segunda-feira, 27 de novembro de 2017

EDUCAÇÃO POPULAR COMO PRÁXIS NAS PRÁTICAS PASTORAIS DA IGREJA CATÓLICA, NA ARQUIDIOCESE DA PARAÍBA (1966-1985): registros de memória acerca da sessão de exame de tese apresentada por Vanderlan Paulo de Oliveira Pereira, ao PPGE/UFPB, em 24/11/2017

EDUCAÇÃO POPULAR COMO PRÁXIS NAS PRÁTICAS PASTORAIS DA IGREJA CATÓLICA, NA ARQUIDIOCESE DA PARAÍBA (1966-1985): registros de memória acerca da sessão de exame de tese apresentada por Vanderlan Paulo de Oliveira Pereira, ao PPGE/UFPB, em 24/11/2017

Alder Júlio Ferreira Calado

A convite de Vanderlan Paulo de Oliveira Pereira, comparecemos, na sexta-feira p.p., à tarde, à Sala Multimídia do CCSA/UFPB, para a densa sessão de apresentação e avaliação de sua Tese de Doutorado, pelo Programa de Pós-graduação em Educação, da UFPB, sob a Orientação do Prof. Afonso Scocuglia, e com a avaliação dos membros da Banca Examinadora composta pelo Prof. Romero Venâncio Júnior (Filosofia, UFSE), Prof. Paulo Giovani Antonino Nunes (História, UFPB), Prof. Luiz Gonzaga Gonçalves (Educação/UFPB) e Severino Silva (Educação/UFPB).

De que trata a pesquisa realizada por Vanderlan Paulo de Oliveira Pereira? Cuida de apontar e de analisar de que modo a Educação Popular se acha presente nas práticas pastorais da Arquidiocese da Paraíba (é o nome oficial da Arquidiocese sediada em João Pessoa - PB), no período compreendido entre 1966 e 1985. O início deste período coincide com a chegada à Arquidiocese da Paraíba, para assumir suas funções de arcebispo, de Dom José Maria Pires (1966-1995), enquanto o ano de 1985 marca o final do período da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). Sua pesquisa versa, portanto, sobre o que se passou, neste período, na citada Arquidiocese, no tocante a práticas pastorais portadoras, de alguma maneira, de Educação Popular, não apenas no que concerne a práticas efetivas, como também em relação à visão de Educação Popular então circulante, na área e no período estudados.

Com o propósito de compartilhar com muita gente desejosa de uma notícia sobre o trabalho apresentado por Vanderlan, empenho-me a seguir, em fazer, de memória (falha!), registros do que me foi possível entender, de imediato.

O tema da tese é algo recorrente, na trajetória do autor. Desde sua graduação (História), tem perseguido temas semelhantes. Desta vez, escolheu focar a Educação Popular como práxis da dinâmica pastoral da Igreja Católica, na Arquidiocese da Paraíba, durante o período da ditadura civil-militar. A partir de 1966, apenas um ano após o encerramento do Concílio Vaticano II (1962-1965), começou a pairar, com crescente força, um espírito de renovação pastoral. O novo arcebispo, que havia participado de todas as sessões conciliares, empenhava-se em fazer ressoar, junto aos fiéis de então, as conclusões do Vaticano II. Cercou-se, para tanto, de uma equipe de assessores e assessoras de reconhecido compromisso social e competência técnica. Entre tais figuras, constam nomes de leigos e leigas (Dona Anunciada, Isaac, Genaro e Gláucia Ieno, apenas para mencionar 4 nomes), de religiosos (Frei Hermano, Frei Anastácio, Padre Carlos Avanzi, Dario Vaona…) e religiosas (Irmã Agostinha, Irmã Almeidinha, Irmã Marlene, Irmã Tonny, Irmã Diane...), bem como de padres (Padre Everaldo Peixoto, Padre Alfredinho Barbosa, Padre José Comblin, Padre João Maria Cauchi, Padre Luiz Couto…), além de figuras tais como Vanderlei Caixe, dentre tantas outras. Tratava-se de agentes de pastoral envolvidos na animação de densas experiências pastorais, inspiradas no espírito de renovação pastoral, não apenas do Vaticano II, mas sobretudo no espírito da Conferência Episcopal de Medellín (1968):

  • Igreja Viva, fecunda iniciativa de evangelização espalhada por várias comunidades rurais e urbanas da Arquidiocese, nas quais os círculos bíblicos constituíam uma valiosa forma de trabalho organizativo e formativo, em mutirão;
  • - Equipe de Promoção Humana, a desenvolver atividades de solidariedade às vítimas de opressão;
  • - Pastoral da Mulher: com ousadas iniciativas de apoio e promoção humana, junto às vítimas de prostituição;
  • - Pastoral da Terra (aqui funcionando, como no âmbito do Nordeste II, como Pastoral Rural): até hoje, uma das mais combativas e comprometidas equipes de acompanhamento e solidariedade aos trabalhadores e trabalhadoras do campo;
  • - Centro de Defesa de Direitos Humanos: uma das marcas fortes da atuação pastoral da Arquidiocese da Paraíba, com repercussão em várias outras dioceses do Regional Nordeste II (inclusive na Diocese de Pesqueira - PE);
  • - as Pequenas Comunidades de Religiosas Inseridas no Meio Popular - as PCIs, talvez a presença mais enraizante junto ao povo dos pobres, com reconhecida incidência missionária e educativa, na perspectiva da Educação Popular;
  • - o Seminário Rural (1981-1982), seguido pelo Centro de Formação Missionária - CFM, em Serra Redonda (várias outras experiências de inspiração na pedagogia comblinina tiveram lugar, após o período estudado)... Importa ter presente que estas são apenas algumas ilustrações de experiências pastorais e missionárias de grande alcance também no terreno da Educação Popular, neste período e para além dele.

O propósito da pesquisa foi o de indicar, nessas experiências qual a Educação Popular subjacente. E o resultado é alvissareiro, pelo menos com relação à Educação Popular, de referÊncia Freireana. Pelo autor foram apontados diversos sinais de uma práxis de Educação Popular. Tratava-se, em grande medida, de práticas e concepções pastorais vividas sob a égide da horizontalidade dos participantes: não havia lugar para o mandonismo, para as imposições hierárquicas; antes, apostava-se no diálogo entre irmãos e irmãs. Não era à-toa que as comunidades costumavam reunir-se em forma de círculos.

Outro aspecto a ressaltar, na forma de organização e de formação de tais experiências, prende-se ao reconhecido grau de compromisso dos participantes com a causa libertadora dos empobrecidos, bem como o enraizamento no tecido comunitário de atuar, especialmente em tempos de cruel perseguição de não poucos desses agentes, pelo regime ditatorial.

Tratou-se de um período enormemente fecundo, mesmo numa conjuntura tenebrosa, chamando a atenção pelos bons frutos formativos então recolhidos. A essas práticas pastorais estava vinculada uma práxis educativa libertadora, numa perspectiva freireana, caracterizada pela horizontalidade dos participantes, pela tomada de decisões de baixo para cima, pelo protagonismo do conjunto de participantes, pelo compromisso com a causa dos oprimidos, pela mística revolucionária, pela forte ação comunitária, entre outras marcas.

Vários pontos de avaliação do trabalho foram compartilhados por cada um dos Examinadores e pelo Orientador. Aqui destacamos apenas o seguintes:
- Trata-se de uma pesquisa que encerra densa contribuição a ser compartilhada, para além da Academia;
- O Autor analisa com base num referencial teórico, conjugando autores de referência da Educação Popular com autores de referência no campo da História;
- Recorre a diversos instrumentos de pesquisa, inclusive fotografias especiais e entrevistas com agentes de Pastoral e outros, de reconhecido conhecimento e contribuição;
- Sugeriu-se, ao final, a organização de um seminário com um público mais amplo, para aprofundar o debate trazido pelo autor.

João Pessoa, 27 de Novembro de 2017.       



terça-feira, 21 de novembro de 2017

TODO UM MUNDO A REFAZER! QUE TAL A PARTIR DE NÓS, COM PASSOS MOLECULARES?

TODO UM MUNDO A REFAZER! QUE TAL A PARTIR DE NÓS, COM PASSOS MOLECULARES?

Alder Júlio Ferreira Calado

De tanto "dar murro em ponta de faca", acabamos aprendendo vias alternativas de lidar, com relativa eficácia, com os desafios que se nos interpõem, no percurso existencial. Dialogando e aprendendo com a longa experiência humana de caminhada multissecular, compartilhando ensinamentos de nossos bons clássicos - mulheres e homens -, vamos descobrindo veredas alternativas por onde seguir empreendendo nossa caminhada. Nas linhas que seguem, destaco um desses tantos aprendizados: o de nos dotarmos de instrumentos mais aprimorados de lidar com o sistema de morte - o modo de produção capitalista - que nos rodeia... e que também acaba alojando-se, sob vários aspectos, em nós próprios, sem que nos demos conta objetivamente. Mesmo dizendo combatê-lo, acabamos, não raramente, por ele fascinados, sob tantos aspectos. Destaquemos, de passagem, alguns desses aspectos da múltipla influência que o Capitalismo exerce em nosso dia-a-dia, seja do ponto de vista de sua macropolítica, seja - o que é pior - do ponto de vista de seus valores necrófilos.

Efeitos ilustrativos da necrófila influência macropolítica sobre nosso dia-a-dia...

Tardios e contumazes em nossos hábitos, não levamos a sério os inconfundíveis sinais que o modo de produção, o modo de consumo e o modo de gestão societal capitalista tem sobre nós. Mesmo conscientes - como parte expressiva da esquerda dos anos 60, por exemplo, da orgânica relação entre Mercado capitalista e Estado, nunca fomos suficientemente capazes de romper, NA PRÁTICA, com nossa enganosa aposta em que, desde que entrando em sua engrenagem, saberíamos, não apenas neutralizar, mas revertê-la em proveito das classes populares, convictos de que, acessando suas entranhas, seríamos capazes de controlá-las, em benefício do conjunto dos cidadãos e cidadãs, em especial dos desvalidos.... Ledo engano! Isto não quer dizer que a empreitada não tivesse surtido alguns efeitos positivos. Não nos cansamos de reconhecer um leque de conquistas arrancadas, nos governos que François Houtart chama, com propriedade, de "pós-neoliberais". Não há negar conquistas em várias políticas sociais. O grande problema desponta, quando minimamente analisamos tais conquistas, comparando-as com as benesses extravagantes concedidas ao grande capital. Ao ousarmos tal comparação, verificamos que as tais conquistas favoráveis às camadas populares mais vulneráveis representam migalhas do bolo orçamentário. E, pior, obtidas por vias ético-políticas claramente reprováveis: desbragado aliancismo com toda sorte de partido e de figuras explicitamente comprometidas com os interesses mais espúrios, inclusive, tendo-os como companheiros de chapa, e recorrendo a estratégias que sempre repudiamos e combatemos abertamente, pela sua perversão ética. Os frutos dessa trágica escolha restam sobejamente conhecidos e amargados...

Refrescando nossa memória dos anos 60 e 70, o quê dizíamos sobre os mesmos descaminhos que acabamos inadvertidamente assumindo? Apoiados em bons clássicos, companheiros de nosso processo formativo - vêm-me à lembrança textos mimeografados que traballhávamos em nossas reuniões de JOC, AP, a poucos dias da decretação do famigerado AI-5 -, tomávamos consciência da natureza do Estado, de sua radical incompatibilidade com os interesses fundamentais de uma sociedade alternativa. E os exemplos eram convincentes, a ponto de nutrirmos uma entranhada desconfiança quanto aos profundos riscos de concentrar o melhor de nossas energias transformadoras nas instâncias estatais. Influenciados cada vez mais pela sedução dos "atalhos eleitoreiros", fomos progressivamente cedendo terreno, até dedicar o melhor de nossas energias criativas (in)justamente nas instâncias governamentais...

E hoje, meio século depois, com que cenário nos deparamos? Destaquemos apenas alguns de seus aspectos mais relevantes, para fins de ilustração didática. E o fazemos, mediante uma sequência de questionamentos:

= Sem ignorar significativas alterações conjunturais, ao longo desses últimos cinquenta anos, teria o Estado capitalista passado por mudanças profundas, no tocante ao seu lugar relevante (ao lado do Mercado), no modo de produção capitalista, a ponto de desautorizar o essencial de seu papel, tal qual avaliado, nos anos 60?

= Neste transcurso de meio século, que políticas governamentais relevantes foram implementadas, não apenas sem o aval do Mercado, mas sobretudo contra seus interesses de classe?

= No tocante a ganhos obtidos para expressivas parcelas das camadas populares, tratou-se de conquistas efetivas, obtidas graças às lutas dos movimentos populares e das organizações de base de nossa sociedade, ou, antes, a estratégias de enormes concessões ao grande capital, especialmente ao seu segmento mais socialmente parasitário?

= Tomemos alguns casos concretos, relativos às políticas estatais consideradas socialmente mais representativas dos interesses e prioridades das classes populares, o que concretamente se passou?

= Por exemplo, na área da saúde, a despeito de órgãos estatais específicos, quem de fato concebe, impõe que o Estado implemente, e, além disto, acaba controlando? As grandes corporações transnacionais operando nas mais diversas áreas da saúde!

= Tendo presente o interesse que move os negócios no campo da saúde, o que daí se pode esperar, em termos de efetivo cuidado da saúde popular?

= Entre auferir abusivas margens de lucro e beneficiar a saúde pública, há alguma dúvida sobre a escolha feita pelas grandes transnacionais atuando na área da saúde?

= Em última instância ao lado de quem - do grande capital ou da saúde popular - se coloca o Estado a serviço, por meio de suas instâncias competentes?

= Por que razão as terapias naturalista, quando não rejeitadas sumariamente, enfrentam tanta resistência, seja por parte do Mercado, seja por parte do Estado, para serem exercitadas?  

= Fundamentalmente, de que cuidam os serviços de saúde sobre o controle do Mercado e do Estado: da saúde ou de doenças?

As perguntas poderíamos multiplicar à saciedade…

Acrescentemos mais um exemplo ilustrativo, o da Educação.Também aqui, vale a pena perguntar:

= Será um acaso a crescente atuação das grandes corporações transnacionais no sistema de ensino, especialmente do Ensino Superior?

= Da Educação Infantil à Pós-Graduação, sob crescente influência do Mercado Capitalista, o que cabe ao Estado, senão controlar o sistema educativo na perspectiva do sistema imperante?

= Quem, senão as forças sociais grávidas de alternatividade, é capaz de assegurar um processo formativo contínuo, em busca de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal?  

Efeitos ilustrativos da necrófila influência nos micro-espaços do nosso dia-a-dia  

Nunca antes como nos tempos atuais, um modo de produção alcançou tal nível de globalização como o Capitalismo. Isto, é claro, tem consequências profundas, a começar pela inédita extensão de sua ação material e imaterial. Há que se entendê-lo como uma totalidade, a envolver todas as esferas da realidade, em escala global, ainda que de modo diferenciado, conforme a aplicação de sua dinâmica em distintas regiões. Nesse sentido, não basta reconhecer apenas a complexidade e a extensão de o alcance macropolítico de sua economia, mas igualmente - e talvez ainda com mais intensidade - de sua ação imaterial, de sua grade de valores. Em se tratando de um sistema complexo, sua própria base material se consolida, graças à sua capacidade de criar toda sorte de necessidades, inclusive e sobretudo as que se destinam a satisfazer o mundo dos sonhos e fantasias, mola-mestra do império do consumismo. Neste terreno, defrontamo-nos, mais do que com um modo de produção, deparamo-nos com um sofisticado modo de consumo, complementado por um modo de gestão societal. É no domínio do consumo, que inserimos nossas mais fortes inquietações com relação à gigantesca influência que este sistema exerce, não apenas sobre os setores menos conscientes da sociedade: também sobre amplas parcelas de nossas organizações de base. E isto é fatal para nossas pretensões de construção de condições indutoras de uma nova sociedade, alternativa à barbárie capitalista. A seguir, compartilhamos, em forma de questionamento, algumas de nossas inquietações.

Em torno da força e o fascínio da grade de valores capitalistas sobre nossas subjetividades

= A relacionalidade (o gostoso hábito da convivência fraterna, cf. por ex., o expresso no Sl 133) constitui a mais fecunda via de lidarmos com nossa condição humana de seres limitados, inacabados, inclusive no que se refere à avidez de poder, individualismo, imposição de decisões e práticas correlatas. Cercados de inúmeros apelos cotidianos, pela mídia, pela propaganda, pelas redes sociais, etc., de consumismo, das sedutoras chamadas de idolatria do ter, do poder, do prestígio... até que ponto nos damos conta do quanto ingerimos, incorporamos e reproduzimos desses valores, objetivamente?

= Eu/nós criticamos, com razão, os hábitos alimentares hegemônicos. Mas, de quê mesmo nos alimentamos, no dia-a-dia?

= Combatemos, com veemência - e isto é praxe em tantos ambientes: laborais, acadêmicos, sindicais, populares, eclesiais... - as atitudes antidemocráticas (decisões de cúpula, apropriação/privatização de bens e espaços públicos, continuísmo à frente de cargos e funções, etc. -, mas, será que eu/nós mesmos damos testemunho convincente disto?
Reconhecemos constituir sério desafio, mesmo para quem se empenha em combater o Capitalismo, eximir-se dos graves riscos de sucumbir aos seus apelos sedutores.


=  A tendência a naturalização da introjeção de valores necrófilos, no chão do dia-a-dia constitui um fato frequente. Quantas vezes, não nos sentimos tentados, diante de tantos contra testemunhos, a “jogar a toalha”, a deixar para lá, acomodamo-nos - ou, o que é pior: naturalizamos - a situação em voga?

É possível resistir e contrapor a esta onda necrófila ações moleculares alternativas?

Consola-nos, porém, saber que há quem não se deixe sucumbir a tal naturalização. Há quem se indigne diante da normose coletiva e individual, que nos acovarda e imobiliza frente à crescente tendência à burocratização da vida. Nas “correntezas subterrâneas”, respiramos ares alternativos, que nos encorajam a romper a síndrome da normose que ameaça imperar até em pessoas e grupos de relativa consciência social. Há, sim, pessoas e grupos que, a despeito, de suas limitações, buscam uma convivência alternativa, no que está ao seu alcance, investindo num projeto de vida em plenitude, isto é, com Liberdade. Todos somos chamados à Liberdade, mas constatamos, com tristeza, que há quem resista a este chamado. Em certo sentido, aqui e ali, todos podemos experimentar tal inclinação, mas a ela podemos resistir, a partir de passos moleculares, na busca da Liberdade. Em boa medida, isto depende de nós. Qual será nossa escolha?

João Pessoa, 21 de novembro de 2017.       

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

A VIDA COMO UM CONTÍNUO MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO: considerações em torno de “o voo da águia”

A VIDA COMO UM CONTÍNUO MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO: considerações em torno de “o voo da águia”

Alder Júlio Ferreira Calado

Pela segunda vez, em menos de sessenta dias, foi-me dada a oportunidade de participar da reflexão em torno de uma conhecida narrativa - “o voo da águia”.

Estima-se em cerca de 70 anos a longevidade da águia. Tal longevidade, porém, não lhe vem gratuitamente. A certa altura da vida em razão de fatores altamente limitantes, ela tem que tomar uma decisão crucial: ou não mais suportando seus próprios limites, aceita morrer; ou, desejosa de prolongar, por mais trinta anos sua vida, toma a difícil decisão de renovar-se. No primeiro caso, ao atingir 40 anos, vários fatores limitam, de forma comprometedora, seu movimento. Seu bico envergado já não lhe permite capturar facilmente suas presas. Suas garras, por outro lado, exageradamente crescidas e deformadas, já não ajudam seus movimentos de captura das presas. Suas asas, igualmente, resultam envelhecidas e demasiado pesadas para seu voo habitual. Ou se acomoda, resignadamente a tais limites definitivos, ou ousa sobreviver a tais limites, devendo para tanto renovar-se, cumprindo, no mais alto de uma montanha, um longo período de 5 meses, nesse processo de renovação.  

Para isto, a águia bate o bico envelhecido contra o rochedo, até arrancá-lo de todo. Ao ganhar um novo bico, cuida também aparar suas garras, refazendo-as aptas à sua ação de captura das presas. Por fim, aplica-se em fazer o mesmo com suas asas. Está pronta a realçar voo, por mais trinta anos, tendo a seu favor condições propícias para ampliar significativamente as chances de uma vida com qualidade.

A narrativa, tal qual uma obra de arte, permite distintas leituras. De minha parte, cuidei de extrair lições para mim mesmo, evidentemente naquilo que me cabe, pois entendo a vida, antes de tudo, como um dom de Deus, razão por que não me pertence conjecturar sobre a duração, por exemplo. Há, contudo, aspectos de minha vida em relação aos quais tenho condições de decidir. Um deles tem a ver com buscar aprimorar, dia após dia, a qualidade do (con)viver, naquilo que está ao meu alcance. É o que tento explicitar a seguir, partindo de três dimensões focadas pela narrativa: quanto ao bico, quanto às garras e quanto às asas. Pela narrativa, aprendemos o que representaram estas três dimensões, tomadas pela águia como partes-alvo de seu processo de renovação. E para o bicho humano, o que poderiam significar essas mesmas partes-alvo do processo de renovação?

Comecemos pelas asas: o que significariam as asas? Podemos tomá-las como representando nossos sonhos, nosso horizonte, nosso rumo. Uma pergunta útil, nesse sentido, poderia ser: para onde mesmo estou marchando? Mais uma vez, vem-me ao espírito o famoso dito da personagem José Dolores, do filme "Queimada": "É melhor saber para onde ir, sem saber como, do que saber como e não saber para onde ir." Quantas vezes, em nosso (co)existir, nos flagramos perdidos! Nossa agenda repleta de afazeres, mil atividades, ao ponto de termos dificuldade em administrá-la. E, no entanto, quando nos damos ao trabalho de avaliar os frutos desse ativismo, sobrevém-nos uma grande frustração: quando exprememos a laranja do ativismo, sai pouco suco... O que estamos mesmo querendo? Nossa agenda é definida, dia após dia, em cima de que critérios? Trata-se, em sua maioria, de critérios consistentes, do ponto de vista de seu alcance PÚBLICO ou, ao contrário, de atividades, em grande parte, vazias de conteúdo libertador? Atividades apenas para "encher tempo", em relação às quais, caso deixem de ser realizadas, delas não se sentirá falta? O que fica mesmo do que andamos fazendo? De nossa agenda, o que, de fato, soa essencial, do ponto de vista de seu alcance PÚBLICO, isto é, a serviço de causas reconhecidamente libertárias? E o que não é compatível com o horizonte libertário, que confesso ser o meu? O que posso e devo fazer, para aprimorar minha agenda, nesse sentido?

Em relação às "asas", eis uma hipótese do que se pode depreender para o bicho humano.

Com relação ao que corresponde ao bico da águia, que ensinamentos é possível extrair, em relação aos humanos. Também aqui, abrem-se múltiplas possibilidades. Uma delas pode ser assim expressa: de que ando me nutrindo, material e espiritualmente? Nutrição, inclusive, em sentido figurado. Sem desconsiderar hábitos alimentares e elementos correlatos (autodisciplina em matéria de regularidade, horário, quantidade, qualidade...), cumpre atentar igualmente para os nutrientes do espírito. O modo como se desenha minha rotina comporta o cuidado com o que ando aprendendo e tentando pôr em prática? Que tempo dedico, em minha agenda, a (re)visitar aspectos relevantes do imenso acervo cultural da humanidade, em distintos tempos e lugares? Sinto-me concernido pelas lutas, pelas conquistas, pelas dores e pelas esperanças da humanidade, de ontem, de hoje, vislumbrando as de amanhã? Que lugar reservo aos bons clássicos, em distintos campos de saberes- na literatura (quantos romances marcantes!), na história, nas artes, nas invenções, nas experiências com o Sagrado, na relação com o Cosmo...

Que tempo e esforço dedico para aprofundar meu conhecimento e minha sensibilidade pelas figuras humanas e pelas coisas de minha região, nas mais diversas áreas de saberes? Empenho-me em aprofundar, dia após dia, meu sentir, meu pensar, meu querer, meu agir, no tocante a um vastíssimo acervo cultural de minha região, de nossas lutas de ontem e de hoje, de tantas conquistas significativas, e também de páginas tristes, para delas extrair lições?

Com relação às "garras", reportamo-nos, em especial, à nossa postura na arte do (con)viver, na busca de nutrientes materiais e imateriais, na arte de bem escolher e tomar decisões. Cuidamos de trazer presentes os meios, os instrumentos ("garras") por meio dos quais cuidamos de tocar nossa existência, conforme o rumo que confessamos ser o nosso.

Costumo recorrer a meios e instrumentos, não apenas apropriados, mas também compatíveis com os fins que persigo? Numa avaliação da maior ou menor eficácia dos meios utilizados, quais os frutos recolhidos dessas experiências?  Qual tem sido minha postura habitual de fazer estrada com pessoas e grupos, participantes da mesma ou semelhante empreitada? Trata-se de uma postura de diálogo ou de de sutil ou explícita imposição?   

Eis alguns questionamentos que me faço e compartilho, na tentativa de recolher ensinamentos da narrativa sobre o “voo da águia”.  

João Pessoa, 17 de novembro de 2017

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

DOS ASTUCIOSOS APELOS IDOLÁTRICOS DO MERCADO CAPITALISTA: incidência na política de mineração

DOS ASTUCIOSOS APELOS IDOLÁTRICOS DO MERCADO CAPITALISTA: incidência na política de mineração


Alder Júlio Ferreira Calado

Impactam-nos sempre mais as astúcias de Mamon, deus do atual modelo de organização societal. Não raramente, tem-se apresentado (quase) invencível, em seu poder de sedução, de modo a fazer sucumbir até não poucos de seus próprios críticos, à semelhança do alerta evangélico acerca da astúcia dos falsos profetas (cf. Mc 13, 22). Tão logo baixem a guarda e se distraiam, acabam, também eles, inebriados pelo seu multiforme poder de sedução... Assim se comporta o Mercado capitalista: capaz de fazer passar, aos olhos dos incautos, os mais torpes projetos como "a" grande saída para os impasses societais e a infame degradação do Planeta. Se é verdade que este modo de produção, este modo de consumo e este modo de organização societal assim se tem portado, ao longo de sua trajetória histórica, também é certo que seu poder de fogo não cessa de aprimorar-se, neste domínio, chegando ao auge em tempos de crises mais agudas do Capitalismo. Assim vem sendo, nas mais diversas atividades, alcançando praticamente todas as esferas da realidade, para muito além da economia.

Um dos segredos-chave de seu enorme poder de fascínio sobre multidões consiste em sua inexcedível capacidade de criar necessidades materiais e imateriais, exacerbando "ad infinitum" a avidez de consumo de pessoas e grupos. O consumismo constitui uma de suas metas irrenunciáveis, ao ponto de promover a confusão entre cidadania e capacidade de consumo desmedido, bem ao gosto do próprio Mercado capitalista. Eis por que já não se afigura bastante lutar-se apenas por um novo modo de produção, devendo-se conectar também a luta por um novo modo de consumo e por um novo modo de gestão societal. Não é por acaso, que "a propaganda é a alma do negócio"... Pense-se, por exemplo, no profundo alcance de convencimento da publicidade, em tempos de campanhas eleitorais - só para ficarmos neste exemplo. Por que têm sido aí despejadas acintosas e crescentes somas de dinheiro, nesses processos eleitorais, e, pior, com tanto sucesso?

Neste e em uma infinidade de retalhos da vida cotidiana, (quase) tudo se acha atravessado pelo fetiche da mercadoria  (ver, a este respeito, a reflexão oferecida pelo filósofo Juan José Bautista: https://www.youtube.com/watch?v=avmjOh-VIyI). Tudo vira mercadoria, inclusive os humanos, isto nos remete à famosa lenda do rei midas, que, ao tocar, tudo se transformava em ouro. O que pertence ao Bem Comum da humanidade: as terras, as águas, o ar, as matas, as florestas, as fontes de água, os aquíferos, os rios, os oceanos... as pessoas, as relações sociais... tudo vira mercadoria, objeto de lucro, à medida que se transforma em bens de troca. Como isto não prosperaria tão facilmente, caso fosse divulgado, em sua crueza, trata-se de esconder todo tipo de falcatrua nele subjacente - exploração, dominação, marginalização, toda sorte de violência, agressão, etc., tudo se reveste de uma aparência "natural", inconfundível, característica da "ordem natural das coisas"... E assim vai-se perpetuando como "normal" toda sorte de desigualdade e agressão contra os humanos e a Mãe-Natureza. No caso dos sucessivos projetos de entrega do vasto patrimônio nacional, pelo governo Temer, à sanha das transnacionais, a palavra mágica, astuciosamente, e de forma abusiva, empregada pelos vendilhões da pátria, é “modernizar”, ainda que, na prática, isto implique retrocesso ao regime de escravidão.

O alvo destas linhas restringe-se ao caso da política de mineração, sendo relevante lembrar que a mesma lógica se aplica, "mutatis mutandis", a uma vasta pauta de projetos de leis em tramitação, no Congresso. Com efeito, tal lógica perpassa as impropriamente chamadas "reformas" - na verdade, desmantelamento do pouco que resta de política pública, em especial na gestão Temer. Com relação, portanto, à política de mineração, ora atacada em função das gestões para alterar-se o código de mineração, trata-se, também aqui, de potenciar, de modo esdrúxulo, os ganhos e o controle pelo grande capital de extensas áreas do território nacional e de bens preciosos, em prejuízo da natureza e de vastos segmentos da população brasileira (povos originários, povos das águas, das florestas, comunidades quilombolas, etc.), fazendo retroceder o Brasil a uma condição de colônia. Isto é “modernizar”!

Para melhor ilustrar os graves riscos e ameaças em jogo, representados pelas Medidas Provisórias 789, 790 e 791, ora em tramitação no congresso, permitam-me recomendar, com insistência, que confiram um documentário bastante significativo do que está em jogo:





Tal como em recentes ”reformas” - na verdade, retrocessos -, a exemplo do Código Florestal, agora se investe, com avidez, no desmantelamento da política de mineração, sempre buscando privilegiar as grandes empresas de mineração, à custa da perversa degradação sócio-ambiental e dos mais elementares direitos de amplos segmentos da população brasileiras. Tendo em vista o perfil sobejamente entreguista das duas casas legislativas da União, e considerando o atual imobilismo de nossas organizações de base, não é difícil prever o pior desfecho, até porque as grandes empresas mineradoras, assim como as grandes empreiteiras, são grandes financiadoras de campanhas eleitorais. Todo cuidado é pouco! Temos que acompanhar mais de perto mais uma investida necrófila dos vendilhões da pátria.

João Pessoa, 15 de novembro de 2017.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

REMEMORAÇÃO RETROPROSPECTIVA DE UM MOVIMENTO POPULAR A CAMINHO DE SEUS 50 ANOS
 

Alder Júlio Ferreira Calado

Ontem como hoje, os movimentos sociais populares continuam sendo o principal segmento da sociedade civil responsável, juntamente com outras organizações de base, pelas mudanças sociais mais relevantes. Trata-se de um amplo leque de movimentos sociais, caracterizados por suas respectivas bandeiras de luta. São movimentos sociais, sindicais e populares (sem esquecer dos sindicatos patronais...) do campo e da cidade, protagonistas de uma extensa diversidade de lutas sociais que, didaticamente, podemos classificar por meio de certas categorias:
- Classe:
Nesta categoria, cuidamos de distinguir entre organizações  e movimentos da sociedade civil que atuam em direção oposta: os que lutam para preservar e ampliar seus interesses de classe dominante, de um lado; e, de outro, aqueles movimentos sociais, sindicais e populares, que lutam para mudar as relações hegemônicas vigentes. Tomamos o cuidado, todavia, de distinguir, mesmo no âmbito dos que também se chamam movimentos populares, entre os que se empenham em defender e promover apenas suas respectivas bandeiras de luta (terra, moradia, aumento salarial, etc.) e os que, também fazendo isto, priorizam os interesses da Classe Trabalhadora, entendida como composta por todos-os-que-vivem-do-seu-trabalho”. Neste sentido, nem todo movimento popular se caracteriza como um movimento classista.

- Espacialidade: aqui situamos os movimentos sociais populares do campo e o das cidades, a lidarem, cada qual, com suas bandeiras específicas;
- Gênero: são movimentos diversos a propugnarem pela igualdade nas relações sociais de gênero. A despeito do registro da existência de alguns grupos ou movimentos protagonizados por homens, trata-se, em sua enorme maioria de movimentos sociais femininos e feministas, a lutarem contra uma tendência crescente de crimes e violências contra a condição feminina, oscilando de feminicídios  a estupros, agressões múltiplas, discriminações, flagrantes desigualdades sociais (nas relações de trabalho, na percepção salarial, nas estatísticas de desemprego...);
- Etnia: aqui nos voltamos para aqueles movimentos sociais populares protagonistas de causas de natureza étnica: desde os povos originários vitimas das formas mais perversas de colonização e de neocolonialismo, a desrespeitarem gravemente seus direitos mais elementares (sua cultura, seus territórios, suas crenças, seu tipo de organização...) às comunidades quilombolas, vítimas como os povos originários, de semelhantes mazelas históricas, ainda passando por outros povos tradicionais, das florestas, das águas, pescadores, ribeirinhos, etc.
- Geração: alcançam os vários segmentos populares, a partir de suas características etárias, tais como o Movimento das Crianças e Adolescentes  (MAC), os vários movimentos estudantis, outros mais protagonistas do mundo das artes e da Cultura, e até alguns segmentos de pessoas idosas.
Além destas categorias, devem ser lembrados muitos movimentos populares que se organizam a partir de motivações específicas, ligadas às mais diversas Políticas Públicas.

Dentre tantos movimentos populares, aqui tratamos, de passagem, apenas de um deles: O quase cinquentenário Movimento das Comunidades Populares (MCP), organizado em vários Estados e Regiões do Brasil, e, durante essas décadas, assumindo distintos nomes, conforme a conjuntura sócio-política apresentada.
O MCP é sucedâneo da JAC (Juventude Agraria Católica), uma das cinco expressões da chamada Ação Católica Especializada, voltada para a ação cidadã de jovens cristãos católicos, ligados ora ao meio estudantil (JEC), ora mais associados à Classe Média (JIC), ora ao meio universitário, (JUC) que, em resistência à Ditadura Civil-Militar, acabou desembocando na formação da Ação Popular, juntamente com outros segmentos de esquerda), ora ao meio operário (JOC, que constituiu a expressão mais relevante da Ação Católica Especializada), ora protagonistas da causa camponesa (JAC).
É na JAC que tem origem o MCP. Tendo em vista a crescente onda de violência e repressão movidas contra as organizações de resistência popular, os vários segmentos da Ação Católica Especializada passaram a ser vítimas de crescente perseguição, inclusive de desbaratamento por parte da Ditadura, razão pela qual seus sobreviventes passam a atuar pela sigla MER (Movimento de Evangelização Rural). Estamos nos anos 70. Tempos tenebrosos, de uma correlação de forças profundamente desigual. As organizações de resistência à Ditadura Civil-Militar, em seu período mais violento, enfrentam desafios acima de suas forças: passam a ser, uma após outra, dizimadas, sob vários aspectos. É aí que começam a ganhar força os espaços eclesiais, graças, não apenas a uma geração de bispos profetas (Dom Helder, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Ivo Lorscheiter, Dom Antônio Batista Fragoso, Dom José Maria Pires – para destacar apenas estes, de um elenco mais amplo), mas também à atuação cidadã de alguns segmentos eclesiais progressistas (as CEBs, o CIMI, a CPT, a ACR, o MER, a CPO, as Comissões de Justiça e Paz,  as PCIs, os CDDHs, o CEBI, entre outros, e teologicamente bem fundamentados na Teologia da Libertação (sobre tais segmentos, já tivemos oportunidade de refletir, algumas vezes (cf. textos de alder calado).  Graças aos compromissos assumidos, desde o Pacto das Catacumbas (1965), e fortalecidos pela Conferência Episcopal Latino-Americana de Medellín (1968), esses segmentos eclesiais passaram a ser o principal vetor de resistência ao regime ditatorial, permitindo o acolhimento em seus núcleos de muitos sobreviventes à perseguição crescente movida pelo regime imperante.

O MER constitui, por conseguinte, um desses segmentos de resistência que, pela sua radicalidade, veio a enfrentar, não raramente, algumas dificuldades em seu relacionamento com a hierarquia. Por esta razão e por outros fatores conjunturais, o MER houve por bem assumir outros nomes, conforme a tendência da conjuntura. De MER passou um tempo assumindo-se como uma corrente sindical de trabalhadores independentes (CTI), enquanto tempos depois, optou por atuar como um movimento de comissões de lutas (MCL), até desaguar, nos anos 2000, assumindo-se como Movimento das Comunidades Populares.

Relevante assinalar, na cinquentenária trajetória do MCP, alguns traços que tem conseguido guardar, através de distintas conjunturas:
- mantém-se enraizado nos mais diversos ambientes e lutas populares, no campo e na cidade. Marca decisiva para qualquer organização que se pretenda comprometida com as causas libertárias de construção de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal, mantendo-se leal, não apenas ao rumo aonde busca chegar, como também às veredas compatíveis com tal rumo;
- tem buscado manter-se autônomo, quer em relação ao Mercado, quer em relação às instâncias governamentais;
- sua meta de autonomia não se esgota em decisões formais: trata de optar por caminhos concretos que viabilizem seu desiderato: seja pelas vias da automanutenção, viabilizada pelos tostões em caixa-comum, para financiar suas atividades;
- mantendo, a duras custas, seu periódico formativo e informativo, “Jornal A Voz das Comunidades”, fazendo questão de fazê-lo chegar às mãos de seus membros, não apenas como instrumento informativo, mas sobretudo como ferramenta de formação contínua;
- fomentando atividades de visitas, reuniões, encontros, atos de mobilização, nos distintos setores em que se acha organizado (de modo a abranger, entre outros, Juventude, Cultura, Saúde, Moradia, experiências agroecológicas, Artes, trabalhos coletivos, mutirões, etc., etc.);
- tem mantido a realização de seus Encontros (municipais, estaduais, nacionais), durante os quais cuida de examinar a conjuntura e daí extrair um plano de lutas, com ampla participação de seus membros...

Sob esse clima, é que se deu a realização do mais recente Encontro do MCP, na Paraíba, realizado em sua sede, em Santa Rita – PB, no Alto das Populares, sobre o qual cuido, a seguir, de fornecer uma breve notícia.

Tratou-se de um Encontro de confraternização de antigos e novos militantes, inclusive em vista da visita de antigos militantes do MER, vindos de outros Estados, principalmente da Paraíba, desde o Alto Sertão (Carrapateira, Cajazeiras, Uiraúna, Patos...), do Agreste (Itabaiana, Mogeiro), do Brejo (Alagoa Grande), de Mamanguape, da Área Metropolitana de João Pessoa (João Pessoa, Santa Rita, Bayeux).

Carinhosamente preparado o ambiente pelos anfitriões, a partir das oito horas do dia 22 de outubro próximo passado, foram chegando os participantes, e cumprimentando-se alegremente, em volta de uma mesa, servindo-se de um apetitoso café da manhã. Por volta das 9 horas, ouve-se o chamado de Tiago, a quem fora delegada a tarefa de expressar as boas-vindas aos participantes, bem como de introduzi-los à programação do Encontro. Tiago pergunta aos presentes com que motivações vieram ao Encontro, foram convidados para que objetivos. Sucede-se uma roda de intervenções, já com a indicação de que cada qual cuide de apresentar-se: nome, vindo de onde, de que Estado, de que região, de que Assentamento, comunidade, sindicato, fazendo que atividades, etc.

Vivenciada esta fase, e reavivada a programação do dia, passou-se à exibição de um vídeo que, por meio de uma ampla sucessão de fotos (tomadas em distintas etapas de MCP), por meio de músicas características do movimento, e por meio de faixas ou escritos, tratou-se de rememorar o MCP, em suas distintas etapas. Este procedimento propiciou aos participantes um estímulo especial de reencontro com seu movimento. A partir daí, nova roda de intervenções, em que antigos e novos militantes, a partir de sua atuação específica no MCP, passaram a destacar momentos mais impactantes de sua vivência, de sua relação com o movimento.

Ainda na parte da manhã, propôs-se que se formassem quatro grupos, para refletirem sobre questões ligadas a facetas da trajetória do MCP, numa perspectiva avaliativa, e sobre as urgências atuais que o movimento se sente mais desafiado a priorizar. Aqui também se incluiu alguma discussão sobre os principais pontos do mais recente Encontro nacional do MCP, realizado em Feira de Santana – BA.

Após um saboroso almoço, preparado por militantes do movimento, a exemplo de Maíra, os participantes retomaram os trabalhos, a começar pela socialização dos principais pontos levantados nos grupos, a que se seguiu nova roda de intervenções, sendo os participantes estimulados a considerarem em suas falas o que consideravam constituírem as grandes prioridades do MCP, e como, a partir da realidade de sua área (sindical, assentamento, etc.), poderiam organizar-se para levar a termo tais prioridades, tomando em consideração os onze eixos de lutas, tirados no último Encontro nacional, com foco mais forte em cima das lutas em torno da escandalosa dívida pública.

A coordenação deste Encontro, em Santa Rita, assumiu o compromisso de socializar oportunamente uma síntese deste encontro. O propósito destas linhas, é claro, não foi este, mas o de ressaltar alguns aspectos do cotidiano de um movimento popular e de suas atividades que vêm resistindo ao tempo – ele está a dois anos de completar meio século! -, de modo consequente, a despeito dos tremendos desafios enfrentados e a serem enfrentados. Uma inspiração de resistência propositiva para as classes populares, em tempos sombrios. Viva o MCP!

Olinda, 09 de novembro de 2017.




segunda-feira, 6 de novembro de 2017

O QUE PEDEM GRUPOS E MOVIMENTOS DE CATÓLICOS POR REFORMAS NA IGREJA CATÓLICA?

O QUE PEDEM GRUPOS E MOVIMENTOS DE CATÓLICOS POR REFORMAS NA IGREJA CATÓLICA?
Alder Júlio Ferreira Calado

Em distintos continentes, continua a ressoar, por parte de católicos e católicas, o clamor por reformas, ao interno da Igreja Católica Romana. Entre os dias 29 e 31 próximos passados, em pelo menos uma quinzena de países, tivemos manifestações de grupos e movimentos de católicos e católicas, a expressarem, por meio de cinco pontos (sintetizadores de vários de seus pleitos) seu empenho em promover urgentes reformas na Igreja Católica. De fato, o alvo é muito mais amplo. Comporta dezenas de pleitos, que abrangem distintas dimensões da vida eclesial, a começar pela sua estrutura organizativa e disciplinar, em especial suas instâncias de tomada de decisão. Nas breves linhas que seguem, cuidaremos de repercutir e fundamentar apenas cinco desses muitos anseios de renovação.

1. O Evangelho à frente do Direito Canônico

O que, nas origens das comunidades cristãs, parecia tão evidente foi, ao longo de séculos (principalmente, desde o período constantiniano, passaria a ser interpretado bem ao gosto do poder clerical, em detrimento do conjunto dos demais membros da Igreja. A sede de poder de uma minúscula parcela acabou sobrepondo-se, não apenas aos interesses da enorme maioria dos membros da Igreja, mas - o que é bem mais grave, acima até do Evangelho. Com base em estratégias de poder cada vez mais sofisticadas, uma minúscula minoria de hierarcas passou a implantar normas, códigos e outros instrumentos legais, com o propósito de fazerem valer seu crescente monopólio. Até a Bíblia passou a ser cada vez mais monopólio desta minoria, à medida que era mantida distante do alcance do povo dos pobres, exatamente seus principais destinatários. Num tempo em que o saber ler era privilégio de poucos, com a agravante de que a Bíblia só podia ser  lida em Latim... Daí por diante, sucessivas leis eclesiásticas, em especial o Código de Direito Canônico - foram substituindo progressivamente a principal fonte de nossa fé cristã - a Bíblia. Esta, lida apenas em Latim, e por uma minúscula parcela do povo católico acabava passando como a grande desconhecida da enorme maioria de seus destinatários, que dela tomavam conhecimento superficial, a partir do entendimento e da seleção dos hierarcas, em seus sermões.

Enquanto isto, leis e normas eclesiásticas foram multiplicando-se, de modo a consolidarem concepções e práticas do quase exclusivo interesse dos seus autores. O Código de Direito Canônico delas é a expressão maior. Aí tudo é previsto, tudo é controlado, quase sempre no interesse da hierarquia. Ritos sacramentais, competências dos controladores das diversas instâncias eclesiásticas, atribuições de autoridades, funcionamento das estruturas eclesiásticas como de estruturas de Estado, inclusive com corpo diplomático, ordenação e transferência de bispos, deveres dos leigos, previsões punitivas de eventuais desobediências, etc. Ao fim e ao Cabo,quando se faz uma analogia entre o Código de Direito Canônico e o Evangelho, grande é o sentimento de distanciamento.

as consequências resultam muito graves, sob vários aspectos, dos quais destacamos apenas um: o modo como, com base no Direito Canônico, a hierarquia enfrentou os numerosos escândalos de abuso sexual contra crianças e adolescentes, cometido por clérigos (inclusive cardeais). A tendência predominante foi a de ocultar a responsabilidade pelos atos, tratando-os como “pecados” (coincidência apenas na dimensão ético-religiosa) e não como crimes a serem apurados e punidos, no âmbito da justiça humana. Graças à coragem profética do Papa Francisco, isto vem sendo alterado, mas ainda longe de se fazer justiça às vítimas, e de punir os responsáveis, nos termos das instâncias civis. Eis por que se levanta, cada vez mais forte, este clamor por parte de católicos e católicas em todo o mundo.

2. Centralidade do Povo de Deus nas instâncias de decisão da vida eclesial, tendo os pobres como núcleo evangélico

Há mais de meio século, o Concílio Vaticano II já havia dado passos significativos, nessa direção, em atenção aos veementes apelos dos sinais dos tempos. Em alguns de seus dezesseis documentos (entre suas quatro Constituições, seus Decretos e suas Declarações), restaram claros sinais, nessa direção. Até se pode dizer que, em suas palavras-chave, dentre as quais: “Refontização”, “Povo de Deus”, “Aggiornamento”, “Missão”, “Diálogo”, “Colegialidade”, “Ecumenismo”, “Autonomia relativa das realidades terrestres” e outras, celebrava-se um compromisso de renovação, em cumprimento, aliás, do que muito se apreciava declarar: “Ecclesia semper reformanda est”, que o atual Bispo de Roma tem acentuado. Na Constituição Lumen Gentium”, por exemplo, o documento conciliar, ao abordar a estrutura organizativa da Igreja, já não começa falando da Igreja, a partir da hierarquia, mas a partir do “Povo de Deus”, referindo-se, no caso, ao conjunto de membros da Igreja Católica. Seria demais esperar, então, uma referência a toda a humanidade… De todos os modos, abria-se mais a tomar em conta o “sensus fidelium”, ainda que em passos incipientes.

Este ar primaveril, todavia, expressão da iniciativa profético-pastoral do Papa João XXIII, duraria pouco tempo. Uma crescente onda de reacionarismo, apoiada por poderosas forças conservadoras da sociedade civil, acabou por sufocar esse abençoado movimento, ou, pelo menos, de interrompê-lo por longas décadas, principalmente durante os pontificados de João Paulo II e de Bento XVI. Mesmo assim, as vozes proféticas mantiveram-se.

Em meados dos anos 90, inicia-se uma nova fase de resistência profético-pastoral, em alguns países, protagonizados por Leigos e Leigas, e, em menor intensidade, também por associações de Religiosas e Religiosos e de Presbíteros. Dezenas de grupos, associações e movimentos retomaram, em novo estilo, seu clamor por mudanças. E hoje, unem-se numa só voz, para bradarem por urgentes reformas na Igreja Católica Romana, pondo especial ênfase na centralidade da organização eclesial vir a ser protagonizada pela porção do Povo de Deus, atuante na Igreja Católica Romana, de modo que todos os seus segmentos - ordenados e não-ordenados, sejam respeitados como protagonistas, em todos as instâncias de de tomada de decisões relativas à vida eclesial.

3. Reconhecimento da legitimidade do clamor da mulheres católicas, de participarem, ao lado dos homens católicos, das diversas instâncias decisórias da vida da Igreja    

Nos mais diversos espaços eclesiais, constata-se amplamente majoritária a participação de mulheres - leigas, religiosas - nas celebrações, nas diferentes iniciativas e serviços oferecidos à comunidade eclesial. No caso das Comunidades Eclesiais de Base, sua participação alcança, por vezes, mais de dois terços dos participantes. Resulta, portanto, estranho e injusto negar-se-lhes também o direito de decidirem, ao lado dos demais protagonistas. De outro modo, resultaria injustificável, do ponto de vista evangélico e do ponto de vista dos direitos humanos, excluir da tomada de decisões tão relevante segmento. Se isto já não é aceitável, no âmbito das sociedades, o que justificaria, de forma consistente, estender tais desigualdades ao exercício pleno da cidadania eclesial? Mais. Como a hieraquia justificaria seu empenho em combater regimes ditatoriais e em defender estruturas democráticas, no âmbito societal, e não fazê-lo “ad intra”?

4. Reconhecer a legitimidade às mulheres vocacionadas - tal como já sucede aos homens vocacionados -, a exercerem os diferentes ministeriais

Começamos por dissipar uma interpretação equivocada deste pleito, ainda que amplamente divulgada: não se trata de permitir indiscriminadamente o acesso a ministérios ordenados a quem o desejar, com ou sem critérios. Não é disto que se trata. O pleito sob clamor tem a ver com mulheres católicas que, sentindo-se vocacionadas a um determinado ministério, na comunidade eclesial, e, ao mesmo tempo, contando com o reconhecimento criterioso desses sinais por parte da comunidade eclesial, venham a ter reconhecida a legitimidade de sua vocação, tal como sucede aos vocacionados masculinos, na perspectiva do chamado por Jesus: "Não foram vocês que Me escolheram, mas fui Eu que os escolhi, para que vocês vão e deem fruto, e este fruto permaneça." (Jo 15, 16).

Ademais, não se trata, no fundo, de nada de novo. Com reconhecido acerto, várias Igrejas cristãs - inclusive as ditas históricas - já o fazem, ao reconhecerem a legitimidade das mulheres vocacionadas, a exercerem distintos ministérios (ordenados e não-ordenados) na respectiva comunidade eclesial. Além do reconhecimento de legítimo direito de cidadania eclesial, hão de se destacar ainda multiformes ganhos pastorais específicos. Com as recentes pesquisas teológicas, em especial no campo da Teologia Feminista, conta-se com uma fundamentação neotestamentária relativamente farta, a apontar experiências de diaconisas, em exercício junto às comunidades cristãs primitivas. A isto também devemos aduzir o atual estado de evolução do "sensus fidelium", graças ao crescente reconhecimento dos legítimos direitos das mulheres, em relação aos homens.

5. Reconhecer a legítima liberdade a homens e mulheres vocacionados aos diferentes ministérios, ordenados e não-ordenados, de exercerem seus respectivos ministérios, escolhendo livremente seu estado civil.

Já durante o Concílio Ecumênico Vaticano II, muito se discutiu acerca desta questão, sem, contudo, obter-se um desfecho favorável. Ainda que freado ou interrompido, ao tempo do Papa Paulo VI, com a Encíclica "Sacerdotalis Celibatus", nunca se deteve completamente esta questão, voltando ela a estar na ordem do dia, em especial a partir do pontificado do Papa Francisco. Parece que este ponto, de tão evidente em seus fundamentos, é questão de pouco tempo, para se chegar a uma solução que já se arrastou demasiado no tempo.

João Pessoa, 06 de novembro de 2017.