segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

A FORÇA REVOLUCIONÁRIA DOS GESTOS E INICIATIVAS MOLECULARES




Alder Júlio Ferreira Calado

“Quae stulta sunt mundi, elegit Deus ut confundant sapientes.” (1 Cor 1, 27ª)
(As coisas consideradas tolas, aos olhos do mundo, Deus escolheu para confundir os que se consideram sábios)

Em textos precedentes, temos insistido na necessidade e urgência de ousarmos passos em direção a um novo modo de produção, a um novo modo de consumo e a um novo modo de gestão societal, ao mesmo tempo em que temos tido o cuidado de insistir na adequada e orgânica articulação entre essas três dimensões-alvo. Nas linhas que seguem cuidamos de centrar  atenção mais diretamente sobre a dimensão do consumo.
Parte considerável de nossa ansiedade ou angustia, prende-se à nossa tendência a superestimar o alcance de “grandes” eventos, de acontecimentos espalhafatosos como sendo os que realmente fazem a diferença. Ledo engano! Sem ignorar ou subestimar o alcance de grandes acontecimentos, corremos o grave risco de subestimar fatos, gestos, iniciativas, acontecimentos que têm lugar em espaços pouco conhecidos, protagonizados por gente simples, em seu dia-a-dia, em mais uma prova de que o grande equívoco de nossa parte – o que sucede tão frequentemente – é o de estabelecermos um muro entre o “macro” e o “micro”, quando, na realidade, um está contido no outro, de algum modo. Em vez de uma avaliação disjuntiva  (“ou isto ou aquilo”), acabam ganhando a parada aqueles e aquelas que preferem o exercício da interconexão (salvo casos de fato antagônicos). As linhas que seguem, têm o propósito de trazer à tona a potencialidade revolucionária dos “pequenos” gestos e iniciativas praticados no anonimato do dia-a-dia, por gente simples, vivendo em lugares pouco conhecidos e realizando coisas maravilhosas.
Influenciados pelo domínio das aparências – daí o sucesso extraordinário da publicidade e da propaganda comerciais -, acabamos perdendo de contemplar a força revolucionária de “pequenos” gestos, de iniciativas moleculares portadoras de sementes de inovação, em todos os planos da realidade. Quantas vezes, graças ao barulho da propaganda oficial, somos induzidos a alimentar grandes expectativas em grandes eventos, do tipo Encontro do G-8 e similares, enquanto que bem perto de nós, estão se dando tantas coisas de grande potencial transformador, seja em relação à Mãe-Terra, seja em relação a sinais extraordinários de uma sociabilidade alternativa à barbárie capitalista!
Nesse sentido, os exemplos ilustrativos que aqui compartilhamos correspondem a apenas um pequeno aperitivo ao que cada leitor, cada leitora dessas linhas teria a acrescentar ainda com maior propriedade. Vejamos alguns exemplos.
No campo das iniciativas comunitárias ou de organizações de base de nossa sociedade civil, despontam, com efeito, impactantes iniciativas, a exemplo daquelas coletivamente compartilhadas recentemente, num dos encontros de associações ligadas à ASA.
Quanto menos afeitos  observação do que se passa nas "correntezas subterrâneas", mais vulneráveis nos tornamos aos efeitos deletérios da publicidade e da propaganda, almas do negócio da lógica capitalista. Basta que observemos a eficácia da propaganda nababesca do agronegócio, a convencer milhões e milhões de telespectadores incautos de sua excelência, de sua tocante sensibilidade ecológica, e até de sua ética... Novos discípulos de Goebbels, seus protagonistas sabem que uma mentira - ainda quando misturada de traços secundários de verdade -, quando e se repetida mil vezes, acaba passando por verdade, ante olhos e ouvidos controlados pela normose, sem condições de perceber o que se esconde por trás de sua estratégia. Ao contrário desses efeitos, funciona  o jeito próprio das ações protagonizadas nas "correntezas subterrâneas", desprovidas de propaganda e publicidade, acessíveis àqueles e àquelas que as acompanham de perto, no laborioso silenciamento do dia-a-dia. Só quem tem olhos para ver tais experiências frutuosas, é capaz de sentir seus impactos revolucionários. Delas pouco ou nada se ocupam os grandes meios de comunicação de massa.

A seguir, cuidamos de compartilhar algumas dessas experiências e algumas pistas voltadas a sensibilizar e a potenciar tais iniciativas. Com a mera intenção de provocar um desencadear – da parte de cada uma, de cada um, um sem-número de exemplos ilustrativos, destaquemos, de passagens, alguns casos, nas mais distintas esferas de nossa vida social e pessoal, abrangendo igualmente os mais diferentes campos da realidade.

Não faz muito tempo, sem terem muito a esperar de governos descomprometidos com pautas populares, as forças vivas de nossa sociedade colheram promissores frutos, em sua ousadia de investir o melhor de si em fortalecer as condições de protagonismo de nossa sociedade civil, tendo conseguindo proezas, em sua ação molecular, sem negar também seus limites. O Semiárido é apenas um desses exemplos. Ainda nos anos 90, graças ao investimento maciço de nossas organizações de base em empoderar nossa sociedade civil, de dotá-la de instrumentos de considerável alcance transformador, vale a pena destacar um sem-número de iniciativas de convivência com o Semiárido, haja vista o sucesso de planos voltados à construção em mutirão de centenas de milhares de cisternas, de barragens subterrâneas, de aplicação de tecnologias alternativas, na área da agroecologia, do reuso de águas, de tecnologias à base de fontes alternativas de energia, e pequenos projetos de produção comunitária nas áreas rurais... só para mencionar uns poucos exemplos. Para se ter uma ideia do alcance socioeconômico e cultural destas inciativas, basta que comparemos os efeitos deletérios de grandes estiagens no Nordeste, nas décadas 70 e 80, por um lado, e por outro lado, os efeitos de longas estiagens recentemente ocorridas no nordeste.

É curioso, a propósito, constatar que até mesmo no campo da reforma agrária, nossas organizações de base conseguiram mais ganhos, durante governos liberais do que durante governos populares...

Lamentável, contudo, é constatar que, em não poucos casos, essas lições tendem a ser esquecidas, tal a voracidade de se apostar todas as fichas apenas no confronto com as pautas oficiais, restringindo, não raramente, as tarefas de nossa organização a oporem resistência pontuais, após cada ataque vindo dos “de cima”, sem centrarem forças em projetos de alternativos. Os resultados estão aí expostos a uma comparação... Não se trata de abdicarmos do dever de enfrentarmos a pauta oficial – isto também era feito, nos anos 90!
Trata-se também, no plano pessoal, de reacendermos nossa mística revolucionária, apostando nos gestos menos perceptíveis, mas de profundo impacto revolucionário. Há, com efeito, uma enorme série de “pequenos” gestos, que precisam ser reavivados em cada uma, em cada um de nós, no chão do dia-a-dia, tais como:
Ousar dar passos progressivos em busca de um estilo de vida sóbrio. Engano, pensar que isto “é coisa de sonhador”... Por exemplo, combater - dando exemplo! – o consumismo, nas mais distintas ocasiões do di-a-dia.
Ocorre-me pensar no caso do consumo excessivo de eletricidade nas salas de aulas de nossas escolas. Tempo houve – e não faz muito -, em que nossas salas funcionavam sem esse aparato generalizado de ar condicionado por todo canto. Se antes, sabíamos conviver com o ritmo sazonais da Mãe-Terra, em mossa região, por que hoje não podemos mais? Como vamos poder criticar, com autoridade, políticas governamentais que devastam povos e florestas, alegando que precisam construir mais e mais termelétricas, para responder às demandas de “desenvolvimento”.
Quantos gestos e iniciativas considerados “minúsculos”, também no âmbito pessoal, podem (e deveriam!) ser testemunhados, em nosso dia-a-dia, como livre opção nossa, inclusive sem qualquer necessidade de fazê-las na vista de outrem. Mais valiosos  se tornam, à medida que passam a figurar como parte de nossa rotina pessoal, verdadeiras zonas de reabastecimento e de exercício de nossa mística revolucionária. Exemplos poderiam ser arrolados, “ad infinitum”. Destaquemos, de passagem, alguns como ilustrações possíveis. Comecemos por uma pergunta talvez incômoda: “quanto eu custo à Mãe-Natureza? Quanto sou capaz de repor do que consumo, do que me beneficio? Por certo, a vida é gratuidade, não é objeto de cálculo, nem mesmo da relação custo-benefício. Por outro lado, também é certo que a  vida é movimento. É um constante ir e vir, um dar e receber. Neste sentido, pode fazer-nos bem perguntar-nos: nas mais diversas relações que teço com as demais pessoas, busco ao menos certo equilíbrio na balança do dar-receber? Ou, ao contrário, mesmo podendo tantas coisas, limito-me a receber da generosidade dos outros, pouco ou quase nada contribuindo com o que eu posso e devo? E não é preciso oferecer como uma troca comercial. Isto se dá espontaneamente, até sem que as pessoas percebam, dado meu empenho no silêncio das boas obras.

De modo similar, em minhas relações com a Mãe-Natureza, é útil fazer-me perguntas do tipo: no item água, como me comporto? Sou comedido, no uso da água, debaixo do chuveiro, ou, ao contrário, sou antes perdulário, aí permanecendo cinco, dez minutos, e com água aquecida? Como me comporto no controle da torneira, ao escovar os destes, ao lavar os pratos, ao lavar roupa...? Como me comporto em fazer meu prato: enchendo de tudo, para depois jogar fora metade? E por aí seguem os exemplos didáticos, dos quais sou chamado a extrair lição, também no último dia de 2018...

Cada gesto destes vem carregado de sementes – boas ou más, de sementes de joio ou de trigo, sinalizando o tipo de revolução em que me acho concretamente engajado, a ir realizando, desde o chão do meu dia-a-dia...

João Pessoa, 31/12/2018

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

MOVIMENTOS POPULARES E ORAGANIZAÇÕES DE BASE, NO BRASIL: refontização como condição de retomada de seu potencial transformador




MOVIMENTOS POPULARES E ORAGANIZAÇÕES DE BASE, NO BRASIL: refontização como condição de retomada de seu potencial transformador

Alder Júlio Ferreira Calado

Solidários a quem, nos últimos tempos, vem chamando a atenção de nossas organizações de base – em especial dos movimentos populares (inclusive os mais ligados à chamada “Igreja na Base” – para a necessidade e urgência de esboçarem sinais convincentes de uma autocritica, ousamos retomar a reflexão, desta vez, para ponderar acerca de um fenômeno pouco destacado em textos analíticos da atual crise, em que vive mergulhada nossa sociedade, e que tem a ver com os descaminhos daquelas forças sociais historicamente vocacionadas a atuarem como sujeitos de transformação. Referimo-nos a uma espécie de desfontização, isto é, à crescente tendência de subestimação ou mesmo de abandono de suas principais fontes de inspiração, seja no tocante às forças que se querem inspiradas na Filosofia da Práxis (da qual o legado Freireano, é instigante interlocutor), seja daquelas que têm na corrente conhecida como Teologia da Libertação, suas fontes principais de referência. As linhas que seguem, têm como objetivo ajudar a retomar o debate sobre esta questão. Iniciamos por refrescar a memória de elementos axiais, característicos do nosso processo organizativo e formativo, e de mobilização, vivenciado em final dos anos 70/ inicios dos anos 80, no Brasil e na América Latina. Em seguida, cuidamos de assinalar uma sucessão de revezes históricos de nossas organizações de base, graças ao abandono ou à insuficiência de seu empenho organizativo, formativo e de luta, inspirado em suas principais fontes de referência. Por último, tratamos de fornecer algumas pistas, a título de ensaio de passos, na busca de retomada, em novo estilo, da necessária refontização.
1.  Breve rememoração de nossas referências teórico-práticas... 
Em fins dos anos 70/começos dos anos 80, ainda durante a ditadura civil-militar, chama a atenção o fecundo investimento exercitado pelos movimentos populares e por nossas organizações de base em bebermos principalmente em duas fontes organicamente articuladas: a do legado marxiano (em interlocução com a Educação Popular de matrix Freireana) e a da “Igreja na Base” (inspirada principalmente na Teologia da Libertação).
 Em cada uma dessas principais referências teórico-práticas, tratemos de rememorar os pontos considerados mais fortes.
No caso do legado marxiano, nossa atenção se voltava, fundamentalmente para os seguintes aspectos:
- o esforço continuado em fazer uma análise objetiva  da realidade objetiva, isto é: potenciar o empenho numa leitura acurada, servindo-nos de conceitos considerados mais eficazes de uma aproximação mais objetiva da complexidade daquele contexto histórico. Neste sentido, cuidávamos em priorizar conceitos tais como: “Modo de produção”, “Formação social “luta de classes”, “Mais valia”, “Classe Trabalhadora”, “Consciência de Classe”, “Estado”, “Alienação”,  cuja aplicação se buscava sempre ancorar em relevantes princípios como o do Movimento, o da transformação universal, o da interconexão, o da unidade dos contrários, etc. Eram princípios como estes que, trabalhados à base da prática como critério de verdade, ajudavam os militantes – homens e mulheres – a ter claras distinções tais como origem de classe, posição de classe, protagonismo nas decisões tomadas pela base, alternância de cargos e funções, a função de delegação, entre outras.. Mas, não se tratava apenas de ter clareza sobre tais conceitos. Mais importante ainda se sentia a necessidade de se examinar se e como cada um deles se aplicava ao contexto concreto, também no exercício de análise de conjuntura. De modo semelhante, tínhamos como fundamental um cuidadoso exercício (coletivo e pessoal) de levantar sobre a realidade em análise os mais diversos ângulos sob os quais ela precisava ser analisada, isto é, não se poderia contentar com um exame apenas, do ponto de vista econômico, mas igualmente examinar como os fatos econômicos se associavam organicamente ao contexto político e cultural.

 Se enraizavam diversas formas de atuação desses militantes, seja no campo da organização, seja no terreno do processo formativo, seja nas ações de mobilização e lutas sociais mais diretas. Não apenas em cada uma destas, mas sobretudo em seu interrelacionamento. Tratemos de trazer alguns exemplos ilustrativos, acerca disto.

No campo organizativo, por exemplo, aprendia-se que a força e a eficácia de nossas ações organizativas residiam no jeito de nos organizarmos.  Um desses jeitos – e não o menos importante! – consistia em que, se o nosso grande objetivo era o de ajudarmos a construir as bases de uma sociabilidade alternativa à barbárie capitalista, tínhamos, não apenas de nos esforçarmos (coletiva e pessoalmente) em manter sempre aceso este rumo, ou seja, manter firmes os traços fundamentais do rumo almejado, da nova sociedade, mas igualmente nos comprometermos com os caminhos coerentes com tal rumo. A liberdade que almejávamos só seria acessível por caminhos também de liberdade. Isto já nos predispunha a manter-nos alertas em relação aos modos convencionais de organização, como os seguidos pelas forças sindicais hegemônicas, pelos grupos partidários convencionais. Estávamos convencidos de que tínhamos que seguir à contra-corrente de suas práticas e concepções.

Em termos práticos, isto significava,, do ponto de vista organizativo, priorizar iniciativas tais como:
- Levar um estilo de vida próximo das bases;
- Criar e promover núcleos (pequenas comunidades, conselhos populares, círculos de cultura ou que outro nome tivessem), nos mais variados lugares: nas fábricas, nos bairros periféricos, nas universidades, nos colégios, nas pequenas comunidades rurais, nos ambientes de trabalho, etc.);
- Assegurar condições para o exercício da autonomia, em relação ao Mercado e ao Estado, por meio do autofinanciamento, recorrendo aos “tostões” de seus membros, como contribuição regular;
- Assegurar a tomada de decisões pela base, compartilhando-as à outras instâncias, por meio de seus delegados e delegadas;
- Garantir o rodízio ou alternância de cargos e funções, de modo que, passado o período de sua gestão, quem está na coordenação volte para a base, e quem é da base venha ocupar a coordenação;
- Investir no estudo continuado dos bons clássicos e contemporâneos;
- Promover a circulação regular de revista e jornais, de caráter informativo e formativo...

O diferencial desse jeito organizativo reside no investimento e cultivo incessante do protagonismo comunitário, isto é, na ação animada, sob os mais diversos aspectos, pelo conjunto dos protagonistas, não se abrindo brecha para oportunicistas e controladores individuais ou de pequenos grupos. Mas, isto só se torna exequível, se e quando o processo organizativo caminha de braços dados com o processo formativo. Um coordenar ou um pequenos grupo de direção até  pode tentar controlar a base, mas só se esta não estiver metida num processo de formação crítica, capaz de anular qualquer esboço de manipulação por parte de um membro ou dirigente ou de um pequeno grupo. Lá onde isto não teml ugar, o campo fica escancarado à ação deletéria de espertalhões, com vistas à imposição dos próprios interesses e projetos, com e pior: com a urgência  e coonestação da própria base, aí transformada em massa de manobra.

Um de tantos casos, nesse campo, se dá, quando a forte desconfiança que antes se tinha do Estado, enquanto capaz de protagonizar mudanças substantivas do interesse dos "de baixo", passa ser usado e abusado, como instrumento de mudança de mudança social, conforme a aposta e interesses de um pequenos grupo, ávido de poder e de alcançar seu projeto, por mais que insista em tratar-se de um um projeto "da Classe Trabalhadora"...

Acrescentar: Autonomia, postura ética, crítica e autocrítica

2.    Em que resultaram a crescente inobservância e o abandono das fontes teórico-práticas de referência?
Em vez da busca de uma nova sociedade, a opção recauiu no investimento em um novo Estado.... Diversos são os dados de pesquisa dando conta dos frutos alcançados por nossas organizações de base e movimentos populares, enquanto foram levadas a sério suas principais fontes de referência, inclusive no campo de conquistas relativas à reforma agrária. À medida, porém, que tais referências prático-teóricas passaram a ser secundarizadas ou mesmo abandonadas, eis que graves consequências foram sucedendo-se, dentre as quais destacamos algumas, de passagem:
-o aliancismo como estratégia “necessária”, dando lugar contribuindo progressivamente para a perda de identidade de classe, bem como da autonomia em relação ao mercado capitalista e ao seu Estado;

-inversão de prioridades ético-políticas: em vez de fortalecimento dos núcleos, a corrida pelos espaços estatais...

- Em vez de um sindicalismo de base e combativo, prevalece um sindicalismo de resultados e atuando como correia-de-transmissao do Partido...

-Dependência dos recursos do Estado e do Mercado, em vez da aposta nos próprios tostões...

-Em vesz de decisõespela base, o investimento progressivo numa condução feita uma pessoa ou por um pequeno grupo...

-Em vez da aposta em projetos populares, a avidez pelas grandes obras, denunciadas, no período da ditadura civil-militar, a justo título, como “obras faraônicas” (a exemplo das grandes hidrelétricas e da própria transposição de água de São Francisco;

-A embriaguez pelo poder acirra a estratégia de agradar dois senhores...

- O enraizamento nos espaços populares sede lugar à opções por espaços privilegiados e o consequente abandono das bases...

3.  Que lições recolher, em vista da necessária retomada, em novo estilo?
Diante de tantos e tão graves reveses, impõe-se recolher lições ainda que duras, no sentido de um efetivo exercício de autocrítica, menos por palavras e mais por práticas convincentes. Exercício de autocrítica a ser seguido de iniciativas concretas, em vista da retomada, em novo estilo, do Trabalho de Base, tanto no que se refere às ações de caráter organizativo, tanto no tocante às tarefas formativas, quanto aos compromissos de mobilização. Tarefas estas a serem retomadas a partir das referências teórico-práticas acima mencionadas.
Concretamente, que passos poderiam ajudar nesta retomada do trabalho de base, que tal pensar nas seguintes sugestões sugestões?

-Não seria interessante mostrar sinais concretos de autocritica, não tanto por palavras ou promessas, mas por práticas efetivas?

-Em vez da avidez por vanguardismos inconsistentes, po que não participar em pé de igualdade de uma retomada, em novo estilo?

- Que tal retomar a criação e ampliação de núcelos e conselhos populares?

- Não será o caso de combatermos o caciquismo, retomando as práticas comunitárias  características das origens, reinvestir no mecanismo da alternância e no princípio da delegação?

-Que tal retomar práticas por meio de condições favoráveis ao exercício da autonomia (em relação ao Estado e ao Mercado), por meio do autofinanciamento?

- No plano formativo, que tal reinvestir na memória histórica dos oprimidos valorizando e incentivando o estudo comunitário da contribuição dos movimentos populares no mundo, na A. Latina e no Brasil?

- O que dizer do incentivo à leitura em grupo de biografias de figuras revolucionários e revolucionárias de ontem e de hoje?

- Que tal, em vez de centrar toda a atenção formativa apenas na esfera política, ampliar o alcance da formação, de modo a alcançar tantas outras dimensões do processo de humanização?

-Por que não retomar as relações internacionalistas, em novo estilo?

-Não será fundamental priorizarmos a necessidade de mudança de estilo de vida (mais próximo da população, com sobriedade e simplicidade de vida, priorizar as lutas em defesa e promoção da Mãe-Terra?

- Em breve, não será o caso de fortalecer a sociedade civil, empoderando-a, com base na reconquista da confiança e da solidariedade popular?

João Pessoa, 28 de dezembro de 2018.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

QUEM DEVE A QUEM? Questionamentos acerca de uma história mal contada sobre saqueadores seculares de riquezas de povos e nações e a situação atual de suas vítimas...


QUEM DEVE A QUEM? Questionamentos acerca de uma história mal contada sobre saqueadores seculares de riquezas de povos e nações e a situação atual de suas vítimas...

Alder Júlio Ferreira Calado

Nossa América Latina
Pátria Grande e generosa
De seus bens já não mais goza
Sua riqueza se destina
A cumprir a triste sina
Sob o império de outra lei
A tornar mais rico o rei
Diz assim, na agonia:
Paguei mais do que devia
Devo mais do que paguei

Desde algumas décadas atrás, vem-se assistindo a uma exasperação de esdrúxulos mecanismos de endividamento de nações e povos inteiros, mundo afora, marcadamente nos países periféricos do Capitalismo. Seus principais beneficiários, os agentes do sistema financista, donos de escandalosos paraísos fiscais, encarregados de guardarem e de esconderem todo tipo de dinheiro sujo, proveniente inclusive da indústria e comercio de armas e drogas, não cessam de festejar sucessivos recordes de lucros. De onde virá tanta riqueza fácil? De um conjunto articulado de fontes escusas, dentre as quais aqui nos ocuparemos de uma: os lucros obtidos em função do negócio das dívidas escandalosamente acumulados à custa da fome e da miséria de povos inteiros e nações, em várias partes do mundo. Também na América Latina.

Multiplicam-se as pesquisas e os estudos realizados por órgãos e instituições de reconhecida competência técnica, dando conta dos procedimentos e mecanismos espúrios e artificiais de imputação de dívida e multiplicação abusiva dos montantes das dívidas a esses países. Em não poucos casos, o pagamento de tais "dívidas eternas" alcança mais da metade do total do orçamento desses países, implicando, de um lado, o crescimento odioso de um pequeno grupo de plutocratas-sanguessugas, e, de outro, a multiplicação assombrosa dos índices de desigualdades sociais, nas mais distintas áreas da realidade social. 

Iniciativas reclamando revisão de tais injustiças têm sido levadas a termo por vários países, dentre os quais o Equador. Todavia, até para solicitar revisão da imposição unilateral desses mecanismos perversos de endividamento, as nações encontram tremendas barreiras: desde o servilismo de seus governantes ao sistema imperante às ameaças de toda sorte que lhes são lançadas, direta ou indiretamente, pelos algozes, que se reclamam credores.

Com o propósito de compreender melhor os fatores axiais deste sistema de exploração, tratamos de examinar brevemente raízes mais fundas deste processo.

Ganância, corrupção, violência, roubo, dominação – eis alguns dos componentes inseparáveis de pessoas e grupos tomados por um projeto de poder, a ser implementado, custe o que custar. Também presentes estiveram tais componentes, no coração, na alma e sobretudo nas ações dos protagonistas do processo de colonização. Não bastassem as dezenas de milhões de assassinatos ou chacinas cometidas contra os aborígenes americanos, desde as primeiras décadas de colonização, eis que prosseguiria, impassível, e voraz, a fome de poder dos colonizadores, empenhados em extrair riquezas deste continente recém-"descoberto" por colonizadores europeus, quando estes povos aborígenes aí vivem a quarenta mil anos... A este respeito é vasta a literatura no campo da História. Um dentre tantos analistas deste período, o uruguaio Eduardo Galeano tornou-se célebre por alguns de seus livros, a começar pelo intitulado "As Veias abertas da América Latina”. Trata-se de um clássico do gênero que vai à raiz do processo de enriquecimento de países europeus, feito literalmente à custa do suor, do sangue e das riquezas minerais da América Latina além dos profundos estragos infligidos à Mãe-Terra. Há quem afirme terem sido extraídos e transportados para a Europa, entre 1503 e 1660, nada menos do que 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata (cf. o teor do protesto feito pelo Cacique Guaicaipuro Cuautémoc, cuja leitura recomendo: https://www.aporrea.org/actualidad/a5059.html)

Acerca do pronunciamento do Cacique Guaicaipuro Cuautémoc, chama-nos a atenção sua linha de argumentação, dirigida aos povos europeus envolvidos na pilhagem das riquezas latino-americanos, durante o processo de colonização, apenas fixando-se entre o período compreendido dentre 1503 e 1660. Seguindo os critérios próprios da economia capitalista – que não são  os dele -, o Cacique põe-se a expor uma sequência lógica e sociológica de argumentos fáticos:

- ao considerar os colonizadores ironicamente como cristãos, contém-se em acusa-los de pilhadores das riquezas que inundaram a Europa, trazidas do continente americano;
- o cacique prefere interpretar o feito como uma tomada de empréstimo atípica;
- como todo empréstimo, também aquele, pela regras do jogo do Mercado capitalista, implica o compromisso de pagamento;
- todo pagamento de uma dívida implica cobrança de juros e outros serviços do gênero;
- considerando que, entre  a tomada dos primeiros empréstimos, em 1503, já alcançam cinco séculos, é claro que o acúmulo de juros sobre juros, ano por ano, acarreta um montante assombroso;
- além de tal pagamento ainda deve ser tomado em conta o massacre de milhões de aborígenes, sangue que não tem preço, mas implica punição dos culpados...

E por aí segue a lista de cobranças feitas pelo cacique aos colonizadores europeus...

Pois bem, diante da crueldade com que os mesmos “tomadores” hoje lidam com imputadas dívidas de tantos povos e nações, brada aos céus o tamanho da insensibilidade dos novos colonizadores, diante das injustiças, primeiro, do processo abonável dos mecanismos de cobrança de duvidosas dívidas; em segundo lugar, pela indiferença diante do crescimento da miséria de milhões e milhões de seres humanos, nos diversos continentes, acusados de grandes devedores...

Note-se que aqui só tomamos em consideração a pilhagem empreendida pelos colonizadores da América Latina, no que se refere ao roubo de ouro e prata... O quê dizer de outros metais preciosos, até hoje levado a efeito? O quê dizer do super-lucrativo comércio de africanos e africanas aqui escravizados, somando cerca de mais de 3,5 milhões? O que dizer da pilhagem praticada, ainda hoje, no continente africano e na Ásia?

E hoje, sem que os cristãos ocidentais tenham renunciado à sua cobiça de terras e riquezas de outros povos e nações, ao redor do mundo, são parcelas crescentes das vítimas desses países que, desta vez, pedem entrada na terra dos seus invasores, na condição de migrantes forçados, rejeitados e maltratados por cristãos que celebram o Natal de Jesus, que lhes diz: “O que vocês fizerem a um desses irmãos, é a Mim que o estão fazendo”...

João Pessoa, 24 de dezembro de 2018


quinta-feira, 20 de dezembro de 2018


JESUS VIVE, APESAR DE NOSSAS IGREJAS: notas a partir dos capítulos finais do livro "Jesus, aproximação histórica", de autoria do teólogo José Antonio Pagola

Alder Júlio Ferreira Calado

A menos de uma semana da celebração da festa do nascimento de Jesus, no mundo cristão, ocorre-nos refletir sobre o papel dos cristãos no mundo de hoje, à luz do que os Evangelhos relatam sobre o próprio Jesus, suas palavras, seus gestos, suas posições. Um olhar crítico sobre o que Jesus fez e anunciou, por um lado, e o que andam fazendo os que se dizem seus seguidores, por outro lado, revela um grande fosso, um gigantesco hiato, seja no que se tem observado, salvo exceções, nas igrejas cristãs, seja em parte considerável de seus membros, em especial seus dirigentes. Como a festa do Natal do Senhor também se presta para um momento propício à conversão, quem sabe se as linhas que seguem, nos podem trazer algum estímulo, nesse sentido...

As pesquisas realizadas pelo teólogo espanhol José Antonio Pagola, que lhe tomaram anos e anos de trabalho, e que culminaram no livro “Jesus, aproximação histórica”, seguem provocando, numa série considerável de edições, mundo afora, impactos significativos. Pela relevância das fontes por ele consultadas, bem como pela abordagem que priorizou, demo-nos ao trabalho de, ao longo da leitura desta obra, feita em grupo (o Grupo Kairós, por sugestão de um de seus membros, João Fragoso, nele vem trabalhando semanalmente, desde fevereiro do corrente ano), compartilhar diversos textos com notas acerca de vários pontos dele – nele colhidos. As presentes linhas têm o propósito de trazer à tona aspectos relevantes, concernentes aos últimos capítulos do livro, com objetivo, de não apenas ajudar a divulgar e a incentivar a leitura desta obra, mas sobretudo de chamar a atenção para os descaminhos e os escândalos crescentes, observáveis nas práticas de não poucos que se confessam cristãos, em especial Igrejas e/ou seus dirigentes.

Há, com efeito, episódios e acontecimentos protagonizados por Igrejas Cristãs e seus membros – em especial, seus dirigentes – que bradam aos céus, pela evidente incoerência infidelidade e distanciamento dos valores essenciais do Reino de Deus, anunciado e inaugurado por Jesus. Como entender tais desencontros e tais escândalos especialmente quando praticados “em nome de Deus” ou do Evangelho?

Diferentemente da pregação irenista (passiva, pacifista, semelhante à “pax romana”...), muito frequente, e por vezes abusiva, por parte de “televangelizadores” e dirigentes eclesiásticos, os Evangelhos nos trazem um outro perfil de Jesus, o de um profeta do Reino de Deus que, pela fidelidade ao Projeto do Pai, e conduzido pelo Espírito Santo, não hesita em defender e promover a causa libertária dos pobres, dos rejeitados, dos injustiçados dos desvalidos o que acende a ira dos privilegiados de todos os tempos e lugares. É inconcebível com efeito, pretender-se defender e promover os direitos dos “debaixo”, e, ao mesmo tempo, satisfazer aos interesses dos privilegiados: "Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará a um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro". (Mateus 6:24)
Em seu tempo de vida pública, Jesus teve que enfrentar, com frequência, situações conflitivas, diante das quais não se omitiu, mas buscou responder à altura, sempre denunciando os privilegiados daquela sociedade – os sumos sacerdotes, os doutores da lei, os escribas, os fariseus, os representantes da dominação romana... a este respeito, várias são as passagens evangélicas que atestam a firme posição do “Profeta itinerante do Reino de Deus”, a exemplo (só para mencionar um) de suas invectivas proferidas contra a elite do seu tempo, das quais tratamos de sublinhar do capítulo 23 de Mateus alguns versículos:
- “Os mestres da lei e os fariseus se assentam na cadeira de Moisés. (v.2)
- “Tudo o que fazem é para serem vistos pelos homens. Eles fazem seus filactérios bem largos e as franjas de suas vestes bem longas (v.5)”;
- “Mas vocês não devem ser chamados mestres; um só é o Mestre de vocês, e todos vocês são irmãos. (v.8)”;
- “Tampouco vocês devem ser chamados “chefes”, porquanto vocês têm um só Chefe, o Cristo. (v.10)”;
- “O maior entre vocês deverá ser servidor. (v.11)”;
- “Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês fecham o Reino dos céus diante dos homens! Vocês mesmos não entram, nem deixam entrar aqueles que gostariam de fazê-lo. (v.13)”;
- “Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês devoram as casas das viúvas e, para disfarçar, fazem longas orações. Por isso serão castigados mais severamente. (v.14)”;
- “Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês dão o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas têm negligenciado os preceitos mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade. Vocês devem praticar estas coisas, sem omitir aquelas. (v.23)”;
- “Guias cegos! Vocês coam um mosquito e engolem um camelo. (v.24)”;
- “Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês limpam o exterior do copo e do prato, mas por dentro eles estão cheios de ganância e cobiça (v.25)”;
- “Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês são como sepulcros caiados: bonitos por fora, mas por dentro estão cheios de ossos e de todo tipo de imundície. (v.27)”;
- “Assim são vocês: por fora parecem justos ao povo, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e maldade. (v.28)”;
- “Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês edificam os túmulos dos profetas e adornam os monumentos dos justos. E dizem: “Se tivéssemos vivido no tempo dos nossos antepassados, não teríamos tomado parte com eles no derramamento do sangue dos profetas”. Assim, vocês testemunham contra si mesmos que são descendentes dos que assassinaram os profetas. (v.29-31)”;
A quantas situações concretas da atualidade nos remete cada uma destas invectivas! Vale a pena tomarmos um tempo mais amplo para refletirmos sobre tais situações. Convém, todavia, que, antes de apontar o dedo para outrem, tratemos de nos colocar, primeiro, como alvo dessas invectivas. De todos os modos, os contratestemunhos provocam profundos estragos à credibilidade dos que se proclamam cristãos... Num rápido balanço da ação dos cristãos no mundo atual, inclusive no Brasil, e tomando como referência o critério evangélico, segundo o qual “pelo fruto se conhece a árvore”, não nos sentimos confortados, muito menos seguros, da contribuição que se espera dos cristãos como cidadãos do Reino de Deus, em sua atuação no mundo. Chamados a ser “fermento na massa”, não raramente nosso comportamento tem sido, antes, de joio ou de cizânia, haja vista o que sucedeu no mais recente processo eleitoral, no Brasil. Sob vários pontos de vista, os critérios de escolha de parcelas consideráveis de cristãos (católicos, protestantes, neopentecostais...) pouco têm a ver com o perfil de Jesus, tal como traçado nos Evangelhos:
- Como escolher eleger candidatos e candidatas que se mostram insensíveis aos clamores dos pobres (povos indígenas, quilombolas, camponeses, operários...)?
- Como escolher candidaturas que se mostram insensíveis aos direitos e dignidade das mulheres, das pessoas homoafetivas...?
- Como escolher candidaturas de pessoas ostensivamente movidas pelo ódio e pelas constantes ameaças de violência como recurso para equacionar os problemas nacionais?
- Como eleger candidaturas comprometidas com os interesses das grandes transnacionais atuando em diversos ramos da economia, em desfavor da dignidade dos “debaixo”, e, sobretudo em desrespeito a Mãe-Terra.
Consola-nos, por outro lado, ter presentes os belos testemunhos presentes nas “correntezas subterrâneas”.
E não venham dizer que, se assim agiram cristãos e dirigentes de tantas Igrejas, o fizeram por falta de opção, até porque, neste caso, teriam, sim, a opção de votar nulo ou branco...
Escândalos e contratestemunhos de igrejas cristãs e/ou de seus membros, acentuado distanciamento dos valores do Reino de Deus se apresentam como verdadeiros e grandes desafios para as “Minorias Abrahamicas”, chamadas a serem testemunhas proféticas do Reino de Deus e Sua justiça, principalmente em tempos tenebrosos como os em que vivemos.
Várias outras passagens aludem igualmente à firme posição de Jesus, diante de situações de injustiça e de opressão praticadas pelos “de cima” contra os mais vulneráveis. Baste-nos recordar a ira profética de que Jesus foi tomado, ao observar que o templo de Jerusalém se convertera num antro de ladrões e salteadores, em nome da Lei ou em nome de Deus... (cf. Mt 21, 12-14).
Retomando aspectos relevantes do livro ora comentado, eis alguns aspectos que julgamos oportunos e relevantes, a serem destacados do capítulo XII (“Conflitivo e perigoso”). No final deste capítulo e no início do capítulo XIII (“Mártir do Reno de Deus”), o autor do livro nos traz preciosos episódios protagonizados por Jesus, como o de sua despedida, na última Ceia, em duas emblemáticas cenas: a da bênção e partilha do pão e do vinho, e a do Lava-pés. No caso da bênção e da fração do pão e da distribuição aos seus discípulos do pão repartido e da partilha do cálice de vinho, Jesus resume, de modo didático e contundente, o cerne da Boa Notícia por Ele anunciada, testemunhada, e à qual Ele foi fiel, até o fim: repartir a própria a vida, doar sua vida em resgate de muitos, de todos, testemunhando a olhos vistos que “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos.” (João, cap. 15:13). Aí se condensa seu anúncio do Reino de Deus contra o qual nenhuma força humana pode impedir. Nem a própria morte, pois o Amor é mais forte do que a morte. Aí se acha o cerne do seu Evangelho, a ser seguido por seus discípulos e discípulas.
A segunda cena, à qual acima aludimos, e que se acha intimamente associada à anterior (a da bênção e partilha do pão e do vinho como memorial de Si próprio) desponta igualmente tocante, pelo teor de sua mensagem: Jesus põe-se a lavar os pés de seus discípulos, numa atitude de autêntico serviço humilde ao próximo, recomendando aos seus discípulos e discípulas que façam o mesmo. Note-se que Ele não manda que outros façam, mas é o primeiro a fazer o que recomenda aos outros.

É com esta marca tão Sua, que recebe do Pai força para enfrentar o caminho da cruz, não como uma opção sua, mas, antes, como condição de sua fidelidade ao Projeto de Deus, rejeitado pelos grandes e poderosos, que o levaram à condenação à pena máxima e mais ignominiosa – o suplício da cruz, reservado aos considerados mais perigosos e ameaçadores da ordem vigente, da “pax romana”. O processo de Jesus – perseguição, detenção, interrogação, humilhação pública, suplício, inclusive com coroa de espinhos, crucificação... – revela sinais evidentes da recusa taxativa, por parte dos setores dominantes daquela sociedade (como de todo o Projeto anunciado, proposto e testemunhado fielmente por Jesus, até o fim, a despeito do medo, do abandono de não poucos de seus discípulos). Cumpre observar que, nos momentos mais cruciais, foram as mulheres e um ou outro de seus discípulos que, solidários, se puseram ao seu lado...

Malgrado toda sorte de adversidade que Jesus teve que enfrentar, mais forte falou sua confiança no Pai. E não foi em vão: por Deus Ele ressuscitaria, e se faz presente, ontem como hoje, naqueles e naquelas que ousam testemunhá-lo.
Foi inspirado nessa confiança, que, já prevendo que seria assassinado a mando do regime de El Salvador, Dom Oscar Romero não hesita em afirmar que, se fosse assassinado, ressuscitaria na luta do seu povo. Nas “correntezas subterrâneas, esta confiança segue firme, e “A esperança dos pobres vive e viverá”...

Após contemplar diversos aspectos da Ressurreição de Jesus (cf. cap. XIV: “Ressuscitado por Deus”), o autor cuida , no último capítulo de sua obra (XV: “Aprofundando a identidade de Jesus”), de fazer uma bela sinopse de suas pesquisas, fornecendo elementos sintetizadores acerca do que foi Jesus, enquanto um judeu, vivendo e convivendo com o seu povo; acerca de como se portava o vizinho de Nazaré, como se deu seu aprendizado, desde criança e jovem, com o que observava e assimilava da vida de sua gente; sobre qual era o perfil do “buscador de Deus”; sobre como se deu a atuação inicial deste “profeta do Reino de Deus”, sobre como se revelava um curador e um Mestre de vida; sublinha belíssimas passagens deste “Poeta da Compaixão”, deste “Amigo da Mulher”. Ajuda-nos a mergulhar no cerne da espiritualidade de Jesus, este “crente fiel”. A mística revolucionária de Jesus é que o preparou e o manteve firme para enfrentar todo tipo de perseguição, inclusive o caminho da cruz, confiante, sempre, no Projeto do Pai, que o ressuscitaria, lá onde estivessem dois ou três reunidos em seu nome.  Os sinais de sua Ressurreição aparecem numerosos, em especial entre aqueles e aquelas que não se cansam em testemunhar as marcas de seu Projeto – de defesa e promoção dos “Últimos”, de denunciar toda sorte de exploração, dominação e marginalização; a partilha, a solidariedade samaritana, a ousadia de irmos ensaiando passos na construção de uma nova sociedade, alternativa à barbárie capitalista.

João Pessoa, 20 de dezembro de 2018

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018


O PROCESSO FORMATIVO CONTÍNUO COMO PRIORIDADE DE NOSSAS ORGANIZAÇÕES DE BASE

Alder Júlio Ferreira Calado

O processo formativo como expressão maior do processo de humanização

De qual formação se trata?

A Educação Popular como baliza deste processo

Pela retomada, em novo estilo, do trabalho de base

Que prioridades sublinhar?

Esboço de um plano de formação contínua

Pressupostos a não perder de vista:

Prática-Teoria-Prática

Protagonismo de todos os participantes

Por um plano de atividades formativas

- Fios que se entrelaçam: memória histórica, práxis, horizonte alternativo

I. Mantendo aceso o horizonte alternativo (que sociedade nos comprometemos a ir construindo?
Do ponto de vista da produção da organização política, do ponto de vista da diversidade cultural...

II.  Práxis: fazendo a ponte presente-passado-futuro

       De olho na realidade social
       Projetos societais em disputa
       Protagonistas de cada projeto
       Estratégias principais de cada força social
       Enfrentando velhos e novos desafios
1.    Elementos do processo organizativo (retomada, em novo estilo, dos núcleos ou pequenas comunidades; protagonismo de todos; primazia do comunitário sobre o individual; trabalhando a individualidade; permanente controle comunitário dos cargos de coordenação; alternância de cargos e funções; autonomia frente ao mercado e ao estado; interconexão dos núcleos entre si e com outras instâncias; retomada do princípio da delegação)
2.    Elementos do processo formativo (educação popular como referência formativa; exercitando conceitos básicos do legado marxiano; exercício da crítica e autocrítica; instrumentos de análise da realidade social; aprofundando a identidade e a consciência de classe; identificando e enfrentando velhos e novos desafios: atualização dos conceitos fundamentais do marxismo, aprofundamento das relações cósmicas e socioambientais, aprimorando as relações sociais de gênero, de etnia, de gerações, de espacialidade, de mística revolucionária

III. Trabalhando o fio da memória histórica:

       Reavivando a memória sobre emblemáticas conquistas e reveses da humanidade, da América Latina e do Brasil
       Revisitando movimentos sociais revolucionários: contexto histórico, protagonistas, projetos em disputa, estratégias...
       Testemunhos de vida de figuras de referência



Introdução 



 Tem sido recorrente a fraternal cobrança, da parte de várias lideranças de nossas organizações de base, em relação a uma explicitação mais detalhada acerca do que tanto se fala de formação alternativa como tarefa prioritária de nossas organizações de base e movimentos populares: “Afinal, de que formação se trata, concretamente?” Interpelado por tal cobrança, sinto-me também desafiado a contribuir, modestamente que seja, com essa tarefa. As linhas que seguem têm, portanto, o propósito de compartilhar idéias-chave que ouso submeter ao debate, entre protagonistas destas mesmas forças sociais.

O trágico desfecho político-eleitoral mais recente, no Brasil (e em outros países) pode ser assumido como mais uma circunstância propulsora de enfrentamento concreto desse desafio. A sucessão de malogros ético-políticos acaba por convencer-nos, finalmente, de que não temos alternativa: ou seguimos  acumulando reveses e mais reveses sócio-políticos e econômicos, como resultado também de nosso  descaso de investimento no processo formativo de bases e lideranças, ou despertamos, de vez, para a urgência de retomarmos, em novo estilo, nossas lutas, nosso Trabalho de Base, buscando responder à altura os desafios – velhos e novos! 0u, combinando, de m modo orgânico, nossas tarefas organizativas, nosso quefazer formativo e nossos compromissos de lutas, nas distintas frentes de resistência proativa. Nestas linhas, ocupamo-nos apenas da questão formativa (ainda que sabendo-a dinamicamente relacionada às outras dimensões).

Começamos por explicitar didaticamente  de que formação não se trata, buscando, desde já, dissipar confusões ou falsas expectativas. Em seguida, sim, passamos a explicitar traços e procedimentos da formação aqui proposta.

Revisitando aspectos fundantes da Educação Popular, de matriz marxo-freireana, cuidamos de sintetizar tais traços, sublinhando a relevância de se ter sempre presente o horizonte alternativo que desejamos perseguir; a importância inafastável da memória histórica, como fonte de inspiração – não de reedição automática: até por que outra é a realidade hoje vivenciada, sob vários aspectos e desafios que não eram tão impactantes, há décadas e séculos atrás. Nesse sentido, tratamos de esboçar alguns elementos axiais, em busca de um plano formativo, a ser constantemente aprimorado pelos protagonistas, antes, durante e depois das experiências formativas vivenciadas.

1.  De que formação aqui NÃO se trata?
Resulta supérfluo insistir na importância da formação, da educação, seja a formal, seja a de outro tipo. Nunca é demais expressarmos reconhecimento da importância da educação escolar – da Educação Infantil à Pós-Graduação. Fartos são os exemplos de que nenhuma sociedade moderna alcança níveis razoáveis de desenvolvimento social, sem que tal sucesso passe necessariamente por investimentos maciços no processo educativo de seus cidadãos e cidadãs. Importância reconhecida, não apenas pelo potencial produtivo alavancado pela formação escolar, mas também em razão dos benefícios daí advindos, em relação às dimensões de sociabilidade, de participação cultural e outros níveis. Nada obstante, não é desta formação que aqui se trata. E por que não? Afinal, não é também a educação escolar, bem conduzida, que habilita cidadão e cidadãs para o exercício e bom desempenho dos mais variados ofícios  e oferta de serviços para a própria sociedade? Por certo, também isto reconhecemos. Então, por que fazer uma separação entre a educação escolar e o processo formativo próprio das organizações de base e dos movimentos populares? Importa, primeiro, não separar um e outro tipo de educação. Não se deve separar. Antes, importa reconhecer, em grande medida, sua complementaridade. Ou, de modo mais preciso, suas zonas de complementaridade, pois, de fato, em não poucas dimensões, existe um hiato, um traço disjuntivo, entre uma e outra. Mas, por quê?: Vejamos alguns elementos desta questão.

Para uma compreensão das respectivas diferenças – e às vezes, trata-se inclusive de antagonismos -, tratemos de refrescar a memória sobre o lugar específico da educação escolar. Comecemos por lembrar quem, em última instância, a organiza? Qual é o lugar do Estado, em seu processo organizativo: desde sua concepção, seu planejamento, seu controle, sua  fiscalização, sua avaliação, etc.? Quem, de fato, controla a formação escolar, desde a Educação infantil à Pós-Graduação? É o Estado, em especial suas instâncias governamentais. Temos claro, sim, que, a depender de quem são seus operadores, o sistema educativo comporta consideráveis graus de respostas às chamadas políticas públicas, isto é – daí a impropriedade do termo – sob o controle das instâncias estatais (sendo assim, será que dá mesmo para confundir políticas estatais e ou governamentais com políticas púbicas?)





No Brasil, na América Latina e em tantos países, aqui e ali, se tem experimentado alguns avanços positivos, no interesse das classes populares. Mas, isto tem sido cada vez mais exceção. Ademais, mesmo quando despontam conquistas populares, quando comparadas com os ganhos obtidos, no âmbito dos mesmos governos, os interesses dos setores privilegiados são infinitamente mais e melhor atendidos. No caso do Brasil (mas, não apenas), que nos baste comparar  as taxas de lucros escandalosas obtidos pelo setor financista...

E o que isto tem a ver com o sistema educativo controlado pelo Estado? Tem a ver, e muito! Os ganhos escandalosos , auferidos pelas transnacionais, sob a proteção dos Estados, estendem-se por todos os setores da economia e das instâncias organizativas da sociedade, inclusive na esfera da Cultura e da Educação. O grande capital também se instala em inúmeras empresas educativas, estando por trás de verdadeiras indústrias de diplomas e certificados. Em breve, o Estado constitui um parceiro indispensável dos interesses do Mercado. A autonomia do Estado – e mesmo sua soberania – tem limites! Por mais abertura que seus governantes possam ter em relação às aspirações das classes populares, sempre têm que se contentar com oferecer-lhes as migalhas, também na esfera educativa. Outro limite: o tempo escolar dos cidadãos e das cidadãs é sempre limitado: está longe de atender aos requisitos de uma educação contínua, e nos termos das aspirações das classes populares. Controlada, portanto, pelo Estado, parceiro indissociável do Mercado, não há como falar-se propriamente numa Educação Popular, na perspectiva freireana, por exemplo., ainda que as classes populares se empenhem em disputar também os espaços da educação formal, da educação escolar, cientes, contudo, de que seria em vão esperar que tal sistema educativo corresponda às suas necessidades e aspirações mais profundas.
II. Por que Educação Popular, na perspectiva marxo-freirenana, como horizonte do processo de formação contínua de nossas organizações de base e dos movimentos populares?

Múltiplas são as razões que nos movem a tomar a Educação Popular, na vertente proposta por Paulo Freire, apoiado inclusive no legado marxiano, como o horizonte próprio de formação das classes populares, inclusive de nossas organizações de base e de nossos movimentos populares, atuando como protagonistas de uma sociabilidade alternativa  ao modelo societal dominante. Vejamos algumas das principais razões adiante destacadas.
Na proposta pedagógica formulada por Paulo Freire, inspirada também no legado de Marx, a Educação é assumida como espaço apropriado para o desenrolar do próprio processo de humanização. Na Educação Popular, os humanos encontram terreno fértil para o desenvolvimento de sua capacidade perceptiva e auto-perceptiva, tanto de suas potencialidades, quanto de seus limites. Isto se dá pelo contínuo exercício de sua criticidade e autocriticidade. Considerando que os humanos, mais do que nascem humanos, vão se tornando humanos, graças à sua relacionalidade, isto é, graças ao contínuo aprendizado que vão acumulando, a partir de sua socialização, de sua experiência de com-vivência com os demais humanos. Isolados, os seres humanos não se tornam propriamente humanos, isto é, são incapazes de se autocompreenderem, em seus limites e em suas potencialidades. Diferetemente dos demais animais,  que nascem , em grande medida, programados, prontos e acabados (pelo menos, em relação aos humanos), estes, por sua vez, nascem inconclusos, imaturos, inacabados, necessitando passar pelo convívio como condição de aprendizado de saberes inúmeros, ao longo de sua vida. Diferentemente dos demais animais, os humanos não sobrevivem, sozinhos, desacompanhados, sem parceria. Desde  a coleta de alimentos à necessidade de abrigo, de resistir ao frio, à fome, etc., os humanos precisam passar por um aprendizado incessante. Muito mais ainda, quando se trata das necessidades imateriais, as do mundo da Cultura: os valores, as artes, a criatividade, as relações com o Sagrado, a produção e fruição da beleza, da ética, etc., etc.

Será mesmo razoável, da parte das classes populares, pretender que todo esse universo de saberes seja assegurado pela educação controlada pelo Estado? Até pode haver exceções – que não infirmam a regra, mas é quase impossível que a escola oficial, seja na rede estatal, seja na rede particular, dê conta suficientemente dessas tarefas. Pelos bancos escolares passamos apenas uma pequena parte de nossa existência. Isto inviabiliza a pretensão de um enraizamento de saberes, com a necessária profundidade para o exercício desejável de uma vida humana, em busca de plenitude. O tempo, aliás, constitui apenas uma das barreiras. Há outras de não menor gravidade. Ainda que com exceções, o foco da educação escolar controlada pelo Estado reside na transmissão de saberes pragmáticos, isto é, ligados ao núcleo mais duro de seus interesses, mais precisamente dos interesses das classes dominantes, centrados na obtenção de lucros infinitos, meta incompatível com o compromisso de assegurar uma educação integral. Garantir tempo, por exemplo, para o aprofundamento de vivência de conteúdos ligados à Filosofia, à Sociologia e similares soaria como supérfluo e até como um risco para seus interesses, na medida em que esses concidadãos e concidadãs tenderiam a  “saber demais”, inclusive a desmascarar os sofisticados mecanismos de exploração postos em prática, no cotidiano do trabalho... A este respeito, nenhuma surpresa devemos ter quanto à idéia-motriz da chamada “Escola sem partido”... Seria mesmo razoável, da parte “dos de baixo”, pretender-se que uma escola controlada pelo Estado se disponha a promover, em escala ampla, o exercício da criticidade, condição que favorece o despertar da consciência de classe e, por conseguinte, as ferramentas de desmascaramento das estratégias de exploração, de dominação e de marginalização, contribuindo, desta forma, a deixar o rei nu?

Não se trata, por via de consequência, de se esperar que a rede oficial de ensino, secundada por outros agentes ideológicos, a exemplo da mídia comercial, tenha interesse em despertar ou promover o exercício da consciência crítica. Muito pelo contrário. Que nos baste, de passagem, um exemplo ilustrativo: a fortuna e o tempo gastos pelas transnacionais do agronegócio (para citar um único caso) em publicidade e propaganda, de modo a martelar abusivamente na cabeça do cidadão/da cidadã a idéia de excelência dos seus produtos, o benefício milagroso que sua produção oferece à saúde do Planeta e dos humanos...

É na Educação Popular – e bem menos ou de modo algum na escola oficial -, que se busca aprimorar, dia após dia, nossa capacidade perceptiva, habilitando-nos a ver melhor o que antes quase não percebíamos ou percebíamos mal; a ouvir coisas novas, compartilhar relatos de experiências fecundas nas quais somos instigados a nos inspirar; a sentir-nos instados a exercitar uma leitura alternativa de mundo, da realidade circundante, em escala mundial, nacional, regional, local; a exercitarmos a intuição, que nos permite ousar coisas novas, alternativas à normose sob a qual vivemos, reféns de pautas ditadas pelo sistema; é na Educação Popular, desde que assumida pelos seus verdadeiros protagonistas – as classes populares como sujeito de sua condução -, que vamos construindo condições de ensaiarmos passos alternativos ao sistema hegemônico, preparando-nos assim, continuamente, para fazer avançar traços relevantes de uma sociabilidade alternativa à barbárie capitalista.. E não deveria haver surpresas ou mistérios, de nossa parte, diante do que ora se afirma, pois a tarefa histórica de mudar este modelo só pode ser obra do protagonismo  de quem é vítima do modelo dominante. Assim tem sido em incontáveis casos de transformações, ao longo da história.

Que colunas-mestras sustentam este edifício construído sob a inspiração da Educação Popular?

Mais do que propiciar as condições favoráveis e necessárias à construção de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal, a Educação Popular não se contenta em assegurar condições aos protagonistas de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal, de exercitarem uma nova leitura de mundo. Isto é um primeiro passo, sem  o qual não se tem como seguir adiante, em busca de concretizar seu horizonte. Mais do que dotá-los de instrumentos para uma leitura alternativa de mundo, a Educação Popular ocupa-se em propiciar condições favoráveis a esses mesmos protagonistas, de irem reescrevendo o mundo, isto é, de ensaiarem passos concretos, desde o chão de seu cotidiano, a se capacitarem na arte de transformação do mundo e da sociedade, a partir da transformação de si próprios, em novos homens e novas mulheres, em convivência amorosa com o Planeta e com toda a comunidade dos viventes. Isto não se faz, sem uma formação contínua, da qual realçamos três eixos ou três colunas sobre as quais se tenta erigir tal edifício, de modo processual e incessante: esboço de horizonte  a perseguir; exercício da memória da histórica; a práxis, isto é, os compromissos fundamentais, no sentido de conectara passado-presente-futuro. Vejamos traços de cada uma dessas três colunas.

III. Mantendo aceso o horizonte alternativo (que sociedade nos comprometemos a ir construindo?
Reavivar continuamente traços do horizonte com cuja construção nos comprometemos, tem-se mostrado uma tarefa irrenunciável, sob pena de sucumbirmos a um certo ativismo normótico, isto é, que nos conduz a desenvolver mil atividades, sem pensarmos nossa prática. Não são poucas a s vezes em que as classes populares cederam – e não impunemente – a este grave risco. No tão citado filme “Queimada”, tornou-se célebre aquela afirmação da personagem José Dolores:” É melhor saber  para onde ir, sem saber como, do que saber como e não saber para onde ir.” Em que pese a sucessão de malogros e reveses que tivemos neste campo, dói constatar que seguimos com dificuldade de apender a lição...

Por conseguinte, resulta fundamental manter-nos sempre alertas em relação a que horizonte devemos caminhar. Faz-nos bem rememorar traços axiais deste horizonte. 

O que, na prática, significa lutar por um novo  modo de produção, por um novo modo de consumo e por um novo modo de gestão societal, que assumimos como nosso horizonte maior? Que traços comporiam esse horizonte, seja do ponto de vista da produção, seja do ponto de vista político, seja do ponto de vista cultural?

IV. Reabastecendo-nos da/na memória histórica de nossas Gentes

Nunca é demais realçarmos a relevância da memória histórica da humanidade, dos povos, de nossas Gentes, como um  frutuoso exercício de refontização de tal exercício extraímos uma força propulsora de transformação, desde que dele saibamos recolher lições que nos ajudem a reparar caminhos equivocadamente percorridos. E, ao fazê-lo, não se trata de pretender reeditar ou copiar sua gesta – o que resultaria em vão, pois cada contexto histórico tem seus desafios específicos, ainda que também haja alguns comuns a várias gerações.

Reavivar nossa memória histórica significa dar-nos ao trabalho de revisitar fatos, acontecimentos e situações enfrentadas por outros povos, por outros movimentos sociais, em diferentes tempos e lugares. Vamos, então, aprendendo ou rememorando como nossas Gentes foram capazes de enfrentar e vencer desafios aparentemente insuperáveis, mas também como e por que  malograram em algumas de suas lutas. Como se organizaram para tais enfrentamentos, quais estratégias priorizaram, como foram ou não capazes de seguirem adiante sua caminhada.

No caso de nossas gentes brasileiras, temos a oportunidade de  reavivar relevantes momentos vividos por movimentos populares tais como Palmares, as lutas indígenas conhecidas como as da República Comunista Cristã dos Guaranis (Clovis Lugon), o Movimento de Canudos, o Movimento de Caldeirão, o das Ligas Camponesas e outros.

Assim fazendo, também nos ocupamos de revisitar a saga de figuras de referência, biografias que nos enchem de inspiração pela qualidade de sua luta, pela força de sua contribuição. Trata-se de lideranças populares a não perdermos de vista, tanto as que protagonizaram conquistas extraordinárias, em âmbito internacional (Marx, Rosa Luxemburgo, Gramsci e outros), como os de atuação mais diretamente em âmbito da América Latina (Antônio de Montesinos, Zumbi dos Palmares, Sepé Tiaraju, Antônio Conselheiro, Beato Lourenço, João Pedro Teixeira, Carlos Marighella, Gregório Bezerra, Olga Benário e tantos outros, tantas outras.

V.Diante do que compõe nosso horizonte societal, e com base nas lições extraídas do exercício da memória histórica, como vamos orientar nossa Práxis?
Revisitar fatos e acontecimentos do passado não deve significar um mero exercício de saudosismo, mas
implica a renovação de nossos compromissos históricos com o processo libertário dos “de baixo”, assim como o hábito frutuoso de manter aceso o horizonte societal que nos move, representam momentos a serem interconectados com nossa ação coletiva e pessoal, no presente, de modo a viabilizar a ponte entre passado-prsente-futuro. De que Práxis, então, se trata? Aqui, elencamos alguns passos, nessa direção.

O primeiro pode ser o de irmos, dia após dia, aprimorando nossa capacidade perceptiva do mundo, da realidade e de nós mesmos e de nós mesmas. Como enxergar melhor nossa realidade atual: Como nos dotar de instrumentos eficazes de leitura e compreensão do que anda acontecendo, no atual contexto, seja do ponto de vista estrutural, seja do ponto de vista conjuntural. Isto demanda um especial empenho e continuidade. A realidade é complexa, está sempre em movimento, donde a necessidade de também nos pormos em movimento para dela nos aproximar, compreendê-la em seus meandros, em seu vai-e-vem, em suas contradições, em suas interconexões.

No processo formativo de nossas organizações de base e de nossos movimentos populares, vamos aprendendo  a ver fatos e ocorrências em tantos detalhes, que antes nos escapavam, e, no entanto, se mostravam e se mostram fundamentais para uma melhor compreensão e intervenção sobre a mesma realidade.

No contínuo exercício de análise de conjuntura, vamos aprendendo a distinguir melhor os projetos societais em disputa; vamos aprendendo a distinguir as forças sociais que representam cada um desses projetos em disputa, e aqui, sempre atentos a não reconhecermos tais forças, apenas sob o ângulo formal, isto é, a não confundir os protagonistas da Classe Trabalhadora, apenas por suas pertenças formais (registro, carteirinhas, crachás, distintivos externos, etc., mas sobretudo pelas suas práticas, pela qualidade revolucionária de sua ação, desde as relações moleculares em que vivem imersos. Tal cuidada, já por si, teria evitado tantas consequências trágicas, ontem como hoje Quantas vezes, não hesitamos em contar como Classe Trabalhadora apenas pro critérios formais, não percebendo que práticas tantas há, no seio de segmentos entendidos como Classe Trabalhadora, que militam em sentido paradoxalmente inverso... acarretando graves desvios ético-políticos, numa afronta, por exemplo, à famosa Tese II, dirigida pelo Filósofo da Práxis a Feuerbnach, segundo a qual não é por palavras que se comprova a verdade, mas pelas práticas.

Ainda no terreno da análise de conjuntura, cumpre avaliar-se também quais devem ser as posições a serem priorizadas, como estratégias de resistência e de alternatividade, por parte das forças que se assumem como portadoras de um projeto alternativo.


É igualmente por força da Práxis, que nossas organizações de base e demais protagonistas de uma sociabilidade alternativa ao modelo hegemônico cuidam de exercitar-se na boa tecedura de relações, nos mais distintos campos da existência, tais como nas relações sociais de gênero, de etnia, de gerações, de natureza cósmica e socioambiental, etc.




Graças ao contínuo exercício da Práxis, é que tais forças portadoras de alternatividade conseguem pôr em marcha suas atividades axiais orientadas a fazerem a ponte entre passado0presente0futuro. Atividades que podem ser sintetizadas em três passos interconectados: sua proposta organizativa, seu investimento na formação contínua e seu compromisso de luta. É a adequada articulação desses três eixos de atuação, que esses protagonistas  vão potencializando sua força transformadora, de baixo para cima, de dentro para fora, em âmbito interno e entre si. Esse cuidado interconectivo não se faz a contento, sem que cada um desses três eixos busque consolidar sua contribuição específica. Isto ajuda a evitar decisões reducionistas, do tipo: “Não e preciso formação teórica: basta a formação exercitada no calor da luta”, ou do tipo: “É preciso, primeiro, garantir formação, para só depois partir para a luta”... Nem uma coisa nem outra, tomada separadamente. A eficácia e a fecundidade do esforço organizativo, do processo formativo e da militância na luta mais direta se entrelaçam constantemente, de modo que uma se faz presente na outra.  Por outro lado, cada uma precisa ser tomada e assumida em particular, conforme sua natureza de contribuição.

No âmbito do esforço organizativo, por exemplo, trata-se de exercitar continuamente, em cada Núcleo (célula, círculo, conselho, pequena comunidade... não importa o nome), se apenda e se exercite, dia após dia, a mostrar-se como é fundamental a assiduidade aos encontros e reuniões; como nestas, importa assegurar protagonismo a cada participante; como se deve partir das necessidades locais; como se deve evitar o mandonismo de um ou de um pequeno grupo; como as decisões devem ser fruto de ampla discussão interna; como as decisões precisam ser tomadas pela base e compartilhadas com outras instâncias, por meio dos delegados e delegadas fiéis em seus relatos, ao que foi decidido pelo coletivo; como é importante zelar pela autonomia financeira, partindo dos  próprios tostões, isto é, da contribuição assídua de cada membro, conforme suas possibilidades; como é importante zelar pela alternância dos membros de coordenação, de modo que, findo o prazo de gestão/coordenação, quem nela estava siga de volta para a base, e quem é da base, venha exercer função coordenativa; como é importante exercer vigilância em relação aos riscos de aliancismo, etc...
No campo especificamente formativo, bastem, por enquanto, as indicações acima compartilhadas, ainda que sabidamente insuficientes e provisórias. Ousaria apenas acrescentar que nunca é demais insistir sobre a necessidade e urgência de se consagrar a devida atenção a este eixo, superando de vez a tentação de subestimá-la, a pretexto de que ela já se faz presente nos espaços de luta e de mobilização. Eis um outro risco de reducionismo: pensar a prática requer ambiente e condições (de tempo, de sistematização, de sequência, de planejamento, de avaliação, etc.).

Quanto ao eixo relativo à mobilização, vale ressaltar tratar-se de uma culminância do processo, do momento mais explícito de exposição, desde que devidamente abastecido dos dois componentes precedentes (o organizativo e o formativo). Participar, por exemplo, de uma manifestação de massa comporta diferenças, se e quando antecedidas de um acúmulo organizativo e  formativo, ou se desprovido desses momentos. Daí resulta, por exemplo, uma atitude de maior ou menor compromisso de classe. Sem tal conexão, alguém que se limite a participar espontaneisticamente de uma grande manifestação, corre o risco de portar um cartaz, gritar uma palavra de ordem ou portar uma faixa, sem ter suficiente consciência do que está a fazer...
Elementos em vista de um Plano de atividades formativas
Ao buscar responder modestamente à reiterada cobrança que me tem sido feita por algumas lideranças e pela base de alguns movimentos e organizações, devo lembrar que felizmente já encontramos muita coisa boa elaborada e vivenciada, em algumas organizações e movimentos, que não se têm descuidado de nutrir suas bases e lideranças dos necessários componentes  organizativos, formativos e de luta. Com efeito, o Trabalho de Base já conta com uma lista apreciável de subsídios e textos relevantes, por parte de algumas organizações de referência. Por outro lado, em respeito inclusive ao referencial teórico de Educação Popular, aqui assumido, é fundamental não se tomar qualquer subsídio ou texto de Trabalho de Base (e de outros conteúdos e metodologias) como bastante em si mesmo, mas como um aperitivo, isto é, como uma primeira conversa ou reflexão provocativa, a partir da qual tantos outros fios existenciais das ricas experiências compartilhadas pelos protagonistas, vão sendo puxados e aprofundados criticamente., tomando distância, portanto, de qualquer pretensão de “receita”...  

Que elementos, então, tratamos de realçar, como alguns componentes de um Plano de Formação Contínua? Destaqyenis is segyubntes,

0 Objetivos:

Ensaiar passos embrionádios de uma proposta formativa contínua, com base nas características centrais da Educaçao Popular de matriz freireana, inspirada em bons clássicos e contemporâneos;

Dotar os participantes da proposta de condições propícias ao despertar e ao desenvolvimento de sua  potencialidades, partindo do reconhecimento de seus limites;

Assegurar a todos os participantes o exercício de seu protagonismo, em todos os momentos da proposta;

Instiagr os participantes a ensaiar passos concretos, desde o chão do seu dia-a-dia, em busca de uma formação omnilateral, isto é, comprometida com o desenvilvimento de todas as suas potencialidades (do campo da produção às relações sociais de gênero; do âmbito político às atividades artístico-culturais; da capacidade de leitura e reescrita da realidade ao exercício da mística revolucionária...)

- Traços de sua metodologia e de sua dinâmica:

Partir sempre da vivência do dia-a-dia compartilhada pelos participantes;

Entrelaçar, de modo orgânico, o estudo de cada conteúdo e os procedimetnos metodólgicos adotados;


Alternar, ce forma complementar, atividades realizadas em mutirão e tarefas pessoais, considerando cada tema trabalhado;

Exercitar um processo avaliativo cntínuo e propostivivo, isto é, focando mais nas potencialidades dos participanteses do que em seus limites;

Instigar os participantes o compromisso pratíco da crítica e da autocrítica;

Assegurar espaço pra o exercício da mística revolucionária, isto é, da capacidade de pôr em prática uma resistência proativa e , constantemente nutrida pela renovação dos compromissos de Classe e com a dignidade do Planeta e de toda a comunidade dos viventes.

- Aperitivio temático:

Desenvolvimento ou aprimoramento da capacidade perceptiva e autoperceptiva

Análise crítica da realidade social, a partir de instrumentos conceituais básicos, inspirados no referencial teórico adotado

Conceitos básicos do legaod de Marx

Exercíco de análise de conjuntura

História
A das lutas e dos movimentos sociais e das organizações de base


História da riqueza do Homem

Obras de referência de nossos clássicos e contemporâneos

Biografia de bons clássicos e contemporâneos



Oaknares 0- a gyerra dis escravis 0 Dpecui Freutas

Os Anjos de Canudos – Eduardo Hoornaert

A República Comunista Crtistã dos Guaranis – Clovis Lugon

SAs Ligas Camponesas (há v´rios autores a serem consultados)


A Elite do Atraso – Jessé Souza

O Ódio como Política – Esther Solano (ORg.)

Batismo de Sansgue – Frei Betto

Brasil Nunca Mais – James WWright

As Veias Abertas da América Latina – Eduardo Galeano



Considerações sinóticas

Como acima asinalado, ousamos compartilhar algumas linhas acerca de elementos relevantes a comporem uma proposta formativa contínua, com base na Educação Popular, numa  perspectiva freireana em diálogo com Marx e outros bons clássicos e contemporâneos – homens e mulheres. Estas linhas nos permitiram sublinhar elementos essenciais, componentes de uma proposta formativa contínua, a ser protagonizanada por nossas organizações de base, em especial  aqueles movimentos sociais que lidam com um projeto alternativo ao modelo vigente. Ao final , ousamos elencar alguns elementos que consideramos relevantes, na elaboração de um plano de atividades formativas, nesta perspectiva.
Olinda/João Pessoa, 13 de dezembro de 2018.