segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Paradoxos da humana condição

 Paradoxos da humana condição 


Alder Júlio Ferreira Calado


Natureza, me torno ecocida

“Homo sapiens”, também me flagro “demens“ 

Um bom fruto, também daninha “semens”

“Homo faber”, também destruo vida 

“Homo ridens”, com cara aturdida

“Homo erectus”, quadrúpede rastejo

“Homo ludens”, me sinto sem lampejo

Paradoxos da humana condição

Se limites não venço, luto em vão 

No convívio, vitória antevejo 


João Pessoa, 27 de Novembro de 2023 

 


sábado, 25 de novembro de 2023

A MENTIRA COMO ARMA DE DOMINAÇÃO: A VERGONHOSA COBERTURA DO MASSACRE EM GAZA PELA MÍDIA HEGEMÔNICA

 A MENTIRA COMO ARMA DE DOMINAÇÃO: A VERGONHOSA COBERTURA DO MASSACRE EM GAZA PELA MÍDIA HEGEMÔNICA


Alder Júlio Ferreira Calado


Todo ser  humano, dado o seu inacabamento, é suscetível à mentira, embora sempre vocacionado à verdade. Reconhecimento feito inclusive por textos sagrados, a exemplo da tradição judaica e cristã: ”Omnis Homo Mendax” (Sl 116, 11) - expressão de circunstância  perturbadora. Se tal constatação, de um lado,  nos parece uma postura salutar de autocrítica reconhecedora de nossos limites, por outro lado, grave equívoco cometemos em banalizar este traço limitativo, por não nos comprometermos com uma incessante busca de superação desta marca.


O êxito ou malogro desta busca depende de nossa resposta ao chamamento ao nosso compromisso com a verdade. Depende também de como organizamos as relações sociais - econômica, políticas, culturais e outras -, desde que orientadas para um processo de humanização do um ser humano como um todo e de todos os seres humanos, ou sucumbimos à tentação desumanizante, como ocorre nas sociedades de classes especialmente no modo de produção capitalista. 


O atual cenário de  cobertura dos conflitos entre Israel e Palestina, tal como feita pela mídia hegemônica (CNN, Rede Globo e Mídia Digital de extrema-Direita), ilustra bem o profundo grau de parcialidade e comprometimento com o Estado Sionista de Israel, marcado pela sucessão de massacres, de limpeza étnica, de supremacia racial, de apartheid e de colonialismo cometidos contra o povo palestino (já se fala em mais de 15 mil mortos, dentre as quais em torno de 7000 crianças, e cerca de 33 mil feridos). Nas linhas que seguem, cuidamos de examinar a natureza e a extensão da estratégia hegemônica diuturnamente usada e abusada pelos meios de comunicação dominantes, de modo a tornar reféns enormes parcelas de nossa sociedade, fazendo-as introjetar e assimilar, como se verdades fossem, as notícias circuladas pela imprensa, pela televisão, pelo rádio, e pela mídia digital de extrema-direita.


Em toda sociedade de classes, o pensamento que prevalece é ditado pela classe dominante


O pensamento único constitui a grande meta de toda sociedade de classes, máxime nas sociedades capitalistas, hoje amplamente dominantes. Toda sua organização econômica, política e cultural se acha sob o rígido controle de uma ínfima minoria (correspondente a cerca 1% da população mundial), em mãos da qual se encontram concentradas as riquezas, as terras, a renda, as poderosas redes de comunicação de massa. É graças a este acúmulo de poderes nas mãos dos grandes conglomerados transnacionais, a operarem em todas as atividades econômicas, políticas, culturais, educacionais, religiosas, no próprio mundo das artes, etc., mundo afora, que acabam determinando a hegemonia das ideias, dos valores, das crenças, das modas, do próprio estilo de vida dominante. Poderio tão forte, que impacta até as relações do Sagrado, como temos observado, também no Brasil com o que se passa nas Igrejas cristãs, em sua grande maioria.

Os crescentes escândalos sexuais e financeiros não deixam de ser expressão e resultado dessa tenebrosa teia de relações.


Expressão igualmente da predominância, em larga escala, de um cristianismo sionista, em franca contradição com os valores do Reino de Deus anunciado, inaugurado e testemunhado por Jesus de Nazaré. A este propósito, recomendamos fortemente que acompanhem a recentíssima entrevista concedida pela teóloga Nancy Cardoso (cf. https://www.youtube.com/live/OoB_jMpgv6g?si=KubDDw09uE2GYLFp)


Experiente e com amplo reconhecimento, a teóloga biblista Nancy Cardoso que viveu longos anos na Palestina, cuida, nesta entrevista, de apontar os principais entraves a uma compreensão crítica acerca dos conflitos Israel x Palestina, que têm a ver com uma espécie de tapa-olho. Tal compreensão decorre, segundo a teóloga, de uma incapacidade ou de uma indisposição dos cristãos sionistas, de fazerem uma leitura crítica, com base em uma perspectiva histórica e geopolítica, sobre o que anda acontecendo entre Israel e Palestina desde as primeira décadas do século passado, principalmente após a primeira e a segunda grandes guerras, após cada uma delas, tendo como consequência a distribuição pela força entre a França e a Grã Bretanha, a Síria, o Líbano e a Palestina de modo a tudo reduzirem a uma mera questão religiosa, ocultando assim os fatores geopolíticos e econômicos aí presentes, o que se agrava por uma leitura fundamentalista da Bíblia. No que tange ao componente religioso, ela nos instiga a exercitar a leitura popular da Bíblia, como um procedimento de exercício da crítica com que devemos visitar e revisitar os textos sagrados, tendo, aliás, chamado a atenção para o alerta feito pelo Profeta Amós (Am 7,9). Ela acentua o significado de um Deus que opta sempre pelos mais vulneráveis: os pobres são sempre seus preferidos, a exemplo do contexto assinalado pelo Livro do Êxodo, em que Deus assume a causa libertadora dos oprimidos, garantindo-lhe uma terra, mas não na condição de novos opressores.



“Quem come do meu pirão prova do meu cinturão”  


A sabedoria popular segue sendo, para além de seus limites, uma fonte de bom senso, como se mostra o dito popular acima mencionado. É, com efeito, que sucede também ao controle dos meios de comunicação de massa pelo Capital, em suas diversas manifestações, em especial sob o controle maior do mundo financista. Afinal, por quem são financiados jornais, televisão, rádio, mídia digital de extrema-direita? Como ocultar que cada programa televisivo, em especial as grandes agências noticiosas são controladas, em escala mundial, nacional e local, por esses grandes conglomerados transnacionais? Como ignorar que a imprensa hegemônica, a exemplo de o Estadão, O Globo, A Folha de São Paulo, são mantidos por grupos familiares aristocráticos, representantes da Casa Grande? São estes veículos que, dia a dia, bombardeiam os leitores e leitoras com notícias, reportagens e coberturas feitas no interesse direto dos centros do Império.


É triste tomar conhecimento das relações senhoriais a que são submetidos, salvo raras exceções, seus jornalistas, frequentemente constrangidos a fazerem passar fatos e versões do agrado de seus empregadores. A este propósito, vale a pena conferir recente denúncia coletiva feita por jornalistas ao Ministério Público: (conferir https://www.brasil247.com/midia/jornalistas-do-estadao-pedem-socorro-contra-o-assedio-moral-que-sofrem-de-andreza-matais )


Algumas pistas alternativas


Diante destes fatos e versões que utilizam cotidianamente a mentira como arma de dominação, consola-nos saber que tal situação não é insuperável. Na verdade, diversos são os veículos noticiosos e de análises que temos à nossa disposição. Trata-se de uma lista de canais, de blogs e de sites que nos ajudam e nos permitem uma leitura crítica desta realidade, em busca de sua transformação. 


Ainda a propósito do bombardeio diário sobre milhares de Palestinos (crianças, mulheres, pessoas idosas, etc.), sobre o qual a mídia hegemônica se limita a acusar o Hamas, fechando os olhos aos crimes de guerra também cometidos - e em dose exponencial - pelo Estado Sionista de Israel, o poderoso “Lobby” de judeus sionistas se atreve, sem cessar, a controlar não apenas a mídia coorperativa, mas também as diversas instâncias governamentais dos países, inclusive do Brasil, chegando a perseguir até judeus que ousem denunciar o massacre cometido pelo Estado Sionista de Israel. É o que sucede, por exemplo, ao jornalista judeu Breno Altman, que vem sendo penalizado judicialmente, como no caso da recente sentença liminar proferida por um juíz de primeira instância.


A exemplo da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), também nos associamos às manifestações de solidariedade a Breno Altman e a outros perseguidos por sua coragem de denunciarem os crimes contra a humanidade que vêm sendo cometidos pelo Estado Sionista de Israel. Recomendamos vivamente o acompanhamento de entrevistas, palestras e análises produzidas pelo jornalismo crítico alternativo aos porta-vozes do imperialismo. Entre estes espaços críticos, sugerimos acessar: Opera Mundi, Brasil 247, Brasil de Fato, ICL, José Arbex, Rogério Anitablian, José Reinaldo Carvalho, Ualid Rabah, Valter Pomar, Nathalia Urbano, Jones Manoel, Mainara Nafe, Nancy Cardoso, para citar apenas estes nomes. A este propósito, recomendamos conferir a mais recente exposição sobre os conflitos Israel X Palestina, feita por Valter Pomar, dentro da programação organizada pela Fundação Perseu Abramo: https://www.youtube.com/watch?v=RORQs547r8Q&t=1s


Finalmente, foram acordados alguns dias de trégua para a liberação de reféns em Gaza e de prisioneiros em Israel. Ainda que insuficiente, temos um alívio, mas o que importa mesmo é lutar por um cessar fogo.


João Pessoa, 25 de Novembro de 2023.


           



quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Provocações desde a Carta aos Efésios, cap. 6, 5-12: Anotações em torno da reunião do CEBI/ João Pessoa, realizada em 04/11/2023

 Provocações desde a Carta aos Efésios, cap. 6, 5-12:  Anotações em torno da reunião do CEBI/ João Pessoa, realizada em 04/11/2023


Alder Júlio Ferreira Calado


Como Educador Popular em busca de sintonia com discipulado e o Movimento de Jesus, não cessamos de sublinhar a relevância pedagógica do exercício da memória histórica, inclusive no tocante às atividades rotineiras. Registrar tais momentos e compartilhá-los deveriam constituir uma praxe, entre nós. Trabalhar em rede corresponde a uma das tarefas a não perder de vista. Eis a razão pela qual decidimos registrar e compartilhar aspectos deste encontro.       


Dando sequência aos estudos e reflexões sobre a Carta aos Efésios, realizou-se, mais um encontro com base neste livro do Segundo Testamento, que vem sendo o tema deste ano, na comunidade católica do Brasil. Dele participaram Maria dos Anjos (Zanza), Edna, Glória, Márcio, Kéfren, Vanuza, Gervalino, Ir. Maria José, Ir.Marinete, Georgeana, Lúcia e Alder.


Após os cumprimentos sororais/fraternais, as pessoas que iam chegando, eram convidadas a tomarem um café da manhã, compartilhado pelos participantes. Em seguida, foi proposto e vivenciado o momento de espiritualidade, durante o qual as pessoas participantes foram contribuindo com suas reflexões. Coube a Glória fazer uma exposição sobre o que já havíamos trabalhado, nos meses precedentes, acerca da carta aos Efésios, para o que contamos com a colaboração de Edna, Zanza e outros membros do CEBI, anotando na lousa frases e palavras-chave do que havia sido recolhido dos outros encontros .


Após haver rememorado trechos e comentários dos capítulos anteriores da Carta aos Efésios, foi feita a leitura do Capítulo 6 da mesma Carta, atendo-se especialmente aos versículos de 5 a 12. Ao vivenciarmos a reflexão compartilhada deste trecho, cuidamos de realçar aspectos mais tocantes decorrentes da reflexão compartilhada.


O trecho se apresenta como um chamado ao bom combate. Instiga-nos a perceber criticamente e a enfrentar os embates e os desafios que a vida comporta. Neste sentido até nos faz lembrar os versos de Gonçalves Dias: ”Não chores, meu filho/Não chores, que a vida é luta renhida/ A Vida é combate/ Que aos fracos abate/ Aos bravos, aos fortes/Só pode exaltar!”

 

Com efeito, ao exercitarmos uma leitura crítica do mundo atual, de nossa sociedade, das igrejas e de nós mesmos/mesmas, vamos percebendo a presença de diferentes embates, que somos chamados a enfrentar, em busca de superação. O atual conflito Israel x Palestina constitui uma ilustração didática quanto a esse chamado feito pela Carta aos Efésios. Como temos nos esforçado para entender criticamente este conflito que não começou em 7 de Outubro de 2023, mas se estende por mais sete décadas pelo menos? limitamo-nos a acompanhar esse conflito apenas pela mídia dominante ou nos empenhamos em entendê-lo também acessando outras fontes de informação?


No plano eclesial, já há algumas décadas, vimos enfrentando graves denúncias sexuais e financeiras nas quais figuras do clero se acham profundamente envolvidas, inclusive aqui na Arquidiocese da Paraíba? Qual tem sido nossa posição: fechar os olhos ou denunciar e exigir providências a quem de direito?


Ainda a propósito da Carta aos Efésios, também foi lembrado o trecho do livro do Apocalipse, naquela passagem relativa ao que o Espírito tem a dizer à Igreja de Éfeso: (Ap 2, 1-5), em que aquela Igreja é interpelada quanto à tentação de esquecer seu primeiro amor, seduzida que se acha por novos ídolos.


O encontro foi encerrado com nova leitura do Capítulo 6 da Carta aos Efésios (Ef. 6, 5-12), como um reforço do chamamento ao Compromisso nosso de enfrentamento das adversidades.


Com uma Oração final, feita em Círculo recebemos uma benção comunitária. 


João Pessoa, 22 de Novembro de 2023. 

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Nas veredas do movimento de Jesus: desde o chão da história

 Nas veredas do movimento de Jesus: desde o chão da história.


Gloria Maria Carneiro, Eraldo Leme Batista e Alder Júlio Calado


Introdução


Não é segredo a complexidade dos tempos em que vivemos. Se é verdade que toda época comporta alterações, certo é também que nem todo tempo corresponde a uma mudança de época, o que sucede raramente na história, após séculos. Os dias atuais (de algumas décadas para cá), sinalizam traços de profundas mudanças (planetária, social, econômica, política, cultural). Estes sinais, nem sempre vem sendo percebidos, por vezes, passam ao largo da compreensão do senso comum. Parte expressiva da população, de tão acostumada aos ritmos do cotidiano, nem sempre tem condições de perceber esses traços de uma mudança de época.


No caso das igrejas cristãs, isto parece ser ainda mais imperceptível, para a grande maioria. O Tipo de formação doutrinal, assegurada pela catequese, pelos sacramentos e por outros ritos eclesiásticos (católicos, ortodoxos, protestantes), têm se dado através de séculos, ocasionando extrema dificuldade de se ver além do costumeiro, do tradicional, de modo que corremos o risco de manter os olhos fechados ao que é novo, ao que é diferente, aos que não pensam e não agem como nós. E com a agravante de nos julgarmos melhores do que os demais. Sem querermos, tentamos nos apropriar das próprias fontes em que bebemos, tentando assim, tornar-nos proprietários exclusivos da “verdade”, não raro reduzindo-as ao nosso pensar, ao nosso sentir, ao nosso agir, teimando em vão, ser impermeáveis a valores que não sejam os nossos, indispondo-nos  ao diálogo intercultural.


Não obstante, a predominância dessa tendência homogeneizante, somos surpreendidos com diferentes modos de compreensão da realidade histórica e também do caminhar dos cristãos e das cristãs. É o que verificamos, por exemplo, nestas duas reflexões que passamos a considerar. A primeira, proposta pelo teólogo espanhol José Maria Vigil, que atuou durante décadas na Nicarágua e no Panamá, na qual nos convida, em sua recente exposição intitulada: “Hacia una espiritualidad integral (José Maria Vigil prefere o adjetivo “profunda”) desde la cosmovisión latinoamericana y originaria” e por outro lado, o texto escrito por Eduardo Hoornaert, sob o título de “O Jesus do mito e o Jesus da História: à procura do equilíbrio perdido” (http://eduardohoornaert.blogspot.com/).


“Por uma espiritualidade integral desde a cosmovisão latinoamericana e originária”


Após o período paleolítico, mudanças significativas se deram no modo de viver dos humanos. A passagem do nomadismo para um modo de vida sedentário, graças ao surgimento de práticas agrícolas e da pecuária, propiciou alterações referentes às relações de propriedade. Se, antes, os humanos, condicionados pelo nomadismo, se sentiam satisfeitos com o que conseguiam recolher da mãe natureza (caça, pesca, extrativismo), ao se fixarem em um território, passaram a experimentar a necessidade de armazenamento de produtos, como medida de providência, o que não tardaria a instigar uma tendência ao acúmulo de bens. Esta experiência se mostrou propícia à aquisição de bens privados, a serviço de alguns e em detrimento de outros. Não só os humanos sofreram com esta tendência: antes deles a própria mãe Terra que, séculos mais tarde, se transformaria em negócio lucrativo, em prejuízo de seus próprios ritmos. Em razão do processo de acumulação de bens, ela foi sendo objeto de uma exploração abusiva. Isto também implica um traço de espiritualidade, no caso de caráter negativo: se, antes, os humanos se sentiam satisfeitos com o que dela recolhiam, fruindo a gratuidade da mãe Terra e suas belezas, com a passagem para o regime de propriedade privada, os humanos passaram a explorá-la como alvo de lucro, ao que correspondeu uma mudança de espiritualidade, orientada pelo utilitarismo (os primeiros textos sagrados apontam nessa direção, a exemplo do mito da criação em Gênesis). Passamos então, a nos considerar mais importantes do que os demais seres (antropocentrismo).


A partir destas primeiras experiências de dominação (sobre outros humanos e os demais seres), vai tomando lugar uma espiritualidade de dominação, desta vez, sob o pretexto da pretensa dicotomia cidadãos da terra e cidadãos do céu, estes considerados superiores.


Espiritualidade que vai avançando, especialmente nas sociedades de classes, notadamente no modo de produção capitalista, no qual uma pequena minoria se alça à condição de guia dos pobres mortais. A expressão desta realidade está também na evolução da Cristandade, ao longo de séculos, notadamente a partir da era constantiniana (séc. IV).


Desde então, a teologia da Cristandade não tem cessado em recorrer a sucessivos mecanismos de dominação pelo alto clero, em conluio com os imperadores: ora com a Inquisição, ora com o Código de Direito Canônico, ora com o “Syllabus” (Pio IX), ora com o “Index” Librorum Prohibitorum, ora com as sanções de tipo obediência obsequiosa... É com base nesses pretextos, que se despreza o exercício crítico que o povo de Deus é chamado a exercer, de modo a  engessar a consciência e os próprios critérios do Evangelho, estendendo-se por todo o Segundo Testamento, no qual, Paulo recomenda que examinemos tudo, para retermos o que é bom (cf.1Ts 5,21). Entre tantos efeitos deste engessamento/reducionismo, podemos incluir o de uma compreensão segundo a qual só a bíblia é a palavra de Deus, de modo a ocultar o fato de que, antes e para além da bíblia, a Criação constitui o livro por excelência da Divina Ruah.


Mais do que a bíblia, a Criação é o primeiro livro do Criador. A bíblia é um comentário desta Criação, feito dentro de um contexto histórico-geográfico específico, que deve ser lido e entendido criticamente (a fé não extingue a razão: “scientia ac fides”). A espiritualidade da Cristandade têm fôlego curto, à medida que os seres humanos vão acumulando novos achados, e avançam na aquisição de novos conhecimentos, a exemplo da teoria da evolução, ainda que não a devamos absolutizá-la. Nesse sentido, ao nos recolocarmos no contexto do espírito de Medellín (“opção pelos pobres”), vamos nos dar conta de que, para além dos pobres, enquanto gente oprimida, nos deparamos com a Mãe-Terra, a grande oprimida pela ganância e impiedade dos humanos.


É assim que vamos progressivamente sendo inspirados pela divina Ruah, colocando-nos como Filhos e Filhas da Mãe-Terra e do Cosmos, passando a ser um com eles e neles. Desta forma, vamos passando a uma compreensão da utopia do reino, a partir de nossa comunhão com os valores ecológicos aos quais o movimento de Jesus também vai se integrando.


É, por conseguinte, que vamos também assumindo que a distinção entre evangelho e religião, sendo esta um dado cultural que, por vezes, mais atrapalha do que ajuda o caminhar no seguimento de Jesus.


“O Jesus da história e o Jesus do mito: à procura do equilíbrio perdido” (Eduardo Hoornaert)


O mais recente texto da lavra de Eduardo Hoornaert (1930- ), tem por título O Jesus da história e o Jesus do mito: à procura do equilíbrio perdido. Nele, dando sequência a instigantes e contínuas pesquisas históricas sobre o Cristianismo, ele nos traz um fecundo convite: o de distinguirmos um Jesus percebido como uma figura mitológica, em torno da qual, como brasa coberta de cinza, se acumulam dezenas de narrativas que pouco ou nada tem a ver com a figura de Jesus de Nazaré e, por outro lado, “o Jesus da história”, isto é, uma percepção de Jesus inspirada nas permanentes buscas de fontes e documentos históricos, utilizados como único critério de busca da verdade, sem qualquer abertura ao sentido do mito, como expressão da sabedoria popular. Convém, desde logo, prevenir os leitores e leitoras de que o intento investigativo do autor não propõe uma tomada acrítica de posição a favor de um lado ou de outro, mas de nos trazer elementos investigativos e bom senso, que nos ajudem a uma escolha própria, sempre provisória e em construção. 


Quanto ao Jesus do mito, o autor começa ponderando sobre os riscos de uma interpretação fundamentalista e equivocada acerca do significado do mito, ora identificando-o como mentira, narrativa alienada, ora como diretamente identificado com a verdade. A seguir, ele trata de enveredar didaticamente, em busca de distinguir e esclarecer cada uma destas versões. Com relação ao mito, o autor adverte contra um duplo risco. O primeiro tem a ver com a tendência a absolutizar como verdadeiras as narrativas (inclusive bíblicas), sem qualquer preocupação com sua contextualização sócio histórica. Aqui, a tendência é de uma aceitação acrítica da letra do texto sagrado, sem se preocupar com os sentidos que a letra pode comportar. Assume-se mecanicamente o que está escrito como pura verdade, independentemente do tempo em que apareceram esses escritos e as condições históricas em que aquele povo estava envolvido. A criação tal como vem narrada no Gênesis, por exemplo, é assumida como verdade absoluta e válida para todos os tempos, ou seja, as descobertas que os humanos, dotados de inteligência, vem fazendo através dos séculos de nada valem. Nega-se a ciência. Outro extremo criticado pelo autor, diz respeito a um desprezo pelo saber popular, tomado como não científico e portanto contrário à verdade, sem perceber que a própria ciência parte do bom senso de que a sabedoria popular é também portadora. Trata-se de dois equívocos a serem evitados. Para tanto, o autor recomenda três critérios alternativos para se fazer uma leitura razoável de todo o texto, inclusive dos textos sagrados.


Eduardo Hoornaert empenha-se em revisitar episódios da história do Cristianismo – a exemplo do que faz em torno de Alexandria e Antioquia -, cuidando de analisar as visões antagônicas que caracterizaram a perspectiva eclesiástica de cada um desses “modelos”. Após uma criteriosa análise do que ele chama de “equilíbrio perdido”, ele nos oferece preciosa contribuição para romper e superar tal desequilíbrio:

- exercitar o bom senso, isto é, perceber o fundamental da vida dos seres humanos e da natureza, sem nos fixarmos em extremos, contrariando nossa própria condição de seres humanos, com os nossos acertos e limitações;

- ousar tomar posição: com enorme freqüência, sentimo-nos paralisados ante situações esdrúxulas tendendo a nos acomodar com elas, “naturalizando-as” em vez de tomarmos uma posição corajosa, denuncia/anúncio;

- compreender a necessidade de contextualizar historicamente os fatos e a realidade na qual nos movemos.


Lições a extrair


Assim como tantos e tantas, não saímos intocados da experiência dessas duas reflexões. Cuidamos de recolher delas algumas lições. Uma primeira tem a ver com a percepção de que somos sempre chamados e chamadas a ir passando de uma consciência ingênua a uma consciência crítica. Aprendemos que isto também vale para o entendimento dos valores sagrados. Não podemos compreendê-los de uma só vez. Na infância, foi-nos administrado, no Catecismo, um alimento apropriado àquela idade, mas agora, sendo adultas e adultos, necessitamos de um alimento sólido, como aconselha a Carta aos Hebreus: “Ora, todo aquele que se alimenta de leite é inexperiente na palavra da justiça, porque é criança. Mas o alimento sólido é para os adultos, para aqueles que, pela prática, têm as suas faculdades exercitadas para discernir não somente o bem, mas também o mal.”(Hb 5,13-14).


Neste sentido, muito temos a recolher de Eduardo Hoornaert, em especial das pistas de ação que ele propõe: a do discernimento (“bom senso”), superação do medo e a contextualização histórica. A partir daí, podemos concluir que a universalidade da Boa Nova de Jesus vai bem além daquela pretendida pela Cristandade: o Espírito sopra onde quer (Jo 3,8), ou seja, ninguém tem o monopólio da verdade. Por conseguinte, a Cristandade não deve pretender monopolizar o sopro da divina Ruah. Sem precisarmos renunciar à nossa identidade de discípulos e discípulas de Jesus – ou justamente por isto -, somos chamados a reconhecer como legítimas diversas espiritualidades, para além do Cristianismo, como aprendemos com José Maria Vigil. Trata-se de nos abrir sempre ao diálogo com outras espiritualidades, na escuta atenta e na partilha, inclusive correndo o doce risco de sermos influenciados por elas. Isto soa ainda mais necessário, quando tratamos dos povos originários e dos povos da grande diáspora africana. Do mesmo modo, sentimo-nos interpelados pelo Evangelho a reconhecermos a presença e a ação do Ressuscitado em pessoas e gentes que não só não se afirmam cristãs, como até não professam qualquer credo religioso. Este é o caso, por exemplo, de uma mulher que se reconhece atéia e marxista, Rosa Luxemburgo, cujo livro “O socialismo e as igrejas cristãs” constitui um libelo contra o clericalismo da primeira década do século passado (o livro é datado 1905). Importa conferir esse texto para constatarmos a contundência com que Rosa Luxemburgo, atuando como uma “teóloga da libertação”, e biblicamente bem fundamentada, denuncia o clero de então, cobrando-lhe coerência. 


Nesta perspectiva proposta – cada um a seu modo – por Vigil e Hoornaert, avaliamos positivamente a experiência que vimos vivenciando, tanto no Grupo Kairós (de modo presencial), tanto de forma virtual, às sextas- feiras, das 19 às 21 horas, oportunidades em que, temos refletido sistematicamente sobre as contribuições contidas no livro “50 Anos de Teologias da Libertação” (dois volumes), organizado por Edward Guimarães, Emerson Sbardelloti e Marcelo Barros, leitura que recomendamos.


João Pessoa – PB, 16 de novembro de 2023

---------------------------


A autora e os autores deste texto, são membros do Grupo Kairós.


quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Israel x Palestina: Perguntas incômodas

 Israel x Palestina: Perguntas incômodas


Alder Júlio Ferreira Calado


Ao completar-se um mês desde os deploráveis atos terrorista praticado pelo Hamas contra os Israelenses e pessoas de outras nacionalidades (fala-se em 1.500 mortos), resultando em centenas de mortos e feridos, e os atos terroristas extremamente desproporcionais cometidos pelo estado sionista de Israel, a perpetrar incessantes bombardeios e ataques genocidas contra os Palestinos, na Faixa de Gaza, resultando em torno de 11 mil assassinatos de palestinos, dentro os quais mais de 3.500 crianças, somos tomados de indignação e revolta, e passamos a nos fazer perguntas incômodas.


  • Pelo menos, durante esses últimos 30 dias, enquanto seres humanos, enquanto cidadãos e cidadãs comprometidos com a justiça e a paz, temos tido a preocupação de melhor conhecer o que anda acontecendo entre Israel e Palestina?

  • Durante este período temos tido a curiosidade de saber as causas desses massacres, para além dos últimos 30 dias?

  • Tomando, por exemplo, o final da Segunda Guerra Mundial como uma das referências históricas desses conflitos, tendo ao nosso alcance um mapa da região daquela época, sabemos um número de Palestinos e de Judeus que ali viviam e conviviam, durante séculos?

  • Com que critérios foi decidida a criação do Estado de Israel?

  • Houve consulta prévia para a implantação do Estado de Israel, também feita aos Palestinos?

  • Como foi feita a distribuição dos territórios entre Judeus e Palestinos?

  • Foi justa a destinação da área dos territórios ao Estado de Israel?

  • Que área acabou sobrando para os Palestinos?

  • Quantos milhares de Palestinos tiveram que ser expulsos de suas terras, invadidas e apropriadas por Israel?

  • Dentre os sucessivos massacres cometidos por Israel contra os palestinos, o que sabemos, por exemplo, da chamada “Guerra dos 6 dias”?

  • Sabemos a dimensão dos novos territórios conquistados por Israel, como se já não fosse abusiva a apropriação violenta desde 1947/1948?

  • Qual a posição de Israel, após a assinatura dos acordos de paz: foi assegurado aos Palestinos o direito de viverem como cidadãos, nos mesmo termos dos cidadãos israelenses?

  • De 2006 para cá, sabemos as condições concretas em que viviam os palestinos, tanto na Cisjordânia, quanto na Faixa de Gaza: extrema penúria, desemprego superior a 60%, grande parte da população sobrevivendo abaixo da linha de pobreza, bloqueio de estrada, ameaças dos colonos, recursos hídricos e mobilidade controlados por Israel…?

  • Sabemos quantas Resoluções de punição a Israel foram votadas pela ONU, cuja aplicação nunca teve lugar, por conta de veto dos EUA e aliados?

  • Em todo essa calamidade, qual tem sido o papel dos Estados Unidos e grandes potências ocidentais: De socorro efetivo à população subjugada da Palestina ou apoio incondicional ao Estado sionista de Israel, com alto financiamento, com armamento pesados e com ameaças aos aliados dos Palestinos?

  • Como aceitar a extrema parcialidade da mídia hegemônica, que se tem tornado mera porta-voz de Israel, dos EUA e de seus aliados?

  • Temos buscado nos informar, recorrendo a fontes alternativas à mídia hegemônica?

  • O que explica a retenção de 34 brasileiros, que esperam há semanas, sua liberação, apesar de todos os esforços diplomáticos do Governo brasileiro? 


João Pessoa, 08 de Novembro de 2023.


terça-feira, 7 de novembro de 2023

TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA: em busca de nossas raízes (XXXI)

TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA: em busca de nossas raízes (XXXI)


O Congo sonhado por Patrice Lumumba. Por mais que estejamos aqui a nos remeter, com frequência, à crueldade dos processos de colonização (onde quer que tenham lugar - no caso em tela, na África), quase sempre somos surpreendidos com episódios que vamos conhecendo ou revisitando.


A República Democrática do Congo (a não confundir com o Congo de colonização francesa) situa-se na África Central, perto de Angola. Tem mais de 2.345.000 de Km2, área em que vive uma população de mais de 65 milhões de habitantes. Como tantos outros países africanos, divididos como coisa de ninguém entre os europeus, no último quarto do século XIX, o Congo (ex-Zaire) foi colonizado pela Bélgica.


Cobiçando suas riquezas naturais, o Estado belga, mancomunado com os interesses de grandes conglomerados transnacionais (inclusive dos Estados Unidos), vivia a tirar o sangue do Povo do Congo, que não encontrou outra saída, senão a luta pela sua independência, seguindo, aliás, os ventos libertários dos anos 60. 


Nesse contexto, é que vai se destacar a figura de Patrice Lumumba, assim como em outros países, outras figuras revolucionárias tomam a frente do duro processo de libertação de sua Gente e do seu País. Articulando as lutas internas e buscando apoio nos países do Terceiro Mundo, filiando-se ao grupo dos países não-alinhados, o Povo do Congo consegue sua independência da Bélgica, em 1960. Na reconstrução do País, realizadas as eleições, Patrice Lumumba é eleito Primeiro-Ministro, para assombro dos inimigos. Tratava-se de alguém distante dos acordos de cúpula, e avesso a manobras de cooptação. 


Arma-se, então, contra ele um complô, formado pelo Estado belga, pela CIA (no Governo Eisenhower) e as multinacionais atuando no Congo. Antes, o rei da Bélgica tinha mandado um recado. Dizia esperar que os cavaleiros que assumiam o governo do Congo fossem capazes de cumprir com dignidade suas responsabilidades... Mas, Lumumba não estava para brincadeira de mau gosto. Mantém-se fiel à sua consciência revolucionária e ao seu Povo. Resultado: organiza-se o Golpe de Estado, menos de três meses depois de governo. Patrice Lumumba é sequestrado, torturado e vem a ser assassinado em janeiro de 1961.


A República “Democrática" do Congo iria, depois, amargar uma corrupta e sanguinária ditadura protegida pelos ocidentais e seus aliados locais. Mais um capítulo trágico de democracia ocidental. Que democracia!


João Pessoa, Agosto de 2007.


segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Filosofia e Literatura: um Diálogo Heurístic

 Filosofia e Literatura: um Diálogo Heurístico*

Alder Júlio Ferreira Calado


A Obra do Prof. Marcelo Bezerra Oliveira, Uma Filosofia da Literatura,

constitui uma densa reflexão crítica sobre as manifestações estéticas,

particularmente expressas pela Literatura, que representa um convite ao

fecundo diálogo entre o Filosofar e a Expressão Literária, em especial à

Brasileira. Proporciona um fecundo entrecruzamento do filosofar e do

expressar artisticamente o movimento do cotidiano, em seu sentir, em

seu sofrer, em seu alegrar-se, em seu esperançar.

De um lado, o Filosofar. A incitação ao pensar, ao exercício crítico da

razão, ao questionamento do viver, a atitude desafiante do questionar, da

dúvida sobre a condição humana – Marx apreciava o dito latino “De

Omnibus Dubitandum” – (Deve-se duvidar de tudo) –, inclusive a partir de

nós mesmos. Em breve, exercitar a criticidade sobre o mundo, sobre a

condição humana, desde as relações do cotidiano.

De outro lado, as relações concretas de experiência humana, tais

como esteticamente expressas pela poesia, pela prosa, pelo romance,

pelos contos, pelas crônicas, pelos seus cenários , pelos seus personagens,

pelas suas tramas.

A Literatura revela-se um rico mostruário do sentir, do pensar, do

querer, do agir, da forma de comunicar os fios contraditórios do viver – As

dores, as alegrias, os prazeres, as dúvidas, as crenças, o ceticismo, a

angústia, esperança, incertezas.

O grande mérito da obra de Marcelo consiste na tentativa exitosa de

fazer dialogar esses dois saberes, sem pretensão de superioridade, mas de

complementaridade: um fecundando o outro. Um filosofar, apartado do

universo estético-literário, sucumbe a um mero exercício especulativo,

estéril, insosso, que acaba em si mesmo. A Literatura, por sua vez,

destituída do diálogo com a Filosofia, resulta mera expressão de

experiência de sentidos acríticos, pendentes ao fatalismo, propensos a um

viver sem sentido, que se rende ao determinismo das circunstâncias, sem

capacidade de alçar voos mais altos.


A contribuição heurística desta obra consiste justamente no diálogo

fecundante entre esses dois saberes: a Literatura, com sua capacidade de

imersão estética na complexa teia do viver, a expressar uma multiforme

malha de relações e de circunstâncias que muitas vezes superam a

compreensão humana, e, por outro lado, a Filosofia, a proporcionar uma

incessante busca de sentidos, por meio de constante problematização dos

escritos literários, seus gêneros, seus personagens e até sua autoria.

------------------------------------

Texto editado pelo autor  e gentilmente digitado por Águeda Ferreira Calado, minha irmã, que atuou como professora de Literatura. Meus agradecimentos.


Para as pessoas interessadas em adquirir o livro de Marcelo podem fazê-lo, contactando:https://www.facebook.com/marcelo.bezerraoliveira/

Whatsapp: 11983881957.


João Pessoa, 06 de Novembro 2023


quarta-feira, 1 de novembro de 2023

O Cotidiano como teia de relações humanizantes / desumanizantes: a incidência da Educação Popular*

 O Cotidiano como teia de relações humanizantes / desumanizantes: a incidência da Educação Popular*


Alder Júlio Ferreira Calado 


Muito se tem refletido sobre o significado e o alcance do vivido no dia-a-dia,  inclusive por Agnes Heller, Michel de Certeau e outros. Nas linhas que seguem, tratamos de compartilhar sentidos do cotidiano, a partir de nossas experiências próprias e comunitárias.

Assim como a realidade, o cotidiano se reveste de tal complexidade, cujo o conhecimento se revela apenas aproximativo, à medida que as experiências do dia-a-dia se mostram, ao mesmo tempo, entrecruzadas de marcas individuais e coletivas; de alcance micro e macro; locais e internacionais; portadoras de relações econômicas, políticas, culturais; subjetivas e intersubjetiva; portadoras de relações planetárias, relações sociais de gênero, de etnia, de geração, de espacialidade, de dimensão erótica, de relações com o Sagrado, entre outras.


Ao tomarmos consciência, de modo processual, dos limites e potencialidades da condição humana, vamos aprendendo - não raramente, com espanto e com dor - do que é capaz o ser humano, tanto em relação às maravilhas como em relação às nossas misérias coletivas e individuais. 


Sabemos que as experiências do cotidiano, a despeito de sua reconhecida riqueza, nem sempre asseguram um conhecimento objetivo do vivido, e que necessitam constantemente de uma leitura crítica, teoricamente fundamentada. Conscientes, por tanto, desses limites, cuidamos, em seguida, de percorrer alguns de nossos achados.


Nosso cotidiano no âmbito das relações planetárias


Da malha de relações que o cotidiano propicia, algumas têm a ver com a nossa Mãe Terra. Somos constantemente interpelados quanto à nossa atitude em relação ao Planeta e a toda a comunidade dos viventes. Do nosso cotidiano surgem perguntas tais como: “temos consciência de que fazemos parte da Mãe Natureza? Que momentos dedicamos do nosso cotidiano a contemplar as múltiplas manifestações em nós, entre nós e ao nosso redor, das belezas e da generosidade da Mãe Natureza? Temos consciência da necessidade de estabelecermos uma relação de reciprocidade, ainda que assimétrica (a mãe Terra nos oferece múltiplas fontes de vida, enquanto nós, o que lhe oferecemos em troca)? Frente à crescente emergência climática, como nós temos nos comportado? Embora se multipliquem as informações sobre as ameaças e os riscos de colapsar as condições de vida humana e de outros viventes, o que temos feito concretamente, do ponto de vista coletivo e do ponto de vista pessoal, para pelo menos reduzirmos tais riscos? No dia-a-dia a partir de nós mesmos, sem ignorarmos a responsabilidade coletiva e dos Estados, como lidamos com desafios tais como: a qualidade e quantidade do nosso consumo de água, alimentos, de energia? Como estamos cuidando do nosso lixo? Que empenho desenvolvemos na mudança de hábitos de consumo? Eis apenas algumas questões corriqueiras que propomos à nossa reflexão, ao exame de nossa consciência de seres cósmicos.


O cotidiano no âmbito econômico


Também no âmbito das relações de produção, o cotidiano se apresenta como um mostruário de nossa posição (pessoal e coletiva), diante do Bem-Comum, isto é, perante os crescentes desafios do modo de produção e de consumo, hoje hegemônico. Com efeito, frente à incessante concentração de riquezas, de terras, de renda e poder, em mãos de uma ínfima minoria, de modo a produzir extremas desigualdades sociais, de que modo, em nosso dia-a-dia, nos posicionamos? Ao denunciarmos tamanhas injustiças, que sinais convincentes emitimos, no âmbito da cotidianidade: de testemunho de partilha ou de reprodução das desigualdades? Como lidamos, no chão do cotidiano, com o acúmulo de bens, com a tendência incessante ao consumismo: sucumbindo às tendências da moda ou comprometendo-nos a viver uma vida sóbria, sem perder a alegria de viver?


Neste sentido, resulta indispensável examinar, de modo autocrítico, se ousamos testemunhar atitudes de transgressão ao espírito capitalista ou nos limitamos a fazê-lo apenas em palavras? 


Nossa Política de cada dia 


Não precisamos recorrer a Aristóteles para reconhecermos a condição política inerente a todo ser humano: em verdade, somos, querendo ou não, “Animais Políticos”. Vivemos imersos também em uma vasta e complexa malha de relações de poder, não apenas no que concerne à relação Sociedade-Estado, mas também no que diz respeito ao nosso dia-a-dia. As relações caseiras, o ambiente de trabalho, as práticas religiosas, os ambientes lúdicos e os profissionais são todos espaços sociais nos quais as relações de poder se mostram presentes. É aí que se observa a postura política de cada sujeito, em relação ao seu interlocutor: se é de respeito ou se é de desdém; se é de disposição dialogante ou de imposição de decisões; se é de empatia ou de discriminação. É nos espaços do dia-a-dia, que podemos sentir e aferir as atitudes políticas de cada pessoa, no intrincado das relações do dia-a-dia. 


A cotidianidade no plano cultural


No vasto e complexo mundo da cultura, da cultura vivenciado no dia-a-dia, aqui destacamos os fios das relações sociais de gênero, de etnia, de geração, de espacialidade, entre outros. No dia-a-dia, é que se revela - mais pela prática do que pelo discurso - a qualidade do nosso relacionamento com o outro - com a outra: quem e como toma as decisões; quem concretamente compartilha o poder, de forma horizontal; quem tem respeito às diferenças ou quem não as tolera; quem e como se comunica com todos os membros da família: filhos, filhas, irmãos e irmãs… 


É, ainda, no chão do cotidiano que se revelam as atitudes de natureza ética: atitudes de franco acolhimento ou de preconceito; práticas de companheirismo e de alteridade ou de pretensa superioridade; atitudes de apreço à nossa ancestralidade e de cultivo da memória histórica dos povos originários, das comunidades quilombolas e de outros grupos étnicos, ou ao contrário, de desprezo ou de ignorância de nossa memória histórica.


Na esfera das relações de geração, o cotidiano também se mostra um espaço pródigo para aferirmos qual tipo de relação que cultivamos com as crianças, os adolescentes, os jovens, os adultos e pessoas idosas, sempre buscando nos colocar em pé de igualdades com o outro, com ele dialogando, aprendendo e compartilhando relatos de experiência.


É, igualmente, no chão do dia-a-dia que se verificam as marcas decorrentes de nossa espacialidade, isto é, dos traços que carregamos por conta de nossas procedências geográficas: o aprendizado de uma trabalhadora da zona da cana é diferente, sob vários aspectos, de que vive na caatinga nordestina; o sentir e o pensar de um latinoamericano também difere, em vários pontos, do sentir e do pensar de um europeu. 


A incidência da Educação Popular nas relações do cotidiano


A Educação Popular, se e quando tomada um dos protagonistas do processo de humanização, tal como outros saberes, também se sente instada a intervir positivamente na vasta e complexa malha das relações do cotidiano. Sua incidência pode assumir tarefas diversas. Uma delas tem a ver com uma permanente busca de exercício crítico e autocrítico. Tocada por esta perspectiva autocrítica e transformadora, a Educação Popular costuma partir do reconhecimento dos limites e das potencialidades da condição humana. Somos todos seres inacabados, incompletos, sujeitos ao provisório, ao equívoco, e, ao mesmo tempo, historicamente chamados a superar - ou ir superando - nossas limitações, por meio do nosso compromisso comunitário e pessoal de ir forjando condições de superação de nossas fragilidades, em vista da construção processual de um homem novo, de uma nova mulher e de uma nova sociedade alternativa à barbárie do modo de produção capitalista, grande ameaça para o Planeta para os humanos e toda a comunidade dos viventes. 


A partir desta balizas, a Educação Popular é chamada a contribuir concretamente nos processos organizativo, formativo e de mobilização, tendo como principais protagonistas as forças sociais de maior referência da sociedade civil tais como os Movimentos Sociais Populares, incluindo múltiplas organizações populares, sindicais, eclesiais, partidária, entre outras.


O Trabalho de Base constitui um instrumento de reconhecido alcance neste processo, à medida que

- promove a criação e a manutenção dos núcleos, dos conselhos populares, dos círculos de cultura e de organizações similares; 

- zela  pela participação de todos, nas decisões tomadas ( decisões tomada pela Base);

- Exercita, com todos os participantes, uma leitura crítica da realidade (análise de conjuntura);

- Desta leitura crítica, busca extrair lições e pistas de sua atuação ;

- Incentiva, por meio das tarefas do dia-a-dia, a constante superação da dicotomia entre trabalho intelectual e trabalho manual (todos são instados a participarem, em rodízio de tarefas manuais tanto quanto de leituras e aprendizado teórico);

- Cuida de assegurar a alternância de cargos e funções, de modo a evitar por longo tempo o exercício da coordenação apenas por alguns), tendo também o cuidado de distribuir as tarefas de modo a garantir equilíbrio na participação de homens e mulheres; de pessoas de várias etnias; de portadores de diferentes níveis de escolaridades; de gente procedente do campo e da cidade e várias regiões. 


O alcance do cotidiano se faz presente em todos os espaços geográficos e sociais, no Brasil, na América Latina e em outras partes do mundo. Neste momento, por exemplo, impacta-nos o cotidiano experimentado pela população palestina, especialmente as crianças e as mulheres, vítimas fatais de intensos bombardeios, durante semanas, cometidos pelo Estado sionista de Israel. Cabe-nos denunciar essa barbárie e manifestar nossa solidariedade ao Povo Palestino e todas as vítimas - da Pelestina ( ja em torno de 10.000, das quais 3.000 crianças) ou de Israel (em torno de 1.400), ao mesmo tempo em que reconhecemos os esforços do Presidente do Brasil, de propor incansavelmente caminhos de superação desta barbárie.

----------------------


Texto ditado pelo autor e gentilmente digitado por Elizabete Santos Pontes e Gabriel Luar Calado Bandeira, tendo Eliana Calado se  ocupado da revisão do texto. A cada qual, o reconhecimento e a  gratidão do autor.    

          

João Pessoa, 01 de Novembro de 2023.