sábado, 20 de junho de 2020

POLIVALÊNCIA E EFICÁCIA TRANSFORMADORA DAS LINGUAGENS ARTÍSTICAS: O CASO DAS “CHARGES”

POLIVALÊNCIA E EFICÁCIA TRANSFORMADORA DAS LINGUAGENS ARTÍSTICAS: O CASO DAS “CHARGES”


Alder Júlio Ferreira Calado


Por mais de uma vez já tivemos oportunidade de expressar o nosso encanto pelo mundo das artes. Seguem impactado-nos, positivamente, a polivalência e a eficácia transformadora das diferentes linguagens artísticas. Uma delas - a dos cartuns ou das charges - aqui tomamos como objeto das presentes notas.

A exemplo de tantas outras expressões artísticas similares, as charges continuam a demonstrar seu enorme potencial crítico-transformador. Diferentemente de outras manifestações artísticas, a exemplo do mundo das letras, as “charges” comportam uma riqueza singular: expressar em um simples desenho, em uma simples imagem, dezenas e centenas de páginas. Chargistas despontam, portanto, como um um ser humano de refinada sensibilidade poética, à medida que, sem precisar de letras, mostram-se capazes de traduzir múltiplas cenas da realidade econômica, política e cultural, de modo penetrante e didaticamente convincente.

De vez em quando, sinto-me remetido aos anos 80, no exercício do magistério, especialmente na faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru (FAFICA), quando insistia na leitura e debate dos temas relativos à sociologia e de outras disciplinas afins, incentivando as estudantes e os estudantes a recorrerem às páginas de jornais (Folha de São Paulo, Diário de Pernambuco, Jornal do Comércio e outros) e interpretarem as principais charges da semana, fazendo um vínculo orgânico com os diversos temas tratados no programa daquela disciplina. Eram anos de intensa mobilização dos movimentos sociais populares, sindicais e partidários, além de várias outras organizações da sociedade civil brasileira, em um esforço concentrado de superar os anos de chumbo da Ditadura Civil-Militar. Naquela ocasião, também despontavam ilustres cartunistas, a exemplo de Henfil. Em páginas de jornais, de revistas e de periódicos alternativos (O Pasquim, Movimento Em Tempo, Companheiro, Hora do Povo, Tribuna da Imprensa, Voz da Unidade, Tribuna da Luta Operária, entre outros), eram frequentes as charges muito bem elaboradas. 

Sem prejuízo e leituras específicas, relativas à sociologia, nosso propósito era o de despertar e fomentar a consciência crítica da moçada estudantil. E um dos meios que encontrava, estava presente no exercício de interpretação da realidade social, econômica política e cultural, por meio da perspicácia observável em várias daquelas charges. Eu utilizava deste recurso como instrumento de avaliação, que também era bastante apreciado pelos estudantes. 

Em se tratando de um dom artístico de excelência, as charges constituem instrumentos que poucos são capazes de trabalhar, de modo apropriado. Lidar com charges e cartuns requer especial talento, especialmente no que toca à capacidade de percepção do mundo em volta, requerendo sensibilidade refinada do observador da mesma realidade, além de muita criatividade, ao jogar com formas, linhas, cores, posições, etc. Praticamente sem palavras ou com pouquíssimas palavras, uma charge comporta uma demonstração de extrema capacidade de leitura da realidade posta como alvo do observador, da observadora, além nem de requerer deste ou desta uma qualidade extraordinária de traduzir as mais diferentes cenas da realidade social, política econômica e cultural, de modo a espelhar detalhes relevantes do que se quer mostrar 

A depender do talento do cartunista ou da cartunista, seu produto artístico se apresenta com maior ou menor qualidade. Nem toda charge, por consequência, espelhar valioso talento. lembro-me, por exemplo, de uma charge publicada no jornal "Hora do Povo", no final dos anos 70, início dos anos 80 em que a charge publicada mostrava, de modo um tanto grotesco, a figura ou caricatura do então ministro Delfim Netto, arriando as calças, tendo em cima da charge o letreiro: "Delfim arreia as calças para o FMI". Aliás, com justiça ou não, a figura de Delfim Netto constitui um dos alvos preferidos pela crítica artística daquela época. Um folheto de cordel, de autoria de Sebastião Silva, um poeta do sertão pernambucano, trazia a seguinte estrofe, que se notabilizaram:

O deputado Juruna
Cacique que não tem medo
Disse assim a Figueiredo
"Seu presidente reúna
Seu ministério, e puna
Esta corja de ladrão
Bote todos na prisão
O povo é quem diz assim
Se não der fim a Delfim
Delfim dá fim à nação

Ainda que se trate de uma estrofe relativamente contundente, vale registrar a postura relativizante do então ministro criticado. Diferentemente do atual presidente, o então ministro Delfim Netto é alguém portador de humor...

Voltando a focar as charges, elas tem atravessado décadas. No jornalismo, atualmente, podemos observar a contundência e sua capacidade de penetração, na crítica da realidade presente. Da pena de chargistas tais como Renato Aroeira, Carlos Latuff, Chico Caruso, Laerte Coutinho, Priscyla Vieira, Alexandra Moraes, Miguel Falcão, Régis Soares, entre outros e outras, têm brotado críticas notáveis, de grande alcance interpretativo da nossa realidade. Diversas charges têm impactado sobremaneira. Uma das mais recentes, de autoria de Renato Aroeira, desperta a ira dos bolsonaristas, por haver figurado na charge a caricatura do próprio Presidente da República associando-o à suástica. Os apoiadores de Bolsonaro não tardaram em buscar incriminar o artista. No entanto, carecem de argumentos convincentes, até porque cenas recentes protagonizadas pelo Presidente da República e por membros do seu entorno, de modo direto ou indireto, assinalam atitudes no mínimo simpáticas a ideias nazi-fascistas, o que constitui sério empecilho à sua defesa.

Graças, por um lado, ao perfil reacionário das correntes obscurantistas, e, de outro, às marcas próprias das charges, enquanto linguagem artística, interpõe-se um certo hiato entre as posições desses dois tipos de sujeitos políticos. Aqui, enfatizamos sobremaneira as marcas artísticas francamente rejeitadas pelas correntes obscurantistas e reacionárias. Ontem, como hoje, a arte comporta uma série de elementos subversivos a uma certa ordem tida como imutável (desde que controlada pelos setores dominantes), qualquer sinal de mudança ou de manifestação distinta do que aparece como "normal" provoca a ira dos detentores da mencionada ordem e, com ainda maior força, quando se trata de uma linguagem artística que se reveste de características claramente subversivas a esta ordem, tais como a crítica, a sátira, a ironia, o humor. Isto nos remete, por exemplo, à conhecida cena do romance de Umberto Eco, "O nome da rosa", em que o genial autor descreve a perseguição daquela ordem eclesiástica, orientada pela repressão ao diferente, em um episódio como o que é mostrado no romance e no filme, em que o clérigo carrancudo se mostra raivoso com relação à manifestação do riso: o riso acena para atitudes de seres livres, o que não é tolerado por quem vive capturado pelo ódio, pela sisudez, pela avidez de comando.

As presentes notas tratam de manifestar nossa solidariedade a tantos cartunistas e chargistas de grande talento. A melhor expressão de solidariedade a estas figuras - homens e mulheres - dedicadas às artes em geral, e, em especial, às charges e aos cartuns, consiste em divulgar amplamente seu trabalho, notadamente entre os jovens, proporcionando uma ocasião de exercício crítico e de uma postura de protagonismo cidadão, diante das realidades mais adversas, com o compromisso de superá-las.

 João Pessoa, 20 de junho de 2020

segunda-feira, 15 de junho de 2020

MINOTAURO, DE NOVO, ENTRA EM CENA? QUE SE ERGA UM TESEU MAIS RESISTENTE

MINOTAURO, DE NOVO, ENTRA EM CENA?
QUE SE ERGA UM TESEU MAIS RESISTENTE
Alder Júlio Ferreira Calado

Nos estudos de História, no Colégio
Em Pesqueira, rincão pernambucano
Lendo as lendas dos gregos e troianos
Sempre tinha qual belo prêmio régio
- Que soava pra mim um privilégio –
Desfiar o novelo de Ariane
Permitindo a Teseu que não se dane
Pelas curvas do vasto labirinto
No embate de morte, já pressinto
Contra o monstro se erga, deixe-o em pane

Nos porões de Cnossos, o gigante
Minotauro era o monstro truculento
Vidas jovens exige, em alimento
Sua sede de sangue era incessante
Com o seu plano assassino, ia adiante
Foi então que alguém apareceu:
Pra salvar a cidade vai Teseu
Enfrentar Minotauro, destemido
E a todos livrando do bandido.
Mas, parece que o monstro reviveu...

Tantos séculos depois, e... ei-lo ainda
Mais cruel Minotauro inclemente
Exigindo o martírio de mais gente.
Quando alguns já pensavam página finda
E julgavam impossível sua vinda...
Minotauro de hoje é o império
Capital é seu nome, é deletério
Nações, pobres, Planeta – tudo é alvo
De sua mira assassina, nada é salvo
Coletivo Teseu vence o mistério!

Trecho do vôo Florianópolis-São Paulo, 11/04/2003

terça-feira, 9 de junho de 2020

TRÊS FATORES QUE ENGENDRAM TIRANIA; VIOLÊNCIA, MENTIRA E CORRUPÇÃO

TRÊS FATORES QUE ENGENDRAM TIRANIA;
VIOLÊNCIA, MENTIRA E CORRUPÇÃO

Alder Júlio Ferreira Calado


Agredidos por tanta tirania
Que de modos sutis se manifesta
Sanguinária, por vez com ar de festa
Seu efeito, contudo, atrofia
Desfigura os humanos, traz sangria
Só nos cabe a ela dizer não
Nossa luta jamais será em vão
A raiz deste mal se esvazia
Três fatores engendram tirania:
Violência, mentira e corrupção


Ditadura tem vários componentes
Mais de três integrando sua raiz
Gente rude, incauta, seres vis
Que se deixam guiar gregariamente
Abrem mão de pensar com a própria mente
Pedem a outrem: "Por mim tome a decisão"
Justo assim, os espertos o farão
Consciente, o Povo repudia
Três fatores engendram tirania:
Violência mentira e corrupção

Mais fatores incluo nesta lista 
Ignorância, má-fé, bajulação
Pregadores insanos aí vão
Bem mais vasta é a folha, porque mista
Tudo isto é preciso ter em vista
Todos eles fazendo conexão
Conferir no real não é em vão
Num tripé eu resumo, todavia
Três fatores engendram tirania:
Violência, mentira e corrupção

A mentira inicia a empreitada
Estratégia maligna e capciosa 
É loquaz, atraente, cheira a rosa
Fascinantes promessas dão em nada
Fingem o bem, falam em Deus, tudo fachada
Patriotas se dizem: traem a nação
E pilhando as riquezas, assim vão

Falsa crença forjando, se irradia
Três fatores engendram tirania:
Violência, mentira e corrupção

A mentira produz poder fugaz
Que fascina no tirano e seus parceiros
Abusando de métodos matreiros
“Fake News”, negociatas e outros mais
Nepotismo, favores e que tais 
Mercadores da Fé, passando a mão
Extorquindo do pobre o único pão 
Só os ricos bendizem, quem diria
Três fatores engendram tirania:
Violência, mentira e corrupção


Corrompidos, corrompem, e sem freio
Só enxergam o poder à sua frente
Vão passando o trator em toda gente
A qualquer contrapeso estão alheios
Sem escrúpulos, recorrem a todo meio
Quando já não convencem com sermão
Do recurso às armas usarão
Cai a máscara, de vez, e o caos se cria
Três fatores engendram tirania:
Violência, mentira e corrupção


Não há mal, entretanto, sem ter fim
Também deste um antídoto se tem
Com justiça, com paz, se planta o bem
Com o povo na rua lutando, enfim
Cidadãos conscientes fazem assim
Ante o mal não se calam, dizem não
Construindo unidos, assim vão
Leviatã vai ruindo, esvazia
Três fatores engendram tirania:
Violência, mentira e corrupção


 João Pessoa, 9 de junho de 2020 

sábado, 6 de junho de 2020

POR UMA IGREJA REFONTIZADA, A SERVIÇO DA VIDA EM PLENITUDE


POR UMA IGREJA REFONTIZADA, A SERVIÇO DA VIDA EM PLENITUDE

Alder Júlio Ferreira Calado

À parte benditas exceções, tal vem sendo a distância tomada pelas Igrejas cristãs, na contemporaneidade, em relação às suas fontes autênticas, que suas ações se confundem, não raramente, com forças tenebrosas que prevalecem no atual contexto separadas da Tradição de Jesus. Por suas próprias fontes, em vez de protagonizarem, como são chamadas a fazê-lo, iniciativas luminosas ("vocês são a luz do mundo") comprometem-se com frequência com grupos e pessoas obscurantistas; em vez de empreenderem ações transformadoras ("vocês são o fermento na massa"), perdem força e credibilidade aos olhos de quem ousa lançar sementes de mudança, nas mais distintas áreas de atuação; em vez de se comprometerem como iniciativas de caráter alternativo (“vocês são o sal da terra”), militam, por vezes, ao lado de forças que não cessam de lançar no mundo sementes de ódio, de prepotência, de dominação…

Consolam-nos, por outro lado, múltiplas ações desenvolvidas por parcelas minoritárias - “as minorias abraâmicas”, de que falava Dom Helder Câmara - que não se cansam de testemunhar e de clamar pela conversão de suas respectivas igrejas. Com efeito, desde os primeiros tempos, e por séculos a fio até o presente, fazem-se presentes profecias e segmentos eclesiais. A despeito de seus limites, seguem emitindo gratos sinais e testemunhos de fidelidade à tradição de Jesus, várias Marias, inclusive a mãe de Jesus, e Maria Madalena.

A pelo menos meio século, vem se intensificando, com reconhecida qualidade, os estudos e pesquisas desenvolvidos por teólogas feministas, conferindo um olhar feminino/feminista na interpretação e na exegese dos textos bíblicos (vetero e neotestamentários). Igualmente digna de nota vem sendo a experiência comunitária e orante e contextualizada da leitura da Bíblia, em consonância com os significativos achados nas pesquisas realizadas. Neste campo muitos registros bíblicos relidos com olhar feminino ou feminista têm vindo à tona, com resultados surpreendentes, de modo a sinalizar uma atuação do sopro Fontal inovador, que se vem experimentando. Muitas interpretações ancoradas apenas no olhar machista e patriarcal foram - e ainda continuam sendo - largamente naturalizadas, em claro prejuízo do protagonismo das mulheres. Citemos, de passagem, alguns casos que permitem ilustrar constatação. Graças a estas pesquisas, é possível identificar aspectos bíblicos que passam frequentemente despercebidos a um olhar androcêntrico, em detrimento da participação ativa das mulheres no movimento de Jesus e ao longo da tradição apostólica. Isto se pode observar diante de passagens fortes do Evangelho, como no episódio da Ressurreição de Jesus, que não permite subestimar o papel de Maria Madalena como discípula predileta de Jesus, inclusive devendo-se tratá-la como "a Apóstola dos Apóstolos". E, no entanto, que lugar costuma ser reconhecido a Maria Madalena, entre os demais apóstolos? 

A situação se agrava consideravelmente, a partir do século quarto, da era constantiniana, inclusive desde o Concílio de Nicéia (325), pelo Imperador Constantino convocado e presidido, de forma escancaradamente contrária ao Espírito do Evangelho. Bem mais recentemente, uma simples observação feita pelo Cardeal Leo-Jozef Suenens, presidia a uma das aulas conciliares do Concílio Vaticano II, solicitando aos seus pares que olhassem para os seus lados, perguntando-lhes da presença feminina, naquele recinto. O Cardeal teve um gesto inspirado e inspirador, no sentido de exortar os seus pares quanto à gravíssima desigualdade dos sujeitos eclesiais, de modo a conferir apenas a homens o direito ou privilégio de decidirem sobre assuntos da Igreja Católica Apostólica Romana, em âmbito Universal, como se a igreja fosse composta apenas de varões. O fato de o Cardeal Martini, na sua última entrevista, não ter hesitado em afirmar que nossa igreja estava 200 anos de atraso, só confirma a urgência de profundas reformas que se tornem efetivadas, em nossa igreja, se ela está mesmo disposta a ser fiel, não ao Imperador Constantino ou aos valores do império romano (seja o do Ocidente, seja o do Oriente), mas ao evangelho. 

A despeito de que parte expressiva da bibliografia disponível sobre a história da igreja encontram-se, contudo, textos luminosos, escritos por historiadores e historiadoras do Cristianismo, que apresentam uma percuciente descrição e análise de como, sobretudo após o século quarto, fecundas experiências comunitárias das primeiras comunidades cristãs foram cedendo lugar a um reduzido grupo clerical, que passa progressivamente a distanciar-se do Povo cristão tal como antes organizado em comunidades espalhadas por várias regiões. Comunidades cristãs que, conforme o relato dos Atos dos Apóstolos, célebres textos patrísticos, dão conta do clima fraternal e do espírito de solidariedade e de serviço reinantes entre aquelas comunidades. A sede de poder logo passou a seduzir certo número de clérigos, de modo a torná-los cada vez mais uma casta controladora das grandes decisões do conjunto do Povo cristão até então. O que se observava era uma disposição de convivência fraterna, de partilha, de solidariedade, ausência hierarquizante,em que pese a diversidade de funções a cargo de certos membros da Comunidade - diáconos, presbíteros e bispos, a exercerem suas funções como serviço a causa do Evangelho, e não como pretexto de mandonismo e de autoritarismo.

Neste sentido, o Concílio de Niceas (325) sob o controle do Imperador Constantino, constitui um marco importante deste crescente distanciamento entre os membros comuns das comunidades cristãs e outros que se insurgiram como mantenedores do poder de decisão, ainda que a revelia ou em clara oposição aos princípios da Tradição de Jesus.

Tanto antes quanto sobretudo depois deste Concílio de nicéia (325), uma sucessão de medidas vem a ser tomadas, com o objetivo de consolidar pela força, inclusive. Neste domínio tornaram-se célebres disputas sanguinárias, suborno, luxúria, e outros graves desvios, que tiveram lugar nesta época, protagonizada por figuras papais, exemplo de Sérgio III ( ? - 911), João XII (937 - 964), Bento IX (exerceu o pontificado 3 vezes, entre 1032 e 1048), Gregório VII (1015/1020 - 1085), Inocêncio IV (1195 - 1254), Bonifácio VIII (1230 - 1303), Alexandre VI (1431 - 1503), Júlio II (1443 - 1513), Leão X (1475 - 1521), Clemente VII (1478 - 1534), e vários outros, não hesitavam em formar exércitos para disputarem o poder temporal com outros reis e príncipes da época. Nestas ocasiões, tais figuras papais não hesitavam em apresentar como argumento estratégico a suposta ascendência do poder espiritual sobre o poder secular (dos príncipes). Notabilizou-se, igualmente, o episódio envolvendo o próprio período em que Celestino V exerceu o papado, função, à qual renunciaria seja pela cupidez das atitudes tomadas por quem lhe sucederia, com o nome de Bonifácio VIII, seja em função do perfil de Celestino V, um eremita, destituído completamente de apelo ao poder papal.

Acerca de episódios similares, não é à toa que, em sua famosa Comédia, Dante coloca Bonifácio VIII como um dos integrantes do inferno, ao lado de outras figuras envolvidas em incursões violentas pelo poder. Papas, cardeais, bispos e outras figuras do clero eram constantemente acusados de envolvimento em vários episódios de luxúria, de devassidão, venda de indulgência, de corrupção. Reiteradas e sanguinárias lutas pela pretensão e supremacia do poder espiritual sobre o poder secular, assassinatos, estupros, torturas, proteção dos interesses familiares contra os direitos dos demais - tudo o que contraria a fonte principal da fé cristã. Uma simples consulta a páginas antológicas do Evangelho (por exemplo, o Sermão da Montanha, capítulos 5 a 7. e, Marcos 10,42- 45. e João Capítulo 10 e tantas outras passagens) é suficiente para se ter noção das barbaridades então praticadas, e mais graves ainda, por serem obras dos que se colocavam como sucessores dos Apóstolos. Quem se der ao trabalho de consultar a biografia dos Papas acima referidos, terá a oportunidade de confirmar estes crimes, praticados nos séculos 11 ao 13, justamente um período em que  ficam essas figuras monstruosas, é que se dá o início de uma estrutura eclesiástica, fundada na cega obediência aos ditames do papado, a organização hiper hierarquizada, mecanismos jurídicos tais como Código de Direito Canônico, a organização em diocese e paróquias, em suma, o cerne da organização eclesiástica que comanda a caminhada da Cristandade, durante séculos. Nunca é demais assinalar que, mesmo durante os mais sangrentos períodos de luta pelo poder, inclusive por meio das Cruzadas e da implantação do uma análise mais percuciente desta realidade, nas diferentes tramas de seus fatos e acontecimentos, requer de nós não apenas um olhar sobre árvores individualizadas, mas também um olhar sobre a própria floresta. Implica, portanto, um exercício multidimensional; requer uma especial atenção para se fazer uma conexão objetiva entre as partes e destas com o todo e, uma relação mais cuidadosa entre os próprios fatos e acontecimentos analisados; requer, ainda, um olhar que tome em conta as idas e vindas deste processo, isto é, ele não se faz de modo linear, por meio de uma evolução retilínea. mas antes, aos trancos e barrancos, em um entrechoque desses fatos e acontecimentos. Neste sentido, cumpre-nos ir além de uma análise que se detenha nos malfeitos estritamente individuais, isto é, de modo a sublinhar a responsabilidade individual pelos malfeitos cometidos, mesmo em se tratando de pontífices. Conduz-nos, antes, a um exame do processo como um todo. Estruturalmente se desenvolve, sempre tomando-se como baliza ou parâmetro os critérios nucleares ditados pela fonte primeira de nossa fé, o Evangelho, a Tradição de Jesus. Sendo assim, várias questões podem e devem ser levantadas:

·  Sendo a igreja composta por sujeitos plurais, mulheres e homens, quais tem sido os protagonistas essenciais destes feitos?
·  É da natureza da Tradição de Jesus, a partir mesmo dos relatos neo testamentários, este modo androcêntrico e patriarcal de organização das comunidades cristãs animadas por Jesus?

Não devemos esquecer nem subestimar a profética resistência de figuras tais como a de Francisco de Assis, Gioacchino da Fiori, Fra Dolcino, Pedro Valdo, Jane Huss, Thomas Nüntzer, Margarete Porète, de vários movimentos populares, como o das beguinas, em busca de fazer valer a tradição de Jesus contra as monstruosidades da hierarquia.
A este propósito, aliás, vale destacar que não se trata de apregoar ou sugerir uma igreja composta de pessoas puras. São outros os critérios que o próprio Jesus de Nazaré utilizou ao escolher seus discípulos e discípulas. Os apóstolos, por exemplo, eram partícipes de vários estratos sociais, eram pessoas simples e portadoras de defeitos, inclusive Pedro, que acabou por traí-lo e abandoná-lo, arrependendo-se e convertendo-se ao Caminho. Trata-se, porém, de reconhecer, não apenas a gravidade dos crimes cometidos por estes Papas, mas também de constatar sua indisposição para a conversão.

Por outro lado, importa ressaltar os valores que a tradição de Jesus mais inspira e destaca em seus discípulos e discípulas, em especial aqueles e aquelas a quem incumbe de missão especial. Com efeito, o Projeto de Deus incarnado em Jesus, ao partir de pessoas simples, pecadoras, gente comum, nelas confia e fornece Luz e Força para, a despeito de seus limites, enfrentarem e vencerem os obstáculos que se lhes  interpõem.

No entanto, partiram de figuras papais deste gênero, iniciativas de organização do seu poder, estreitamente inspiradas na estrutura do Império Romano, em clara demonstração de sua insensibilidade e de seu compromisso  com as primeiras comunidades cristãs e, sobretudo, com o modo próprio de organização comunitária vivenciado e anunciado por Jesus de Nazaré. Venceu, infelizmente, a estratégia destas figuras papais, impondo uma estrutura eclesiástica conforme seus interesses de poder. O papado passa, desde então, a figurar como uma estrutura eclesiástica centrada em uma monarquia, para o que também contribuíram formas de organização e de sustentação deste poder Eclesiástico, bem ao modo do Império Romano. Dentre as principais organizações eclesiásticas, inspiradas no Império Romano, além do próprio papado,, também fazem parte as formas organizativas em dioceses e paróquias. Uma marca relevante da chamada Cristandade, que vem atravessando séculos sem que, apesar de sucessivas convocações de concílios, pouca coisa se tenha alterado desta estrutura, inclusive em nossos dias. Ainda hoje, enquanto o Brasil se vê fortemente atingido por uma alta letalidade da COVID-19 (atingindo uma média diária superior a 1000 mortes), graças inclusive, à grave omissão do governo Bolsonaro, eis que circula a notícia, pelo jornal Estadão, de São Paulo, dando conta da proposta de sacerdotes em apoio ao governo Bolsonaro, em troca de vantagens e outorgas para sua mídia conservadora. Cf: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,por-verbas-tvs-catolicas-oferecem-a-bolsonaro-apoio-ao-governo,70003326526. Procedimentos similares devem ser estendidos também a outras igrejas cristãs, como a do Pastor Silas Malafaia.

Graças a esta avidez de poder, por parte dos que investiram na criação do papado, é que se deu a cisão entre a igreja Católica, bifurcada a partir de então, entre Igreja Católica do Ocidente, sediada em Roma, e a Igreja Católica do Oriente, a qual seguiu organizada com um perfil pluriforme diversificado, sem subordinação a um único chefe, mas situando-se em vários pontos do Oriente, tendo como referência um patriarca, que mantém uma relação fraterna com outros patriarcas, referências de unidade em outros centros. Ao contrário desta posição, a Igreja Católica no Ocidente, motivada por um desejo de centralização, passou a investir no papado como único modo de governar a Igreja Católica Romana. O mais grave desta história é que, além da cisão provocada, seus chefes investiram seu trabalho em um projeto de acumulação do poder temporal e do poder secular, mesmo a custa de muitos conflitos Sangrentos (o exemplo das Cruzadas), em diversas regiões da Europa a partir desta orientação que pouco ou nada tem de inspiração evangélica nem da Patrística. Seus chefes (os Papas), rodeados de cardeais e de bispos, além de suas alianças com reis e príncipes, cuidaram de erigir uma estrutura imperial de governança, recorrendo a mecanismos de poder tais como o Código de Direito Canônico, as Dioceses, as Paróquias, além de uma complexa estrutura central feita à base de um Estado, comportando Ministérios -  os chamados Dicastérios ou Secretarias,  Setor Diplomático, estrutura financeira ( Banco do Vaticano), entre outros aparelhos de governança.

Sem embargo, não se tratou de uma governança monolítica e sem discordâncias e mesmo contestação. Ao longo dos séculos posteriores, diversas foram as experiências proféticas e missionárias, protagonizadas pelas "minorias abraâmicas", resistirem a tal estrutura, por entenderem  distanciada da fonte maior do movimento de Jesus, o Evangelho.

Ainda em meados do século passado, especialmente a partir dos anos 40, pontificaram diversas experiências proféticas, tais como a "Mission de France", fecundo legado dos padres operários, bem como uma vigorosa e fecunda produção teológica, a clamar por profundas mudanças na organização da Igreja Católica Romana. O Concílio Vaticano II constituiu o desdobramento principal deste movimento de renovação eclesial. Convocado em 1959, pelo Papa João XXIII, o Concílio Vaticano segundo realizou-se de 1962 a 1965 trazendo alguns avanços. Em relação à pesada estrutura até então vigente, disto dão testemunho seus 16 documentos conclusivos, em especial 4 constituições: a que se refere à  Palavra de Deus ("Deiverbum"), a que trata da Liturgia(" Sacrossanctum Concilium"), a que abordava o significado e a renovação organizativa da igreja (" Lumen Gentium") e a que buscava empreender um diálogo com o mundo moderno ( " Gaudium et Spes ").

No entanto, muitas pendências não puderam ser propriamente enfrentadas, dada a posição conservadora da enorme maioria dos Padres conciliares. A experiência conhecida como "o pacto das catacumbas "constitui um notável exemplo de resistência e de convocação a uma verdadeira Igreja dos pobres, expressão cunhada por João XXIII.

 A despeito da Profética iniciativa do pacto das catacumbas, inspirador da II Conferência Episcopal Latino-Americana, realizada em Medellín (Colômbia), em 1968. Isto, contudo, não conseguiu imprimir mudanças significativas na mentalidade dos principais grupos de decisão, em âmbito da direção da Igreja Católica Romana. Certo é que, mais de meio século após a realização do Concílio Vaticano II, não se conta com mudanças de fundo na estrutura eclesiástica, em que pese o fecundo esforço Profético que vem sendo envidado pelo atual Bispo de Roma, Francisco. 

São, com efeito, conhecidas sucessivas medidas que Francisco, Bispo de Roma, desde o início de seu pontificado, há 7 anos, vem desenvolvendo, no sentido de sensibilizar e de comprometer os vários organismos da Igreja Católica Romana e seus diferentes dirigentes, em busca de reformas relevantes, a começar pela atualização dos documentos do Concílio Vaticano II. Não apenas em suas dezenas de viagens apostólicas, pelos cinco continentes, mas também por frequentes pronunciamentos, por escritos de referência ( sua encíclica social, suas Exortações Apostólicas) correspondem a um franco atestado. Mais do que isto, seu próprio testemunho de Bispo de Roma, empenhado em desencadear uma série de alterações na Cúria Romana, nas estruturas pouco ou nada evangélicas características do modo organizativo da Igreja Católica Romana.

De Francisco, Bispo de Roma, são igualmente conhecidas as reiteradas tentativas de alguns de seus predecessores e auxiliares. O Papa João XXIII constitui uma referência a não perder de vista. O Cardeal Martini, em sua última entrevista, lembrava a urgência de reformas nas estruturas eclesiásticas, que ele entendia estarem em atraso de 200 anos. Juntamente com estas testemunhas, há por certo figuras notáveis do episcopado, do clero, em busca da concretização destes apelos. Igualmente, há de se ressaltar o entusiástico apoio da parte de leigas e leigos religiosas e religiosos, alguns deles constituídos em organismos autônomos, empenhados na mesma direção. A exemplo - para citarmos apenas dois casos -  a da  Organização das Religiosas dos Estados Unidos (LCWR) e a do Movimento Internacional Somos igreja.

 Entretanto, somos obrigados a constatar as dificuldades quase intransponíveis encontradas, nesta busca de reformas da/na Igreja Católica Romana. Aqui, ali, algumas alterações pontuais e relativamente secundárias, mas, no cerne da estrutura, quase nada se vem conseguindo.

Estas observações valem, consideradas as ressalvas necessárias e as proporções, em relação ao conjunto das igrejas cristãs: além da Igreja Católica Romana, devem estender-se, no que é cabível, também as Igrejas Ortodoxas e as Igrejas Reformadas.

Em uma de tantas entrevistas concedidas pelo teólogo José Comblin, uma delas foi concedida a um jornalista da Radio Bio Bio, em Santiago no Chile, há mais de 10 anos. Nela, o teólogo, perguntado sobre o que deveria ser mudado na igreja católica Romana, ele não hesitou em começar por dizer: "Todo..." À parte sua força de expressão, convém não subestimar tal entendimento, sobretudo quando se põem em exame as distâncias consideráveis entre a estrutura dessas igrejas e o espírito do Evangelho, em que todas dizem inspirar-se. Eis porque, a seguir, propomos a reflexão de vários pontos, em forma de perguntas que nos podem ajudar neste caminho, nesta busca:

 Qual a fonte principal em que todas as igrejas cristãs confessam inspirar-se?

 Como justificar o grosso de suas respectivas estruturas organizativas, a partir dos valores axiais do Evangelho?

Como, no início da tradição de Jesus, se organizavam as primeiras comunidades, em comparação com o formato organizativo característico das Igrejas Cristãs, mais de 2.000 anos depois?

É sustentável seguir uma estrutura visivelmente em processo de caducidade e de atraiçoamento aos princípios elementares de suas respectivas Fontes?

Será que, após sucessivos episódios de fracasso, na realização de mudanças necessárias, por parte das respectivas hierarquias, é possível restringir o processo de mudança às medidas tomadas de cima para baixo?

Como sensibilizar e comprometer melhor os sujeitos eclesiais, em seu conjunto, em especial os e as que não exercem seu legítimo de direito de participarem das respectivas decisões fundamentais?

Do conjunto de sujeitos plurais, no amplo espectro das igrejas cristãs - Igreja Católica Romana, Igrejas Católicas Ortodoxas e Igrejas Reformadas - como assegurar lugar nos organismos de decisões às mulheres, membros majoritários em todas estas igrejas?

Que medidas e que instrumentos e meios de convocação e de reunião deliberativa (concílios, sínodos) podem e devem ser concebidos e tentados, a médio e longo prazos, nesta direção?

 João Pessoa, 06 de junho de 2020

segunda-feira, 1 de junho de 2020

O LEGADO PASTORAL-PROFÉTICA DE DOM ANTÔNIO BATISTA FRAGOSO: análise do seu livro “Evangile et Révolution”. Paris: CERF, 1969.

O LEGADO PASTORAL-PROFÉTICA DE DOM ANTÔNIO BATISTA FRAGOSO: análise do seu livro “Evangile et Révolution”. Paris: CERF, 1969.

Alder Júlio Ferreira Calado 

O dia 10 de dezembro vindouro marca a culminância das comemorações do centenário de Dom Antônio Batista Fragoso (1920-2006), que já vêm acontecendo em várias partes do Brasil e fora do Brasil, principalmente na Diocese de Crateús-CE.

Com efeito, Dom Fragoso se apresenta como um dos Bispos mais emblemáticos, na formação da “Igreja na Base”, no Brasil e na América Latina. Todo seu percurso existencial se caracteriza como uma liderança fiel do movimento de Jesus, em defesa e promoção da causa libertadora dos pobres-camponeses, operários, marginalizados do campo e da cidade, das mulheres, dos movimentos populares…

Dom Antônio Batista Fragoso, filho de José Fragoso da Costa e de Maria Batista Fragoso, nasceu em 10 de dezembro de 1920, em Teixeira-PB, mais precisamente no Sítio Riacho-Doce. Filho de família camponesa, numerosa - 6 filhos e 1 filha -, conhece, desde suas origens, as profundas marcas de quem vive e trabalha no campo.

Ainda adolescente, dada a formação cristã testemunhada pelos pais e sentindo-se tocado pela vocação presbiteral, foi levado ao Seminário da Arquidiocese da Paraíba, em João Pessoa. Sem recursos, teve desde o início, de distribuir seu tempo de estudos com o de trabalho - atuou como porteiro do seminário.

Na linhas que seguem, nosso propósito principal é de dupla forma: em primeiro lugar, sublinhar a contribuição do Pacto das Catacumbas, traduzido nas atividades pastorais de seus signatários, suscitando um amplo movimento de sensibilização, no mundo, pela causa libertadora dos pobres. E, em seguida, propomos destacar as ações específicas de um deste signatários, o Bispo de Crateús, Dom Antônio Batista Fragoso, que estaria, inclusive, nas primeiras formulações da Teologia da Libertação. 

O Pacto das Catacumbas apresenta-se como algo imponderável, que teve lugar já às vésperas do encerramento do Concílio Vaticano II, mas fora de seu alcance. O Concílio Vaticano II conseguiu reunir cerca de 2.500 bispos, em alguns meses ,durante 4 anos (1962 a 1965). A menos de um mês do seu encerramento, que se daria em 8 de dezembro de 1965, foi surpreendido com a realização, nos arredores de Roma (fora, portanto, das circunscrições do Vaticano II), de uma reunião de 40 padres, bispos e cardeais, além de presbíteros. Foi chamado de "Pacto das Catacumbas" durante a celebração da memória da Ceia do Senhor. Os 40 participantes originários cuidaram de firmar entre si um compromisso com com a causa libertadora dos pobres, fazendo traduzir este compromisso solene em 13 pontos, dando conta de suas prioridades como pastores chamados pelo Espírito do Ressuscitado a mudarem seu estilo de vida , de modo a sensibilizarem a Igreja, em relação a causa dos pobres. O Concílio Vaticano II, em seus 16 documentos, havia tratado este assunto de modo muito aquém do que esperavam os signatários do Pacto das Catacumbas.

Entre estes primeiros 40 signatários estavam figuras tais como o Cardeal Giacomo Lercaro, o Arcebispo Dom Hélder Câmara, o Bispo Dom Antônio Batista Fragoso, o Bispo Dom Francisco Austregésilo de Mesquita, o Bispo Dom Waldyr Calheiros, entre outros, além da participação também de presbíteros, a exemplo de Paul Gauthier. Este signatários provinham principalmente de Dioceses fincadas nos países do terceiro mundo, incluindo países latino-americanos, africanos e asiáticos.

Dos 13 pontos que constavam no Pacto das Catacumbas, figuravam compromissos tais como: passarem a viver, não mais em palácios episcopais, mas em casa simples; o compromisso de manterem um estilo de vida mais próximo do Povo de sua Diocese; a abdicação de serem tratados como "Excelências" e, preferindo ser tratados como irmãos; o compromisso de evitarem sinais de enriquecimento ou de priorização de atividades administrativas, em prejuízo de seu compromisso pastoral; o compromisso de, de volta às suas respectivas dioceses, continuarem a ajudar-se mutuamente, no cumprimento destes compromissos, inclusive visitando-se mutuamente, sempre que possível. 

Este último compromisso foi, entre outros, finalmente assumido por vários dos signatários, inclusive por Dom Antônio Batista Fragoso, Bispo de Crateús - Ceará. Chegou a visitar mais de 60 países, também em busca de confirmar e alimentar estes irmãos signatários, a manterem o compromisso assumido no Pacto das Catacumbas. 


No que toca especificamente à contribuição de Dom Fragoso, a sustentação e fortalecimento da Igreja na base, vamos focar sua contribuição, a partir de um de seus livros mais emblemáticos, publicado na França, em 1969, sendo que este conjunto de arquivos que compõem o livro "Evangile e révolution sociale", das Éditions du Cerf, em razão da densidade de seu pensamento Pastoral-Profético, com incidência indiscutível tanto no desenvolvimento das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), das Pastorais Sociais, como no próprio nascedouro da Teologia da Libertação.

Contexto e características gerais do livro

O livro "Evangile et révolution sociale" compõe-se de uma sucessão de textos - vários deles resultantes de palestras a diferentes públicos -, fruto de sua empenhada ação e reflexão, junto aos camponeses, aos cidadãos das periferias urbanas, por meio de toda uma rede de trabalhos pastorais que, em conjunto com uma seleta equipe de leigas e leigos, religiosas e religiosos, presbíteros e pessoas de boa vontade, Dom Fragoso desenvolveu e liderou, desde o início de suas funções de Bispo - ele é o primeiro Bispo Diocesano de Crateús -, a partir de sua chegada a esta região dos Sertões dos Inhamuns, em 1964, transferido que foi da arquidiocese de São luís-MA, onde fora Bispo auxiliar, de 1957 a 1964.

Em cada um destes textos, Dom Fragoso segue à risca um itinerário condizente com o título do seu livro. Trata, em primeiro lugar, de testemunhar a fonte da qual bebe, como cristão, como cidadão e como Bispo. Resultam, igualmente, claras sua posição e fidelidade à causa dos pobres - camponeses e operários, desempregados, sindicalizados, marginalizados, enfermos, pessoas e grupos em situação de fragilidade ou de risco. Sempre bem apoiado em textos bíblicos, principalmente neotestamentários, particularíssimamente, no Evangelho, ele trata de colocar esta fonte de fé como luz para o seu caminhar de profeta itinerante, nas pegadas de Jesus de Nazaré.

Neste sentido, sendo fruto de sua experiência como assistente da Ação Católica Especializada, sobretudo, atuando como assistente da JOC e da JEC, manifesta uma familiaridade notável com o método ver, julgar e agir, ainda quando não o explicita. Neste sentido, em cada um dos textos, é possível observar que Dom Fragoso segue uma linha indutiva, isto é, cuida de fazer uma leitura da realidade, do ponto de vista econômico, social, político e cultural, com olhos de pastor e profeta. Em seguida, podemos observar sua inquietação em examinar de que modo a situação analisada se põe diante dos critérios da Sagrada Escritura. Por fim, cuida de apresentar pistas concretas de enfrentamento e superação da realidade analisada.

Uma breve incursão analítica

O livro escrito por Dom Fragoso tem 172 páginas, o foco é posto em cima de candentes problemas sociais enfrentados pela população brasileira, possivelmente entre os anos de 1962 a 1968. Dizemos "possivelmente", pelo fato de que os textos não vêm datados, mas os assuntos versados nos remetem a este período. Vale ainda lembrar que, mesmo tendo sido o livro publicado em 1969, tem a ver com os anos precedentes.

Como acima mencionado, Dom Fragoso, expressando sua origem camponesa e seu compromisso com as pessoas mais vulneráveis, não hesita em fazer a reflexão de temas vivamente presentes entre esses grupos sociais. Eis por que nele vamos encontrar temas tais como: desigualdade social, violação de direitos humanos, o drama da seca, a insuficiência de terras como expressão da ausência de reforma agrária, a luta pela alfabetização de adultos, travada pelo Movimento de Educação de Base, a luta pela conscientização dos camponeses e das comunidades, a conscientização sindical e, sobretudo, as formas de organização assumidas, na Diocese de Crateús, pela criação e manutenção das Comunidades Eclesiais de Base, das Pastorais Sociais, no processo de formação dos leigos e leigas, entre outros pontos.

O primeiro texto traz como título "Evangelho e justiça social". Nele, Dom Fragoso se empenha em mostrar a íntima relação entre o que diz o Evangelho e o chamamento por ele feito a cada um, cada uma, no sentido de assumir o compromisso com a justiça social. Ele dá exemplos de diversas manifestações de injustiça social, que acontecem no mundo de então, no Brasil, no Nordeste, no Ceará e, em particular, na Diocese de Crateús. Adverte que todo cristão é chamado a pôr em prática os valores da tradição de Jesus, os valores do Evangelho: o reconhecimento da igualdade de direitos entre todos os cidadãos e cidadãs, todos irmãos e irmãs, filhos do mesmo Pai e, por isso mesmo, chamados a serem tratados com dignidade e respeito. Quanto aos valores fundamentais da vida: alimentação, trabalho, terra, habitação, direito à cultura, direito à decisão sobre as diversas situações em que vivem, direito a serem todos tratados com liberdade, direito à educação, à saúde, enfim, a serem satisfeitas as necessidades materiais e imateriais de todos, o que é dever das instâncias governamentais pertinentes. 

Neste sentido, ao analisar a situação socioeconômica reinante na Diocese de Crateús, Dom Fragoso se indigna com a prevalência das relações de um capitalismo selvagem, “pré-capitalista”: “Em Crateús, nós ainda estamos no regime capitalista ou pré-capitalista, existente no século passado, nós ainda não estamos no regime neo-capitalista. Esse regime capitalista não dá a mínima chance aos pequenos e aos pobres.” 

Utilizando-se do método ver, julgar e agir, Dom Fragoso costuma começar situando, de forma objetiva e didática, os problemas e desafios enfrentados pela população, em especial pelos pobres. Em dado momento, sublinha a extrema precariedade experimentada pelos camponeses, que correspondem a 88% da população de sua Diocese, sem esquecer os que vivem e trabalham na cidade. Enfatiza a vida de precariedade levada pelas numerosas famílias rurais, desprovida de terra para plantar, rendimento mínimo que garanta uma vida digna, o drama das secas periódicas trazendo agravamento daquela situação. A partir da exposição didática dessas situações, cuida Dom Fragoso de confrontar esta realidade com os valores do Reino de Deus, inaugurado e testemunhado por Jesus de Nazaré, buscando examinar as disparidades e as distâncias entre a realidade exposta e valores do Evangelho. 

Ainda neste capítulo, composto por diversos subtítulos, encontra-se o texto de uma palestra por ele proferida, no início do período da Ditadura Civil-Militar, instalada desde o Golpe de Estado de 1964. Reporta-se a um conjunto de fatos e situações que se seguiram ao Golpe. Já em seu início, o autor cuida de apresentar o foco central de sua palestra, sublinhando vários traços característicos da relação entre o Evangelho e a justiça social, sempre fazendo apelo à consciência dos cristãos acerca de sua responsabilidade social, de compreensão crítica das situações de injustiça em que o povo brasileiro foi mergulhado. É interessante notar que, ao dirigir-se aos seus interlocutores, sua preocupação também é a de saber quem é capaz de mudar esta realidade, razão por que indaga: “Quem vai modificar esta estrutura? Será só um governo? Serão só os vereadores e deputados? Mas quem os elege, se não os mesmos que controlam o poder econômico, a propriedade da terra, os colégios eleitorais?” (p. 34). E, por outro lado, chamando os próprios cristãos e cidadãos e cidadãs brasileiros a uma ação de resistência, sempre de acordo com os princípios do Evangelho. 

Dentre os diversos tópicos em que sua palestra vem distribuída, destacamos alguns temas candentes, tais como: os direitos humanos, então agredidos pelo regime militar, o aparato legislativo e repressivo posto em ação, a substituição progressiva da ação educadora do Movimento de Educação de Base (MEB), caracterizado por um plano de alfabetização de adultos, alimentado por uma leitura crítica de mundo e de sociedade, sob a inspiração da pedagogia freireana, por outro plano de alfabetização de adultos, chamado de "Cruzada ABC", cujo objetivo era oferecer um trabalho acrítico e alienante aos alfabetizandos. Acerca disto, Dom Fragoso: “A Cruzada ABC poderia ter sido uma cruzada libertadora, mas, de fato, se revelou um instrumento a serviço do colonialismo cultural. Seu método de alfabetização não era baseado em um estudo sério do universo vocabular usual empregado pelo camponês brasileiro, mas em esquemas culturais que lhe são desconhecidos” (p. 27).

Outro aspecto enfatizado, ainda no início de sua palestra, corresponde ao esforço organizativo da comunidade diocesana de Crateús - Ceará, no que diz respeito a uma ação planejada de grande alcance social, junto a diversos grupos comunitários, CEBs, pastorais sociais, bem como junto a movimentos de resistência como o Sindicato de Trabalhadores Rurais da região. Dentre os temas abordados na palestra se acha, por exemplo, a exposição criteriosa das condições de vida e de trabalho reinantes nos vários municípios àquela Diocese de Crateús, cuja população rural alcançava quase 90% dos seus habitantes. Dadas as condições então reinantes, bem como a violação de direitos humanos, Dom Fragoso tratava de, não apenas denunciar profeticamente a situação, como também de expressar as principais reivindicações apresentadas por aqueles trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade. Com relação aos trabalhadores do campo, merece especial destaque a luta pela reforma agrária, principal solução das desigualdades sociais daquela gente, dando sequência a este horizonte já pleiteado, décadas atrás, inclusive pelos protagonistas das Ligas Camponesas atuantes no Nordeste. Tratava-se de uma política social fortemente apetrechada, como resposta à altura dos desafios da época tal era a ênfase na necessidade e urgência da Reforma Agrária, pleiteada pelos Trabalhadores organizados daquela região. Dom Fragoso não hesitava em apontar a própria igreja católica como detentora de propriedades rurais que deveriam também ser alcançadas, dentro de um plano mais geral de Reforma Agrária, dando assim o exemplo de quem não esperava ação apenas externa, mas partindo de dentro, inclusive de sua própria Diocese.

O tema versado por Dom Fragoso, no segundo capítulo do seu livro, tem como título "Os estudantes e o desenvolvimento". As palavras "meus amigos", ao concluir este capítulo, permitem entender que se tratava de uma palestra diante de um público estudantil. Ao reconhecer, de início, a relevância do segmento estudantil, em especial dos Universitários, a quem provavelmente se dirigia, Dom Fragoso destaca em sua palestra temas relevantes, como o da educação, da reforma agrária, colonialismo cultural, entre outros. 

Vale observar sua defesa do direito ao diálogo com os estudantes, a ser assegurado pelo regime militar que via aos estudantes apenas como agitadores e subversivos. Então, o Bispo perguntava: “Será que vamos aceitar um diálogo aberto, sincero, desarmado? Ou vamos tentar dominar de novo os estudantes e, reprimir suas manifestações, tachando de subversivas qualquer manifestação de reivindicação?” p.38.

Em relação ao tema da Reforma Agrária, cuida de, primeiro, expor dados oficiais acerca da estrutura fundiária e da política agrícola vigentes em relação especificamente à estrutura fundiária. Dom Fragoso faz menção de dados estatísticos referentes a 1960, dando conta fundamentalmente da extrema concentração de terra existente no Brasil, um número altíssimo de pequenas propriedades de até 10 hectares, a ocuparem um percentual insuficiente de terras agricultáveis, capazes de fornecer a uma família camponesa - normalmente numerosa - as condições mínimas de sua sustentação. Por outro lado, um número ínfimo de grandes propriedades, ao ocuparem um percentual enorme das terras agricultáveis, sendo que destinadas principalmente ou à monocultura ou à criação extensiva de gado. Após apresentar estes dados oficiais, Dom Fragoso trata de analisar, especialmente as consequências deste fenômeno. Destaca a penúria de vida e de trabalho sofrida pelos camponeses nordestinos - embora esteja considerando o Brasil, o Bispo restringe principalmente ao nordeste sua análise. Outra consequência que ele sublinha do mesmo fenômeno é a marginalização a que são submetidos tanto os trabalhadores sem terra quanto aqueles trabalhadores que lidam com um pedaço de terra claramente insuficiente para o sustento de sua família. O destino mais frequente é o de se sentirem forçados a migrarem para grandes centros, mais precisamente em busca de um local de moradia nas periferias urbanas, enquanto aguardam empregos precaríssimos, para sobreviverem. O Bispo ainda destaca, como consequência, a colonização cultural a que esses trabalhadores rurais acabam sendo submetidos junto com suas famílias. Curioso é observar que, passados em torno de 60 anos, a situação então descrita conserva traços bastante semelhantes, alguns dos quais até mesmo agravados, na presente realidade. Tendo em vista a realidade dos estudantes aos quais se dirigia, é provável a atenção que ele desperta, não apenas pelo tema abordado - importa lembrar que naquela região, 80% da população tem a ver com o campo, razão pela qual entendemos que o Bispo se dirigia a jovens universitários fortemente ligados aos problemas de suas respectivas famílias.

Outro tópico desenvolvido por Dom Fragoso, na mesma ocasião, prende-se aos desafios da educação ou do ensino superior. No caso, o Bispo aludia à subordinação servil do regime militar aos interesses do Governo dos Estados Unidos, à medida que. recorrendo a equipes de técnicos trancados a sete chaves com assessores dos Estados Unidos, as decisões eram tomadas sem a necessária escuta dos estudantes, dos professores, dos reitores, dos especialistas em educação, de modo a respeitar as regras democráticas. E o que resultava deste famigerado acordo MEC - USAID era mais uma imitação do plano de educação e de ensino superior dos Estados Unidos do que um plano que interessasse diretamente ao setor educacional brasileiro. Tratava-se, portanto, de uma exposição aos estudantes de dados concretos a partir dos quais os mesmos estudantes eram despertados para uma consciência crítica de cidadãos brasileiros, chamados a dizer sua palavra, no que se prendia ao tema educacional.

No que diz respeito à dependência cultural, a exposição feita, na mesma oportunidade, mostrava os liames de dependência do projeto colonialista, que vigorava no Brasil desde séculos. Em conjuntura ditatorial, tais laços se tornavam ainda mais comprometedores.

Nesta direção é que segue a reflexão crítica proposta por Dom Fragoso. Neste mesmo segundo capítulo continua evoluindo dentro das palavras - chave indicadas no título deste capítulo, e vai focando aspectos diversos envolvendo os desafios dos Camponeses, dos Estudantes, em seu compromisso com o desenvolvimento social brasileiro. Oferece dados relevantes, por exemplo das políticas agrárias propostas pelo regime, não apenas ficavam bem aquém das expectativas dos Camponeses, como também distanciavam-se dos seus sonhos legítimos, de uma reforma agrária justa, tal como ensaiada em tantos países inclusive os de regime capitalista. Dom Fragoso acentuava, com firmeza e lucidez, as consequências nefastas para a enorme maioria dos trabalhadores e trabalhadoras Rurais, ao ponto de associar a um genocídio o que se passava em certas situações profundamente precarizados da população do campo.

Por outro lado, enchia de críticas contundentes as formas adotadas pelo regime militar, no sentido de alterar a estrutura do ensino superior brasileiro, bem como suas políticas educacionais voltadas para os programas de alfabetização, conforme critérios adotados pela cruzadas de alfabetização, em claro contraste com a proposta que vinha sendo protagonizada pelo MEB (Movimento de Educação de Base), tanto no tocante ao volume de recursos destinados à cruzadas ABC, em relação ao pouco que era destinado ao MEB, quanto no que se referia à natureza mesma da proposta oferecida por estas duas entidades.

Sempre atento aos dados oficiais, Dom Fragoso critica a má distribuição de verbas destinadas à educação, inclusive em relação à fatia do orçamento destinada às forças armadas: “O Brasil consagra 10 a 12% do orçamento nacional para a educação. E continuamos a ter mais de 50%, quase 70% de analfabetos.” (p. 52). Ainda a este respeito, ele tece comparação entre Brasil (10 a 12%) e México (30%), além de manifestar estranhamento com relação ao percentual do orçamento destinado às forças armadas (18%).

Em sua palestra, Dom Fragoso relembra momentos significativos da participação estudantil (universitária) nas discussões sobre a reforma universitária, por meio da organização de colóquios reunindo especialistas na área, e remetendo suas propostas às autoridades competentes. Após o golpe de estado, sobrevém verdadeira tutela militar sobre a universidade brasileira.

De volta ao desafio do analfabetismo no Brasil, ele lamenta a destituição do grande educador Paulo Freire, antes empenhado pelo governo federal de João Goulart em coordenar um amplo Programa nacional de educação, seguindo seu método orientado pelo universo vocabular dos alfabetizandos de modo a despertar neles o interesse pela leitura de mundo e pela leitura da palavra. O golpe de estado, ao destituir o governo Goulart, o prende, e Paulo Freire é exilado no Chile, cujo governo o nomeia coordenador de um grande Programa de alfabetização de adultos, naquele país (cf. p. 55).

Mesmo quem já reúne um bom conhecimento acerca da figura de Dom Fragoso se flagra surpreso com a veemência profética e lucidez com que este Bispo se dirige aos estudantes como um interlocutor de qualidade, a refletir e a despertar uma reflexão crítica acerca da realidade brasileira, latino-americana e mundial, sempre em busca de denunciar os grandes dramas provocados pelo capitalismo e pelo imperialismo, mundo afora. A parte final do segundo capítulo é povoada desta contundência profético-pastoral, não sem firmar-se em dados oficiais. Por outro lado, resulta gratificante escutar o Bispo de Crateús a ressoar, com toda lucidez e veemência, a mensagem revolucionária trazida pelo Papa Paulo VI, por meio de sua memorável encíclica social, denominada "Populorum Progressio". Deduzimos, por isto, que a palestra de Dom Fragoso, propostas aos estudantes justamente acerca do desenvolvimento social, ocorre pouco tempo depois da publicação da emblemática encíclica.

Apoiado nela, por conseguinte, Dom Fragoso, de forma didática e objetiva, lançando seu olhar crítico para as estruturas do capitalismo então vigente, e sobretudo buscando desmascarar, com dados concretos, sua ideologia de que caberia aos países subdesenvolvidos seguir a linha dos países desenvolvidos, Dom Fragoso, sempre apoiado em respeitáveis estudos e pesquisas acadêmicos, vai desmontando, ponto por ponto essas teses falaciosas. Denuncia, em consequência, os mecanismos fundamentais que garantem as desigualdades sociais, tais como o acúmulo incessante de riquezas pelos países centrais do capitalismo, a frente os Estados Unidos sempre à custa da exploração dos países do terceiro mundo; sublinha, por exemplo, os mecanismos trabalhados pela Organização Mundial do Comércio, bem como outros mecanismos de acumulação, como no caso da escandalosa indústria armamentista, que requer uma soma gigantesca do orçamento das grandes potências mundiais, a fim de garantirem sua hegemonia ditatorial sobre os povos do mundo, enquanto não contribuem com com um verdadeiro desenvolvimento dos povos. 

Reflexões críticas oferecidas por Dom Fragoso, ao longo deste segundo capítulo, finalizam de modo claro o compromisso profético com a causa libertadora dos trabalhadores e trabalhadoras do Campo, dos trabalhadores urbanos e dos Estudantes. Acerca destes, compartilhava sua profunda preocupação com o êxodo de estudantes filhos de famílias camponesas que, ao se instalarem nos centros urbanos, inclusive fora da região, eram não raramente influenciados pelos valores do mercado, apartando-se de suas raízes camponesas. Também isto Dom Fragoso creditava principalmente às políticas educacionais então vigentes.

Da página 64 a 86, cerca de 20 páginas, Dom Fragoso dedica ao tema da “política salarial e justiça social”, título, portanto, do terceiro capítulo. Mais uma preciosa oportunidade oferecida ao Bispo de Crateús, pelos trabalhadores e estudantes de Fortaleza, para compartilhar seu testemunho de Bispo acerca da política salarial vigente no Brasil de 1965 a 1967, de modo a confrontá-la com a justiça social. O convite lhe é feito por dirigentes sindicais de Fortaleza, em um dia da Semana Santa, suscitando questionamentos por conta da aceitação pelo Bispo de Crateús daquele convite. Com a serenidade pastoral-profética, que já é conhecida, Dom Fragoso não hesita em atender ao convite, não enquanto um dirigente sindical ou um agente político, mas precisamente enquanto cidadão e cristão, exercendo a função de Bispo. Com efeito, o tema da justiça social constitui um campo de exercício Pastoral-Profético, do qual Dom Fragoso se recusa a fugir.

Vale a pena, de início, rememorar traços gerais desta época. De um lado, o Brasil estava a vivenciar, com crescente constrangimento, as políticas econômicas e sociais concebidas e implementadas pelo governo militar, instalado no Brasil, em 1964 tratava-se de políticas de favorecimento aos setores dominantes da sociedade brasileira e em crescente prejuízo para os trabalhadores do campo e da cidade no caso, a questão em debate versava sobre uma dessas políticas econômicas, a política salarial, mais conhecida como uma política de arrocho salarial, de compressão crescente do valor do salário mínimo, de um lado, e, por outro lado, o aumento do custo de vida, provocando uma significativa redução da qualidade de vida da enorme maioria da população. Isto tinha tudo a ver com a vigência ou não da justiça social, tema próprio para um Bispo comprometido com a causa do Evangelho, com o processo de libertação dos empobrecidos. Não bastasse a inspiração do Evangelho, este vinha fortalecido pelas respostas da Doutrina Social da Igreja, por meio dos escritos do Papa João XXIII e do Papa Paulo VI (a "Mater et magistra" apareceu em 1961; a "Pacem in terris", publicada em 1963, enquanto a "Populorum progressio" acabava de ser publicada, em 1967). Sentia-se, desta forma, bem apoiado, bem fundamentado, o Bispo de Crateús para acatar o mencionado convite de tal modo que não hesita em viajar de Crateús a Fortaleza, em um dia da Semana Santa, consciente de que aquela tarefa era tão importante para um pastor como chegou a acolhê-la como se fosse de rotina, mesmo em tempo de Semana Santa.

Em Fortaleza, acolheram-no dirigentes sindicais e estudantes. As primeiras palavras de Dom Fragoso vão no sentido de reafirmar seu propósito pastoral, em nome do qual se faz presente aquela Assembleia, para prestar seu depoimento, seu testemunho, em defesa da justiça social, ameaçada pela então vigente política salarial.

Segue, então, a expor, de forma didática, iniciando, como de hábito, pela apresentação de dados oficiais acerca da evolução da política salarial, bem como do custo de vida, da inflação do período, provocando uma situação de sério empobrecimento dos trabalhadores do campo e da cidade. Ao citar diversos dados oficiais, Dom Fragoso vai desmontando as bases falaciosas da política salarial então vigente. Denuncia a legislação do período, identificando graves lacunas, especialmente não tomar na devida consideração a evolução da inflação do período (quase sempre, subestimando), ao tempo em que o custo de vida disparava, reduzindo gravemente o poder de compra dos trabalhadores.

Tal é a força profética como analisa, como pastor, aquela situação, que provoca um sentimento de perplexidade em prováveis espiões do regime ali infiltrados. Disto são sinais dois registros atípicos inseridos pelo autor, neste mesmo capítulo: um no começo e outro no meio da palestra. No começo, Dom Fragoso observava que a palestra devia ser realizada no Clube dos Estudantes (provavelmente, situado no campus universitário da UFCE), num Domingo, dia 14 de abril. De fato, assim se deu, mas a palestra só foi encerrada na segunda feira seguinte, e já no recinto do diretório central dos estudantes (provavelmente um local autônomo).Sucede que, no meio da palestra iniciada no Domingo, irrompe, de repente, a figura do reitor da UFCE, a insistir em que João Fragoso suspendesse a palestra, tendo sido escutado as vaias. O palestrante interrompe seu trabalho, prometendo dar sequência, no dia seguinte, no diretório central dos estudantes, como de fato se deu. Disto se toma conhecimento por meio de 2 registros feitos por Dom Fragoso no texto da conferência, um na página 64 e outro, na página 81.

Estes registros assinalam bem a forte tensão sob a qual vivia o país, tutelado e vigiado pela polícia política da Ditadura Militar. Revelam, também, a coragem profética do Bispo de Crateús, ao não se render aos caprichos ditatoriais e policialescos, tanto é assim, que, no dia seguinte, ele deu continuidade à sua palestra.

Prosseguindo sua conferência, além de reafirmar sua análise crítica da situação salarial e sindical, Dom Fragoso tratou de prestar uma homenagem ao líder negro Martin Luther King, fazendo uso de um poema de Eugênio Evtuchenko, reverenciando a figura humana desta liderança. Em seguida, ele próprio fez questão de ressaltar a fé cristã e revolucionária que Martin Luther King, destacando sua fidelidade aos valores do Reino de Deus, ressaltando que seu assassinato redundaria na sua ressurreição na luta do povo negro. Curioso é que, 12 anos mais tarde, outro Mártir, Dom Oscar Romero, arcebispo de São Salvador, ficaria também notabilizado pela sua afirmação, dias antes do seu assassinato: "Se me matarem, ressuscitarei na luta de meu povo".

"Os estudantes e a política" - eis o título do quarto capítulo, correspondente a uma nova palestra pronunciada por Dom Fragoso, a convite dos estudantes. De início, empenha-se em esclarecer o sentido de Política, desde sua etimologia - "cidade". A partir daí, segue fornecendo elementos relevantes para uma compreensão mais objetiva do sentido de política, de modo a realizar, com bastante ênfase, no aspecto de prática coletiva, voltada ao bem comum. Em seguida, convida seus interlocutores a examinarem conjuntamente a situação concreta do Brasil, do Nordeste, e em Crateús, buscando situar como os habitantes do nosso país e de nossa região se comportam em relação à política, à economia e à cultura. Sempre atento aos dados oficiais então disponíveis, Dom Fragoso vai percorrendo várias dimensões da política e da economia, do modo como seus governantes vem pondo em prática. Ao sublinhar que, sendo a política a arte do bem comum, cuida de analisar de que modo isto vem-se ou não se vem cumprindo, em nosso país. Lembra que o exercício legítimo da política só é possível quando se volta para o bem comum, visando tanto ao bem coletivo quanto a assegurar a dignidade da pessoa humana. Características fundamentais da vocação do ser humano a uma realização de sua plenitude devem estar, por exemplo, no exercício da criticidade e da autodeterminação. Trata-se de dimensões fundamentais do ser humano que condicionam, inclusive, sua atuação cidadã, sua atuação política. Sem essas duas características, prevalece o risco de manipulação político-partidária e ideológica, à medida que os grupos oligárquicos que dominam os espectros político e econômico, se empenham em "dourar a pílula", isto é, em passar para o conjunto dos cidadãos e cidadãs uma imagem falsa da realidade. Em outras palavras, o povo se transforma em massa de manobra para a elite dominante.

Esta situação se passa no Brasil, agravada com a instalação do Golpe de Estado de março de 1964. O regime militar passa, então, a ditar as normas de organização política e econômica da nação, à revelia e em contraposição ao texto constitucional, de acordo com os interesses de uma pequena minoria, em detrimento das aspirações mais legítimas da enorme maioria do povo brasileiro. Situação de agravamento político e econômico, fortemente favorecida pelo alto índice de analfabetos, sem condição de exercer seus direitos políticos e econômicos, de modo apropriado. As medidas voltadas para alfabetização, como encampadas pela Cruzada ABC, sob forte influência do regime ditatorial, ficam sem efeito, quanto às condições de exercício crítico dos seus direitos políticos e econômicos. 

Do ponto de vista econômico, também incide uma condição de empobrecimento crescente de enormes parcelas da população, submetidas a um salário mínimo muito aquém do mínimo necessário a assegurar uma vida digna aos trabalhadores e trabalhadoras do Brasil. Pior ainda: no caso, por exemplo, das condições econômicas experimentados pela população rural e mesmo urbana, parte expressiva desta gente tem que sobreviver apenas com a quarta parte do salário mínimo vigente no Brasil, como ele mesmo afirma: “de acordo com um cálculo feito em dezembro de 1967, uma família de quatro pessoas precisaria de 426 cruzeiros para viver; contudo, ela recebe 78” (p. 96).

Curioso é observarmos como tal realidade, mais de 50 anos depois, pouco ou nada mudou: eis que, segundo o DIEESE, para satisfazer as necessidades de uma família previstas na constituição, o salário mínimo deveria ser, em fevereiro de 2020, R$4.366,51.

Tanto ao considerar e analisar a situação política quanto a situação econômica, Dom Fragoso não cessa de instigar aqueles estudantes a se colocarem criticamente enquanto cidadãos e cidadãs, convidando-os a fazerem a sua parte, pensarem criticamente, junto aos diversos grupos sociais de que fazem parte, a começar pelas suas próprias famílias. Dom Fragoso também os advertia quanto aos riscos de se tornarem pessoas descomprometidas com a sorte de sua gente, incentivando-os a participarem de modo crítico e propositivo, na busca constante de alternativas políticas e econômicas àquela situação de precariedade geral, o que somente poderia ser alcançado por meio do esforço comum de transformar a massa em povo, um povo consciente, crítico e de sua autodeterminação.

Encerrando o Capítulo 4, Dom Fragoso se dispõe a várias perguntas apresentadas pelo público estudantil em geral, prioriza a importância e a urgência, apresentadas por aquele contexto histórico, do exercício de tomada de consciência, comum primeiro passo a 1 envolvimento prático daquela situação. sempre de modo didático, Dom Fragoso recorre a exemplos ilustrativos, tomando como referência o chão de sua diocese, Crateús neste sentido, ao fazer diversos questionamentos provocativos, toma como referência principal o público estudantil de Crateús, convidando-os a refletirem criticamente sobre aqueles desafios, ao mesmo tempo, não se conformando com um mero exercício crítico, também Convida os estudantes a serem protagonistas de uma nova história, em busca de uma nova sociedade tendo a situação presente como decorrente subdesenvolvimento fabricado pelos países centrais do capitalismo, e em especial pelos Estados Unidos, também cuida de incentivá-los a enfrentarem o desafio do desenvolvimento, conceito-chave daquela época, hoje talvez, a exemplo de Francisco, Bispo de Roma, estivesse associando seu esforço maior na direção de uma nova sociedade, indo muito além do desenvolvimento, até porque hoje vimos enfrentando desafios planetários, implicando um compromisso ainda maior com a sorte do planeta e de seus viventes.

No capítulo V, Dom Fragoso traz um tema de alta relevância, bem como de alta tensão, ao abordar a questão da reforma agrária e revolução social. Este capítulo encerra a primeira parte do livro, que é a mais extensa. Mais uma vez, Dom Fragoso é convidado pelos estudantes concluintes do curso de agronomia, pertencente à Universidade Federal do Ceará para pronunciar uma conferência sobre o tema mencionado. Após saudar e agradecer a turma de concluintes, pelo convite, cuida de dissecar o tema em debate (é assim que tem procedido em ocasiões semelhantes - , começa por afirmar seu compromisso de bispo e de cidadão com com a causa camponesa, na perspectiva de sua libertação sublinha, desde o início, sua confiança nos estudantes concluintes, quanto ao seu compromisso com a causa libertadora dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, em especial, por meio de sua contribuição como agrônomos à causa da reforma agrária, numa perspectiva revolucionária.

Apoiado, como de hábito, em documentos e fontes credíveis, empenha-se em decodificar o Estatuto da Terra, lei principal concernente à reforma agrária do período militar, bem como apoiando-se em outros textos para melhor fundamentar sua análise sobre a situação da reforma agrária, especificamente no Estado do Ceará e na região de Crateús. Aponta as profundas desigualdades fundiárias observáveis também no Estado do Ceará e na região de Crateús, situação que, ao mesmo tempo, dificulta enormemente as condições de uma prática agrícola, conforme a necessidade das famílias trabalhadoras da região, favorece os privilégios das grandes propriedades rurais. Além disto, mostra um conjunto de dados que caracterizam aquela região, desde a marginalização dos trabalhadores rurais, quando se trata da tomada de decisões sobre temas que lhe dizem respeito diretamente, seja em relação a outros dados e circunstâncias que agravam a mesma situação, tais como as desigualdades regionais, ausência de garantia de preços justos para os pequenos produtores rurais, as condições adversas do cultivo da terra como a falta de irrigação, a falta de créditos ao alcance dos trabalhadores rurais, o agravamento da situação pelas prolongadas estiagens. Ressalta, porém, com força ainda maior, a insuficiência da formação básica dos trabalhadores do campo e de suas famílias - em grande parte, vítimas do analfabetismo - e de um processo de conscientização política, em outras palavras, ausência ou insuficiência de uma "Educação de base".

Não se limitando a meras constatações, também incentiva e provoca aqueles concluintes a se tornarem também protagonistas de uma nova ordem social, baseada no direito e na justiça, fundamentos do Evangelho. Chama atenção para os graves desafios políticos, econômicos e culturais com que se defrontam aqueles estudantes, vocacionados a enfrentar, com discernimento e coragem, aqueles desafios, não têm medo das acusações frequentes, lançada pelos apoiadores do regime militar contra todos aqueles e aquelas que usam denunciar avise as injustiças clamorosas então reinantes, em especial do campo. Encoraja-os a não temerem ser chamados de subversivos, pelo fato de buscarem enfrentar aquela ordem de injustiça social, à procura de uma ordem alternativa característica de uma nova sociedade.


Embora as observações relativas a este capítulo possam e até devam ser estendidas aos precedentes e aos capítulos seguintes, convém assinalar pontos chave da exposição feita por Dom Fragoso. Dentre estes pontos, aqui destaco: seu modo respeitoso de dirigir-se ao público; o zelo pela coleta de dados e de suas fontes; seu empenho em decompor, dissecar cada tema que lhe é proposto, sempre buscando mencionar diferentes dimensões e diferentes aspectos do mesmo tema; não se limita à mera constatação de fatos e de situações, mas traz sempre uma fraterna provocação aos seus interlocutores, no sentido de entregarem ao serviço da causa libertadora dos oprimidos; a ênfase constante que atribui ao processo formativo é uma constante, observável ao longo do livro. 

Até aqui, o livro de Dom Fragoso oferece um conjunto de temas sobre os quais foi chamado a refletir, por meio de palestras diversas. A partir da página 115, tem início a segunda parte do livro, voltada a apresentar desafios e perspectivas pastorais específicas da Diocese de Crateús. 

Nesse sentido, parte de uma descrição circunstanciada da cidade e da Diocese de Crateús. Como de praxe, Dom Fragoso recorre a dados amplos. Neste caso, apoiou-se na elaboração de um relato minucioso, de modo a oferecer um panorama geográfico, histórico, demográfico e religioso de sua Diocese, uma notável radiografia que, desta vez, foi tarefa da qual se incumbiu o Secretário da Diocese.

Antes de refletir sobre as ações propriamente eclesiais, faz questão de descrever e de analisar as bases sociais e educativas, em que repousarão sua análise e a apresentação das perspectivas propriamente pastorais. Sempre partindo do "ver", cuida de situar a ação cidadã e cristã de relevantes segmentos e agentes atuando em Crateús, em especial a  ação da JAC, da JEC, da JOC, da ACO, em interação com agentes sindicais e com o MEB, fornecendo outras notáveis informações sobre a base sócio-educativa, em que vai ancorar-se a ação pastoral. Destaca as bases teórico-práticas do processo educativo, bebendo em fontes preciosas, tais como a pedagogia de Paulo Freire, donde se entende a fecundidade dos Círculos de Cultura - quarenta Círculos de Cultura atuando na região.

É a partir desta base que o Bispo e sua equipe, sempre em interlocução com os diversos segmentos diocesanos, passam a esboçar e a implementar um plano de ação pastoral, caracterizado pelo compromisso com a promoção humana, com o processo de evangelização. Ao reconhecer os limites presentes nos protagonistas da Diocese, inclusive o Clero - a quem entende faltar, por vezes, ousadia -, expressa sua confiança e seu compromisso com a ação profética, que se ocupe para além das fronteiras da Diocese, tendo como horizonte a libertação do seu povo, em escala nacional, tendo em vista os graves desafios colocados pela ditadura militar.

À certa altura, revela-se contundente em sua identidade de cidadão, de cristão e de bispo, ao afirmar coisas do tipo: 

Mas eu sei que no fundo do coração dos homens ainda há bom senso. Espero que as autoridades que, elas sim, têm armas, e armas que foram compradas com seu dinheiro, mas com o do povo, eu espero que essas autoridades, pagas com o dinheiro do povo, não se desviarão do bom caminho, conservarão seu bom senso, e que elas utilizarão suas armas e seu dinheiro para fazer reinar a justiça em favor dos mais pobres. (pp. 133 - 134)

"Um bispo diante de seu povo "constitui outro tópico integrante desta segunda parte. Trata-se, provavelmente, de algumas emissões radiofônicas que Dom Fragoso dirigia ao seu povo, em Crateús. Possivelmente, estas falas radiofônicas tenham se dado meses antes.

Em outro tópico desta mesma parte, cujo objetivo é uma auto apresentação diante do seu povo, sobretudo por conta  de ruídos e falsas acusações de que é vítima, neste tópico, Dom Fragoso apresenta alguns artigos ou trechos de artigos publicados em jornais do Nordeste (O Povo, O Poty) e do Sul. Por meio deles, empenha-se em repelir fortes acusações de que é subversivo, assacadas, com certa frequência, por representantes do regime militar, um ano antes da decretação do AI-5. Ele trata, então, de desmentir, com argumentos convincentes. Faz ver que busca ser fiel ao Evangelho. Ao mesmo tempo, mostra-se fiel também às Encíclicas Sociais do Papa João XXIII ("Mater et Magistra" e "Pacem in Terris") e de Paulo VI ("Populorum Progressio").

Dom Fragoso também é acusado de estar ligado a figuras como Carlos Marighella, conhecida liderança de resistência à Ditadura Militar, bem como de demonstrar simpatia pelo Pe Camilo Torres, assassinado na Colômbia em 1966.

Dom Fragoso insiste em afirmar sua posição de fidelidade à causa libertadora dos pobres, que Jesus de Nazaré assumiu como prioridade e, em seguimento dele, tantos outros cristãos - inclusive importantes figuras da Patrística, como Santo Ambrósio - e os Papas acima referidos. Reitera seu compromisso com a luta pela dignidade dos pobres e injustiçados, por meio da não violência ativa, respeitando, contudo, quem, motivado pela sua consciência, entende resistir à tirania, pelo emprego de meios violentos. Esta posição de resistir à tirania pelo emprego da violência, tem base em Tomás de Aquino, para quem, uma tirania sanguinária, pode ser legitimamente combatida pela força, desde que isto não provoque um dano social ainda maior do que a situação combatida.


Segue o livro de Dom Fragoso a apresentar extratos de artigos seus - quase todos referentes a questões sensíveis àquela época de 1967 -, publicados em jornais de Natal (“O Poty”), de Fortaleza (“O Povo”), do Rio de Janeiro (“Última Hora”), e “Diário de São Paulo”. Temas mais recorrentes dizem respeito  a questões relacionadas à profética defesa da autodeterminação dos povos, da liberdade como horizonte a ser perseguido pelos trabalhadores do campo e da cidade, o combate a todo tipo de opressão econômica, política, cultural, bem como assuntos concernentes à figura de Che Guevara, assassinado naquele ano (1967) na Bolívia. O risco de a América Latina e ou do Brasil se tornarem um novo Vietnã, entre outros assuntos versados nos artigos por ele escritos naqueles jornais. 

O tópico seguinte diz respeito à parte final do livro, e versa sobre dezessete perguntas que lhe foram levantadas por jornalistas. A cada uma das perguntas, Dom Fragoso cuida de responder. O interesse dos Jornalistas se concentra em sua posição de alguém que se confronta  com o regime ditatorial em curso, no Brasil. Como de hábito, Dom Fragoso empenha-se em reafirmar sua posição favorável ao combate a todo tipo de ditadura, o que não implica na adesão a qualquer caminho violento, mas sempre ressaltando sua adesão à não violência ativa, sem que isto implique a condenação de opções diferentes da sua.

Por volta da página 155, e estendendo-se até a página 165, Dom Fragoso se dispõe a responder a outras dezessete questões que lhe são dirigidas. Entre as respostas oferecidas, mesmo entre outros comentários feitos precedentemente, vários pontos se tocam ou se reencontram. Isto reforça o caráter firme de suas posições. Trata-se de questões que se prendem sobretudo a sua posição política, enquanto Bispo católico, frente a várias situações econômicas, políticas e culturais, sem faltarem perguntas sobre o campo especificamente religioso. Neste campo, em particular, perguntado sobre como avalia o comportamento da instituição eclesiástica do Clero, reconhece que, a despeito de avanços pontuais trazidos pelo Concílio Vaticano II, diversos aspectos continuam a desejar, seja no campo da liturgia, seja na área catequética ou em outras esferas religiosas. Acerca especificamente do Clero, entende a necessidade (ainda não satisfeita) de um seguimento essencial da mensagem evangélica, o discipulado e o compromisso missionário - o grande apelo do seguimento de Jesus. Isto comporta um estilo de vida de intenso compromisso com a causa dos pobres e desvalidos. E, implica a necessidade de que padres se comportem de modo semelhante à gente comum. Isto é, com um estilo de vida modesto, buscando viver como pessoas simples, trabalhando como os demais, seja em um estado celibatário, seja mesmo como padres casados, o que ainda não acontece.

No tocante a temas econômicos e políticos, Dom Fragoso segue firme sua linha profética de denúncia das injustiças sociais, de toda forma de ditadura, ao tempo em que busca enfatizar o compromisso dos cristãos com a construção de uma sociedade de pessoas livres, bem formadas, autônomas, conscientes, defendendo princípios fundamentais como a dignidade das pessoas e dos povos, sua autodeterminação.

Em conclusão (da página 165 a 172), Dom Fragoso segue a mesma linha, isto é, respondendo as perguntas que a ele são dirigidas, de modo a buscar, de forma didática, clara, objetiva, suas posições proféticas e missionárias. Ao concluir este livro, Dom Fragoso tinha apenas 48 anos. No cenário brasileiro, e mesmo latino-americano, integrava um grupo seleto de bispos com grande preparo intelectual, movidos de uma espiritualidade incarnada, e de uma coragem profética notável.

A título de arremate

Sabemos que, por mais positivamente que avaliemos a grandeza deste livro, o que nele vem consignado não alcança a inteireza do legado de seu autor. Com efeito, este livro que apresenta características autênticas suas, há de ser somado a outros escritos seus (outros livros, numerosos artigos, documentos pastorais, cartas, anotações na agenda, pronunciamentos radiofônicos) há de ser igualmente conectado a outras dimensões de seu legado, uma vez que, além de tantos inscritos seus, há de se recorrer também a seu denso testemunho de vida, enquanto ser humano, cidadão, cristão, Padre, Bispo. De todo modo, neste livro, podemos observar as linhas mestras que refletem parte significativa de seu legado.

Que outros traços encontramos neste livro, que se conectam organicamente a tantos outros de seus feitos?  Tentemos, a seguir, resumir os pontos axiais, presentes em seu livro em outras dimensões do seu legado, que consideramos mais relevantes. Destaquemos, em primeiro lugar, a existência caracterizada por uma forte linha de compromisso de ser humano e de missionário, em uma vida entregue fortemente à defesa e à promoção dos seres humanos, em busca de sua humanização, na perspectiva da tradição de Jesus. Neste sentido, podemos observar uma notável linha de continuidade, no conjunto de seus compromissos de cidadão, de cristão e de bispo.

Por outro lado, convém ressaltar fortemente a singularidade com que seu testemunho missionário, pastoral e profético se coloca ante o espectro médio dos protagonistas da Igreja Católica Romana (Papa, Bispos Presbíteros e Diáconos, Religiosos, Religiosos, Leigas e Leigos), singularidade que se manifesta, sob vários aspectos. Um primeiro aspecto a ressaltar, diz respeito a seu reconhecido esforço de fidelidade à causa do Evangelho, da tradição de Jesus. Neste particular, imaginamos como foi difícil enfrentar toda sorte de obstáculos, dentro e fora da Igreja Católica quanto às dificuldades por ele enfrentadas, do ponto de vista macrossocial e político. Tais obstáculos passam a ser de monta secundária, quando se comparam aos enfrentados ao interno da própria Igreja Católica. Seu legado, em diferentes momentos e circunstâncias, esteve sempre a expressar sua tristeza em relação ao modo de se organizar secularmente assumido pela Igreja, em claro distanciamento das práticas características das primeiras comunidades cristãs e do próprio Movimento de Jesus. Estranhamento por ele expresso, em múltiplas ocasiões, inclusive quando participante, como Bispo auxiliar, das sessões do Concílio Vaticano II. Incomodava, como também a uma minoria de padres conciliares, em especial os primeiros signatários do Pacto das Catacumbas, a forma assemelhada a de um Estado assumido pela Igreja Católica. O reconhecimento por ele manifestado de avanços registrados graças ao Concílio Vaticano II, não o faziam esquecer a ausência ou insuficiência do compromisso da Igreja, em relação à causa dos pobres e desvalidos. A despeito de conquistas pontuais, quanto à compreensão do Concílio, em relação à estrutura de organização da Igreja, inclusive pelo reconhecimento do protagonismo do Povo de Deus como agente Central da Igreja Católica, sentia-se fortemente frustrado pela inobservância deste entendimento, razão por que ansiava, como tantos e tantas outras pessoas, pela convocação de um novo Concílio.

Com relação à estrutura organizativa da Igreja Católica, ele defendia uma aproximação maior de organização a partir das inspirações características das primeiras comunidades e do Movimento de Jesus. Também buscava ir muito além, em outros pontos de vista (liturgia, catequese, sacramento, ministérios).

Resulta fortemente impactante o modo coerente como se colocou, especialmente diante do regime militar, mostrando-se claramente desassombrado frente às perseguições de que foram vítimas tantas pessoas de sua diocese e de tantas partes do Brasil, fossem elas camponeses, operários, estudantes, padres ou religiosos, além de sua própria pessoa ter sido constantemente perseguida pela ditadura militar. Não estava sozinho, contava com um grupo de bispos, padres, religiosos e religiosas e leigos e leigas, com quem soube compartilhar suas dores e suas esperanças. Dom Fragoso foi um exemplo de uma geração de bispos que marcou viva presença, na profética resistência aos malfeitos gigantescos da ditadura militar. Disto também dá testemunho o livro que buscamos analisar.

 João Pessoa, 01 de junho de 2020, véspera da festa de Pentecostes.