quarta-feira, 22 de junho de 2016

A História fará sua homenagem à figura de Antônio Conselheiro (Ivanildo Vila Nova e Severino Feitosa)

Recolho, de início, algumas estrofes desse primoroso “Martelo agalopado”. Não é uma produção tão recente. Remonta ao final dos anos 70/início dos anos 80. Integra uma das dez faixas (mais precisamente a segunda do Lado B) de um disco de vinil (produzido pela Chantecler).
Época de notável efervescência política e cultural, com o surgimento de relevantes movimentos sociais em luta contra a ditadura empresarial-militar instalada no Brasil (“rumor de botas” que também se estenderu pela América Latina…), por tenebrosos 20 anos. Época em que os clamores da sociedade civil ecoavam mais fortemente no mundo acadêmico, haja vista o período de frutuosa mobilização também do Movimento Docente. Mas, no que toca mais diretamente a arte do Repente e da Poesia sertaneja, pelo menos algumas instâncias acadêmicas nordestinas – aqui destaco as experiências da FAFICA e da Faculdade de Formação de Professores de Arcoverde – se notabilizaram pelo acolhimento e incentivo a essas expressões artísticas tão características da Cultura nordestina.
A Faculdade de Formação de Professores de Arcoverde (hoje CESA/AESA), já em meados dos anos 70, graças à entusiástica iniciativa e irrequieta alma sertaneja do Prof. José Rabelo de Vasconcelos, com a prestimosa colaboração do Prof. Aleixo Leite Filho, promovia a cada ano, no mês de agosto, uma semana de atividades acadêmicas temperadas por Poetas e Cantadores. A própria Revista da Faculdade, intitulada PELEJA abria suas páginas para ecoar tais experiências, inclusive registrando as cantorias organizadas em festivais de cantadores e violeiros (cf. Revista PELEJA, Arcoverde, 1979. Revista que circulou até 1992).
Selecionei apenas três das dez estrofes que compõem o “martelo agalopado” de Ivanildo Vila Nova e de Severino Feitosa. Vale a pena destacar alguns aspectos de seu conteúdo e de sua forma.
Já a partir do mote, percebe-se o propósito da poesia, o de homenagear o grande protagonista da Comunidade de Canudos, Antônio Conselheiro.
Ao lembrar a trajetória de figuras como a de Antônio Conselheiro, Beato Lourenço e outras, e observar que sobre as mesmas (quase) nada delas se fala nas escolas, e mesmo nas faculdades (tão pouco na mídia…), é que, perplexos, sentimos quanto chão temos a percorrer para o enorme desafio de seguir passando a limpo nossa história, tal como registrada coforme os cânones da historiografia oficial…
Os autores, antes de se deterem no relato de aspectos referentes ao massacre (impropriamente conhecido como “Guerra de Canudos”), descrevem, com engenho e arte, a bela experiência da Comunidade de Canudos. Um dos exemplos mais marcantes, em nossa história, de um esforço coletivo por uma organização social alternativa, fundada no respeito à dignidade humana e na força do mutirão, em busca de uma sociedade justa e solidária.
Não se limitam, os autores, a reverenciar o nome de sua figura maior, Antônio Conselheiro, mas tratam de fazer memória de todo o processo: protagonistas, lideranças, lugares, aspirações maiores da comunidade, detalhes da tragédia dos embates profundamente desiguais, promovidos pelo Exército brasileiro. Um registro histórico em linguagem poética, digno de ser trabalhado como material didático nas escolas.
Eis as três estrofes escolhidas:
“Num deserto profundo e sem ter fronte
Já surgiu um regime igualitário
Onde um justo já sexagenário
Fez erguer a cidade de Belo Monte
Para então vislumbrar um horizonte
Sem maldade, sem crime e sem dinheiro
Sem bordel, sem fiscal, sem carcereiro
Mas, foi morto e tombado por selvagem
A história fará sua homenagem
À figura de Antônio Conselheiro”
(…)
“Ó Canudos, país da promissão
Foi injusta e cruel a tua guerra
Tu, que eras abrigo dos sem-terra
Sem justiça, direito, paz e pão
O fanático era apenas um irmão
O jagunço somente um companheiro
Junto ao mestre encontrando paradeiro
Confiança, família e hospedagem
A história fará sua homenagem
À figura de Antônio Conselheiro”
(…)
“Sertanejos morrendo de magote
“A bandeira sangrenta era um molambo
O quartel sem guarita era mocambo
A metralha, um feioso clavinote
O abrigo era a grimpa de um serrote
Baioneta era a lança do carreiro
A corneta era o búzio do vaqueiro
Para-peito e gibão, sua roupagem
A história fará uma homenagem
À figura de Antônio Conselheiro”
(…)
(Ivanildo Vila Nova e Severino Feitosa. “A História fará uma homenagem à figura de Antônio Conselheiro. Long Playing “Cantadores de Hoje”, Chatecler, Rio de Janeiro)
No tocante à forma da poesia em exame, importa sublinhar alguns dos seus traços. Trata-se, como se percebe, do gênero intitulado, no universo do Repente, de “martelo agalopado”. Este consta de estrofes de dez versos, cada verso composto de dez sílabas, sendo estas acentuadas, do ponto de vista da métrica, na terceira, na sexta e na décima sílaba. Sua rima característica vem estruturada no modelo ABBAACCDDC.
Recebido o mote pela dupla de Repentistas, estes tratam de glosá-lo instantaneamente (quando se trata efetivamente de Repente. Nem sempre é o caso. O processo de gravação nem sempre é feito instaneamente, permitindo construir a poesia com mais tempo.
Gostaria, por último, de chamar a atenção para a terceira estrofe citada. Além de aspectos já esboçados, vale sublinar a excelência das imagens utilizadas. Aqui situo um dos pontos mais densos da poeticidade do Repente: a profusão e a excelência das imagens.

Extraído de: AJFC, Florilégio de estrofes da poesia sertaneja (Seleção e análise de estrofes de `Poetas e Repentistas do Nordeste) João Pessoa, \Edições Buscas, 2009.

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