significou um protesto veemente contra a riqueza do clero e seus vínculos orgânicos com o império, com reis e príncipes, com a nobreza. Enquanto Francisco e seus companheiros, ainda que não tendo uma postura de claro enfrentamento com a hierarquia, graças ao seu testemunho de pobreza e de profecia, apontavam o horizonte do reino de Deus como sendo sua verdadeira meta. Além dos chamados espirituais franciscanos ou “fraticelli”, também importa reconhecer outros grupos e movimentos que surgem e se espalham, como o movimento das Beguinas, também contemporâneo dos acima mencionados.


Há mais de 20 anos, em um pequeno livro intitulado "Memória histórica e movimentos sociais populares ", tivemos a ocasião de fazer um breve apanhado de diversos movimentos pauperes típicos da Idade Média, incluindo os valdenses, franciscanos, os espirituais franciscanos, os cátaros, os begardos, as beguinas, integrantes do movimento em torno de Jan Hus e de Thomas Müntzer, entre outros. Naquela ocasião - como ainda hoje -, com notável frequência, escutamos advertências ou exortações da parte de integrantes de correntes conservadoras e reacionárias, aconselhando a não olhar pelo “retrovisor”, para se poder olhar apenas para a frente. Isto tem sido estratégia recorrente dos "vencedores da história", inclusive de correntes escravagistas que hoje assumem posição de relevo no atual contexto sócio-histórico e mesmo eclesial, a despeito de figuras tais como a do Papa Francisco. Ora, para os vencidos, olhar apenas para o futuro, desprezando relevantes lições do passado, significa um ato de submissão aos ditames dos grupos dirigentes e dominantes. Rememorar acontecimentos, situações e fatos históricos constitui uma ferramenta preciosa para os “de baixo", à medida que tal exercício é capaz de recolher lições e aprendizados, sem os quais se tornaria inútil a busca de alternativas com chances de êxito. Como costumava dizer Eduardo Galeano, "o passado tem muito a dizer ao futuro". daí nossa decisão de revisitarmos, de vez em quando, acontecimentos e fatos históricos do passado, não com o intuito de reproduzi-los - o que seria uma inócua farsa -, mas de, ao revisitá-los, buscar recolher ensinamentos grávidos de alternatividade para um enfrentamento exitoso dos desafios atuais. É, por conseguinte, nesta perspectiva, que ousamos rememorar o movimento dos Valdenses, ainda que de modo resumido.


Um dos ganhos relevantes de nossa tentativa reside no fato de que, por um lado, se as relações de dominação têm-se feito presentes, ao longo de séculos, os movimentos populares de resistência sempre tiveram lugar. E não se trata apenas, como sabemos, da resistência profética oposta pelos Valdenses aos caprichos e malfeitos perversos praticados pela hierarquia eclesiástica, em conluio com a nobreza, com o império, com príncipes, em diferentes épocas, mas também de rememorar tantos outros movimentos populares, antes e depois da Idade Média, até os dias presentes, como uma estratégia libertária para os oprimidos de todos os tempos. Convém sempre lembrar o protagonismo de outras forças sociais, movidas ou não por valores religiosos, mas sempre dispostas a se rebelarem contra todo tipo de dominação tal revisitação resulta, não apenas pertinente, mas igualmente útil e necessária, como meio de reforçar nosso horizonte de busca de uma nova sociedade, alternativa aos caprichos da barbárie presente, representada pelo capitalismo, em suas diversas modalidades.


Neste sentido, nossa busca de familiarização com os acontecimentos protagonizados, seja pelos gladiadores romanos que se rebelaram contra o império, seja pelos diversos movimentos revoltosos da Idade Média, seja pelos movimentos revolucionários da Idade Moderna e da Idade Contemporânea. Isto representa um campo de resistência bastante promissor como inspiração para as lutas presentes.


O que podemos recolher, como lições, das lutas travadas por estes movimentos populares, dentro e fora dos espaços eclesiásticos, especialmente dos Valdenses? Um dos pontos a recolher, refere-se ao entendimento de que toda dominação constitui-se uma relação social, na qual e pela qual dois pólos entram em conflito aberto: o polo da dominação e o polo que sofre a dominação. Sem o consentimento deste, a relação se rompe, em algum momento. Isto sucede tanto nas macro relações quanto nas micro relações. Resulta impossível uma dominação, inclusive, pela força das armas, quando é persistente a resistência do polo que sofre aquela dominação. Eis um aspecto que injeta muita esperança e confiança nos dominados de todos os tempos, inclusive nos de hoje.


Dadas, inclusive, suas especificidades e singularidades, vale a pena trazer à tona alguns aspectos da evolução e dos desdobramentos do Movimento dos Valdenses. Trata-se de experiência eclesial das mais longevas, entre as igrejas cristãs. O movimento dos Valdenses se dá antes mesmo do nascimento de Francisco de Assis, no final do século XII, menos de um século após o chamado cisma do oriente, isto é, a separação de igrejas ortodoxas da Igreja Católica Romana, em 1080. O movimento dos valdenses, com efeito, tem atravessado cerca de nove séculos, sendo capaz de sobreviver a graves intempéries sofridas, ao longo deste tempo.


Na sua proposta de vivenciar o Evangelho, por meio do discipulado fiel à sua palavra, Pierre Valdo e seus seguidores se mostraram bem firmes, em seus propósitos, principalmente no tocante à sua vocação de pregar o Evangelho em público, permitindo que a palavra de Deus fosse acessível diretamente àqueles e àquelas tocadas pela sua mensagem, razão por que Pierre Valdo tratou, junto com os seus irmãos e irmãs, de fazer traduzir a Sagrada Escritura ou mais diretamente os Evangelhos, em língua popular, em um tempo em que somente os membros do clero tinham a prerrogativa de lê-la, em latim, acarretando ao povo uma leitura de segunda mão, algo com o que os Valdenses não concordavam. Esta vocação de leigos e leigas pregadores do Evangelho incomodou o alto clero, tornando-se um fator de reiteradas perseguições condenações e até de massacre, como ocorreu em 1545, além de outros episódios semelhantes em tempos posteriores.


Os Valdenses, a partir de Lyon e dos seus arredores, na região de Aix-en-provence, foram se expandindo para outras regiões, A exemplo do Piemonte e, a partir daí, por toda a península italiana, pela Suíça, pelo sul da Alemanha, chegando a marcar presença também em países do leste europeu, exemplo da atual República Tcheca e da Polônia, depois indo mais longe, inclusive na América Latina, especialmente entre o Uruguai e a Argentina, além de sua presença também nos Estados Unidos, na região de Carolina do Norte, Nova York e outras.


Esta capacidade de resistência a todo tipo de perseguição tornou os valdenses fiéis e obedientes à palavra de Deus, até o presente. Disto dão testemunho sua participação e sua ação evangelizadora, por meio também da oração e do culto assegurado aos seus fiéis, mulheres e homens. Adaptando-se aos diversos contextos, os valdenses acabaram filiando-se às igrejas reformadas, principalmente à Igreja Calvinista, e mais recentemente, também à Igreja Metodista e Presbiteriana.


Interessante, igualmente, atentar à forma como organizam e vivenciam os seus cultos. uma sugestão provocativa pode ser a de acompanhar um de seus cultos, pela via da internet, nesses tempos de pandemia. Um desses cultos, tivemos a alegria de acompanhar recentemente (e que recomendo pelo link https://www.youtube.com/watch?v=j5QSiarbFGs), justamente quando se celebrava a festa de Pentecostes. No culto, a ênfase dada era a de um dia todo especial, pois rememorativo da fundação das igrejas cristãs. Chamam a atenção não apenas as densas leituras da celebração, como também a firme participação feminina nos referidos cultos, em companhia masculina, demonstrando uma participação fraterna, também no que concerne às relações de gênero.


Outro aspecto tocante, na experiência mais recente das igrejas valdenses, refere-se à sua participação crítica nos embates da sociedade civil, inclusive em temas delicados, tais como a orientação sexual de seus membros, a eutanásia, sua posição em relação a muitos temas-tabus, tão característicos atualmente das igrejas Neo pentecostais fundamentalistas, inclusive no segmento Pentecostal ao interno da Igreja Católica Romana. Chama a atenção, não menos, sua posição firme em relação à laicidade do Estado. Mostram-se, também, muito aplicados nos estudos de exegese, adotando o método histórico crítico, como instrumento de releitura e interpretação de textos bíblicos espinhosos, do ponto de vista das mulheres e dos homens de nossos tempos.


Rememorar traços significativos do legado dos Valdenses e de tantos outros movimentos populares, na Idade Média e em quaisquer outros períodos da história, tem a ver com o propósito de reavivarmos nossos compromissos, diante dos tremendos desafios atuais - ecológicos, sanitários, econômicos, políticos e culturais, à medida que tal exercício nos permite compreender a importância do exercício de uma memória revolucionária, tanto em sua dimensão coletiva quanto no âmbito pessoal.


Em vez de nos rendermos ao sentimento de impotência ou, pior ainda, de indiferença, ante os desafios de hoje, exercitar a memória histórica destas lutas e deste legado nos anima sobremaneira, no sentido de despertar nossa consciência crítico-transformadora, a partir das correntezas subterrâneas, grávidas de alternatividade à barbárie capitalista ora agravada, seja pela pandemia da covid-19, seja pelo pandemônio da atual conjuntura neo-fascista de correntes obscurantistas, protagonizadas por seres humanamente desfigurados como os do Trumpismo e do Bolsonarismo. Quanto a este último, importa alertar em relação aos gravíssimos riscos que a sociedade brasileira corre - já não bastassem os anos de tragédia golpista, maquinada pela elite escravagista -, ante a clara tendência ao aprofundamento do golpe, por meio da criação de um Estado teocrático miliciano, haja vista seu obcecado empenho em liberalização da venda de armas. No caso dos Estados Unidos, ainda que tarde, alguma medida está sendo tomada. E em nosso caso?


 João Pessoa, 13 de Janeiro de 2021.