sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

AMAZÔNIA, DA MERCANTILIZAÇÃO DA VIDA RUMO AO BEM VIVER: Uma primeira leitura da Exortação Apostólica pós-Sinodal “Querida Amazônia” do Papa Francisco


AMAZÔNIA, DA MERCANTILIZAÇÃO DA VIDA RUMO AO BEM VIVER: Uma primeira leitura da Exortação Apostólica pós-Sinodal “Querida Amazônia” do Papa Francisco

Alder Júlio Ferreira Calado

Foi lançada, anteontem (12.02.2020), a exortação Apostólica, da lavra do Papa Francisco, acerca do denso trabalho escrito pelos participantes do Sínodo sobre a Amazônia, realizado, em Roma, em outubro passado.
Após acompanharmos as discussões em torno do tema-alvo daquele Sínodo, e após cuidadosa leitura, tanto do Documento final sobre o Sínodo da Amazônia, quanto da mencionada Exortação, sentimo-nos encorajados a compartilhar algumas ideias, resultantes de uma primeira leitura da exortação, oferecida pelo Papa Francisco.

Uma compreensão mais objetiva da exortação apostólica do Papa Francisco requer uma leitura do documento final do sínodo sobre a Amazônia, ao qual se refere a própria exortação apostólica " querida Amazônia "daí parecer nos de bom alvitre resumirmos, em poucas linhas, o cerne do documento final do sínodo sobre a Amazônia. 

Trata-se de um denso texto, resultante de 21 dias de trabalho intensivo, precedidos de diversos meses e até anos de interação e de discussões e reflexões sobre a questão, protagonizados por centenas de pessoas - o mesmo documento fala na participação que envolveu em torno de 87 mil pessoas, dos mais distintos países nos quais Amazônia está compreendida. No caso do sínodo propriamente dito, algumas dezenas de participantes, chegando a cerca de 200 em seu Total, compostos de bispos, de religiosas e religiosos, de leigas e leigos, de representantes dos povos indígenas da região, além de representantes ou especialistas do mundo Acadêmico. 

O documento final do sínodo sobre a Amazônia vem redigido em 122 parágrafos, contidos em 32 páginas. Compreende uma diversidade temática, toda ela referente a região Amazônica, comportando análises, dados e reflexões atinentes, ao território e as gentes diversas que povoam essa região. São discutidos aspectos históricos e geográficos, econômicos, demográficos, políticos, culturais, além de aspectos eclesiais. O documento situa, de maneira detalhada, toda a região Amazônica, em sua complexa geografia, atendo-se a aspectos econômicos, tais como as formas de vida e de trabalho apresentadas por aquelas gentes, as formas de como aquelas populações se organizam para retirarem daquela terra e daquelas águas e das florestas seu sustento. Descreve, ademais, o variado cenário de povos, habitando aquela vasta região. São cerca de 33 milhões de habitantes, comportando os nove países em que se acha situada a vasta região amazônica: Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia e Venezuela, República da Guiana, Suriname e Guiana Francesa diversificada também é a população que nela vive e trabalha, da qual em torno de dois milhões e meio de habitantes indígenas e populações ribeirinhas; camponeses, povos tradicionais, comunidades afrodescendentes e outros tantos habitantes das águas e das florestas características daquela vasta região. O documento ainda descreve uma considerável diversidade de atividades econômicas ali em curso, tais como: extrativismo mineral ilegal, extração ilegal de madeira, expansão desmedida da área de monocultivo, expansão da pecuária extensiva, a serviço do agronegócio, construção de hidrelétricas altamente nocivas tanto as populações locais quanto ao meio ambiente, expansão e utilização indevidas de rodovias, hidrovias infelicitando a vida e as atividades culturais das populações tradicionais.

Também trata o documento de caracterizar as práticas culturais próprias das populações tradicionais da região e de modo a descrever a admirável simbiose entre esses povos e a mãe natureza. Descreve, ainda, os descaminhos ameaçadores trazidos pelos interesses de grupos invasores da região, seja a mando do agronegócio, seja com um a serviço das corporações transnacionais atuando na área de garimpos ilegais e do extrativismo mineral e madeireiro. Um quadro explosivo, em decorrência dos crescentes conflitos de interesses que ali tem lugar, interesses umbilicalmente ligados a um modelo de sociedade gerador de barbárie, pois necessariamente semeador de um modelo de mercantilização da vida, em todas as suas manifestações. Este modelo tem nome: chama-se capitalismo, que atravessa sua fase mais desumanizadora, a do controle financista e seus paraísos fiscais. A este respeito, dentre vários especialistas internacionais e nacionais, vale a pena ver/ouvir/ler as análises percucientes do economista Ladislau Dowber. Neste complexo quadro conflituoso, resta patente a extrema desigualdade de forças: de um lado uma enorme população desprotegida, desamparada pelo Estado, a enfrentar poderosos grupos econômicos e seus aliados no campo político e no campo paramilitar. 

O documento final do sínodo dos bispos alcança um alto grau de denúncia de fragorosas injustiças sociais ali reinantes, bem como o alto grau de destruição resultante das forças invasoras a serviço do grande capital nacional e internacional. 

Eis algumas leves pinceladas acerca do documento final do sínodo dos bispos, feitas com o propósito de permitir maior clareza em relação a exortação apostólica pós-sinodal do Papa Francisco, lançada anteontem, no Vaticano, constitui alvo maior das linhas que seguem. Não obstante uma simples pincelada sobre o documento final do sínodo dos bispos, vale a pena uma cuidadosa leitura integral do mesmo texto, dada sua relevância e considerando sua forte atualidade a quem interessar possa, recomendamos fortemente uma leitura cuidadosa do documento final, por meio do link que segue: http://www.sinodoamazonico.va/content/sinodoamazonico/pt/documentos/documento-final-do-sinodo-para-a-amazonia.html 

Quanto a exorta apostólica "querida Amazônia", que vem versada em 111 parágrafo, comporta 4 capítulos, além de uma introdução e da conclusão (cf. http://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20200202_querida-amazonia.html) os quatro capítulos se referem aos quatro sonhos que o Papa Francisco descreve, com uma percepção e intuição suas acerca do documento final do sínodo sobre a Amazônia. São quatro os sonhos: o sonho social, o sonho cultural, o sonho Ecológico e o sonho eclesial. Nas linhas que seguem, sublinharemos, com mais ênfase, os três primeiros sonhos, por dizerem mais diretamente e de modo mais profético os pontos axiais do documento alvo da exortação.
O primeiro sonho que inspira o Bispo de Roma a contemplar Amazônia e suas gentes é de natureza social, isto é, tem em vista realçar as condições de vida e de trabalho dos habitantes daquela região, a começar pelos mais vulneráveis: os povos originários, as comunidades tradicionais, que vivem em uma situação de constante ameaça por parte de políticas econômicas que interessam ao grande capital nacional e internacional. A partir daí, o Papa Francisco passa a descrever e analisar as relações sociais fundamentais que marcam Amazônia e suas gentes. Enfatiza que a Ecologia com que trabalha, tem um caráter integral, isto é, não toma em conta apenas o ambiente natural, também analisa as gentes que integram aquele mesmo ambiente. Nesse sentido, o Papa relembra, com base no documento final sobre o sínodo da Amazônia, bem como em depoimentos colhidos de pessoas integrantes daquelas comunidades amazônicas, situações de exploração e domínio ali existentes. Enfatiza, por exemplo, as graves invasões praticadas nos territórios indígenas e de outros povos tradicionais daquela região, em busca de apropriar-se das riquezas naturais, sempre com fundamentos recolhidos de pessoas que vivem e sofrem tal situação: “«São muitas as árvores onde morou a tortura e vastas as florestas compradas entre mil mortes»[3]. «Os madeireiros têm parlamentares e nossa Amazónia não tem quem a defenda (…) Mandam em exílio os papagaios e os macacos (…) Já não será igual a colheita da castanha»” (n.9). Assim acontece, por exemplo, em relação a devastadora exploração da Floresta, a procura de madeiras preciosas, minérios valiosos, abundantes na região, e ainda com o propósito de estender a área agricultável, em benefício da criação de gado e de monoculturas, do interesse do agronegócio, do interesse das empresas de mineração, de outros agentes econômicos, a serviço do Capital nacional e internacional. Ao mesmo tempo, trata o Papa Francisco de denunciar a cumplicidade de governantes de agentes políticos, de instituições que, em vez de defenderem o bem comum, se prestam aos interesses mais perversos das grandes empresas nacionais e transnacionais.

Mais adiante, o Papa Francisco também denuncia situações de perseguição, de escravização, tráfico de pessoas, favorecendo movimento migratórios forçados, que correspondem a verdadeiras expulsões de parcelas expressivas das populações tradicionais rumo às periferias urbanas, onde passam a levar uma vida de enorme exploração, dominação e marginalização.

Vale a pena observar como o Papa Francisco, ao tempo em que emite proféticas denúncias contra esse sistema de morte, ou seja, um sistema de mercantilização da vida, também faz questão de sublinhar aspectos fundamentais, característicos do paradigma do Bem Viver, posto em prática pelos povos originários e por outras populações tradicionais da mesma região. O Papa Francisco sublinha, com bastante ênfase, o estilo de vida daquelas populações, caracterizado por um estilo Modesto, simples, em perfeita harmonia com o ambiente, tão bem cuidado e velado pelos respectivos habitantes 

A exuberante diversidade Amazônica também inspirou o Papa Francisco, quanto ao seu sonho cultural. Com efeito, admira-se de uma pluriforme manifestação socioambiental, o Papa Francisco começa por sublinhar o que ele chama de " poliedro amazônico ", trazendo à tona, mais uma vez, a figura geométrica do poliedro como característica de uma interculturalidade, de uma esplêndida diversidade costurada por um fio de unidade: a unidade na diversidade. esta espantosa diversidade tão presente na terra e nas gentes da Amazônia manifesta-se, com efeito, por meio de uma harmoniosa convivência entre a natureza e os humanos, ambiência cultivada por valores bem característicos do paradigma do viver, tão caro aos nossos povos originários da Amazônia, mas também de outras regiões esta admirável simbiose entre os habitantes da Amazônia e seus respectivos territórios, marcados pelas águas vivas pelas matas e florestas faz acompanhar de uma grade de valores da qual a mentalidade capitalista se mantém a uma distância astronômica enquanto, por exemplo, a grade de valores de uma sociedade orientada pela mercantilização da vida, em que tudo vira mercadoria, na cultura amazônica, por outro lado, respirasse outra grade de valores, da qual fazem parte um estilo de moderação, de sobriedade, de simplicidade, de harmonia com com os demais seres daquela região, bem como com todo o espectro da natureza envolvente. Mais do que envolvente, os povos aí aí, presentes, impregnados daquele ambiente, razão porque não reina uma mentalidade Consumista, de acumulação, mas de partilha, de solidariedade de profundos laços comunitários, sem que a individualidade seja negativamente impactada, ao contrário, se faça marcada por um contínuo esforço pessoal sempre voltado para tornar mais enriquecida a comunidade respectiva.

O terceiro sonho do Papa Francisco vem acompanhado do adjetivo ecológico. Intimamente conectado aos sonhos precedentes, o sonho ecológico ressalta a necessidade e urgência de que os humanos reconheçam a relevância do bioma amazonas para todo o mundo. Não se trata de considerar os desafios observáveis na região amazônica, como sendo um desafio apenas local ou regional. Exorta os destinatários da “Querida Amazônia” a se empenharem, em escala mundial, em um enfrentamento articulado dos desafios apresentados pelo bioma amazonas. Neste sentido, diferentemente da pequenez de alguns governantes nacionais, em especial o Governo do Brasil, teimando em superestimar uma pertença exclusivista (inclusive como se toda Amazônia pertencesse ao Brasil...) o Papa Francisco alarga este horizonte, sem deixar de reconhecer a responsabilidade maior dos governos nacionais de zelar pela integridade ecológica da região, estimula em direção a uma corresponsabilidade no cuidado com este precioso tesouro. 

Tocando diferentes aspectos de sua proposta de uma Ecologia integral, o Papa Francisco discorre sobre distintos pontos conectados ao Bioma amazonas, chamando atenção para problemas e desafios especiais enfrentados pelos seus habitantes. 

Com relação ao sonho eclesial, o documento, ainda que não correspondendo, sob alguns aspectos, a várias expectativas de parcelas significativas de cristãos e católicos progressistas, não fecha de todo o caminho em direção à urgentes mudanças estruturais apresentadas, há décadas pela Igreja Católica Romana.

Seja como for, mais do que uma simples leitura individual, a proposta do Papa Francisco é digna de uma reflexão comunitária, seja no campo das Igrejas Cristãs, seja no campo das distintas organizações de base de nossas sociedades.

João Pessoa, 14 de fevereiro de 2020.

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