sexta-feira, 30 de setembro de 2016

BRASIL, ELEIÇÕES 2006: Primeiras impressões parciais e algumas ponderações de fundo



Alder Júlio Ferreira Calado

            Encerrou-se, ontem, no Brasil, o primeiro turno das eleições de 2006 (para os cargos de Deputado Estadual, Deputado Federal, Governador, Senador e Presidente da República). Embora uma parte do ritual já se tenha completado (eleição dos cargos proporcionais), os cargos majoritários, como se sabe, só se definirão no segundo turno das eleições entre o atual Presidente e Candidato Lula e o Candidato Geraldo Alckmin, ex-Governador de São Paulo.
            Em se tratando, pois, de uma eleição ainda em curso (salvo para os cargos proporcionais), o que se pode avançar, por enquanto, é um olhar avaliativo parcial (no caso, tanto “partial”, quanto “partiel”, ou seja, exercitado por alguém que já não aposta - menos ainda na atual conjuntura - no processo eleitoral como ferramenta de transformação social...)
            As considerações que seguem, virão em forma de perguntas, a título de provocação/convocação de um debate com pessoas e grupos que, tendo embora participado do processo eleitoral, ainda se mantêm firmes na defesa dessa participação como instrumento de denúncia.

I) Primeiras impressões parciais


Mesmo estando no início do segundo turno, já é possível destacar alguns pontos do vivenciado até aqui, em relação a alguns pontos, tais como quanto à relação custo-benefício das eleições, quanto ao processo em si, quanto aos resultados parciais (não nos esqueçamos de que já conhecemos as listas dos Deputados Estaduais, dos Deputados Federais e dos Senadores eleitos).

Quanto à relação custo-benefício, sob a ótica das classes populares

- Quanto tempo passam os brasileiros ocupados com os processos eleitorais, cujo ritual, embora se realize oficialmente em cerca de três meses, implica, no mínimo, um ano de movimentações?
- Que estimativa é possível fazer-se quanto ao volume de recursos financeiros e outros empregados, antes, durante e depois de cada campanha eleitoral?
- De onde vêm esses recursos?
- No exame acurado da relação custo-benefício, do ponto de vista das classes populares, qual o resultado?
- Quem ganha com as eleições?
- No caso de quem admite vantagens político-sociais no processo eleitoral, questionamos também sobre os gastos eleitorais, no âmbito nacional, na esfera estadual e no plano municipal: caso fosse aplicado todo esse volume de recursos (somando-se os contabilizados e os não contabilizados) em políticas sociais, o que daria para construir?

* Quanto ao processo em si
- Qual o percentual de eleitos (no Legislativo ou no Executivo) por três, quatro, cinco ou mais mandatos, conferindo ao exercício do mandato um caráter profissional?
- De que tem adiantado, na essência, a troca de nomes, freqüentemente apelidada de “renovação”?
- Quem escolhe e como são escolhidos os candidatos?
-Quais os critérios convencionais de escolha dos candidatos?
- Quem financia os candidatos?
- Quais os critérios desse financiamento?
- E os partidos como se compõem para o processo eleitoral?
- Quais os critérios para a formação de alianças partidárias?
- Quem anima as campanhas: os militantes movidos pelo seu ideal ou pessoas remuneradas?
- Qual o peso exercido pela mídia e pelo poder econômico no processo eleitoral?
- Como se dá a relação com a mídia?
- Qual o papel das chamadas “pesquisas” eleitorais?
- Quais os mecanismos habituais de convencimento dos eleitores?
- Salvo pouquíssimas exceções, como costumam posicionar-se, na prática, os candidatos de partidos ditos de esquerda e até autoproclamados comunistas?

* Quanto aos resultados
- Conhecidas as listas dos eleitos (inclusive no plano nacional, em que, a despeito de alguns nomes respeitáveis, (re)elegeram-se figuras abomináveis, entre velhas raposas e folclóricas, perguntamos: qual é mesmo o perfil dominante dos eleitos, nesta e noutras eleições?
- Quem resultou efetivamente eleito para o segundo turno que compromisso tem com a classe trabalhadora?
- Tendo em vista o mais recente resultado dos eleitos a cargos proporcionais, que novidades substantivas esse resultado apresenta em relação a outras eleições, quanto ao perfil dominante dos candidatos?
- Do ponto de vista da classe trabalhadora, qual a diferença essencial entre os programas macro-econômicos do Governo Lula e do Governo Geraldo Alckmin?
- Mesmo para se cumprir o programa anunciado pelos candidatos majoritários, qual a garantia de se efetivar, de modo eticamente aceitável?
- Numa eventual “reforma política”, o que se pode esperar de um Congresso com o perfil dos eleitos?

II) Qual é mesmo o papel das eleições no atual contexto do Capitalismo?


Iniciemos essas linhas, buscando exercitar algo tão ao gosto do Mercado, sob cuja égide nos movemos: a relação custo-benefício dos processos eleitorais. Mas, vamos fazê-lo com uma diferença capital: sob a ótica das classes populares... Então, acerca das eleições, vamos perguntar: quem ganha e quem perde com as eleições? Ganha (ou perde) o quê e como?

A) Quem ganha? B) Ganha o quê? C) Como ganha?

1. A) Ganham, em primeiríssimo lugar, as forças dominantes externas do Capitalismo - em especial seu segmento financeiro atualmente hegemônico: as transnacionais operando no País, o G-7 e seus organismos multilaterais (FMI, BIRD, OMC): seus interesses são ampliados ou pelo menos preservados, independentemente de quem venha ganhar as eleições.

B) Essas forças ganham com a certeza da ampliação ou da continuidade da política macro-econômica (pagamento da “dívida”, juros, remessa de lucro, respeito de contratos de todo tipo...) praticada por não importa qual dos candidatos que se torne vitorioso. Pode haver alterações no varejo (as chamadas políticas compensatórias: bolsa-família, Fome Zero e outras do gênero...

C) Sendo historicamente inviabilizado o sucesso eleitoral de qualquer força social de esquerda conseqüente, fiel aos interesses das classes populares, os setores dominantes externos (as transnacionais, G-7 e seus organismos multilaterais) tornam reféns seus, por antecipação, os candidatos vitoriosos, não importando quem (de direita ou de “esquerda”). Durante o pleito eleitoral, podem até “fechar” os olhos quanto à rebeldia de algum candidato de esquerda conseqüente, já que o seu desempenho eleitoral se acha previamente traçado, ficando restrito seu desempenho a apenas marcar posição, o que aliás até confere legitimidade ao pleito
“democrático”...

2. A) Ganham as forças dominantes internas, (setor financeiro, agro
negócio, exportadores, latifundiários, etc.), que conseguem ampliar ou preservar, ainda que em menor escala do que as forças dominantes externas, seus interesses de classe.
B) Depois das forças dominantes externas, são elas que vão faturar as maiores fatias do bolo da economia do País: juros privilegiados, pagamento da dívida, isenção e renúncia de impostos, facilidades fiscais, inclusive anistia, licitações nebulosas...).
C) Tais vantagens são conseguidas graças a uma variada combinação de mecanismos de pilhagem (legalizada ou clandestina) dos recursos públicos:  injusto sistema tributário, sonegação fiscal, renúncia fiscal por parte dos governantes, arbitrário repasse de custos ao consumidor, sob a alegação de “livre concorrência”, achatamento salarial, desrespeito à legislação trabalhista, facilidades de empréstimos públicos, freqüentes casos de anistia de débitos ao erário, “caixa dois”, corrupção ativa e passiva, entre outras falcatruas endêmicas e “normais”, do ponto de vista do sistema.

3. A) Também ganham as forças que gerem o Estado (Executivo, Legislativo, Judiciário e respectivos aparelhos).
B) Mantêm suas prerrogativas e vantagens, podendo até ampliá-las. Não é por acaso tanta gula pelo poder, implicando gastos astronômicos, para reaver, mais na frente...
C) Não é por acaso que os gestores do Estado fazem tanta força para justificar a continuidade do Estado, via eleições. As eleições sacramentam, legitimam a organização do Estado, sua ordem e seu funcionamento. A despeito de conflitos internos pontuais, essas forças estão unidas na essência, salvo raros casos de fissura.

4. A) Os candidatos e chefes partidários
B) Os partidos são, em geral, obedientes servis à ordem estabelecida. Mesmo quando desrespeitam suas leis, o fazem por atitudes de banditismo, por interesses privados, não para atender aos interesses da sociedade, a não ser no que diz respeito a detalhes ou a políticas assistencialistas.
            C) Embora eleitos pela enorme maioria dos pobres, os eleitos pouco ou nada representam seus eleitores. Têm um padrão de vida que os separa radicalmente do comum dos mortais da população: não andam em ônibus, têm previdência privada, seus filhos estudam em seletos colégios particulares, não conhecem o que é uma fila de hospital da rede pública, têm quase tudo ao alcance das mãos. No Congresso, submetem-se às regras das lideranças privilegiadas, em geral subordinadas ao Executivo e às forças do Capital, sendo quase sempre movidas à base de vantagens materiais. A elaboração do orçamento pode ser um exemplo emblemático. Quem menos ganha aí é a maioria da população, a quem são destinadas as migalhas do orçamento, enquanto o filé mignon fica reservado a pagamentos aos agiotas externos e internos.
           
5. A) Os assessores e auxiliares mais próximos dos candidatos
B) Salvo exceções, tratam de defender seus postos, enquanto durar o mandato do seu chefe, razão por que tudo fazem para que se reelejam, independentemente do perfil do candidato, do seu projeto político ou de sua prática política. Entre eles, alguns são vítimas: devem a esse cargo sua sobrevivência. A situação geral de desemprego frustra suas aspirações profissionais.
C) Mantêm seus currais eleitorais, a prática é de assistencialismo, distribuição de migalhas a um e a outro, em troca do voto, disputado e conquistado graças a uma série de mecanismos, na maioria ligados a ações assistencialistas. Têm inclusive jornal, que, em vez de ser do Partido, normalmente trata do marketing do candidato, de sua reprodução.

6) A) Vários segmentos da elite, em troca de apoios e vantagens futuras
B) Os chamados “lobbies” ficam colados nos candidatos, e até lhes dão apoio financeiro, em geral não-contabilizado, porque oriundo de “Caixa Dois”. Seu interesse é futuro: caso seja eleito o “seu” candidato, este se sente na obrigação de votar projetos que favoreçam aos grupos que o apoiaram, ainda que o eleito nunca deixe de dizer que o faz “pelo interesse do povo”...
C) Esses “Lobbies” ou grupos de pressão passam a cobrar dos candidatos eleitos o cumprimento dos conchavos, ou seja, a adesão do eleito a tal ou qual projeto do interesse de quem financiou a campanha.

7) A) Uma parcela dos segmentos mais pobres
B) Assim como em outros eventos, os mais pobres conseguem alguns trocados, vendendo alguma coisa, recebendo favores, inclusive em troca do voto.
C) São variadas as formas de obtenção de algum ganho por parte de parcela dos pobres: levantar bandeiras, fazer passeatas, engrossar carreatas, distribuir material de campanha dos candidatos, ceder muros para propaganda, trocar votos por vantagens ou por promessas.

II) Quem perde?
1. A) As forças que lutam por transformação social substantiva
B) Vêem reduzido seu potencial instituinte, à medida que se tornam, durante a campanha eleitoral, reféns do sistema representativo que deveriam combater expressamente, numa conjuntura como a atual. Mas, só podem fazer isso em parte, pois devem obediência ao jogo eleitoral “democrático”. Do ponto de vista ético-político, vêem empalidecida sua denúncia ao sistema, à medida que dele participam, ao menos durante o tempo da campanha. Do ponto de vista pedagógico, não ajudam os segmentos das classes populares a buscarem construir uma alternativa política. Perdem, enfim, recursos, tempo, energia, criatividade.
C) Em vez de se aplicarem a tarefas instituintes, junto às massas, ajudando-as a formarem sua consciência crítico-transformadora, e a rejeitarem participar dessa farsa, a partir de suas lutas, e ajudando-as a conquistarem autoconfiança, em vez de reforçar nelas a cultura presidencialista e a confiança em “salvadores da Pátria”.

2. A) Perdem os segmentos mais pobres.
B) Embora arranquem uns trocados durante o processo da campanha, depois vão continuar suportando a carga mais pesada da opressão, tendo que contentar-se, quais Lázaros dos novos tempos, com as migalhas que lhes são atiradas do banquete dos magnatas transnacionais, nacionais, regionais e locais.
C) O grosso do bolo das riquezas continuará seguindo para os grandes de dentro e, sobretudo, de fora...), enquanto esses segmentos mais pobres (Trabalhadores Desempregados, Mulheres das camadas populares, Negros, Índios, Sem-Terra, Sem-Teto, Povos da rua, Migrantes...) vão continuar curtindo o seu dia-a-dia de desemprego, arrocho salarial, ausência ou precarização dos serviços públicos essenciais, doença, miséria, desespero...

3.      A) Perde o conjunto da classe trabalhadora, que se mantém refém de um processo, em relação ao qual ela só tem a perder, a despeito de aparentes vantagens imediatas.
B) Enquanto está metida nos processos eleitorais da Democracia Formal, vê reduzidas suas forças no investimento em saídas alternativas. Perde um tempo precioso (as campanhas duram meses e se passam a cada dois anos), em vez de estar junto às massas do campo e da cidade, animando suas lutas e ajudando na formação de sua consciência crítico-transformadora, gestando uma sociabilidade alternativa cujo calendário se desenvolve a curto, médio e longo prazos.
C) Objetivamente, termina por coonestar os processos da Democracia formal, perdendo força sua denúncia e seu discurso de desmascaramento das forças dominantes.

III) Em busca de uma sociabilidade alternativa: considerações sobre o caso específico do processo eleitoral


            Em ocasiões precedentes (cf. CALADO, 2003, 2004, 2005a, 2005b), já tivemos oportunidade de pontuar diferentes aspectos de nossa tese acerca de um projeto de sociabilidade alternativa. Aqui nos restringimos apenas ao aspecto das relações Sociedade-Estado-Governo, e mais precisamente, ao caráter ético-político dos processos eleitorais nas Democracias Ocidentais, em particular, a que se dá no Brasil.

            Que valores fundamentais inspiram a sociabilidade de mercado, da qual o processo eleitoral é uma expressão emblemática?

            Um balanço sereno da relação custo-benefício, a partir da perspectiva das classes populares, se revela enormemente prejudicial às classes populares. Aqui tratamos de realçar um desses aspectos: a grade de valores própria da visão de mercado a incidir (também) nos processos eleitorais.
            A ideologia do mercado é inimiga do diferente, enquanto diferente. Pode até tolerar valores outros, desde que lhe sejam afins ou complementares, e não colidam com os seus. Na lógica do mercado, outro, sim, mas só se for extensão de “mim”, minha imagem e semelhança. Em sua fase mais exacerbada, como a do Capitalismo dito neoliberal, só se admite a difusão de “minha” palavra, da palavra do “meu” grupo, de minha classe. Os “outros” são meros ouvintes e consumidores de “minhas” idéias.
Talvez ainda mais do que em outras fases (por exemplo, na Social-Democracia), o Capitalismo em sua fase atual, dita de globalização neoliberal, confere completa razão ao velho dito marxiano, de que numa sociedade de classes, a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante.
            Para isso, lhe é essencial centrar fogo na figura do chefe ou de seu preposto, ao mesmo tempo que trata de detonar (ainda que nem sempre consiga...) os ensaios de construção coletiva, de reduzir a pó o protagonismo de sujeitos plurais (a menos que se trate de sujeitos plurais aliados às forças dominantes....). Atomizada, qualquer sociedade acaba perdendo de vista suas esperanças de mudança. Monopolizar o exercício do poder passa, então, a ser uma eficaz estratégia de manutenção (e, se possível, de perpetuação) do poder da classe dominante.
Chega mesmo a passar a idéia de que o preposto tem voz própria. Age de modo autônomo, ainda que por trás esteja refém de decisões “superiores”... Ou não é assim que agem as superpotências e seus organismos multilaterias (FMI, Banco Mundial e cia.)?
            Nessa esteira, a concorrência passa a ser um instrumento eficaz, uma moeda valiosa, à medida que consegue semear a cizânia entre os “outros”. A velha máxima das classes dominantes de todos os tempos – “Dívide et ímpera!”, a do dividir para reinar...
E a saída para as classes dominantes termina sendo o apelo ao imobilismo, que lhes favorece sobremaneira.
            Por uma infeliz combinação de motivações exógenas e endógenas, temos sido historicamente educados a não encarar propositivamente os desafios das mudanças sociais, mesmo quando reconhecemos não estar sendo favorecidos pelo status quo.
            Somos herdeiros de uma tradição sócio-cultural que nos tem tornado reféns desta secular sociabilidade imperante. Do espaço familiar à Escola, do ambiente profissional às instituições eclesiásticas, do terreno sindical aos espaços político-partidários...
            E desses costumes fazem parte atitudes como: não duvidar nem questionar os ensinamentos dos antigos; não desobedecer, em hipótese alguma, às “ordens superiores”. A despeito de muita coisa estar mudando, a esse respeito, não se deve descartar esses e outros exemplos como página virada. Muita coisa ainda se vê, se ouve, se sente, por aí... Coisa que, às vezes, nem se diz, mas sobre a qual a prática fala mais forte. E boa parte de nós não só incorpora esses valores, como também passa a reproduzi-los, ainda que nem sempre de forma consciente ou de modo disfarçável. Não poucos de nós, mesmo percebendo o equívoco, têm dificuldade de superar tais contradições.
Constrange-nos registrar situações esdrúxulas em que, por um lado, jovens e adultos perdem a vida por razões fúteis de cenas de ciúme e por atitudes possessivas extremadas, enquanto, por outro lado, poucos estão dispostos a correr risco – nem sequer de perder o emprego – de enfrentar coletivamente situações de evidente injustiça social.
            Por outro lado, cumpre enfrentar a questão de se examinar se isso é mesmo da “natureza” de nossa sociedade, ou se tal “naturalização” tem caráter ideológico. É o de que trataremos, em seguida.

Que práticas e valores podem favorecer a busca de alternatividade no tocante ao processo político-eleitoral em vigor?

            Em um dos artigos referidos, dizíamos que o fato de estarmos acostumados a navegar no curso das águas que fluem na superfície do cotidiano dificilmente nos propicia acompanhar o que se passa nas correntezas subterrâneas. Isso tem implicações múltiplas. Uma delas mexe com nossas esperanças. Como rarissimamente temos contato com experiências de outro caráter, termina firmando-se em nós a tendência de que as coisas não podem ser diferentes. Ou, mesmo que em nós continue ardendo alguma centelha utópica, não consegue firmar-se no terreno da prática, seja por estarmos relativamente isolados, seja por não contarmos com um clima que nos encoraje a tentar, a ousar, a ir além do instituído, além de uma momentânea indignação, que acaba sendo uma indignação estéril.
            À medida, porém, que ousamos chegar perto de experiências alternativas, ainda que moleculares, aquela chama utópica volta a arder de modo não apenas crítico, mas crítico-propositivo, impulsionando-nos a encampar ações grávidas de alternatividade, ainda que se trate de “pequenas” iniciativas, nos mais distintos campos de atuação que as relações do cotidiano nos oportunizam.
            A seguir, tratamos de elencar algumas situações concretas que, bem aproveitadas, podem suscitar em nós elementos de reencantamento pela incessante busca de pistas de alternatividade, nas relações do cotidiano.
            Ao enfatizarmos aqui situações mais diretamente voltadas à esfera cultural - e mais expressamente a dos valores, em direção a uma cultura política alternativa -, lembramos os laços orgânicos que unem todas as esferas da realidade humana e social, de modo que experiências em qualquer uma dessas esferas implica sempre, de algum modo, interfaces e distintas formas de interação com outras.
Manter o rumo do Projeto implica recuperar, de forma atualizada, o horizonte da classe trabalhadora e da ampla massa dos excluídos – Por outro lado, se esse é o quadro que campeia, não se deve perder de vista que sempre houve, sempre há e sempre haverá quem faça diferente, quem tenha outras apostas. Se ousarmos ensaiar mergulhos nas “correntezas subterrâneas”, vamos verificar experiências alternativas, apontando para uma cultura política alternativa.
Assim agindo, vamos encontrar pequenos grupos e pessoas honradas que teimam em ter uma prática e uma concepção alternativas de se fazer política, a começar por não perderem de vista o rumo maior da caminhada, o compromisso irrenunciável e inegociável com a classe dos-que-vivem-do-trabalho (da qual fazem parte necessariamente, além do contingente cada vez mais reduzido de trabalhadores do setor formal, toda a massa dos excluídos: trabalhadores e trabalhadoras do setor informal, desempregados e desempregadas, os trabalhadores e trabalhadoras sem-terra, as populações sem-teto ou morando em condições sub-humanas, pessoas portadoras de deficiência, crianças, adolescentes, jovens, adultos e pessoas idosas das classes populares, mulheres vítimas da marginalização, moradores e moradoras de rua, presos...), para quem não há partido que consiga substituir a classe trabalhadora. Não adianta que o partido cresça, sem que a classe trabalhadora não seja, ao mesmo tempo, protagonista, gestora e beneficiária desse crescimento.
Manter firme o horizonte e os interesses da classe trabalhadora é o que importa. Esse é o rumo, esse é o horizonte. Essa gente aplica magistralmente, em seu dia-a-dia aquela conhecida afirmação da personagem José Dolores, do filme “Queimada”: “É melhor saber para onde ir, sem saber como, do que saber como e não saber para onde ir.”
Nem todo caminho leva a esse rumo – Não basta, é claro, ter presente o rumo. Já sabendo que a recuperação e a manutenção do rumo são passos decisivos para quem se coloca no seguimento das classes populares, importa também adequar ao rumo os caminhos que para ele apontam. Se é certo, por um lado, que há uma pluralidade de caminhos demandando o rumo, também é certo, por outro lado, que nem todo caminho leva à meta desejada.
Na história das principais revoluções populares ou das mudanças sociais dignas desse nome, o protagonismo se deveu fundamentalmente à ação dos movimentos sociais compostos pelos setores dominados. Nunca e em lugar algum, as mudanças substantivas foram protagonizadas pelas classes dominantes. Destas só se deve esperar o empenho pelo continuísmo e pela ampliação e perpetuação de seu domínio.
Ao longo da História, nunca se registrou que alguma classe dominante tenha abdicado do poder, tenha cedido o poder de forma pacífica. Quando eventualmente as classes dominantes ou alguns de seus segmentos se metem em alguma empreitada reformista, só o fazem para livrar sua pele, entregando os anéis para não perderem os dedos... Inclusive a histórica recente do Brasil está cheia desses episódios, aos quais as próprias classes dominantes se apressam em chamar de “revoluções” (a “Revolução de 30”, a “Revolução de 64”...).
Trata-se, porém, de refletir aqui o papel dos protagonistas das classes populares nas transformações sociais, na perspectiva das classes subalternizadas. E, há séculos - embora ainda mais enfaticamente no Capitalismo, em sua atual fase, dita de globalização neoliberal - desse sujeito coletivo participam forças múltiplas, plurais, distintas, mas não antagônicas. Movimentos populares do campo e da cidade, segmentos profissionais, setores organizados da sociedade civil, partidos...
            Nos processos revolucionários dos últimos tempos, dentre os protagonistas coube aos partidos operários um papel mais destacado. Pelo fato de se atribuir ao partido a tarefa central de pensar e conduzir todo o processo revolucionário (projeto da nova sociedade, estratégia e táticas de enfrentamento das classes dominantes, tomada do poder, expropriação da propriedade privada, estatização dos bens de produção, reorganização em bases novas dos processos e organização trabalho e definição dos critérios das novas relações sociais), apenas “coadjuvado” por outras forças, permitiu-se o desenvolvimento de um hiato tremendo entre o partido (que, na prática, tudo decide, transformando-se “representante” exclusivo da classe trabalhadora) e as demais forças das classes trabalhadoras. O resultado, sabemos hoje, foi altamente trágico: em nome da classe trabalhadora, um grupo de privilegiados erigiu-se em ditadura sobre o conjunto da classe trabalhadora.
            Ou não foi essa a herança do Stalinismo, cujas marcas continuam disseminadas, inclusive, na sociedade brasileira, especialmente nos espaços governamentais? Pois bem, esse caminho não nos serve, simplesmente porque definitivamente não nos leva ao horizonte, ao rumo que desejamos. Pelo contrário!
            Não sendo esse o caminho, qual será? Mesmo que não o tenhamos pronto, porque, como bem nos lembra o poeta, “o caminho se faz ao caminhar”, podemos e devemos reconhecer e procurar veredas que apontem numa direção de alternatividade. Como, então, reconhecê-las? A quem busca é sempre possível reconhecer alguns sinais.

Enfrentando a cilada dos caminhos fáceis e atalhos sedutores – Numa sociedade complicada como a nossa, ninguém está imune de sucumbir à sedução dos atalhos. Numa situação de crise aguda, de desemprego estrutural e crescente compressão salarial, é extremamente difícil, por exemplo, a um jovem das classes populares, resistir aos argumentos do convite feito por um amigo hoje completamente envolvido nos negócios da droga: “Você não aceita por quê? Você desempregado, sua família passando necessidade, quando faz um bico, mal dá para enganar o estômago... Enquanto isso, se você topa essa parada, você vai ganhar num dia o que não consegue arrumar num mês...”
Quem disse que algo semelhante não sucede em outros planos, inclusive no escorregadio terreno político-partidário? “Esse negócio de conscientização e de lutar nas e com as bases não dá em nada. O que é que eu ganho com isso? Já no terreno político-partidário, a história é outra. Como assessor parlamentar de um vereador, pelo menos meu emprego está garantido.” O fato é que, seja por necessidade de sobrevivência ou por re-opção, um número expressivo de militantes foi pouco a pouco refazendo suas escolhas, apegando-se aos aparelhos do Partido ou incursionando, cada vez mais fundamente, pelos cômodos espaços governamentais (parlamento, cargos executivos, instâncias partidárias...).
            Como? Mantendo o discurso e mudando a prática. Importa todo empenho em dominar argumentos de auto-justificativa, “provando” que tal escolha é melhor para “todos”. O caminho tem que ser o diálogo com todo o mundo. Pelos caminhos democráticos, pouco a pouco, vamos conquistando espaços, progressivamente, até chegar lá, pouco importando o que seja esse “lá”. Importa mesmo é desenvolver atividades que fortaleçam o espaço partidário, é fazer o Partido crescer. Ou mais do que o Partido: minha candidatura ou o meu candidato. Nem se pergunta se basta o engajamento pelo crescimento do Partido. Automaticamente, o Partido substitui a classe trabalhadora.

Buscando e assumindo uma agenda alternativa – Deslumbrados com os atalhos sedutores – e nisso também as classes dominantes são especialistas -, não poucos terminam sucumbindo à agenda da oficialidade, mesmo dizendo-se contra. Como o foco da atenção se resume aos fatos e acontecimentos trazidos pela mídia (que repercute exclusivamente a agenda oficial – esse é o seu papel!) são levados aos mais diferentes ambientes, é “natural” que as ações de resistência se tornem reféns desses espaços.
Resultado: vamos centrando a nossa ação de resistência, em nome das classes populares, de acordo com os pontos de pauta do Governo, do Congresso, dos ministérios, das secretarias estaduais, das prefeituras, secretarias e câmaras municipais, das instâncias judiciais, das forças de repressão, dos partidos convencionais, das altas hierarquias das igrejas, das notícias extremamente seletivas da mídia, em breve: vamos organizando nossas ações em função desse cenário instituído, cedendo às suas determinações. “Ah! Não é bem assim”, pode-se objetar, “no Congresso, votamos sempre contrariamente ao rolo compressor dos setores dominantes. Se atuamos nesses espaços, o fazemos para defender os interesses dos trabalhadores”. Até pode ser. O que questionamos é a eficácia transformadora dessa ação. O que adianta votar “Não” num Congresso cuja quase totalidade é composta por prepostos ou representantes das classes dominantes? Qual foi mesmo o sentido do meu “Não”, por exemplo, ao longo das votações das reformas constitucionais? À parte o sentido ético de minha intenção, em que contribuí efetivamente para mudar o quadro atual? Nesse sentido, não apenas não contribuí efetivamente para as mudanças necessárias, como sem querer (?), terminei legitimando/coonestando o processo “democrático”, ao contar com os votos da oposição simbólica.
Não se trata aqui de negar o papel do partido. Trata-se, isto sim, de não dogmatizar as ações do partido. Afinal, o partido não é o único instrumento de luta da classe trabalhadora. Às vezes, nem mesmo o principal. Às vezes, pode até atrapalhar. Não se trata nem satanizar a atuação partidária nem sacralizá-las. A atuação de um partido não deve ser tomada como um fim em si mesma. Tem que estar voltada para os efetivos interesses da classe trabalhadora. Sua atuação depende, portanto, da conjuntura histórica, que pode favorecer ou pode desaconselhar o recurso a esse instrumento. Estimamos que, na atual conjuntura, a classe trabalhadora tem pouco ou nada a ganhar com a atuação em partidos convencionais.
Especialmente em conjunturas com esse perfil, uma pista fecunda é deixarmos um pouco de privilegiar o que anda se passando nas águas que correm na superfície, e voltar-nos com mais empenho para o que anda se passando nas “correntezas subterrâneas”.

E o que anda se passando nas “correntezas subterrâneas”? - Nem precisamos abandonar de vez o estamos fazendo. Importa, como primeiro passo, invertermos nossas prioridades do cotidiano, tomando algum tempo para ousar enxergar o que anda se passando noutras passagens (para nós) inéditas ou pouco exploradas.
            Não estamos propondo nenhum delírio. Apenas abrirmos os olhos, os ouvidos e o coração a coisas que se passam efetivamente diante de nós ou perto de nós, e que nós não estamos percebendo, limitações nossas.
            Que tal considerarmos, na atual conjuntura, o protagonismo dos movimentos sociais do campo? Quem tem chegado mais perto do horizonte que dizemos ser o nosso: as forças de esquerda que atuam exclusivamente na esfera partidária, parlamentar, governamental, ou as forças que atuam nas lutas sociais? Quem protagonizou a conquista de milhares de assentamentos que, se ainda estão longe de ser suficientes, apontam mais de perto para o sonho da Reforma Agrária?
Quem tem investido na formação continuada de seus membros: a esquerda partidária ou a esquerda que vem priorizando as lutas sociais? Quem tem mostrado ações instituintes, mesmo sem apostar em rupturas, no atual quadro sócio-histórico?
            Nossa aposta consiste em exercitar um protagonismo classista não mais centrado numa única força (quem quer que ela seja. No caso presente, o partido), mas no efetivo reconhecimento da capacidade criativa e transformadora das mais distintas expressões das forças comprometidas numa transformação social, que respeite o rumo, os caminhos e o jeito de caminhar de seus protagonistas.
            Protagonismo tanto mais fecundo quanto construído como expressão viva de saberes e ações de sujeitos plurais de todos-os-que-vivem-do-trabalho e seus demais integrantes (mulheres e homens de todas as idades, de todas as espacialidades, de todas as etnias, de todos os credos, com todas as habilidades artístico-culturais, organizados em movimentos, em sindicatos, em partidos, em inúmeras outras instâncias de base (entidades religiosas, igrejas, escolas, universidades, associações, cooperativas...), caracterizados todos como protagonistas unidos pelo mesmo horizonte de sociabilidade, pelos caminhos que levam a esse rumo, e pelo seu jeito de caminhar.

A título de “fecho” dessas linhas

            Nossos bisavós, avós, pais, nós e nossos filhos têm experimentado o real alcance dos processos eleitorais, nas Democracias representativas. “Muito barulho por nada”... Até quando, vamos prosseguir nesse ritual de “faz-de-conta”? Não ignoramos que alterações pontuais, aqui e ali, se produzem. Mas, no grosso, as coisas não apenas não avançam, como, sob vários aspectos, até retrocedem.
Por outro lado, a forma de organização social que hoje prevalece, é, como tantas outras, de caráter histórico. Se deu certo em determinado tempo, para determinados segmentos de alguma sociedade, também frustrou aspirações legítimas de tantos outros segmentos. Isso não tem que ser eterno. Pode e deve mudar. Mas, jamais se dará alguma mudança significativa por via de inércia ou graças à iniciativa dos segmentos direta ou indiretamente beneficiados com o sistema imperante.
Em que pese ainda prevalecer amplamente, em alguns segmentos marxistas ortodoxos, a tendência a identificar revolução com “assalto ao quartel”, temos tido o cuidado de evitar tal reducionismo de triste memória. E não o fazemos por um procedimento tático. Entendemos que de pouco ou nada adianta – a História o tem ensinado! – o controle militar dos aparelhos de Estado, sem que os protagonistas saibam para onde ir. Como alertava “José Dolores”, a famosa personagem do filme “Queimada”, “É melhor saber para onde ir, sem saber como, do que saber como, e não saber para onde ir.” Para nós ambas as condições são complementares.
De todos os modos, mudanças significativas só virão, se protagonizadas pelos reais interessados nesse processo: as classes populares. Processo longo e penoso, mas necessário e indispensável para resgatar a dignidade de milhões de pessoas e da própria sociedade. Nesse sentido, a própria História é testemunha de momentos auspiciosos de ensaios de uma sociabilidade alternativa, fundada no protagonismo dos produtores, em todos os momentos do processo. A organização em conselhos autônomos, organicamente constituídos. Pequenos grupos, qualquer que seja o nome (conselhos, células, pequenas comunidades, etc.) que se lhes impute. Importa o conteúdo de suas relações, de suas decisões, pois é pelos frutos que se conhece a qualidade da árvore...
            Valendo-nos, por fim, da linguagem dos versos, concluímos essas notas com o seguinte recado:

ONDE E QUANDO ELEIÇÃO JÁ FOI VITAL
PRA MUDAR DO SISTEMA A TAL RAIZ?


Quanto mais em idade a gente aumenta
Mais escuta histórias de eleição
Tanto esforço parece ser em vão
Quando pinta algo bom, a marcha é lenta
Bons pretextos, porém, a gente inventa
E assim toca às cegas o País
Conferindo mandato a tipos vis
Repetindo à exaustão o festival
Onde e quando eleição já foi vital
Pra mudar do sistema a tal raiz?

À exceção de contextos singulares
Quando a ação partidária mobiliza
Militância empenhada bem precisa
Hoje em vão navegamos nesses mares
Testemunhos nós vemos, exemplares
Urge, assim, laborar outra matriz
Do contrário, ficamos imbecis
Confiando a pilantras nosso aval
Onde e quando eleição já foi vital
Pra mudar do sistema a tal raiz?

Mesmo quem ´inda aposta em campanha
Logo vai procurar alternativa
Pra que o Povo decente um dia viva
E dê cabo à injustiça que é tamanha
Do sistema vencendo a torpe manha
Em lugar de eleger homens servis
Se organizem Conselhos de Civis
E outros órgãos, também, pois afinal
Onde e quando eleição já foi vital
Pra mudar do sistema a tal raiz?

Apostar nesse tipo de sistema
Que restringe a tão poucos a gestão
“Democrática”, dizem, mas eu não
Poucos lucram, embora o pobre gema
Sem cessar, mais se agrava seu problema
Se os pontos quisermos pôr nos “is”
Cumpre, então, superar esse infeliz
E ousar mutirão tão fraternal
Onde e quando eleição já foi vital
Pra mudar do sistema a tal raiz?

Nem o passado iníquo me atraía
Nem o presente corrupto satisfaz
“Outro mundo é possível”: vamo´ atrás!
No horizonte da humana Utopia
Cuja estrada se faz dia após dia
E por gestos concretos, bem sutis
Bem ao ritmo de quem faz o que diz
Só u´a nova Cultura enfrenta o mal
Onde e quando eleição já foi vital
Pra mudar do sistema a tal raiz?


Alder
Trecho Recife-Aracaju, 24/08/2006





TEXTOS DE APOIO

- CALADO, Alder J. F. Desafios dos movimentos sociais populares e sindical frente à atual conjuntura. In: Universidade e Sociedade, nº 12, São Paulo:ANDES/SN, 1997, pp. 74-79.

__________________. Partidos de esquerda frente à globalização neoliberal: ponderações sobre os riscos de domesticação. In: Revista Bazar, fase II, n. 1, João Pessoa, março/1999.

__________________. A esquerda brasileira face ao neoliberalismo: riscos de domesticação. In: Política Operária, n. 69, Lisboa, maio-junho, 1999, pp. 19-20.

__________________. A dialética instituído X instituinte: notas sobre a burocratização da esquerda brasileira. In: CALADO, Alder J.F. (Org.). Por uma Cidadania Alternativa. João Pessoa: Idéia/ Caruaru: Edições FAFICA, 2004, pp. 11-30.

_________________. Tecendo saberes em busca de uma sociabilidade alternativa. In: CALADO, Alder J.F. & SILVA, Alexandre M.T.da. (Orgs.). Desafios da produção de saberes político-educativos. João Pessoa: Idéia/ Caruaru: Edições FAFICA, 2004b, pp. 9-24.

________________, Movimentos Sociais Populares: qual Cidadania? Qual Educação? In: CALADO, Alder J.F. & SILVA, Alexandre M.T. da. (Orgs.). Cidadania no Horizonte do Trabalho. João Pessoa: Idéia / Caruaru: Edições FAFICA, 2005b, pp. 9-30.

__________________. Sob o impacto da crise: em busca de entendê-la para tentar superá-la. In: alainet.org (13 de agosto de 2005).

LOUÇÃ, Francisco; BENSAID, Daniel; LÖWY, Michael. Carta à DS, 01.01.2005. In:
ipp.uerj.net (Acesso em 03 de outubro de 2006).

RODRIGUES, Francisco Martins. Acção comunista em tempo de maré baixa. In Política Operária, nº 62, novembro-dezembro, 1997, pp. 31-33.

__________________________. Concorrer ao parlamento: princípio comunista? In: Política Operária, nº 74, Lisboa, março/abril, 2000, pp. 27-30.

- Documentos fundantes de alguns partidos de esquerda.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Remendar ou reinventar o mundo, a partir de nós? Paulo Freire nos instiga, nos provoca, nos convoca…

Há cerca de vinte anos, pouco depois da “grande viagem” de Paulo Freire, ousei ensaiar uns versos, em memória e homenagem deste Tecelão da Utopia. O mote das aludidas estrofes (dez estrofes, em versos decassílabos, com rimas abbaaccddc) era o seguinte: “Paulo Freire vagueia no Universo, atiçando as centelhas da Utopia”.
Com efeito, a vida, a obra e o legado freireanos estiveram – e seguem estando – organicamente vinculados à esperança (não no sentido de aguardar passivamente, mas no sentido freireano de “esperançar”) de um mundo novo, alternativo à barbárie capitalista, que agride e avilta, de mil formas, a Mãe-Terra, inclusive os humanos e toda a comunidade dos viventes. Coisifica o ser humano, impede ou bloqueia o processo de humanização. Não desumaniza ou avilta apenas suas vítimas – a Terra e a imensa maioria da humanidade, mas também desumaniza seus algozes – alertava Freire -, por a todos reduzir a objetos do lucro, de uma ganância necrófila. Toda a Terra geme em dores de parto, vítima das formas mais atrozes de agressão, de exploração, de esgotamento de bens do Planeta, ao protagonizar sucessivas e crescentes ameaças aos filhos e filhas da Mãe Terra. A humanidade clama por uma sociabilidade alternativa a essa barbárie.
No Brasil, na América Latina e em outras partes do mundo, vimos assistindo, de longa data, a crescentes sinais de exaurimento do atual modelo hegemônico, ao qual não têm faltado, aqui e alhures, heroicas resistências. Sucede que raramente, ou quase nunca, têm resultado eficazes. Aqui, ali, até que aliviam temporariamente aspectos pontuais nocivos do sistema, mas, por não haverem sido tocadas suas raízes, logo retornam seus efeitos deletérios.
Amplo, sem embargo, tem sido, no Brasil e em escala planetária, o leque de resistências que seguem assumindo um preponderante caráter de “remendo”. Trata-se de reações, quase sempre fragmentárias e episódicas, opostas “a varejo”, que se têm mostrado reiteradamente impotentes – et pour cause! – para responderem, à altura, aos desafios colocados.
Eis por que, ao (re)visitarmos Paulo Freire, nos damos conta de sua provocação a ousarmos para além de meras reações: sem prejuízo destas, somos historicamente convocados a ensaiarmos, desde aqui e agora, passos moleculares, alternativos à lógica e ao espírito do modelo hegemônico imperante. Nas linhas que seguem, é disto que cuidaremos.
1. Por uma leitura de mundo à altura dos atuais desafios
Por décadas a fio, acostumamo-nos a enfrentar, no varejo, ofensivas em série das forças adversárias, sucessivos e crescentes escândalos, intermináveis malfeitos e desmandos – por vezes, de responsabilidade compartilhada -, sem que sobre isto nos empenhássemos num enfrentamento articulado de tais impasses, ao mesmo tempo em que cuidássemos de ousar passos alternativos a essa ordem hegemônica. Aqui, ali, até que tal inquietação era verbalizada, mas pouco ou nada assumida como verdadeira prioridade. Assim agindo, ainda que expressemos por palavras nossa ira contra o establishment, no fundo, objetivamente, acabamos facilitando as coisas favoráveis ao mesmo sistema, perito que é em contornar nossas reações desacompanhadas de passos alternativos à lógica e ao espírito da ordem hegemônica que dizemos combater. Bem sabemos, aliás, da recorrente engenhosidade da classe dominante brasileira, de forjar mil “arranjos” de cúpula, fingindo mudança, para tudo seguir como antes… Figuras como José Honório Rodrigues bem nos ajudam a refrescar nossa memória histórica. A sagacidade vulpina das forças hegemônicas brasileiras só concorre com a impactante “ingenuidade” de parcelas mais expressivas de nossas forças de esquerda: em diversas ocasiões estas se renderam à esperteza (e “expertise”) das elites brasileiras. E todas as vezes se deram mal, mas seguem apostando nos arranjos de cúpula…
Não raro, assumir posição contundente, aos olhos de expressivas parcelas de protagonistas das forças populares, é interpretada como atitude que não corresponde a sujeitos sintonizados com o seu tempo. “É preciso ser homem do seu tempo!”, diz-se, como se tal atributo fosse sinônimo de acomodação ou passividade ante situações insustentáveis. Tal conduta nos remete a algumas figuras de referência, Freire inclusive, ao evocarem distintas situações semelhantes. Em seu “Educação como Prática da Liberdade”, encontramos elementos de reflexão que nos sacodem, pela relevância e atualidade (ainda que sua reflexão se atenha a inícios ou meados dos anos 60.):
O grande perigo do assistencialismo está na violência do seu antidiálogo, que, impondo ao homem mutismo e passividade, não lhe oferece condições especiais para o desenvolvimento ou a “abertura” de sua consciência que, nas democracias autênticas, há de ser cada vez mais crítica. Sem esta consciência cada vez mais crítica não será possível ao homem brasileiro integrar-se à sua sociedade em transição, intensamente cambiante e contraditória. (FREIRE, 1989, p. 56).
Referia-se, então, a práticas estratégicas e táticas bem ao sabor dos setores dominantes, como instrumento de dominação: por meio de medidas assistencialistas, manter as massas populares conformadas, à maneira das táticas usadas, na Roma antiga, do famoso artifício “pão e circo”, de modo a controlar e conter os impulsos subversivos de uma massa faminta ou maltratada. Prática sempre combatida pelas forças de esquerda, quando praticadas pelas forças adversárias. Por mais difícil que se apresente, semelhantes procedimentos vieram à baila, também entre nós, e agora, já não como política implementada por forças de direita…. Isto tem muito a ver com a falsa interpretação de que, sendo nós, os proponentes e implementadores de tais políticas assistencialistas, a coisa é diferente… Bastaria, para tanto, manter afinado o discurso ”contra as elites”. Não poucos são, a este respeito, os procedimentos falaciosos que acabam, não raro, “naturalizados” ou consagrados como procedimentos normativos, assumidos como próprios do dever ser. Um outro exemplo ilustrativo temos na superestimação do ato de votar como expressão suficiente para a plenitude democrática, do exercício “supremo” de cidadania, seja para quem elege, seja para quem é eleito. Em alguns casos, chega a ser a única ou pelos menos a forma decisiva de legitimação definitiva de expressão democrática, ainda que daí estejam ausentes outros componentes essenciais do processo democrático, tais como o compromisso de se efetivar o programa pelo qual se foi eleito, a necessidade de controle social sobre os eleitos e eleitas, bem como o instituto de revogabilidade, sem deixarmos de sublinhar o direito/dever de cada cidadã(o), de participar decisivamente por meio de seus organismos de democracia direta, (conselhos populares, fóruns, audiências públicas, círculos de cultura, núcleos…), ainda que em contexto de democracia representativa. Ainda um exemplo ilustrativo: a tendência a uma espécie de ética da conveniência, presente em situações várias, como, por exemplo, na superestimação de procedimentos de caráter formalista, como vem sucedendo no processo de impeachment. Aí se tem observado um debate, no mínimo, questionável – para não se dizer infrutífero -, quando se aventura abusivamente ao ofício de hermeneutas das leis, afoita e esterilmente concorrendo-se com especialistas do Supremo Tribunal Federal, tribunal ao qual compete, em última instância, dirimir pendências constitucionais, inclusive o que é “golpe” e o que não é, do ponto de vista jurídico, a despeito do juízo singular de cada cidadã(o) sobre o caso em tela, até porque tal decisão comporta, como se sabe, uma dimensão também política. Questiona-se, aqui, a eficácia do combate, no referido terreno, em comparação aos espaços mais favoráveis de disputa – a mobilização da sociedade, a partir de suas principais forças, mas priorizando outras ferramentas portadoras de chances promissoras. O campo jurídico, com efeito, não corresponde a um campo ou terreno de combate favorável às classes populares, até por se tratar de instrumento componente de um aparelho de Estado (o Judiciário).
Por mais de uma vez, a esse respeito, tenho me socorrido de clássicos, não apenas como Marx e Freire, mas também a figuras como Cornelius Castoriadis e Claude Lefort. De Castoriadis, por exemplo, tenho escutado, mais de uma vez, uma entrevista que considero valiosa, na perspectiva da invenção democrática como um processo permanentemente instituinte, o que não nos dispensa a atenção às lições do passado.
Retornando a Freire, inclusive na obra acima citada (1989), percebemos a pertinência e acuidade de sua crítica, em especial, quando alude à contraposição entre “radicais” e “facciosos”:
Mesmo sabendo que a origem da categoria “práxis” remonta a priscas eras, não se pode negar o lugar privilegiado que tal concepção ocupa na vida, na obra, no legado de Paulo Freire, que lhe vem sobretudo da herança marxiana, combinada, antes, com o legado do Cristianismo da Libertação. A este respeito, entre vários autores, também ousei, em outra oportunidade, rastrear raízes do pensamento freireano, sobretudo, nessas duas correntes (CALADO, 2009).
A despeito da densa contribuição de Max Weber e de Ernst Troeltsch, quanto à dinâmica histórica de avanços e descensos das forças sociais inovadoras – em sua análise, Troeltsch deteve-se mais no caso do Movimento Anabatista que, após emergir impetuosamente contra todo o establishment, passou a acomodar-se ao mesmo -, importa sempre refletir criticamente acerca das condições concretas que intervieram e podem intervir, nesse processo, ora precipitando-o, ora contendo-o, ora até evitando-o. Aí comparece uma confluência de fatores inter-relacionados. Um deles, com forte incidência causal, tem a ver com o escanteamento, secundarização ou abandono do seu processo formativo, com graves consequências em sua práxis transformadora, inclusive de natureza ético-política. Em tal percurso de descenso, não são poucas as ocorrências ligadas ao descaso da práxis, descuido em relação ao que já se sabia acerca do caráter do Estado (componente essencial do Capitalismo), distinção entre origem de classe e posição de classe, autonomia dos movimentos sociais populares diante do Mercado e do Estado, autofinanciamento, autogestão (importância dos núcleos…), alternância do exercício militante em cargos de coordenação-direção e militância na base, critérios de aliança política, orgânica e permanente interação entre direção base, necessidade de se assegurar formação contínua, não apenas a militantes dirigentes ou coordenadores, mas também os militantes de base etc., etc. Ainda como consequência deste quadro, pode-se mencionar a progressiva superestimação da pauta oficial do establishment (“golpe”/”não-golpe”, “provas jurídicas”/”não-provas jurídicas”, envolvimento individual de acusados/não envolvimento individual, etc.), enquanto, por outro lado, arrefece a atenção, em relação a bandeiras substantivas para as forças de mudança, tais como auditoria da dívida pública, combate aos paraísos fiscais, à evasão de divisas, à sonegação fiscal, à renúncia fiscal, à taxação das grandes fortunas e outras do gênero.
Não se trata de restringir apenas a Freire ou a Marx e a clássicos do gênero. É preciso que estejamos sempre abertos a discutir com pensadores comprometidos com a invenção democrática, tais como um Castoriadis ou um Claude Lefort.
Quando falamos em descaso ou abandono da teoria, convém ter presente a necessidade de se afastar uma concepção distorcida de teoria – infelizmente muito corrente, no senso comum – como algo abstrato, etéreo, descolado da prática (“uma coisa é a teoria; outra coisa bem distante é a prática”, diz-se), quando, em verdade, prática e teoria constituem faces da mesma moeda, dimensões, portanto, indissociáveis. Cabe aqui lembrar que é justamente nesta indissociabilidade que se enraíza o conceito de “práxis”. Eis por que ousamos dizer: mostra-me tua prática, e dir-te-ei qual é tua teoria. Por esta razão, debitamos a essa descabida cisão, uma série de equívocos em série cometidos por forças de esquerda.
2. Com Freire, para além de uma adequada leitura de mundo: urge reescrevê-lo
Uma adequada leitura de mundo constitui, por certo, um primeiro e indispensável passo, como condição sem a qual não se consegue intervir alternativamente na realidade que se tem. Aí reside um dos reconhecidos méritos do nosso Tecelão da Utopia. Não vem por acaso o subtítulo que encima este tópico. A este respeito, tornou-se famosa sua afirmação de que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra.” Afirmação genial, sobretudo, quando situada no quadro do processo de letramento inicial. Aí já se pode vislumbrar seu compromisso com a “práxis”, na medida em que, mais do que em ajudar os alfabetizandos a lerem palavras, ele está preocupado em ajudá-los a mudar o mundo. Numa das entrevistas por ele concedida, cuidaram de enaltecê-lo como criador de um método, ao que ele contestou, agradecido pelo reconhecimento, mas agregando que maior do que isto era sua “gula”: a de ajudar a transformar a realidade. Mais do que simplesmente “ler” a realidade, importava-lhe ajudar a transformá-la, como, aliás, sustentava o filósofo da Práxis, em uma de suas teses contrapostas a Feuerbach (Tese XII) (MARX, 1888), de que, diferentemente do que têm feito os filósofos, ao interpretarem o mundo de diversas maneiras, o que importa mesmo é transformá-lo.
Também para Freire – e nós, com ele -, trata-se, sim, de nos empenharmos na mudança do mundo, inclusive pela via da educação: sozinha, lembrava Freire, a Educação não muda a realidade, mas sem ela, em vão se tenta transformar a sociedade. Como viabilizar, então, passos nessa direção? Receitas não há, bem o sabemos. Pelo menos de uma coisa temos certeza: de que pelas vias até aqui tentadas, a realidade social tem dado sinais de que se mantém (quase) inalterada, em suas estruturas.
A “gula” freireana, que compartilhamos, nos instiga a perseguir o horizonte libertário, também por caminhos alternativos. Nosso horizonte comporta uma tríplice tarefa: a de irmos forjando, desde o chão do quotidiano, desde aqui e agora, um novo modo de produção, um novo modo de consumo e um novo modo de gestão societal, adequadamente articulados e em respeito à dignidade da Terra e de toda a comunidade dos viventes, em grande medida, nos termos propostos por François Houtart, em sua luminosa contribuição.
Em outras ocasiões, já tivemos oportunidade de enunciar elementos componentes dessa tríplice tarefa. Desta feita, seguem algumas linhas versando especificamente sobre o lugar do processo formativo contínuo, como fio condutor e articulador das referidas tarefas. Partimos de alguns questionamentos: de que formação contínua se trata? Quais as linhas-força de um tal processo formativo? Que lugar nele ocupa a contribuição ou protagonismo dos sujeitos individuais?
Bem sabemos ser vão pretender da escola (da Educação Infantil à Pós Graduação) uma formação contínua capaz de dar conta dos desafios e das aspirações dos sujeitos (individuais e coletivos) que se querem protagonistas de uma sociabilidade alternativa ao modelo vigente. Não bastasse ser o sistema de ensino oficial organizado ou controlado pelo Estado – parte componente essencial do sistema capitalista -, também sabemos que na escola passamos apenas um período de nossa vida. O processo formativo que nos interessa é ininterrupto, por definição. Deve ocupar-nos o dia todo e todos os dias. Mais importante: deve ser protagonizado, em todos os seus momentos (concepção, planejamento, execução, metodologia, avaliação…) pelos próprios protagonistas – mulheres e homens da classe trabalhadora, isto é, dos que vivem do seu trabalho. Outra razão para se tratar de processo formativo contínuo, tem a ver com a complexidade, a extensão e a multiplicidade temática e metodológica a serem tomadas em conta, quer no plano individual, quer no plano coletivo.
De fato, o processo formativo que interessa aos membros das forças sociais imbuídas da tarefa de construção de uma sociabilidade alternativa à ordem vigente, há de comportar uma diversidade de situações e dimensões que abarcam todo o existir. Trata-se de trabalhar, de modo concatenado e ininterrupto, as mais diferentes facetas da existência – econômica, política, cultural-, de maneira a interligar os mais distintos aspectos da vida humana e do planeta:
– relações com o Cosmos;
– relações de espacialidade;
– relações ecológicas;
– relações de gênero;
– relações de orientação sexual;
– relações étnicas;
– relações geracionais;
– relações de caráter místico.
Tanto no que concerne ao temário, quanto no que diz respeito à metodologia, cada aspecto desses (e outros) há de ser experienciado, no processo formativo, sempre de maneira articulada e contextualizada. Quanto a cada aspecto do temário, tais dimensões são trabalhadas sempre a partir dos interesses suscitados pelos formandos, em seu dia-a-dia, e tomando-se em consideração seu perfil (individual e coletivo). Temário também trabalhado, de modo a atentar-se para uma adequada costura de passado-presente-futuro. Nesse sentido, pode-se começar por sondar dos formandos e formandas que tipo de organização societal corresponderia a suas aspirações: que tipo de sociedade atenderia às nossas aspirações, do ponto de vista econômico, do ponto de vista político, do ponto de vista cultural? Fazendo-se um paralelo com a sociedade que temos, tal consulta vai fluindo mais facilmente, à medida que se zelar pela dinâmica de trabalho, ou seja, sob a forma de círculo de cultura.
Nesse sentido, sem qualquer pretensão de cópia ou reedição mecanicista, parece útil uma revisitação, por exemplo, da temática relativa aos círculos de cultura protagonizados pelo Movimento de Cultura Popular, não se dispensando inclusive uma consulta das páginas finais de “Educação como Prática da Liberdade”, onde se acham instigantes figuras inspiradoras desses círculos de cultura.
Aqui, joga um papel decisivo a atuação dos animadores ou animadoras desses círculos de cultura, cuja principal tarefa é a de ouvir, ponderar e selecionar palavras-chave, brotadas das rodas de participantes, capazes de comportar sentimentos e posições representativas dos referidos protagonistas. Palavras-chave que hão de inspirar os temas decisivos dos diversos encontros, permitindo fornecer múltiplos fios do seu quotidiano, do seu sentir, do seu pensar, do seu querer, do seu agir, do seu existir. Nesse sentido, há de se reconhecer a contribuição oferecida, em suas pesquisas, por Cornelius Joannes e Salete van der Poel, em sua densa e fecunda experiência na RELEJA (Rede de Letramento de Educação de Jovens e Adultos, Paraíba), graças ao rico potencial de sua metodologia de letramento, em que os formandos/formandos são também protagonistas dos textos de seu processo de letramento.
Articulado a esses momentos, há de se trabalhar, de forma mais didática, diferentes tempos da realidade. Aqui, também importa revisitar o passado de nossa história, não como um golpe de saudosismo, mas como uma busca de nossas raízes econômicas, políticas e culturais, capazes de oferecer-nos lições para o presente e para a construção do futuro. Cuida-se aqui de reavivar a memória histórica de nossa gente, suas lutas, suas conquistas, suas derrotas, seus acertos e erros. Tanto em relação aos sujeitos coletivos (movimentos sociais, associações, enfim organizações de base de nossa sociedade), quanto aos sujeitos individuais, aqui tendo como referência o incentivo ao estudo de biografias de nossos clássicos de referência.
Como se percebe, este é apenas um de tantos aspectos a comporem uma proposta formativa contínua, a ter como protagonistas as organizações de nossa sociedade, envolvendo diretamente cada um de seus membros respectivos – de base e de coordenação. E só este item comporta uma imensa tarefa com relevante papel didático: o de oferecer aos formandos preciosos elementos biográficos de figuras de referência, ajudando a todos a compreenderem quão fecundo foi o seu percurso, e quão numerosos e embaraçosos foram os desafios enfrentados. Não se trata, por certo, de sugerir “imitação”, até porque tais figuras não pretendem ser reeditadas, mas reinventadas.
O exercício de rememoração da gesta de nossos ancestrais (coletivos e individuais) tem uma incidência concreta na arte de forjar – ou de irmos forjando – uma sociabilidade alternativa à atual ordem hegemônica, porque, como costumava dizer Eduardo Galeano, “o passado tem muito a dizer ao futuro”. Mais do que isto, trata-se de uma via privilegiada de se exercitar a mística revolucionária, que permite aos protagonistas de uma nova sociabilidade cotejar criticamente experiências – bem sucedidas e mal sucedidas de ontem com as buscas de hoje, ajudando a fortalecer o querer revolucionário, inclusive por meio da disposição do exercício da autocrítica (individual e coletiva).
Um outro elemento constitutivo desta proposta formativa tem a ver com nossa contínua necessidade de atualizar, melhor dito: materializar, ou ir materializando, nossas tarefas revolucionárias, no chão do dia-a-dia. Isto se faz, a partir das coisas “miúdas” ou aparentemente insignificantes ou invisíveis. Dá-se, por exemplo, por força da curiosidade epistemológica, da sede de saber despertada nos formandos, que, assim, vão se tornando observadores dos fatos e situações do cotidiano, vão se tornando aprendizes e praticantes do paradigma indiciário, atentos aos sinais, ensaiando interpretá-los: vão aprendendo a enxergar coisas e fatos que antes não eram capazes de alcançar; passam a ouvir coisas novas, em relação às quais antes eram surdos; passam a sentir coisas novas antes inacessíveis, passam a intuir situações novas. Para tanto, a arte da convivência comunitária tem um sentido todo especial. Sozinhos e isolados, jamais seriam capazes de protagonizar ações heurísticas, inovadoras. É a força transformadora da relacionalidade a ajudar-nos a superar, ou ir superando, nossa condição de seres inacabados, inconclusos. Tal aventura, ademais, é que nos vai permitindo ensaiar passos moleculares alternativos ao modelo vigente, à medida que vamos aprendendo a costurar os múltiplos fios da realidade, a conectá-los, conferindo-lhes sentido.
Tal exercício de costura dos fios da realidade tem implicações concretas. Seu alcance incide, não apenas sobre o aprimoramento dos sentidos perceptivos. Também se favorece a dimensão volitiva (concernente ao querer) dos protagonistas, contribuindo melhor para aprimorar seu agir. Note-se que o exercitar-se na conexão dos fios da realidade não constitui uma operação apenas intelectiva, a favorecer apenas o bom pensar, mas se estende, de modo articulado, às demais dimensões do processo de humanização, alcançando o sentir, o querer, o agir, etc10. Isto se dá, ao longo da vida, desde que se façam presentes as condições favoráveis a tal processo, sendo uma delas – a mais importante – a vida comunitária de diálogo, partilha e mútuo aprendizado, característica, por exemplo, dos círculos de cultura. Vivência comunitária que também incide diretamente na progressiva aquisição de consciência crítica também no assumir deveres e tarefas pessoais. Não se cuida de apenas “receber” da comunidade, mas igualmente de participar com sua contribuição efetiva.

3 À maneira de uma provisória conclusão dessas notas
Fartos têm sido os ensaios versando sobre a decisiva força transformadora da ação comunitária, na busca de superação do atual modelo, em direção à construção de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal, com respeito à dignidade do Planeta, dos humanos e do conjunto dos viventes. E aqui também ratificamos e compartimos desse sentimento. Isto deve, sim, prosseguir. Sucede que, por vezes, certas formulações passam a impressão de algo que se possa fazer, sem o necessário aporte pessoal. Nessas linhas, cuidamos de ressaltar, sem prejuízo algum da dimensão comunitária, o lugar e o papel insubstituíveis do protagonismo pessoal dos respectivos membros.
Com efeito, cada tarefa comunitária supõe também a ação de cada membro componente das comunidades. Em todos os processos de construção da nova sociedade. Talvez com maior força ainda no que se trata da ensaiar passos alternativos na construção de um novo modo de consumo, alternativo ao establishment. Para tanto, há um leque amplo de tarefas individuais concretas, indo desde o esforço constante do exercício de autocrítica a uma adequada reavaliação das agendas individuais: as atividades constantes de minha agenda rotineira estão apontando para onde? Eu posso otimizar essa agenda, em que pontos? De que modo devo tentar, nesse sentido? Importa sublinhar aí o privilegiado lugar da mística revolucionária, também no plano individual. Por vezes, podemos constatar que a quase totalidade de nossas atividades tem se limitado a um reagir pontual e episódico de um calendário pouco ou nada eficaz. Até porque toma a maior parte do nosso tempo em reagir à pauta oficial do atual modelo, sem que nos assegure condições de ousarmos pautas propriamente nossas, inventivas e voltadas para nosso horizonte de organização societal, essencial, acenando para um constante crescimento de nossa condição de novos homens, de novas mulheres, inclusive pela decisiva adoção de um estilo de vida condizente com nossas mais densas aspirações. Aqui, também, tem lugar privilegiado o exercício das diferentes linguagens artísticas, como espaço fortemente humanizador. Enfim, damo-nos conta de que em vão buscamos ir forjando um novo mundo, se o tentarmos deixando-nos “de lado” desse processo, sem nele nos envolvermos plenamente, de modo que hoje tentemos agir melhor do que ontem, e amanhã, melhor do que hoje. Mudar o mundo, sim, ou melhor: ir mudando o mundo sim, mas a partir de nós!
Referências
CALADO, A. J. F. Rastreando fontes da utopia freireana: marcas cristãs e marxianas do legado de Paulo Freire. Disponibilizado em Consciência.net, pelo link:http://consciencia.net/rastreando-fontes-da-utopia-freireana-marcas-cristas-emarxianas-do-legado-de-paulo-freire-por-alder-julio-ferreira-calado
CASTORIADIS, C.. Entrevista com Cornelius Castoriadis, conduzida por Chris Marker. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=5HL22xsVK4c 
____________. Démocratie et être citoyen. Savoir gouverner et être gouverné ou rester esclave. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=l1VS4SaYnpg
FREIRE, P.. Educação como Prática da Liberdade. 19ª ed., Rio: Paz e Terra, 1989.
________. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora. UNESP, 2000.
HOUTART, F. El bien común de la humanidad: un paradigma post-capitalista frente a la ruptura del equilibrio del metabolismo entre la naturaleza y el género humano. Tercera Conferencia para el Equilibrio del Mundo. La Habana, 28-30 de Enero 2013. Disponibilizada em http://www.ecoportal.net/Temas-Especiales/Politica/El_bien_comun_de_la_humanidad_Un_paradigma_post-capitalista_frente_a_la_ruptura_del_equilibrio_del_metabolismo_Entre_la_naturaleza_y_el_genero_humano, acessado em setembro de 2016
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