sexta-feira, 29 de junho de 2018

EDUCAÇÃO E ATUALIDADE BRASILEIRA: a contribuição da Educação Popular aos processos de mudança, na atualidade brasileira

EDUCAÇÃO E ATUALIDADE BRASILEIRA:
a contribuição da Educação Popular aos processos de mudança, na atualidade brasileira

Alder Júlio Ferreira Calado

O tema proposto para este I Seminário é, como se percebe, consideravelmente vasto. E não menos fecundo, na medida em que permite um amplo leque de possibilidades de abordagem, como, alas, convém à natureza mesma do evento – campo de semeadura.
Propicia tratar, seja no campo da educação, seja no campo da realidade atual da sociedade brasileira, aspectos múltiplos: desde enfoques teórico-conceituais relativos à educação às experiências educacionais em curso, no atual cenário brasileiro; desde as políticas de educação em vigor às práticas pedagógicas do cotidiano escolar ou nos espaços não-formais de Educação, seja no âmbito dos diferentes sistemas de ensino, nas distintas esferas de poder, nos vários níveis e modalidades, da Educação Infantil à EJA e à EducaçãoEspecial, e assim por diante.
A despeito dessa vasta gama de possibilidades de abordagem que o tema enseja, cumpre, porém, observar um traço comum a perpassar todas essas formas de abordagem. Referimo-nos à perspectiva, à ótica freireana, como traço de unidade a costurar os mais distintos recortes.
É, por conseguinte, a partir desse “mirante” epistemológico (Luxemburgo, Lukács, Löwy) que nos dispomos aqui a a ensaiar uma reflexão acerca da contribuição da Educação Popular aos processos de mudança da realidade brasileira.
E já me apresso em tornar explícito o que aqui vem designado por Educação Popular.
Em que pese admitirmos que, sob algum aspecto, dada sua carga coletiva, a Educação está ligada a uma dimensão popular – do que, neste caso, resulta algo redundante falar-se em Educação Popular -, insisto, porém, no emprego dessa mesma expressão, em razão semelhante ao que se passa em relação à expressão Movimentos Sociais Populares. Assim como nem todo Movimento Social é necessariamente popular, na acepção classista de seus protagonistas, de modo similar entendo que Educação Popular tem seu embasamento identitário firmado em características e condições tais como:
- quanto ao caráter teleológico de sua ação – A Educação Popular persegue um modelo alternativo de sociedade, inspirado em valores tais como a justiça social, a solidariedade, a partilha, o caráter emancipatório de seus protagonistas, entre outros aspectos. Modelo que se contrapõe frontalmente ao modelo capitalista de sociabilidade ou de qualquer organização societal fundada na dominação de classe, em suas mais variadas manifestações;
- quanto aos protagonistas – diferentemente de um propósito que tem por alvo ou destinatário segmentos da camada popular, a Educação Popular só se realiza lá onde segmentos das classes populares se fazem protagonistas decisivos, acompanhando e debatendo, desde as bases, acerca de todos os passos do processo: da concepção aos resultados, do planejamento à avaliação;
- quanto à gestão de suas relações – a Educação Popular cultiva as práticas de autogestão, fecunda experiência cujos protagonistas tratam de organizar por meio dos conselhos (ou que outro nome tenham), cujos membros escolhem, em rodízio, seus animadores e animadoras, sem abrir mão, porém, do princípio da revocabilidade: em casos graves, quem é eleito também é destituído.
- quanto ao caráter da formação – a Educação Popular, tomada na acepção que aqui sustento, aposta no incessante cultivo da formação omnilateral de seus protagonistas, no cotidiano das relações humanas e sociais. Trata-se, pois, de uma formação continuada cujo caráter de omnilateralidade bem se aproxima do que Marx contempla em seus Manuscritos Econômico-Filosóficos e do que a Pedagogia Socialista, tão bem representada pela contribuição gramsciana (entre outros teóricos), propõe.
Como se percebe pelo que acima vem esboçado, mais do que mera categoria acadêmica – que também é -, a Educação Popular é por nós tomada como uma densa e experiência de incessante humanização dos Humanos, em suas relações subjetivas, entre si, com a Mãe-Natureza e com o Sagrado. A Educação Popular é aqui tratada
- como uma visão alternativa de mundo, de ser humano e de sociedade;
- como um caminho alternativo de contínua humanização;
- como uma postura, uma atitude, um modo alternativo de se portar, desde os gestos moleculares às atitudes tomadas nos espaços das macro-relações. Aposta-se, aqui, em que, assim como o todo contém a parte e esta, por sua vez, comporta elementos moleculares do todo, de modo semelhante, os gestos minúsculos, pouco perceptíveis ao olhar convencional, carregam sementes ou elementos dos marcro-espaços, de tal modo que quem aspira a uma sociedade alternativa, sente-se no dever de emitir sinais convincentes dessa Utopia nos mais elementares gestos das relações do cotidiano, ou em vão declara lutar por uma nova sociedade.
Ao tentarmos explicitar os sentidos aqui trabalhados de Educação Popular, observamos, seguidas vezes, uma íntima associação entre Educação Popular e alternatividade. Mas, alternatividade em relação a quê?
Alternatividade em relação ao modo dominante de se portar, de sentir, de pensar, de querer... Na intricada rede de relações que tecemos em nosso dia-a-dia, seja ao interno de nós próprios, na família, na escola, no trabalho, nos espaços políticos, culturais, religiosos, em breve: na “Oikía” e na “Polis”, sabemos prevalecerem ampla e profundamente os valores da sociedade dominante. Como já alertava Marx, em meados do século XIX, em toda sociedade de classes – e a nossa não é diferente... -, as idéias dominantes são as idéias da classe dominante. E isso também vale para nós, educadores e educadoras, que nos dizemos contrários aos interesses das forças dominantes e nos declaramos comprometidos com a construção de um mundo alternativo. E, com espantosa freqüência, estamos sendo flagrados em atitudes em nada condizentes com o universo de valores de que pretendemos ser portadores. Não raro, como as “Safiras” das novelas, nos flagramos em situações explícitas de esquizofrenia individual e coletiva: a sentir uma coisa, a pensar uma segunda, a querer uma terceira e a fazer uma quarta...
Dizemos, por exemplo, defender a escola pública, na qual pro vezes trabalhamos, mas na rede particular é que se acham matriculados nossos filhos. Denunciamos, a justo título, o sucateamento dos serviços públicos essenciais como o de saúde, mas em vez de somarmos forças, inclusive por meio das instâncias sindicais, em defesa do SUS, sucumbimos ao atalho dos planos de saúde, fortalecendo objetivamente a privatização da saúde. Boas intenções e justificativas não nos faltam, mas objetivamente...
Indignados, associamo-nos, com razão, ao coro contra os “políticos ladrões e corruptos”, enquanto nem sempre nos indignamos, como deveríamos, em relação às situações de corrupção, anonimamente enraizadas no cotidiano de nossas relações, assumindo múltiplas formas:
- ora sonegando informações à família sobre nossos reais vencimentos;
- ora fazendo vistas grossas às situações trabalhistas domésticas;
- outras vezes, sendo adeptos da famigerada “lei do Gerson”, no dia-a-dia do trânsito, das filas de bancos, etc.
Os exemplos podem ser multiplicados à saciedade. O que pretendemos mesmo ressaltar é a freqüência com que podemos estar sucumbindo à grade de valores e às atitudes próprias do sistema que dizemos combater. E aqui não vale justificarmos com o pretexto de que se trata de “coisas miúdas”, pelas razões já assinaladas: “Quem faz um cesto, faz uma centena...”
Lembramos aqui o sempre reverenciado, a justo título, Amílcar Cabral: “Não basta que seja pura e justa a nossa causa, é necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós.”
O propósito central desta reflexão é examinar de que modo a Educação Popular pode contribuir com os processos de mudança, na atual realidade brasileira. Pelo que já esboçamos até aqui, a Educação Popular, na acepção aqui trabalhada, apresenta-se como um espaço multi-referencial de possibilidades efetivas, algumas já em curso

João Pessoa, 25 de maio de 2006

quarta-feira, 27 de junho de 2018

FAFICA, 50 ANOS: UM OLHAR PARCIAL


FAFICA, 50 ANOS: UM OLHAR PARCIAL

Alder Júlio Ferreira Calado*

 

Introdução


            Em agosto de 2010, a FAFICA completa meio século de trajetória. (1960-2010) de instituição acadêmica de formação profissional. Como ex-aluno (1969-1972) e como professor (desde 1976, com períodos de intermitência), ocorre-me a disposição de registrar um depoimento sobre que leitura eu faço desta Instituição.
Parece evidente que, sob vários aspectos, há de se tratar de um olhar parcial (“partiel” e “partial”). Olhar-se para um tempo que já comporta algumas décadas implica um exercício multiplamente limitado de rememoração, de reconstituição de cenas seletivas, compreendendo episódios, circunstâncias e protagonistas. Resulta, por conseguinte, a despeito de todo esforço de objetividade, um olhar limitado, visto que o tempo, as circunstâncias, os fatos, as personagens, os protagonistas rememorados e o próprio espectador já não são os mesmos. Torna-se um olhar necessariamente reelaborado e seletivo. O espectador/narrador rememora fatos, circunstâncias, situações, protagonistas de maneira seletiva, a depender dos valores nele predominantes hoje. Semelhantes registros feitos há dez, vinte anos antes coincidiriam apenas em parte com os de hoje, pelo menos no que diz respeito a certos aspectos, hoje rememorados com diferentes nuanças e ênfases. Algo parecido com o que se passa nos empreendimentos biográficos e sobretudo autobiográficos...
Historicamente datado e situado, o próprio depoente se sente fragmentado nesse seu olhar. Nos anos 70, além da questão etária, se vê implicado numa rede de relações da qual dificilmente é capaz de dar conta, seja pela enorme massa de informações que precisaria dominar, seja pela habitual tendência seletiva de fatos, situações, cenas e circunstâncias em apreço, seja pelo tempo decorrido (em relação ao olhar de hoje), seja ainda pelo horizonte sócio-político também susceptível de alteração.
Consciente, pois, desses limites, e, ainda assim, disposto a dizer minha palavra a quem interessar possa, trato de organizar meu depoimento em três tópicos: num primeiro momento, busco situar brevemente o contexto no qual surge a FAFICA. Num segundo momento, meu esforço se voltará para uma apreciação na condição de ex-aluno e, num terceiro momento – mais duradouro -, socializarei minhas impressões mais salientes sobre a FAFICA, enquanto um de seus docentes, nela atuando em distintos momentos de sua trajetória.

1. Situando o contexto em que surge a FAFICA

À semelhança do que ocorre às modalidades da educação escolar no Brasil, o ensino superior se acha, como é sabido, juridicamente vinculado às redes pública (federal, estadual e municipal) e particular (confessional e não confessional), seja sob a forma de universidades ou de faculdades e estabelecimentos isolados de ensino superior.
            A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru (FAFICA) inclui-se nesta última modalidade, ou seja, é uma instituição de ensino superior com um perfil administrativo que reúne, simultaneamente, traços de uma entidade particular, isolada, confessional e interiorana, com as implicações e desafios político-pedagógicos, com os limites e potencialidades daí decorrentes.
            Marcada por meio século de trajetória, a FAFICA surge como uma iniciativa da Diocese de Caruaru, destinada a responder, no que estava ao seu alcance, no respectivo contexto sócio-histórico, aos desafios colocados daquela conjuntura do início dos anos 60. Em artigo publicado no livro Educação e Protagonismo, correspondente à terceira coletânea produzida por membros do Grupo de Pesquisa “Educação e Cidadania”, da FAFICA, o Prof. Josué Euzébio Ferreira, com base inclusive em registros históricos da lavra de Luiz Pessoa, primeiro diretor da FAFICA, alude a vários elementos históricos das origens desta Instituição.
Ao situar “o grande avanço das organizações populares”, como fator importante para o rápido atendimento do pleito da comunidade caruaruense, da criação, não apenas de uma Faculdade com quatro licenciaturas, mas também, e antes mesmo, das Faculdades de Direito e de Odontologia, afirma o autor:

Quando analisamos os acontecimentos que envolveram o processo de autorização das faculdades em Caruaru e do posterior reconhecimento das mesmas, nos finais dos anos 50 e início dos anos 60, tudo leva a crer que o governo federal, naquele momento, não dispunha de um planejamento para ampliação dos cursos superiores e menos ainda para pensar em interioriza-los, principalmente, em um Estado como Pernambuco. Mas, diante daquela realidade,  aproveitando os interesses de grupos ou de pessoas que solicitavam autorização para iniciar, em suas cidades, cursos de 3º grau, procurou facilitar o andamento do processo, na medida em que encaminhava a tramitação da documentação, de uma etapa para outra, sem os tradicionais atrasos burocráticos, tão comuns às repartições públicas. Quando aceitava e atendia aos pedidos de forma ágil, estava aí uma prova da oportunidade do governo em minimizar aquelas pressões.  (FERREIRA, 2002, p. 51 ).

            Do ponto de vista do pano de fundo histórico-social das origens da FAFICA, desde a década precedente, era, portanto, palpável o anseio de consideráveis parcelas da população por mudanças. Mudanças gerais, mas também por mudanças locais. Em relação também a estas últimas, a sociedade caruaruense conta com um aguerrido grupo de lideranças, em busca de construir o melhor para a cidade. Na entrevista feita com o Prof. Renato Cabral, ele falava, enfático, sobre o arrojo de algumas dessas lideranças, inclusive no tocante à fundação das primeiras faculdades de Caruaru, lembrando até, a esse propósito, o caráter pioneiro de Caruaru em relação a cidades ainda maiores. Na fala do Prof. Renato Cabral, percebe-se que, na disputa pelos interesses de relevantes cidades nordestinas, falou mais forte o esforço de pioneirismo dos caruaruenses, dada a necessidade sentida pela população local:

Então, a necessidade era muito grande, porque uma Faculdade isolada no interior era muito difícil, não tinha as facilidades que tem hoje. Só em termos de comparação – que servem para Odontologia, que depois servem para Filosofia - , a Faculdade de Feira de Santana e de Campina Grande, duas cidades bem maiores do que Caruaru, só vieram a ter por uns dez ou quinze anos depois da nossa. Então, na realidade, Faculdades isoladas, no interior de um Estado do Nordeste era algo realmente muito difícil. (CABRAL, Entrevista de 28/09/2007).

Grande era, com efeito, o clamor do povo pelas chamadas reformas de base, tais como a reforma agrária, a reforma bancária, a reforma da educação, entre outras. Respirava-se um clima de efervescência social, de mobilização de importantes segmentos da sociedade civil de então, notadamente dos trabalhadores rurais, protagonistas das Ligas Camponesas, bem como da atuação de segmentos da esquerda partidária, dos estudantes universitários e secundaristas e suas respectivas instâncias de representação, os protagonistas dos Círculos de Cultura animados pela Pedagogia de Paulo Freire, além de setores progressistas da Igreja Católica e outros.
            Era o período dos preparativos para a convocação do famoso Concílio Ecumênico Vaticano II, cujos documentos estimulariam gestos de renovação dos cristãos católicos, dentro e fora dos espaços eclesiais. Incentivava-se o protagonismo dos leigos, especialmente no frutuoso campo da chamada Ação Católica especializada (JAC, JEC, JIC, JOC, JUC), no tocante ao seu papel de corresponsabilidade, enquanto cidadãos, nos processos de transformação social das estruturas vigentes, onde se reconhecia o peso da educação, nas mais diferentes áreas de ensino, inclusive no ensino superior.
            Não menos impactante sobre os rumos da nascente FAFICA foi a densa experiência vivenciada, também em Caruaru, pelos protagonistas do Movimento de Educação de Base (MEB). Mais do que uma campanha de alfabetização de adultos, o MEB, apoiado na pedagogia freireana (depois cunhada pela expressão não tão precisa de “método Paulo Freire”) despontava como um movimento social de massa, nos mais distintos e distantes rincões do Brasil rural. Membros da FAFICA, a começar pela sua própria mantenedora (a Diocese de Caruaru), até porque integrada à CNBB, principal responsável pelo MEB, estiveram direta ou indiretamente envolvidos nas ações empreendidas pelo MEB.
            No período que se seguiu ao Golpe empresarial-militar, tal fora a influência da ação do MEB, que também a FAFICA ficaria visada pelos órgãos de segurança do regime. Na entrevista concedida pelo Prof. Mário Menezes, então Diretor da FAFICA, observa-se algum sinal desse período. Perguntado sobre que desafios mais difíceis havia enfrentado, ele afirma:

Veja bem, uma das fases piores do mundo foi a fase da “Revolução”, do Golpe de 64, porque eles tinham uma marcação terrível em cima da FAFICA, em cima de todas as Escolas Superiores. Tanto que eu ainda guardo recordações dos pedidos de informações em papel sobre o aluno Fulano de Tal, sobre o fazia, o que é que não fazia, se era presidente do Diretório, se não era, qual era a tendência dele. Eu dava a identidade: aluno normal. Eu nunca me preocupei em estragar ninguém, porque eu também fui estragado: eu respondi a oito inquéritos, naquele tempo. Então, eu não desejava para os outros o que eu tinha passado. Um tempo realmente muito difícil, com risco, porque havia marcação. O negócio era tão impressionante, que a ... (final do lado 1 da fita).
(Início do lado 2 da fita)... [Eles] procuravam alguma coisa que comprometesse a Escola ou a mim. Só sei que ninguém logrou nada. Agora, os papéis estavam todos espalhados no chão, as faixas, tudo... Fazem uma devassa para ver se encontravam alguma coisa. Um contexto realmente difícil. Nós também tínhamos professores que eram militantes políticos, que sofreram discriminações. Eu mesmo, antes de vir para cá, para ser professor do [Colégio] Sete de Setembro, tive que ir pegar uma Folha Corrida, para ver se eu podia, ou não podia, ser professor. Era uma censura terrível. Muito difícil.

            Nesse contexto de reconhecida fermentação social e política, é que se passam os primeiros anos da FAFICA, após nascer pela iniciativa da Diocese de Caruaru, do seu bispo, à época, Dom Augusto Carvalho, presidente da então recém-criada Associação Diocesana de Ensino Universitário (ADEU) - mais tarde sucedida pela atual Associação Diocesana de Ensino e Cultura de Caruaru (ADECC) -,  de se criar uma escola superior, não sem motivação confessional, na área humanística, que fosse capaz de atender a uma parcela significativa da população, não apenas de Caruaru, como também do Agreste pernambucano.
            A propósito do papel relevante desempenhado por vários protagonistas lembrados nas entrevistas realizadas, destaque especial é conferido ao esforço pessoal de Dom Augusto Carvalho, em várias entrevistas. Numa delas, o Prof. Renato Cabral assim se pronunciou:

Dom Augusto cedeu a sua residência para o funcionamento da FAFICA. Não são todos os bispos que fazem isso. Dom Hélder, quando foi ser arcebispo, foi morar na Igreja das Fronteiras, e o Palácio dos Manguinhos não foi usado. Outros arcebispos podem não fazer isso, mas Dom Augusto Carvalho teve o desprendimento, e cedeu o Palácio episcopal para o funcionamento da FAFICA, e eu estudei os quatro anos do meu curso, lá. Inclusive a formatura foi na Associação Comercial de Caruaru, porque nós não tínhamos auditório. O espaço do Palácio episcopal não tinha condição. Naquela época, a quantidade de alunos era pequena. (CABRAL, entrevista realizada no dia 28/09/2007)

Enquanto a FAFICA,seguindo de perto o pioneirismo dos fundadores das Faculdades de Direito e de Odontologia, tomava a dianteira na oferta desses primeiros quatro cursos de Licenciatura (Ciências Sociais, Letras, História e Pedagogia), a região passou a contar também com a oferta, por outra Instituição – hoje ACES - dos cursos de Direito e de Odontologia.
Entrevistas concedidas por professores, professoras, ex-alunos e ex-alunas da FAFICA confirmam traços desse cenário.
Numa delas, a Profa. Eliete Alves dos Santos, ora como aluna da primeira turma de Ciências Sociais, ora como Secretária, ora como Técnica Administrativa da mesma FAFICA, dá conta dos vários momentos vividos por esta IES. É a própria Eliete quem pondera, a certa altura de sua entrevista, concedida no dia 23 de junho de 2003, reconhecendo que:

“a própria forma como a Faculdade foi criada, como um desejo da Diocese de ter um curso superior, por conta da dificuldade que as pessoas tinham, de sair daqui para estudar em Recife, como ainda hoje têm, mas antes era mais difícil. Então, havia essa necessidade. E a Faculdade de Direito era dessa mesma época. Como eles tinham experiência como diretores de colégios, tinham aquele estilo de educador daquela época. Mas, parecia uma coisa muito... formal, não havia interesse científico por coisas novas. Era movimentado porque vinha um professor para fazer uma palestra, uma conferência... que não me agradava, não. Não havia preocupação com desenvolvimento acadêmico, com atualização, não. Havia a dificuldade do próprio local de funcionamento. A quantidade de alunos era pequena, mas funcionava nas dependências do palácio do bispo, e as salas eram adaptações de quartos, de salas de recepção do palácio, não tinha aquele aspecto de curso superior, de casa de estudo, não. A dificuldade com que foi criada em 69... O curso foi reconhecido em 69. A minha turma foi a primeira que saiu com o título reconhecido.”

Nos primeiros anos, a FAFICA funcionava no chamado “palácio do bispo”, prédio onde hoje está instalada a Cúria Diocesana. Disso se lembra bem Bernadete Bezerra da Silva, uma das mais antigas funcionárias da FAFICA:

Aí, a gente ficou trabalhando, desde a época dos seminaristas. Quando foi depois, é que foi criada a FAFICA, que antes funcionava lá no Palácio do Bispo. Depois mudou para aqui, parece que em 1970. Aí, a gente ficou trabalhando com as Irmãs: a gente lavava roupa, a gente varria. Quando tinha reunião dos padres, a gente trabalhava. (Entrevista concedida em 07/08/2003).

Esse fato de ter o bispo cedido o local de sua residência para o funcionamento da FAFICA se mostra significativo, sob alguns aspectos. Indica, por exemplo, o grau de compromisso do então bispo diocesano, Dom Augusto Carvalho, com a criação da FAFICA. Sua atitude também tinha a ver  com os bons ventos do Concílio Vaticano II e com as novas atitudes de parte dos bispos latino-americanos (Dom Helder Câmara, Dom Antônio Batista Fragoso, Dom Valdir Calheiros, Dom José Maria Pires, Dom Francisco Austregésilo de Mesquita, no caso do Brasil; Dom Manuel Larraín – Talca, Chile; Dom Leônidas Proaño – Riobamba, Equador; Dom Samuel Ruiz – Chiapas, México, entre outros) , mais empenhados em levar uma vida de simplicidade, razão por que optara o bispo de Caruaru por residir no Seminário Diocesano, no bairro Petrópolis (opção semelhante também fizera seu amigo Dom Severino Mariano de Aguiar, bispo da vizinha Diocese de Pesqueira).
Em seu já mencionado artigo, o Prof. Josué Euzébio Ferreira alude, de passagem, à brevidade de tempo com que foi atendido pelo MEC o pedido de autorização do funcionamento da FAFICA, graças ao empenho e à competência do Grupo de Trabalho a quem o bispo diocesano Dom Augusto Carvalho confiou a tarefa de elaborar o Projeto de criação da FAFICA. Grupo do qual faziam parte principalmente figuras como o Pe. Zacarias Tavares e o Prof. Luiz Pessoa, que viria a ser o primeiro Diretor da FAFICA.
            Oficialmente autorizada, a FAFICA começa a funcionar num prédio pouco apropriado, como também recorda o Prof. Antônio Cláudio Pedrosa, em sua entrevista, ao mesmo tempo em que alude à abertura do bispo diocesano em relação à organização dos estudantes, num tempo difícil:

Em 68. Nesse período (como hoje), uma boa parte desses alunos vinham de outros municípios.e até de outros Estados. Vinham alunos aqui de Alagoas, de Sergipe, do Maranhão, do Piauí. E o Diretório Acadêmico, seguindo a possibilidade de atuar politicamente, no âmbito externo - embora não se possa nem comparar, com todo o respeito às lideranças atuais, com o esvaziamento atual do movimento estudantil, que é no Brasil inteiro, onde houve um esvaziamento. Os governos militares realmente conseguiram neutralizar o Movimento Estudantil. E a gente tinha a preocupação de abastecer os colegas, com material de estudo. O Diretório se encarregava de preparar, com a assessoria dos professores, apostilas que eram oferecidas a esses alunos. O número de alunos era muito menor do que hoje. Tínhamos apenas os cursos de Licenciatura: Pedagogia, Ciências Sociais, Letras e História. E uma boa parte dos professores, como hoje – nisso não mudou nada – vinham de Recife. Tinha também alguns professores que vinham de João Pessoa. De determinadas disciplinas que o mercado local não oferecia, na oportunidade. Começou a mudar a própria estrutura da Faculdade com a legislação, que praticamente forçou os chamados “professores leigos”, que não tinham Licenciatura, a se matricularem na Faculdade, que praticamente chegou a ter mais de 3.500 alunos, embora ainda só dos cursos de Licenciatura. [O entrevistado faz sinal pedindo pausa] Há pouco, eu me referia a dificuldades do Movimento Estudantil, e faltou registrar que, como mais de 50% eram de outras cidades, e não havia obrigatoriedade da freqüência, então, na prática, a gente tinha que manter a Faculdade em funcionamento. De Caruaru e das cidades vizinhas. E havia um detalhe: a maioria do alunado, porque já atuante no magistério, já não estava realmente na fase da adolescência ou da pós-adolescência. Eu não tenho dados concretos, a esse respeito, mas a maioria já tinha ultrapassado os trinta. Isto dava uma característica específica. Na ocasião, durante todo o meu curso, a Faculdade funcionava no hoje Palácio do Bispo, que era na ocasião... e que Dom Augusto Carvalho foi o criador da Faculdade de Filosofia. Ele cedeu o espaço para que lá as turmas funcionassem, lá onde hoje é a Cúria Diocesana, chamada de Palácio do Bispo.

            A despeito do fato de se tratar de um prédio originalmente destinado a cumprir uma função (residência episcopal), e depois ter que ser adaptado ao funcionamento de uma Faculdade (a necessitar de salas de aula, salas adequada para biblioteca, laboratório, etc.), este era apenas um dos desafios, e não certamente o principal. Havia outros, e não menores. Como assegurar a contratação de professores devidamente habilitados para assumirem um leque razoável de disciplinas componentes das grades curriculares de diferentes cursos? Na cidade, podia-se recorrer a alguns, mas e os demais? Outro desafio: como enfrentar a exigência de freqüência regular de alunos procedentes, não apenas de cidades vizinhas a Caruaru, mas uma parte considerável vinda dos mais distantes rincões de Pernambuco, da Paraíba e até da Bahia.


Desde então, durante já algumas décadas, Caruaru e o Agreste pernambucano vêm se beneficiando largamente com a formação de centenas de profissionais atuando por algumas dezenas de municípios vizinhos, seja como egressos dos cursos de graduação, seja como egressos dos cursos de pós-graduação, a partir do início dos anos 80.
            Ao longo dessas mais de quatro décadas, inclusive mais recentemente com a implantação de novos cursos (Ciências Contábeis e Administração), a FAFCA vem acumulando um volume apreciável de registros pontuais, relativos aos feitos de seus dirigentes, do seu quadro docente, do pessoal técnico-administrativo, do seu corpo discente, da representação estudantil, enfim, em suas mais diferentes instâncias e organismos. Material vasto e de reconhecida relevância, mas ainda não devidamente sistematizado, sem contar aquele ainda a ser recolhido, via instrumentos de pesquisa.
            Eis por que, a partir das inquietações iniciais de um pequeno grupo de docentes da FAFICA, vem se firmando - e de modo cada vez mais convincente - a idéia de buscar recuperar a memória desta Instituição, a partir de documentos, da imprensa local e, sobretudo, de depoimentos a serem recolhidos, via história oral, junto a diversas figuras internas e externas à referida Instituição.

2. Lembranças do conturbado tempo de aluno

            Fiz vestibular para a FAFICA em 1969, sendo admitido em março do mesmo ano. Apenas três meses após o famigerado Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968. Instalava-se uma ditadura dentro da Ditadura empresarial-militar, sob as ordens do Gereral Emilio Garrastazu Médici. Tempos de chumbo. Recém-saído do Seminário Menor, em Santa Maria – RS, onde havia, em novembro de 1968, junto com um pequeno grupo da JOC local, participado de uma aventura de resistência contra o regime militar. De volta a Pesqueira, onde, ainda em 64 e 65, no Seminário São José (Latim) e na Escola Emília Câmara (Francês), em Sanharó, havia iniciado prematuramente minha carreira profissional, passei a lecionar no Ensino Médio, nos Colégios Cristo Rei, Comercial Municipal e Santa Dorotéia. Por insuficiência de professores legalmente habilitados nas respectivas disciplinas, passei a ensinar várias disciplinas: línguas, História, Filosofia, Sociologia... Nesses casos, a Direção do Colégio providenciava,  junto à Delegacia do MEC, uma autorização a título precário para os professores que ainda não haviam terminado seus respectivos cursos superiores, desde que se submetessem a, e fossem bem sucedidos no “Exame de Suficiência”, oferecido pela Faculdade de Educação da UFPE. Eu prestei exames que me habilitavam a lecionar Português e Inglês (1º e 2º Graus).
Com a pretensão de conciliar os trabalhos profissionais, nos colégios de Pesqueira, trato de de inscrever-me nos exames vestibulares para os cursos de Ciências Sociais e Direito, em Caruaru. Pretensão que se revelaria, dois mais tarde, frustrada. Não bastava, é claro, ter sido aprovado nos dois exames vestibulares. Tinha que viabilizar as condições de conciliar estudo e trabalho. Num curso, já seria complicado, o quê dizer de dois?
É verdade que, desde 1966, comecei a tomar gosto especial pelos problemas sociais e humanos. As aulas de OSPB (Organização Social e Política doBrasil)* me instigavam, nesse sentido. Sobretudo no Ensino Médio, em Aracaju. O professor era, então, o próprio reitor do Seminário, o austero Pe. José Carvalho, que não apreciava bem o trabalho de Dom Hélder Câmara. Por conta disso e por razões de coisas “proibidas”, passei a tomar crescente gosto pela Sociologia. Gosto aprimorado, nos anos seguintes, em Santa Maria – RS, agora já sob a influência da JOC, da qual participava fugindo do Seminário. Desde então, tinha certeza do que queria cursar.
Em 1969, em companhia de dois padres amigos (Pe. Inocêncio Lima e Pe. Osvaldo Bezerra) inscrevi-me em dois vestibulares: o de Ciências Sociais (os já mencionados padres se inscreveram em Letras e Direito) e o de Direito.  Na obtenção de um dos documentos exigidos para a matrícula – o relativo à dispensa do serviço militar (era seminarista) -, tive o infortúnio de escutar, de um funcionário da Circunscrição Militar em Caruaru, um raivoso alerta, depois de saber que eu ia cursar Ciências Sociais: “Cuidado! O Exército está metendo o pau nos comunistas!” Fiz-me de desentendido. Minha situação não era nada confortável. Menos ainda a de vários companheiros de Pesqueira, que terminaram sendo perseguidos, presos e torturados.
O desafio maior era como conciliar dois expedientes diários de trabalho com os estudos universitários, numa cidade a 80 Km da minha terra (Pesqueira). Até um determinado período, consegui. Em Ciências Sociais, cursávamos matérias tais como (por ordem de preferência minha: Sociologia, Antropologia, Filosofia, Economia Política, História Econômica, Política e Social (Geral e do Brasil), Ciência Política, Métodos e Técnicas de Pesquisa, Estatística, Doutrina Social da Igreja, além das matérias pedagógicas. Estudamos com professores vários, entre os quais: Mons. Bernardino de Carvalho (Sociologia), Prof. Antônio Gonçalves Dias (Antropologia), Prof. Ernane Bezerra Cavalcanti (Métodos e Técnicas de Pesquisa),  Filosofia e Doutrina Social da Igreja (Pe. Guilherme Andarada), Política (Demóstenes Veras), História Econômica, Política e Social (Prof. Manuel), Prof. Abel (Psicologia da Educação), Profa. Eurídice (Didática).**
No meio do caminho, porém, fui forçado, dois anos depois, a escolher um dos cursos. Não hesitei em permanecer cursando Ciências Sociais, preferindo abandonar o Curso de Direito, onde, entre tantos e tantas, tive como colega de classe o hoje Prof. Renato Cabral.
Ter optado por apenas um curso implicou um alívio do sufoco. Por outro lado, continuava sendo difícil conciliar o trabalho em Pesqueira (manhã e noite) e os estudos de Ciências Sociais, sem poder assistir às aulas, regularmente, e com enorme dificuldade de encontrar bibliografia. Apoiava-me nas apostilas, uma prática usual dessa época, bem como em bons textos publicados por alguns professores, como o Mons. Bernardino de Carvalho, professor de Sociologia e com um bom ritmo de produção e publicação. Lembro-me bem de seu famoso Prolegômenos ao Estudo de Sociologia, bem como de textos seus mais breves, mas sempre bem elaborados. Todos dentro de sua visão de mundo: não morria de amores por autores de tendência marxista...
Sempre que ia a Recife, cavava tempo para ficar bastante nas livrarias (por ex. a Sebo de Brandão, a Livraria Editora Nordeste (R. da Imperatriz, a Livro 7, desde quando ainda instalada perto da Imperatriz).
Os contatos mais fortes com os colegas se davam mesmo durante as semanas de provas. Colegas de classe como Ivan Brandão, Rui Lira, Valdecir, Carmem Cleovane, Beta Catolé e outros e outras, e colegas de outras classes e de outros cursos. Dava, assim mesmo, para tomar conhecimento da empolgação de alguns colegas, em suas respectivas “praias” de interesse. Ivan mostrava-se um apaixonado “homem de teatro”, expressão, aliás, de que gostava. Somente depois, percebi a força do teatro em Caruaru, com um grupo privilegiado do qual faziam parte Josué Euzébio, Renato Cabral, entre vários outros.
Ainda estudava o quarto ano de Ciências Sociais na FAFICA. Iria concluir em dezembro de 1972, e, em março deste ano, comecei a ensinar na Faculdade de Formação de Arcoverde, em disciplinas fora de minha área (Inglês e Literatura Inglesa), dada a dificuldade de se encontrar professor, na região. Uma vez concluído o curso, passei a lecionar disciplinas ligadas à minha área de estudo. Neste mesmo ano, decidi enfrentar as provas de seleção para o Mestrado em Sociologia, no PIMES (UFPE). Bem sucedido no processo seletivo, iniciei o curso em março de 1973. Só depois de concluir os créditos do Mestrado, é que fui convidado a ensinar na FAFICA.

3. Retalhos de memória de minha experiência como docente na FAFICA

            Colega e amigo de Ivan Brandão, que também, a essa época, fazia o Mestrado em Antropologia, na UFPE, e que já lecionava na FAFICA, e também ensinava na Faculdade de Formação de Professores de Arcoverde, ele sempre insistia em fazer a ponte com a Direção da FAFICA, para que eu viesse a ensinar também aqui. Por meio dele, em conversa com o Prof. Mário Menezes, Diretor da FAFICA, fui convidado a ensinar na FAFICA, tendo iniciado em março de 1976, com as disciplinas Metodologia Científica e Sociologia. De início, eram poucas turmas, das quais me ocupava na sexta-feira e no sábado.
            Como professores dessa época, lembro-me de vários dos professores e professoras de então: o Prof. Mons. Bernardino Carvalho e sua sobrinha, Profa. Ignez (Inezinha, como era chamada), o irrequieto Prof. Ivan Brandão, o Prof. Rui Lira, do Prof. Kermógenes Dias, do Prof. Antônio Gonçalves Dias (de quem também fui aluno e, depois, colega na Faculdade de Formaçãode Professores de Arcoverde), do Prof. Guilherme Andrada, do Prof. Walter Calmon Porto, das Profas. Nely e Magali (ambas da área de Pedagogia), do Prof. Giuseppe Stacone, da Profa. Edna Aguiar (Pedagogia. Depois, nos reencontramos como colegas também na UFPB), do Prof. Ernane Bezerra, da Profa. Márcia Valentina (ambos da área de Métodos e Técnicas de Pesquisa), do Prof. Antônio Cláudio Pedrosa, da Profa. Margarida Miranda, da Profa. Margarida Alexandrina, do Prof. Agostinho Batista (da área de Letras), do Prof. Pedro Alcântara (Latim), do Prof. Antônio Guedes (Estudos de Problemas Brasileiros e de quem também fui colega como professor no Seminário Rural, em Pilões, depois Centro de Formação Missionária, em Serra Redonda - PB), do seu irmão, Prof. Raimundo Nonato de Queiroz, da Profa. Gladys (Francês), da Profa.
            Ainda no meado da década de 70, boa parte dos professores vinha de fora. Esses ficavam hospedados nos quartos da FAFICA, no primeiro andar, onde hoje funciona o conjunto de salas de aula que ficam no corredor superior localizado entre as duas escadarias. Uma imagem que guardo, forte em mim, ainda hoje: da sexta-feira para o sábado, eu pernoitava no mesmo quarto em que, em outros dias, ficava o Prof. Raimundo Nonato. No quarto, ele havia colocado um abajur simples (em forma cônica), coberto por uma folha de revista em Francês, com uma foto de uma criancinha cadavérica da Biafra (região do Sudeste da Nigéria, que reivindicava sua independência, e que terminou sendo reincorporada à Ngéria), com os seguintes dizeres: “Faites quelque chose pour les autres...” (“Faça alguma coisa pelas outras...”). Outro ponto de que me lembro: do interesse de Giuseppe Stacone, rádio colado ao ouvido, a acompanhar as informações sobre o seqüestro de Aldo Moro (presidente da Democracia Cristã italiana, que ficou refém, por mais de um mês, nas mãos da Brigadas Vermelhas, em 78).
No começo dos anos 2000, aqueles quartos foram todos transformados em salas de aula, passando os professores vindos de fora a hospedar-se no Centro Pastoral da Diocese de Caruaru ou no Hotel Itaparica, em frente da FAFICA.

Referências


FERREIRA, Josué Euzébio. Caruaru nos anos 60: aspectos histórico-econômicos e educacionais. In CALADO, A.J.F e SILVA, Alexandre M.T. da (Orgs.). Educação e Protagonismo: relatos e análises de experiências do cotidiano escolar e de outros espaços formativos. Caruaru: Edições FAFICA; João Pessoa: Idéia, 2002, pp. 43-58.

 

 



* Sociólogo e Educador Popular. Docente-pesquisador na FAFICA, integrando o seu Núcleo de Pesquisa (NUPESQ). Membro do Centro Paulo Freire – Estudos e Pesquisas. Autor de, entre outros, Tecelão da Utopia: uma leitura transdisciplinar de Paulo Freire. Caruaru: Edições FAFICA, 2001.
* Conto, de passagem, um curioso incidente. Numa das aulas de OSPB, no Seminário de Aracaju, o tema estudado era a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU. Nela, deparei-me com um artigo que proibia, entre outras arbitrariedades, qualquer interferência na correspondência. Perguntei a Pe. Carvalho o significado daquilo, já que era hábito seu abrir e ler a correspondência dos seminaristas... Dias depois, quase ia sendo expulso do Seminário: ele abrira e lera uma carta endereçada a um tal “Alderjúlio de Melo” (riscaram o “de Melo” e acrescentarm Calado), na qual uma moça cobrava do destinatário responsabilidade sobre sua grvidez... Até provar que eu nada tinha com o caso, foi um sufoco. Depois de haver acionado o bispo e o reitor do Seminário de Pesqueira, sobre o caso, e constatado minha inocência, ele me chama e me diz: “Depois da tempestade vem a bonança.”
** Nos dois anos do Curso de Direito, lembro-me de ter cursado, entre outras, as disciplinas: Introdução ao Direito, Direito Romano, Teoria Geral do Estado, Direito Constitucional, Direito Penal, Direito Civil.



João Pessoa, 10 de dezembro de 2007.





HÁ QUEM ARE, HÁ QUEM PLANTE, E ALGUÉM COLETA
SEJA O FRUTO ENTRE TODOS PARTILHADO!

Alder Júlio Ferreira Calado

A FAFICA já faz cinquenta anos!
Tem idade de jovem bem enxuto...
Meio século, na História, é um minuto...
Sobretudo, as instâncias dos humanos
Avaliam em decênios os seus planos
Nesse tempo, qual o nosso acumulado?
Das ações qual tem sido o resultado?
Pois é obra que a todos nos afeta:
Há quem are, há quem plante, e alguém coleta
Seja o fruto entre todos partilhado!

Concluintes ou não, somos milhares
Exercendo ofícios tão distintos
Cuja base nos vem do teu recinto
Teus espaços nos são familiares!
Gratidão seja expressa aos luminares
Aos gestores e ao corpo de aliados
Da cozinha ao almoxarifado
Quem coordena e mantém com mão discreta
Há quem are, há quem plante, e alguém coleta
Seja o fruto entre todos partilhado!

Envolvidos em grande mutirão
De formar COM CRITÉRIO nossa Gente
Que ao Direito e à Justiça sempre atente
Ao fetiche-Mercado diga NÃO!
Do contrário, o Projeto soa em vão
Pondo em xeque também nossos achados
A pesquisa e o ensino: separados
Extensão vira coisa desconecta
Há quem are, há quem plante, alguém coleta
Seja o fruto entre todos partilhado!
 (Em atenção/intenção dos 50 anos da FAFICA, felicitando, como estudante e como professor, todos e cada um, cada uma de seus protagonistas de ontem e de hoje)
Caruaru, 8 de agosto de 2010

SOCIEDADE E UNIVERSIDADE - A MEDIAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

SOCIEDADE E UNIVERSIDADE - A MEDIAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Alder Júlio Ferreira Calado[1]*

            Ninguém duvida de  que da sociedade que temos para a sociedade que queremos ainda falta muito, para dizer o mínimo. Esse hiato, porém, não é apanágio dos tempos atuais. Na literatura pertinente, registros semelhantes é possível encontrar com certa freqüência, em diferentes períodos da História. Não obstante tal descompasso, manifesto sob vários ângulos, continua aceso o sonho de organização de uma sociedade que seja capaz de responder às necessidades e às aspirações fundamentais do conjunto de seus membros.
            Aqui nos restringimos a algumas notas acerca do atual momento da realidade brasileira. Salta à vista o espectro de crise – e crise profunda -, em que, hoje mais do que ontem, se acham mergulhadas a sociedade brasileira e suas principais instituições, qualquer que seja o ângulo do social que tomemos como alvo de nossas observações.
            Aos profundos e crescentes impactos decorrentes da reestruturação produtiva, que marcam o atual momento do Capitalismo, nenhuma das esferas da realidade social se acha imune. Ao contrário, apresentam-se claramente impregnadas pelos efeitos de tais impactos.
            Como expressão e resultado de sucessivos avanços das pesquisas e dos achados científico-tecnológicos, tem lugar uma notável reviravolta (ainda em curso), inclusive no quadro paradigmático até então hegemônico, no processo produtivo e nos processos organizativos do trabalho.
            Em matéria de nível e de qualidade, resultados inéditos são  alcançados, seja na natureza e consistência dos materiais utilizados, seja na qualidade técnica de sua performance, seja na eficácia dos procedimentos de gestão, seja ainda nos indicadores de produtividade, o que se reflete sob as mais variadas formas, inclusive... nas altas taxa de lucro, para a felicidade geral do grande Capital! Reviravolta saudada como uma grande  revolução, associada à terceira revolução tecnológica.
            Avanços que, por vezes, se manifestam como positivos, pelos benefícios que proporcionam. Como não saudar, por exemplo, no âmbito das ciências da saúde, relevantes achados no efetivo e eficaz combate a tantos males? Em outras áreas, também, reconhecemos resultados encorajadores. São fartas as matérias e divulgações, saudando com euforia tais conquistas. Bem menos difundidos, porém – por incômodos ao Mercado -  são alguns questionamentos e indagações necessários sobre o sentido e o alcance de muitos desses achados científico-tecnológicos. Questionamentos tais como:
- Todas essas conquistas se refletem em ganhos efetivos para o conjunto da Humanidade
e do Planeta?
- Qual o impacto relevante da maioria desses achados sobre a superação das profundas e crescentes desigualdades sociais e dos profundos males sociais que campeiam, sob várias formas (concentração de riquezas e de renda, gastos escandalosos em armamentos bélicos e no narcotráfico, desemprego estrutural, sucateamento ou desmonte dos serviços públicos essenciais, crescente empobrecimento das maiorias, manutenção ou aumento do déficit de saneamento, de habitação, aumento da riqueza de bancos e de transnacionais feito à custa da miséria de multidões ...)?
- Em benefício de que(m) e contra que(m) vários desses achados implicam?
            Poderíamos estender os questionamentos. Fazemos questão de expressar nosso sentimento de satisfação, em relação a vários benefícios resultantes de recentes avanços científico-tecnolóicos. nossa firme posição de apoio e incentivo a toda pesquisa, a todo achado científico-tecnológico que implique a melhoria da qualidade de vida dos Humanos e do Planeta. Ao mesmo tempo, fazemos questão de manifestar nossa indignação e nossa firme oposição a supostas conquistas que,  não apenas se traduzam em malefícios para os Humanos e para o Planeta, como também se revertam em instrumentos a serviço do aumento das desigualdades sociais e em desmedida agressão ao Plante.
Na verdade, a despeito de tantos desses avanços, o que se tem observado é o agravamento da precarização da vida para expressivos setores da população submetidos ao desemprego estrutural, ao sub-emprego na hipertrofia da economia informal, ao aviltamento dos salários, ao exacerbado déficit de moradias ou expansão de cômodos indignos de serem habitados por humanos, à altura do início do terceiro milênio da era cristã...
Nesse sentido, resulta amplamente relevante o papel das universidades, especialmente das universidades públicas.

           


























Pensar a formação do Brasil e dos brasileiros - a conformação de estruturas e subjetividades que demarcam nossa especificidade enquanto Povo-Nação - exige também a leitura das respostas que emergem historicamente no interior desta sociedade autoritária, no bojo de um processo tenso e contraditório, inaugurando práxis políticas que sinalizaram/sinalizam novas possibilidades de se viver em sociedade. Em outros termos, implica em resgatar a trajetória de construção e exercício da política na contraface da dinâmica instituída, conferindo o status de categoria analítica a movimentos sociais e atores coletivos lançados ao ostracismo pela concepção hegemônica. Estes, no entanto, se constituem enquanto protagonistas/construtores da perspectiva societária cidadã, no seus repertórios de lutas e utopias. Trata-se aqui do exercício de recuperação de uma memória que se recusa a ser autoritária, contrapondo-se a uma “história oficial” que privilegia somente “(...) as ações vindas do Alto, minimizando as práticas de contestação e de resistência social e popular (...)”,  segundo Chauí (1987:51).
Registramos, neste sentido, uma outra história - olvidada pela memória oficial em suas estratégias de esquecimento e desligitimada pelos setores que impuseram sua hegemonia -, concedendo o direito à fala a outras vozes que ecoaram em terras brasileiras.  A matriz histórica violenta e o conjunto de ideologias e concepções institucionalistas que secularmente a formataram – remodelando o seu perfil e desaguando na ideologia de Segurança Nacional e no ideário neoliberal contemporâneo - não se consolidaram sem resistências. Estas se constituem enquanto respostas sociais a uma ordem que se impôs historicamente - respaldada na violência estrutural e estatal em suas diversas facetas - atravessada pela tentativa permanente de sua legitimação na “produção da índole pacífica, através do sujeito inerte” (Samet,1993:48) e na passividade, despolitização e fragmentação dos tempos atuais[2]. Isto porque, nas palavras de Carvalho (1997:11):

Todo sistema de dominação, para sobreviver, terá de desenvolver uma base qualquer de legitimidade, ainda que seja a apatia dos cidadãos.

Neste percurso interpretativo nos deparamos o tempo todo, segundo o registro de Calado (2000:14):

(...) com uma tensão dialética entre as forças hegemônicas e suas estratégias de dominação, de um lado, e, do outro, as diferentes manifestações de protagonismo dos Movimentos Sociais Populares.

Isto porque a história de “construção da brasilidade excludente”[3] é – no seu contraponto – também a história de resistência a esta construção de múltiplas e variadas formas. Demarcamos a compreensão de resistência em nossa análise não em seu sentido amplo e difuso de diferentes manifestações - explícitas ou ocultas - em diversas facetas dos cotidianos, investigadas por Chauí (1987) no interior da cultura popular, mas sim na sua dimensão de ações deliberadas de atores coletivos em razão de suas demandas e interesses históricos frente ao Estado. Registramos, neste sentido, as lutas inauguradas com a recusa dos “negros da terra” - nomeados “índios” - aos grilhões, suas revoltas e fugas e o “deixar-se morrer” nas redes, conforme o instigante relato de Ribeiro (1995); também as revoltas escravas e o surgimento dos quilombos - dos quais o mais importante foi de Palmares – ainda que derrotados pela ação repressiva de particulares a soldo do governo, expressam com veemência a recusa às senzalas e pelourinhos.
Nesta linha de raciocínio, destacamos dentre as revoltas políticas que se sucederam em fins do séc. XVIII, a Conjuração Baiana (1798)- conhecida como Revolta dos Alfaiates – que envolveu escravos, artesãos, militares de baixa patente, quase todos negros e mulatos, na luta contra a escravidão e o domínio dos brancos (Carvalho, 2001:24). Assim, já no período colonial, começa a se delinear o esboço de uma sociedade política cuja formatação vai inscrever-se no campo de uma resistência permanentemente sufocada pelas elites. Constatamos, já aqui, conforme apontava Ribeiro (1995:26) aquela:

(...) brutalidade repressiva contra qualquer insurgência e a predisposição autoritária do poder central, que não admite qualquer alteração da ordem vigente.

Muitos e importantes movimentos se inscrevem nesta mesma linha de resistência: o movimento de Canudos, a Revolta da Chibata, o anarco-sindicalismo, e tantos outros que – resguardadas as especificidades organizacionais/reivindicativas e os contextos históricos diferenciados – convergirão, no fundamental, na recusa à exclusão social, no interior de uma sociedade atravessada pela opressão econômica e o exercício de uma violência estatal endereçada aos “indesejáveis”, na ótica do sistema de dominação de classe em suas diversas fases. Ainda que não tenham se constituídos como hegemônicos, demarcam, no entanto, o campo da resistência como o de luta por direitos, tanto na zona rural quanto nos centros urbanos no curso do processo de modernização conservadora que começa a se delinear no Brasil nas primeiras décadas do séc. XX - concomitante ao processo de industrialização - e superação de uma economia, até então baseada nas atividades mercantis do latifúndio monocultor/exportador.
Resgatar a história desses movimentos e suas lutas, dos atores que protagonizaram resistências - inclusive ao preço do próprio sangue – constitui importante exercício de uma memória que reconstrói a história dos vencidos. Implica na reatualização de um passado, em fazê-lo presente com sua lógica e seus sentidos, permanências e rupturas, enfatizando a afirmação histórica do “direito de ter direitos”. Trata-se, portanto, de recuperar essa memória e o sentido do “direito ao passado como dimensão da cidadania”, nas palavras de Paoli (1986:26-27), pois este:

(...) compreende o resgate dessas ações e mesmo de suas utopias não realizadas, fazendo-as emergir ao lado da memória do poder e em contestação ao seu triunfalismo.

Chauí (1984:17) coloca a necessidade de:

(...) desconstrução da memória, desvendando não só o modo como o vencedor produziu a representação de sua vitória, mas, sobretudo, como a própria prática dos vencidos participou desta construção.

Neste sentido, feito o registro de lutas que demarcaram o campo da resistência coletiva no decorrer de nossa história, vamos nos ater à dinâmica contemporânea de sua afirmação, a partir da problematização conceitual dos movimentos sociais, a análise da emergência dos “novos movimentos” no Brasil (anos 70), na perspectiva de identificar seu estatuto político.

Movimentos Sociais: delimitando um conceito

A conceituação de movimento social implica na verificação da existência de uma certa polissemia, dada a “multiplicidade de interpretações e enfoques” e a “diversidade de paradigmas explicativos” que foram se delineando no mundo acadêmico - em âmbito mundial -, sobretudo a partir dos anos 60 (no Brasil, na segunda metade dos anos 70) quando são elevados ao status de categoria analítica (Gohn, 2000:10), em razão de sua emergência na cenário sócio-político. No entanto, - faz-se mister registrar - sua presença têm marcado milenarmente a história das sociedades. Resgatar estas origens é reavivar a memória das vozes e atores coletivos em suas inúmeras manifestações de resistência. Podemos remontá-las às revoltas escravas na Roma Antiga ou descobri-la nos “ecos libertários de heresias medievais na contemporaneidade”, como o faz Calado (1999) ao analisar alguns movimentos do período.
Estudiosa a décadas da temática/problemática dos movimentos sociais, Gohn nos oferece em “Teorias dos Movimentos Sociais” interessante recuperação/sistematização dos principais paradigmas existentes, analisando-os em suas divergências/convergências explicativas. Destaca a especificidade da realidade latino-americana – particularmente a brasileira - nos seus diversos cenários, reforçando a necessidade da criação de ferramentas conceituais e metodológicas adequadas às lutas sociais que aí se desenvolvem e aos novos atores que emergem. Situa a análise dos movimentos sociais no contexto das múltiplas transformações em curso no mundo contemporâneo nos impasses, desafios e paradoxos postos pela dinâmica capitalista em curso.
Neste sentido - respaldados na proposta teórico-metodológica apresentada por Gohn (2000:241-247), que articula elementos macro e micro de análise -, vamos situar os movimentos sociais como “processos sócio-políticos e culturais da sociedade civil, num universo de forças sociais em conflito”. Pressupondo, portanto, a historicidade de uma práxis coletiva e a produção de uma identidade comum, realçamos - stricto sensu - a concretude e especificidade dos movimentos sociais no universo de sua heterogeneidade, nos seus recortes temporais e espaciais determinados, bem como a esfera própria de sua atuação. Conformam – no espaço instituinte - um campo político (o que não impede articulações em outras esferas). Demarcamos também uma perspectiva dialética de análise, inserindo estes atores coletivos na dinâmica mais ampla do conflito e da luta social em diversas frentes, transcendendo o campo de classes e espraiando-se para diferentes dimensões das subjetividades e carências/demandas coletivas.[4] Neste sentido, a categoria gramsciana do campo de forças nos possibilita a inteligibilidade dos atores e projetos que disputam a cena política e a força motriz que os anima:

(...) a categoria fundamental é a de força social, traduzida numa demanda ou reivindicação concreta, ou numa idéia-chave que, formulada por um ou alguns, e apropriada por um grupo, se torna um eixo norteador e estruturador da luta social de um grupo -–qualquer que seja o seu tamanho - que se põe em movimento (GOHN, 2000 248).

Nesta linha de raciocínio - delineando os contornos exigidos por nosso recorte temático - a categoria movimento social é percebida, como produção privilegiada, ainda que não exclusiva, das não-elites, dos excluídos da ordem social e/ou política, portadores de necessidades não respondidas e reivindicações de inclusão social efetiva, “(...) inserindo-as na esfera pública da política” (GOHN, 2000:252), através do exercício da cidadania coletiva na luta por direitos.
Do ponto de vista metodológico, enfatizamos o que a autora chama de “repertórios de demandas e reivindicações” que se constroem a partir da pluridimensionalidade das carências de determinada classe ou segmento social, traduzidos  na práxis coletiva  de suas  lutas  e  articulações.
A memória das lutas de resistência está carregada de energias utópicas norteando a práxis coletiva na direção do não-lugar perseguido. Conformam, assim, “projetos de utopia”, constituindo repertórios que:

(...) são uma reinvenção da realidade, têm um ideal a atingir, vão além do possível de ser feito no momento (...) Elas geram ideologias, movimentos e novos valores (GOHN, 2000:256).

Utopia em nossa abordagem tem, portanto, a conotação de busca do inexistente, construção possível de uma outra forma de ser e estar na sociedade, “horizonte de sentido”, a partir da ação coletiva. Sinaliza “outros mundos”, perseguidos na práxis. Nos referimos, assim, tomando como referência Lowy ao discutir a conceituação de Mannheim (1992:13):

(...) aquelas idéias, representações, e teorias que aspiram uma outra realidade, uma realidade ainda inexistente. Têm, portanto, uma dimensão crítica ou de negação da ordem social existente e se orientam para sua ruptura (...).

O autor vai entendê-la como uma “visão social de mundo”- distinta das visões ideológicas - ancorada na criticidade, recusa do existente, subversão do presente e direção para outras possibilidades de existência.
Faria (1994:73-74) ao precisar sua compreensão de utopia, assentada na idéia de “provisoriedade” – presente - e “factibilidade” – futuro – vai caracterizá-la como:

(...) um horizonte de sentido para as práticas políticas e para o alargamento dos espaços públicos da palavra e da ação. Originando-se nas condições históricas e materiais (...) a utopia assim concebida é a possibilidade do diverso e original, identificando o que falta ou que não se fez nas organizações socio-econômicas e político-institucionais de onde nascem a opressão, a exploração e a degradação da dignidade humana.

Os repertórios e projetos de utopia a que nos referimos demarcam o significado específico de cada movimento e embasam as razões de sua existência. Neles se revelam as ideologias que dinamizam as demandas e reivindicações dos movimentos, a partir de um ”conjunto de crenças, valores e ideais”, podendo ser captadas “por meio da análise dos discursos e mensagens dos líderes e de toda produção material e simbólica dos movimentos” (GOHN, 2000; 258). O paradigma ideológico alimenta a práxis coletiva, gera uma cultura política - “viva e operante” - que se “constrói a partir da experiência vivenciada no cotidiano”, configurando um projeto sociopolítico ou cultural que dá sentido ao movimento, conformando sua identidade  enquanto “processo interativo” em diferentes articulações e conjunturas e cenários sociopolíticos (Gohn, 2000:255-256).
Vamos, na sequência, nos debruçar sobre os “novos movimentos sociais”, buscando identificar o estatuto político, que os caracteriza e distingue, na complexidade do contexto de sua emergência.

Os Novos Movimentos Sociais

O golpe militar de 1964 suspendeu direitos civis e políticos, perseguindo, encarcerando, torturando, exilando, desaparecendo e eliminando lideranças sociais e políticas, consoante sua estratégia de garantia da Segurança Nacional, através da implantação do terror, a interdição do espaço público e o cerceamento das manifestações populares. Pontuamos igualmente, referenciados em Moreira Alves (1984), uma tensão dialética existente entre Estado e oposição, implicando em redirecionamentos e distintas institucionalidades. Cabe-nos agora enfocar a “novidade” que emerge – pujante - no interior da sociedade brasileira nos anos 70: os chamados “novos movimentos sociais”.
Em linhas gerais, o cenário político do período é marcado – no plano internacional - por profunda crise do modelo kenesyano de gestão econômica, particularmente na versão do Welfare state, concomitante a um processo cada vez mais acelerado de avanço tecnológico e – no plano nacional – pelos sinais de esgotamento do modelo econômico e de militarização da vida social e política, quando “novos atores sociais entraram em cena” (SADER, 1988). Emergem como portadores do desafio de “(...) promover o alargamento da política, ou seja, a democratização da sociedade civil” (DINIZ, 1997:07). São “novos”, portanto, em seus repertórios reivindicativos resignificados de direitos, democracia e cidadania e na especificidade das bandeiras levantadas na luta por igualdade social e política e o direito à diferença. Nas diversas facetas de sua articulação, colocam na agenda política todo um universo de carência/demandas das classes populares – “perigosas” na acepção ideológica da construção da brasilidade excludente – e de setores importantes da classe média, com um forte cunho de resistência à violência institucional, à exclusão estrutural e opressão econômica.
Paoli enfatizará a categoria direitos - associada à de cidadania - como fundamento da práxis destes movimentos:

Os direitos – e o direito de tê-los – impuseram-se nestes anos como a pedra angular que referenciava a novidade do ato popular no contexto da cultura política autoritária brasileira, e que permitia tanto a capacidade de rebelar-se contra esse autoritarismo como a de quebrar as relações hierárquicas, desiguais de interlocução entre o cidadão comum e o estilo dos governantes.

Com efeito, no bojo de suas lutas se manifestará a recusa/negação da “cidadania concedida” a que se refere Sales (1994), herdada da relação “Casa Grande e Senzala” e reforçada pelo poder dos “Coronéis“; e da “cidadania regulada” - inaugurada pelo Populismo autoritário e tutelar do período Getulista - a partir dos anos 30 (séc. XX), conforme a formulação de Wanderley Guilherme dos Santos (1992). Outras vontades passam a ocupar a cena política como negação da tutela total e absoluta do Estado ditatorial como “vontade soberana da Nação”, reinventando a política.
Oliveira (1999: 60-61) resgata bem este caráter político da cidadania coletiva dos movimentos sociais no Brasil, ao afirmar que:

Todo o esforço de democratização, de criação de uma esfera pública, de fazer política, enfim, no Brasil, decorreu quase por inteiro, da ação das classes dominadas. Política no sentido em que a definiu Rancière (...): a da reivindicação da parcela dos que não têm parcela, a da reivindicação da fala, que é, portanto, desentendimento em relação a como se reparte o todo, entre os que têm parcelas ou parte do todo e os que não têm nada.

Diniz aponta na mesma direção ao realçar esta “façanha de fazer política” dos movimentos:

Eles não só questionam a eficácia da cidadania liberal, como também estão construindo, ainda que nos porões da hierarquia social, uma nova concepção de cidadania e de democracia referenciada não só na politização do indivíduo, mas sobretudo na politização da sociedade (DINIZ, 1997 :04).

Constituem, no dizer de Paoli (1993:25):

(...) a contraface do lado autoritário ou desagregador da crise brasileira (...) potencial político inovador sobre a sociedade e a cultura (...).

Potencial político, segundo a autora, que possibilitaria – numa perspectiva utópica - “quebrar de vez com a cultura política excludente” e repressiva e - transcender o mero Estado de Direito, descortinando

(...) os horizontes de uma democracia constantemente renovada em sua legitimidade. É este, a meu ver, o significado virtual dos movimentos sociais e das instituições civis e políticas que os acompanham (1994:52).

É nos marcos da luta por direitos, através da participação cidadã e dinamização permanente do espaço público, que se inscreve o estatuto político dos movimentos sociais – no universo de sua heterogeneidade - desafiados nos dias atuais pelos impasses postos pela inserção mais orgânica do Brasil no processo de globalização da economia – a partir dos anos 90 - e de subordinação aos interesses hegemônicos dos grandes conglomerados empresariais e financeiros e seus corolários na vida social e política, particularmente a erosão dos direitos numa sociedade cada vez mais fragmentada. Neste contexto, reafirmam o campo da resistência, pois:

À semelhança de outros tempos imperiais tenazmente enfrentados por figuras, movimentos e grupos sociais, também hoje nos deparamos com setores da sociedade civil que se batem com valentia, de corpo e alma, contra formas apuradas e eficazes de exploração (dimensão econômica), de dominação (dimensão política) e de marginalização/discriminação (dimensão cultural), características do atual contexto socio-histórico (CALADO, 2000:13-14).




Conclusão

      No decorrer deste artigo, procuramos recuperar a memória dos sujeitos políticos e atores sociais e coletivos que conformaram em nosso país um campo de resistência à dominação, demarcando um campo de lutas por direitos. Caracterizamos este campo de resistência como de luta contra a opressão, recusa à exclusão e ao silenciamentos impostos, de afirmação cidadã da política.
Contribuíram para a erosão das bases de sustentação do modelo ditatorial.
 impasses colocados pela dinâmica da crise do capital nos planos internacional e nacional, pelos sinais de crescente insatisfação de diferentes classes sociais (manifesta inclusive nas eleições proporcionais de 1974), pela retomada organizativa e mobilizadora de inúmeros movimentos sociais que aos poucos passarão a ocupar a cena política e outras contradições que minaram as bases de sua legitimação.
Referências

CALADO, Alder Júlio. (2000), Sociedade e Cidadania – o protagonismo dos Movimentos Sociais Populares. In: Movimentos Sociais e Cidadania – um enfoque multifacetado. João Pessoa, Idéia.
______ . (1999), Memória histórica e movimentos sociais: ecos libertários de heresias medievais na contemporaneidade. João Pessoa, Idéia.
CARVALHO, José Murilo. (2001), Cidadania no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
CHAUÍ, Marilena. (1987), Conformismo e resistência - aspectos da cultura popular. 2a ed. São Paulo, Brasiliense.
DE DECCA. (1984), O Silêncio dos vencidos. São Paulo, Brasiliense.
DINIZ, Daise Ferreira. (1997), Movimentos da Cidade: ação política e cultura popular e cidadania na Vila Ventosa. Belo Horizonte, Depto. de Ciência Política, UFMG, Dissertação de Mestrado.
GOHN, Maria da Glória. (2000), Teorias dos movimentos sociais- paradigmas clássicos e contemporâneos. 2a ed. São Paulo, Loyola.
GRECO, Heloísa. (1999), Dimensões fundacionais da Anistia. Belo Horizonte, 1999, mimeo.
LOWY, Michel. (1992) Ideologia e ciências sociais – elementos para uma análise marxista. , 8a ed. São Paulo, Cortez.
PAOLI, Maria Celia. (1993), Movimentos sociais: em busca do estatuto político.
______ . (1986), Memória, história e cidadania. In: A aventura antropológica. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
RESOLUÇÕES. Congresso nacional pela Anistia. São Paulo, 1978-1979, mimeo.
SADER, Eder. (1988), Quando novos personagens entram em cena. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
______ . (1987), Movimentos sociais na transição democrática. São Paulo, Cortez.
SAMET, Henrique. (1993), A Construção da brasilidade excludente. In: DOPS, a lógica da desconfiança. Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.









[1]* Sociólogo e Educador Popular, docente-pesquisador trabalhando atualmente na FAFICA, em Caruaru – PE. Professor aposentado da UFPB (João Pessoa), onde, além de atuar nas turmas de Graduação do Centro de Educação, colaborou nos Programas de Pós-Graduação de Educação, Sociologia e Serviço Social. Membro do Centro Paulo Freire – Estudos e Pesquisas, tendo organizado e sido co-autor do livro Conferências dos Colóquios Internacionais Paulo Freire. vols. 1, 2 e 3. Recife: Bagaço, 2007. É autor de, entre outros, Direitos Humanos X Capital: potencializando  potencializando os movimentos sociais e organizações de base. João Pessoa: Idéia; Caruaru: Edições FAFICA, 2003. Tem assessorado movimentos sociais populares e pastorais sociais, no Nordeste.
[2] Cfr. Sader, Emir. A Hegemonia Neoliberal na América Latina. In: Pós-Neoliberalismo. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1995, p.36.

[3] Formulação de Henrique Samet : A Construção da brasilidade excludente. In: DOPS, a lógica da desconfiança. Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.

[4] Referência aos “Novos Movimentos Sociais” que veremos na seqüência.





João Pessoa, 8 de agosto de 2008.