sexta-feira, 24 de junho de 2016

Padre, perfil Vaticano II

Notas a partir do livro de Pietro de Paoli.38 ans, célibataire, curé de campagne. Paris: Plon, 2006
Por ocasião de uma dessas celebrações da Ceia do Senhor, na Comunidade Papa João XXIII, no bairro Valentina Figueiredo, em João Pessoa, em companhia de Irmão Guido (da Fraternidade Charles de Foucauld) e de outros irmãos e irmãs, Solemar Sena, num feliz gesto de fraterna partilha, me propôs, um dia desses, a leitura deste livro (“38 anos, celibatário e padre de comunidade rural”).
Nele, como é hábito do mesmo autor, em relação a outros textos seus de grande circulação, inclusive seu célebre Vatican 2035, o autor, sob o pseudônimo de Pietro de Paoli, trata de narrar, como se fosse o próprio padre, fatos e situações impactantes do dia-a-dia de um padre. E o faz ao modo de um diário de anotações referentes a um determinado ano, sendo distribuída a narrativa em doze meses, a começar do mês de novembro.
Mesmo tomando em consideração as especificidades do contexto da vida de um padre de uma pequena cidade do interior da França atual, em relação ao nosso contexto brasileiro, inclusive quanto ao cenário rural ou rurbano de lá e de cá, bem como as particularidades da profunda crise que o Catolicismo enfrenta por lá, saltam à vista as semelhanças dos relatos das situações e sentimentos socializados. De tal modo que, enquanto prosseguia minha leitura atenta e envolvente, punha-me a desejar que nossos cristãos católicos – e especialmente os padres de hoje – pudessem ter a oportunidade de ler esse livro.
Não se trata – vou logo adiantando – de uma perspectiva eclesiológica inspirada propriamente na Teologia da Libertação ou em valores mais próximos de Medellín, no que diz respeito mais diretamente à opção pelos pobres. Tem, antes, a ver com uma perspectiva mais próxima do espírito do Concílio Vaticano II, no qual também se inspiram (como ponto de partida) Medellín e a TdL.
Passo, a seguir, a destacar algumas situações do Diário atribuído a Marc, personagem protagonista do livro, atuando como um padre de uma comunidade rural ou rurbana, com seus 38 anos, cheio de inquietações pertinentes.
A princípio, ele não cogitava escrever qualquer diário. Foi só a partir do encontro impactante que teve com seu colega e amigo Jean-François, uns três anos mais velho do que ele, e em quem ele muito se inspirava como modelo de padre, que Pe. Marc tomou a decisão de registrar, durante um ano, suas próprias experiências de padre.
Num de seus encontros, seu amigo resolveu confidenciar-lhe que se sentia infeliz pela vida que levava. Até que gostava do seu ofício. Fazia bem as tarefas de padre. Mas, em relação à sua vida, a coisa estava insustentável. Estava disposto a mudar de vida, para espanto de seu amigo Marc.
Queixava-se do sentido vazio de sua rotina. Cansara-de ser tratado como “o padre”, de ser chamado “o Sr. vigário”, uma pessoa à parte das outras, reservada e sem vida em família. Mostra ao amigo Marc sua agenda – repleta de compromissos sucessivos, quase sem folga para um lazer, só tarefas de padre de uma paróquia, com reuniões e encontros o dia todo e todos os dias. Mais: era vigário da catedral, cujos freqüentadores só apareciam aos domingos, para “consumir o culto”, e depois desapareciam. Ele tinha uma vontade grande de conhecer quem vinha à assembléia dominical, quem lá estava, mas não conseguia: mal fazia o sinal da bênção final, e todos lhe davam as costas… Claro que havia um pequeno grupo de gente responsável pelas tarefas ordinárias da paróquia, mas mesmo entre essas pessoas, sentia-se tratado apenas como o “Sr. vigário”, alguém distante, sem se sentir pessoa comum, sem ser tratado simplesmente como Jean-François, enfim…
Um tanto tomado de sobressalto pela partilha de seu amigo Jean-François, Marc resolve registrar, durante doze meses, como se dava seu próprio dia-a-dia. Resumo pontos temáticos aí abordados.
Momentos de solidão
Ainda no início do livro, Marc anota a propósito do desabafo fraterno do seu amigo Jean-François que, além de vigário da catedral, também era o responsável pela catequese e pelo catecumenato de sua diocese:
– “Você sabe, a missa de domingo na catedral é uma missa-espetáculo. É claro, o órgão é belíssimo, o coral é muito bom, mas mais preocupado com a qualidade musical do que com a contribuição com a oração comum. Na assembléia, eu não conheço quase ninguém. Fora um pequenino grupo de leigos que fazem o papel de guias turísticos, quase todos são turistas. Normalmente, lanço os olhos para encontrar uma ou duas cabeças conhecidas. Há muitos freqüentadores que vêm por conta da beleza do lugar, da beleza da música e dos cantos, Mas, ainda que eu os reconhecesse, uma vez pronunciada a bênção final, eles vão embora. Nunca consegui trocar uma palavrinha com a maioria deles. Eles vêm como ´consumidores do culto´” (pp. 15-16).
Em seu desabafo, o Pe. Jean-François apontava outros momentos difíceis. Até que contava, sim, com pessoas conhecidas e amigas, com quem se encontrava, seja para reuniões de caráter pastoral, seja para confraternização. Mas, mesmo nestas, todos o vêem, não como uma pessoa comum, mas como “o sr. vigário”, “o homem de Deus”, como alguém de quem só se pode esperar conselho e opiniões (quase) infalíveis. Mesmo em relação aos poucos que o tratavam pelo prenome. Jean-François, sem deixar de ser quem é, queria ser olhado como gente, como uma pessoa comum: “Eu quero uma vida verdadeira. Quero amar e ser amado. Não quero mais voltar para uma casa vazia. Quero que me chamem Jean-François. Quero que nada esperem de mim. Quero poder dizer besteiras, sem que toda a Igreja Católica seja implicada. Eu quero viver bobamente, simplesmente como um homem, como um homem comum.” (p. 19).
Solidão do bispo
Pe. Marc ficou deveras impactado com o que escutara das confidências fraternas feitas por seu grande amigo Pe. Jean-François. E decidiu examinar como ele próprio vinha vivendo sua vocação sacerdotal. Para tanto decidiu registrar suas experiências numa espécie de diário, durante doze meses, a começar de novembro. Pensa na solidão do amigo, e logo depois se lembra que a do bispo não é menor: “Meu bispo, coitado!, morre de medo e de solidão, no fundo de sua residência episcopal, que fica a 47 Km desta casa paroquial. Ele tem muito mais do que se queixar do que eu. Ele é infinitamente mais só do que eu. Foi nomeado bispo daqui, há quatro anos. Tinha sessenta e um anos. Deixou sua diocese de origem, que fica a quatrocentos quilômetros daqui, deixou seus amigos, sua família – que suponho que tivesse. Aqui não conhece ninguém. Para a maioria das pessoas, o bispo é ainda um notável, uma pessoa importante. Nas ruas, os que o reconhecem, não ousam dirigir-lhe a palavra. Torcem a cabeça, ao cruzar com ele, às vezes ousam um fraco “Sr. Bispo! Talvez ele pudesse fazer um gesto, ir ao encontro das pessoas. Mas, é bem claro que esse não é o seu estilo.” (pp. 26-27).
Se para Marc, o bispo morre de medo – explica mais adiante – isto se deve ao fato de que a média de idade dos padres de sua diocese é de 72 anos e oito meses. Daqui a dez anos, só restarão por lá quinze padres com menos de 70 anos… Diante disso ele prefere não pensar nem falar sobre isso. É melhor falar da beleza de sua catedral, na esperança de que algum elemento artístico, brotando não se sabe de onde, venha a inspirar uma nova cristandade. Que esperança!
Tarefeiro: um risco a evitar
Não se trata, porém, de fato isolado. É, antes, a expressão de uma cultura. O próprio Pe. Marc lembra as circunstâncias de como veio a parar em sua atual paróquia, em verdade uma rede de 17 aldeias. Seu antecessor foi o Pe. Marcel. Aos 69 anos, vivia a percorrer todos os dias dezenas de quilômetros em seu carro, para dar contra de seus compromissos. Numa dessas viagens, sofreu um sério acidente, em seu carro, e veio a falecer. Substituído pelo Pe. Marc, este quis sentir bem na pele o ritmo de trabalho de seu antecessor, e, no primeiro ano, manteve inalterada a agenda do vigário. Para dar conta dos sucessivos compromissos, tinha que viajar em média 80 Km por dia. Percebeu que, nesse ritmo, não teria sorte diferente da do antecessor, e, no segundo ano, tratou de mudar sua agenda de trabalho, assegurando mais tempo para o atendimento na Casa Paroquial, já que, antes, esta vinha sendo substituída pelo carro, onde tomava notas para a homilia do domingo, rezava, telefonava… e curtia a marca da solidão.
O quê dizer na missa de Natal?
Solidão que seguia curtindo, ao retornar à casa paroquial, poucas horas antes da celebração da missa de galo, e ficava a considerar o dia-a-dia de um pai de família, seu trabalho profissional, sua dedicação à sua esposa, aos seus filhos, seu cuidado com os estudos dos filhos, com o futuro da família, enfim, coisas fora do alcance concreto de um celibatário. Ao ver-se sozinho, em frente ao computador, com vistas ao jardim de sua casa, sombrio, sem guirlandas, sem enfeites natalinos, perguntava-se: “Como é que eu vou, ao celebrar a missa, daqui a pouco, ser testemunha credível de um Deus que se faz próximo, de um Deus que faz causa comum com a humanidade?” (p. 45).
Solidão também curtida por ocasião das grandes festas, a exemplo do Natal. Em meio a todos os apelos mercadológicos ao consumismo, que via como obstáculo à autenticidade do Natal, percebia também tratar-se de uma ocasião mais propícia ao convívio familiar. Isto, porém, o inquietava: mais uma vez, sua condição de celibatário o distancia desse clima, especialmente na noite de Natal. Sendo uma festa celebrada, antes, na intimidade da família, que lugar pode aí ter um padre celibatário, a não ser curtir solitário, sua condição de celibatário? Como falar de família às famílias das comunidades que vão ouvi-lo, na homilia? “Esses homens e essas mulheres vivem uma verdadeira vida, de carne, de sangue, de coração, a vida dos humanos que Deus ama. (…) Eu que tenho como missão anunciar, esta noite, um Deus que se incarna, que vem tomar parte na vida dos homens de carne e osso, eu levo uma vida desincarnada.” (p. 47).

Religião de quatro rodas…
Os registros relativos ao mês de janeiro contemplam uma série de aspectos do cotidiano pastoral de um padre de comunidade rural ou rurbana. Dá conta da tristeza que sente do inverno europeu: dias curtos, pouca claridade, tempo frio, cinzento… No campo, não é fácil lidar com o deserto humano. Inclusive por conta do estilo tradicional de se viver a religião. Uma “religião de quatro rodas”, em que boa parte dos católicos só comparece à igreja, de carro, por ocasião do batismo, do casamento e das exéquias… E, por ocasião de uma reunião, ao discutir-se isto, um colega seu, do alto de seus cinqüenta anos de sacerdócio, ao ouvir tal conversa, lembrou que, além de meros consumidores do sagrado, esse pessoal também se mostrava “pão-duro”, razão por que se devia cobrar deles bem mais caro pelos “serviços” consumidos. Ao que um outro colega seu, seguindo a tradição da Ação Católica, retrucou, insistindo justamente na gratuidade, como gesto de ruptura da lógica de mercantilização da sociedade. (cf. pp. 56-57).
Esse papo voltou à tona pela enésima vez: que sentido faz para um padre? Discussões como esta, sobre o caráter tradicionalista dominante nas paróquias, constituíam frequentemente objeto de reflexão, nas reuniões do clero, de que Pe. Marc se sentia cansado, porque sem conseqüência. A não ser por sugestões do tipo daquela vinda de um colega seu: já que o povo tem essa mania consumista de sacramentos, não seria o caso de aplicar a essa gente uma medida, de fazê-los pagar mais caro pelos serviços “consumidos”?
A geração de padres que Marc acompanha tem, em sua maioria, uma média de 70 anos. Nas freqüentes conversas, acenam para o enorme contraste entre o que o tempo de “vacas gordas” (quanto, por exemplo, ao grande interesse suscitado entre os católicos pelo Concílio Vaticano e os tempos de “vacas magras” de hoje. Chegam a passar um sentimento de certo azedume e desespero. Marc fica a perguntar-se sobre que se passa com a Mãe Igreja, a quem tanto se tem tratado como “perita em humanidade”, “perita em justiça”, “perita em paz”…, enquanto se esquece de tantos momentos terríveis por ela protagonizados, quanto a guerras santas, quanto a perseguição de bruxas, quanto à omissão em relação a tantas vítimas, como os judeus, durante a Segunda Guerra Mundial…Enquanto se esquece das ditaduras que abençoa… “Vamos lá! Tenhamos a coragem de abrir os olhos!” (p. 63).
Campanha de orações pelas vocações sacerdotais
Pe. Marc deveria, em princípio, sentir-se à vontade diante da informação recebida, de que seu bispo resolvera investir forte, durante o tempo quaresmal, na campanha de orações pelas vocações sacerdotais. Não foi o que lhe sucedeu. Não que não se sentisse bem em sua vocação sacerdotal. Sentia-se um apaixonado pelo Evangelho. O problema lhe vem quando pensa no perfil dominante dos padres de sua Diocese, correspondendo, por sua vez, ao modelo de Igreja hegemônico. Perguntava-se, angustiado, como encampar com garra uma campanha pelas vocações sacerdotais, em tal contexto? Como animar-se a convencer as famílias a “cederem” seus filhos para o sacerdócio? Mais: não sentia firmeza sequer nas famílias devotas, nessa direção. Na sua própria família, faltava testemunho convincente. Uma tia sua, mesmo muito devota, admirou-se e estranhou, quando soube da decisão do sobrinho (o próprio Marc), de seguir a vocação sacerdotal. “Você, com um futuro tão promissor, em matéria de estudos? Você, que bem poderia constituir sua família.”
Também, considerava os comentários correntes. Já se foi o tempo das famílias numerosas, que cediam “para a Igreja” um de seus filhos… Hoje, as famílias têm apenas dois ou três filhos, e já não “sobra” mais um que elas possam “ceder” à Igreja… Donde a conclusão jocosa de Marc: “Vocação para padre é como auto-estrada: é boa quando passa pela terra dos outros…” Como ser padre, nessa estrutura pesada de Igreja? Empenhar-se nessa campanha seria o melhor caminho, considerando as conseqüências de tal escolha para um jovem cheio de ideal? Como empolgar-se e empolgar as pessoas, por tal iniciativa, uma vez que os testemunhos que tem observado, não são dos mais animadores? Lembra-se, por exemplo, do caso de um jovem padre que o bispo confiou aos cuidados de um padre idoso, que não sintonizava nada com as idéias do jovem padre (de oferecer estudos bíblicos para um grupo de jovens e um serviço de acompanhamento das crianças, durante os horários de missa ), sentindo-se este bloqueado, por essa e por outras razões, a ponto de desistir do ministério pouco tempo depois?
Daí também não ter feito coro com o clima de euforia reinante, por ocasião da ordenação presbiteral de um jovem diácono de sua Diocese. Enquanto (quase) todos se mostravam exultantes ante o fato, e faziam questão de manifestar a todos seu encantamento, a começar pelo ordinando, Marc, por sua vez, tomado por tantas dúvidas, tratava de ser discreto, nessa ocasião, evitando expressar as dúvidas que lhe vinham à cabeça. Sentia-se, antes, remetido à lenda do Minotauro, o terrível monstro de Creta, para quem eram sacrificados jovens, como forma de aplacar sua voracidade, ameaçadora de toda a cidade… (pp. 69-81).
As grandes festas litúrgicas se sucedem, e continua com enorme dificuldade de fazer seus paroquianos sintonizados com o sentir mais vivo do Natal, da Páscoa… Como gostaria de que o que lhe vem ao espírito, ao contemplar o mistério pascal, se fizesse realidade entre seus paroquianos. “Passo a passo, a liturgia vai nos conduzindo. Ouvimos a promessa da quinta-feira santa, depois mergulhamos no sofrimento, na noite do Getsêmani, a cruz faz se abaterem as trevas sobre o mundo, e, de joelhos, nós adoramos o amor crucificado. O sábado é o dia da espera. Silêncio e agitação se alternam. Nós devemos vigiar em oração nos tabernáculos vazios ou já preparar a celebração da noite? (…) A luz nos abre os olhos. A água nos lava, nos purifica. A Palavra nos convoca, nos interpela. O pão nos alimenta. Toda a noite deveria ecoar gritos de alegria. Nós deveríamos dançar ao ritmo dos aleluias. Os céus deveriam ser rasgados de fogos de artifício. Sonho que, nesta noite, a gente cantasse, dançasse, até aos primeiros louvores da aurora, até ao novo dia. Que pena: eu sonho! ” (pp. 87-88).

O drama dos casais separados…
Eis um desafio nada exclusivo do espaço eclesial europeu. Por toda a parte, ouvem-se queixas a esse respeito, sem que tenha havido nem se vislumbre saída, a curto prazo. O drama de casais católicos separados, e desejosos de terem vida eclesial plena, como tinham, antes do drama da separação.
Pe. Marc observa, um tanto chocado, o drama de pessoas responsáveis que, não conseguindo manter seu casamento, por razões as mais diferentes, mas de quem Deus é o único juiz, partem para uma nova relação estável. Com uma grande e impactante conseqüência, contudo, do ponto de vista pastoral: a Igreja não mais lhes permite uma convivência eclesial plena, eles ficam fora da comunhão. É aí que Pe. Marc se pergunta, angustiado, como é que “Eu, que sou tido como o ministro da misericórdia, eu que deveria ser aquele que anuncia o perdão, nada tenho a lhes propor. Tal é a disciplina que vigora em minha Igreja, que essa mulher recasada e esse homem que a esposou, são pecadores para sempre. Para sempre afastados da comunhão eucarística. Sua falta jamais será perdoada, a não ser que desmantelem sua nova família, e se separem. Só assim, eu teria o direito de absolvê-los e readmiti-los à comunhão. Ou seja: eu posso perdoar uma separação que rompeu uma família, sob a condição de que haja uma nova separação. Eu perdôo um crime, contanto que cometa um novo… E tal regra é editada em nome do Deus de amor, do Deus de misericórdia, do Deus que dá sua vida pelos pecadores.” (p. 96).
Por vezes, também, em meio a experiências sombrias ou de desespero, sucedem momentos de alívio ou consolação. Foi o que Pe. Marc encontrou, durante a celebração da Ceia do Senhor, e, mais precisamente, ao recitar, impactado, o Prefácio da Missa da reconciliação (2ª. Oração). Neste prefácio, lembra Pe. Marc, dirigimo-nos a Deus Pai, por meio de Jesus, ´por tua obra de amor no mundo´: “Nós proclamamos que estás na origem de todo esforço voltado para a paz. (…) Teu Espírito trabalha no coração dos homens; e os inimigo, enfim, se falam; os adversários se dão a mão. Povos que se opunham, aceitam fazer juntos uma parte do caminho. Sim, é a Ti, Senhor, que devemos, se o desejo de se entender prevalece sobre a guerra, se a sede de vingança dá lugar ao perdão, se o amor triunfa sobre o ódio.” (p. 100)
Entre a devoção popular e os apelos de um culto integrista
Os registros feitos por Pe. Marc, relativos ao mês de maio, explicam as razões de seu acesso de raiva e explosão desmedida diante de situações mais corriqueiras do que se imaginam, no cotidiano paroquial. Pe. Marc se apresenta como algém sensível à devoção popular, feita com sinceridade de coração. O que se distingue de práticas religiosas que não passam de crendices ou de tentativas de manipulação do Sagrado. As muitas capelas e calvários espalhados pela região constituem, por certo, traços de uma época em que a religião se inscrevia na paisagem. Ele não nutre ilusão sobre essa antiga época de ouro: “O Evangelho só se inscreve profundamente nos corações.” Mas, acrescenta, a justo título, que “as pedras podem tão bem ser sinais de uma humilde piedade como de falsas devoções supersticiosas.” (p. 104). E era o caso.
Na raiz de tal explosão de ira, estiveram algumas senhoras idosas que lhe pediram a chave de uma capelinha, situada a uns 2 ou 3 Km da cidadezinha. Queriam rezar o terço, aos sábados, naquela capelinha sob a proteção da “Santa Virgem Maria da floresta dos lobos”. Espalhadas pela zona rural, inclusive na região de Villeneuve, encontram-se pequenas capelas, muitas delas datando do século XIV, tempo de terríveis epidemias de fome, de doença e de guerra. Numa dessas epidemias – a terrível Peste Negra – foi dizimada até a terça parte da população rural. Lendas também se criaram, nesse tempo. Uma delas conta que, por essa época de grandes flagelos, três ou quatro crianças foram atacadas por lobos vorazes. Uma delas sabia rezar o terço em latim. E, diante daquele ataque desesperador, começou a recitar a “Ave, Maria”, e os outros a repetir. Sobreviveram, sãos e salvos, graças à proteção da Viregem Maria, em quem eles encontraram força de apanhar castanhas e atirá-las contra os lobos vorazes, afugentando-os. Daí e aí nasceu o culto à “Virgem Maria da floresta dos lobos”. Pe. Marc explica que essas piedosas mulheres (ou por sua influência) se servem da lenda para convencer as crianças, durante o catecismo, sobre a importância do culto a Nossa Senhora, inclusive valendo-se de variantes da narrativa da lenda: em vez do terço, diziam que as crianças só se salvaram dos lobos ferozes, porque eram assíduas frequentadoras do catecismo…
A cólera do padre aumenta, quando toma conhecimento dos comentários sobre uma via sacra organizada sob a liderança de uma piedosa senhora que, fazia pouco tempo, se havia instalado nas cercanias, ela, seu esposo e seis filhos, estes matriculados em escola particular confessional. Segundo a senhora responsável pela iniciativa da via-sacra, o padre não precisaria estar presente, pois dela se ocuparia um seminarista sobrinho da principal líder. Pe. Marc, ainda que um tanto apreensivo, fez sinal verde. Apreensão maior pelo fato da recusa gentil arrumada pela tia, diante do convite do padre para conversar com o seminarista sobrinho: como era sexta-feira santa, o santo seminarista preferia o isolamento, o jejum e a oração…
Depois, eram correntes os comentários sobre como tinha sido a via-sacra. O tal seminarista, vestido de batina, falou o tempo todo sobre a necessidade do culto a Maria, e nada sobre Quem estava na cruz… A raiva aumenta quando as devotas senhoras voltam a procurá-lo pela chave da capela, ocasião em que uma delas, buscando cooptá-lo, lhe mostra um livrinho de uma famosa corrente marial ligada aos integristas de Mons. Lefèbvre. Gente muito afeita, inclusive, à reverência às “Três Brancuras” (o branco da hóstia do Santíssimo Sacramento; o branco da Imaculada Conceição; o branco da subordinação ao Papa). Pensando nisso, Pe. Marc perde a paciência, toma o livrinho e vai se entender com a líder. E desabafa sem controle, diante dos argumentos de autoridade da líder, de que o Papa João Paulo II também tem devoção especial à Virgem Maria, e ela faz tudo o manda o Santo Padre, cuja santidade vem sendo atestada por multidões que o aclamam, como ocorreu em suas exéquias. Ao que Marc, já perdendo a paciência, argumenta que também multidões, na Rússia, cultuam o túmulo de Stálin, e nem por isso se trata de um santo… (cf. pp. 103-119).

O desafio de pregar, com a força do Evangelho, e a partir da vida…
Os registros relativos ao mês de junho dão a entender, no início, que o pretexto/trama das notas vai ser a celebração de um casamento espetacular, considerado, no âmbito da cidadezinha, como o “casamento do século”… Para abençoar o casamento de uma jovem de uma família nobre e um moço também de raiz aristocrática, foram convidados o Pe. Marc e um outro padre de Paris. Embora sejam fornecidos elementos noticiosos do “casamento do século”, pouco a pouco, sua inquietação-chave vai se voltando para o sentido da homilia. Tem ojeriza a pregações artificiais, que não partam do cotidiano da vida, que não mexam com as pessoas, razão por que detesta pregações que “toma um tempo enorme para dizer nada…”
Inclusive no contexto do casamento, ele faz questão de levar a sério cada celebração: “Considero este sacramento como uma das culminâncias da revelação cristã. De certa maneira, Deus esposa o amor dos esposos e desta realidade frágil, efêmera, acidental, Ele faz o modelo, o exemplo da incarnação do seu amor pela humanidade. Em Deus, o frágil torna-se forte, o efêmero torna-se eterno, o acidental torna-se presença real.” (p. 125). Aqui, dá mostra de seu cuidado, de seu zelo, ao preparar o quê e como vai dizer, na homilia.
São muito poucos os padres que levam a sério a preparação de suas homilias. Mas, felizmente, os há. E ele próprio faz questão de dar testemunho de um colega seu, Pe. Alberto; “Com ele o Evangelho toma vida, a gente respira a poeira dos caminhos da Galiléia, e os discípulos se parecem enormemente com alguns dos nossos paroquianos, agricultores espertos (…) o tom é trivial, e não perde ocasião de fazer seu público rir. É breve. Temina com uma pergunta, um paradoxo. A gente fica espantado ao flagrar-se no meio daquele caminho. Ele esboça uma direção, mas não faz o caminho em nosso lugar. As pessoas levantam o sobrecílio, franzem a testa. A gente percebe que a palavra faz seu caminho, seu apetite foi atiçado. Isto me faz pensar na citação do profeta Isaías: ´Assim como a chuva e a neve descem do céu, e para lá não retornam ser haverem regado a terra, sem a haverem fecundado e sem a haverem feito germinar, para fornecer a semente ao semeador e o pão do sustento, assim é a palavra que sai de minha boca: ela não volta para mim sem efeito, sem ter cumprido sua missão. ´”(Is 55, 10-11)” (pp. 129-130). E, a seguir, acrescenta que Alberto não é um sábio, não é um biblista, não é um teólogo. É servidor da Palavra de Deus. A ela serve, e não dela se serve para seus caprichos.
Como lidar com famílias de formação tradicionalista?
Já foi mencionado que se instalara no território da paróquia uma nova família, pai, mãe e seis filhos. Juntos, passaram a freqüentar a missa, sempre ocupando a primeira fileira de bancos, para surpresa do Pe. Marc, que tanto se empenhava em chamar os participantes a se sentarem mais perto do altar, já que entre o altar e eles, restava um espaço de umas três fileiras de bancos.
Não foi o caso daquela mãe junto com a filharada. Todos bem atentos e bem comportados, o que chamava a atenção do padre – ver crianças tão bem comportadas assim na igreja… Com o passar dos dias, vai tomando conhecimento da simpatia especial que essa família nutria pelas coisas tradicionais da Igreja: superdimensionamento dos valores da família, obediência cega ao papa, devoção exagerada à Virgem Maria, apego a uma liturgia conservadora, pré-conciliar, tanto que muitas vezes preferia assistir à missa noutra paróquia, a 30 Km de Villeneuve, com um jovem padre de formação integrista e de ar angelical.
A senhora dessa família também buscava difundir, entre famílias semelhantes, suas práticas devocionais à Virgem Maria. Chegava mesmo a combinar pequenos eventos à revelia do vigário, razão por que este, já se sentindo desconsiderado, vai à casa da dita família, e tem uma conversa muito tensa com a mesma. Passado um tempo, a senhora envia à casa paroquial dois de seus filhos – uma filha e um filho – para fazer entrega ao Pe. Marc de um convite para um jantar na casa dela, entre amigos. Vai ao dito jantar, não sem haver antes hesitado. Famílias numerosas como a da senhora lá se acham. Conversas sobre o trivial do cotidiano, sem puxar assuntos polêmicos.
Ocasião melhor que pudesse esperar. Teve oportunidade de observar as numerosas crianças, de conversar com todos os presentes, sempre preferindo perguntar (“aos homens sobre seu trabalho; às mulheres, sobre os filhos”) a falar.
Já ao final do jantar, atendeu ao convite para abençoar as crianças. E o faz, ao seu modo. Senta–se chão, chama as crianças para perto, e vai perguntando sobre o que mais apreciaram naquele dia, sobre o sentido de bênção (dizer o bem e desejar o bem às pessoas), e dizer-lhes como Deus as amava a cada uma. E, não sem antes receber uma leve cobrança de uma das pessoas presentes, pelo fato de, ao se dirigir às crianças, só lhes haver falado do bem, do amor que Deus tinha por elas, e nada sobre o pecado…
Já em casa, ruminava o que havia vivenciado, no jantar. Pensava no sentido de famílias com muitos filhos. No caso vivido, sabia tratar-se de famílias que muito amavam seus pequenos. Mas, e noutros casos, as famílias são numerosas por uma escolha consciente dos pais, ou porque estes, obedecendo cegamente às normas da Igreja, não ousam recorrer à pílula ou a outros meios de evitar filhos? Lembra-se, a propósito, de uma senhora que o procurou aflita, para compartilhar seu desespero ante o fato de que, com quinze anos de casada, já tinha nove filhos, sem ter escolhido, graças à imposição das normas da Igreja, seguidas à risca pelo marido, de quem se queixava por lhe impor tal obediência… Como lhe era difícil sentir-se parte de uma Igreja assim…
Férias? Ou o retorno ao espinhoso tema das vocações?
O início dos registros do mês de agosto remete a um relato de férias. Mas, só o início. Pe. Marc pula de alegria em poder tirar duas semanas de férias. Tudo havia sido preparado, a começar do padre Joseph, um colega africano de Camarões, em temporada formativa na França, bem recomendado por um colega seu de seminário, também de Camarões, com quem se dava tão bem. Preparado também o pessoal da paróquia, cada qual no seu respectivo ofício.
Embora tenha viajado e visitado seus amigos, a idéia que prevalece largamente nos registros foi a convocação que o novo bispo lhe havia feito, para conversar com ele, no comecinho do mês de agosto, antes de partir de férias. Tema: as vocações. A exemplo dos demais bispos, também o novo pretendia investir forte nas vocações sacerdotais, razão por que queria confiar a Pe. Marc os cuidados de acompanhamento em sua casa paroquial de três seminaristas, não sem adverti-lo – a mando de Roma – sobre a necessidade de uma atenção preventiva quanto a eventuais casos de homossexuais…
“Por que será tão forte essa preocupação com as vocações sacerdotais, da parte dos bispos?” Teria a ver com a necessidade de prover as paróquias de vigários, sobretudo por conta da ameaça crescente de déficits? Teria a ver com a tendência de bispos, de zelar pelos “seus” sacerdotes? Na avaliação de Pe. Marc, parecia maior o apreço dos bispos por padres por eles ordenados. No caso de um bispo novo, a seara já estava feita, urgindo ocupar-se dos “seus” seminaristas, futuros padres “seus”…
O convite do bispo mexeu com Pe. Marc, ao longo das breves férias. Relutava em receber na casa paroquial três seminaristas, nesse contexto de tantas dúvidas. Não apenas pelo receio de compartilhar sua vida com seminaristas, nesses tempos. Também, reconhecia limites pessoais em viver em comunidade. Nem em sonho, havia cogitado viver num convento… Limite compreensível, tendo em conta o contexto próprio da Europa. Para um nordestino, em tese, isto pareceria bem mais simples…
Impacto de uma tsuname em sua vida…
Ainda seminarista, em companhia de um colega, Pe. Marc conheceu a irmã deste, sendo ela então uma adolescente. E a amou, à primeira vista, como uma irmã, tal como a seu colega que se ordenou apenas oito dias antes de Marc. Permanceram amigos-irmãos.
Na oportunidade em que seu amigo estava a fazer um curso de Bíblia, em Jerusalém, já que se tratava de um professor de teologia , recebeu da irmã do seu colega a informação de que ela e seu marido iriam visitá-lo.
Recebeu-os com muita alegria e carinho. Particularmente impactante para Marc foi ver-se diante de sua amiga a esperar seu bebê, com toda a torcida da parte dela e do marido. Ela estava grávida de seis meses.
Num domingo à tarde, após haverem participado da celebração eucarística e depois de terem, em seguida, almoçado juntos, no jardim da casa paroquial, diante do marido, a amiga-irmã do Pe. Marc, que se sentia tão tocado, ao contemplar, com entusiasmo, a barriga da futura mamãe, esta toma-lhe as duas mãos e as pressiona sobre sua barriga, convidando-o a sentir os pulos do seu bebê. Pe. Marc, então, tem um acesso de choro – choro de admiração pela vida pulsando. Não se contém, pede licença a vai chorar longamente, em seu quarto. Preocupado, o marido de sua amiga vai bater-lhe à porta, para saber se ele já se havia refeito. Abraça-o, carinhosamente, confessando sua admiração por ver alguém de coração expressar sua emoção.
Ao mesmo tempo, o jovem casal visitante se despede do amigo, e segue sua viagem. O amigo ficara profundamente marcado pelo episódio: uma crise de sentimento ou um forte apelo à paternidade?
Nos dias seguintes, a marca não o abandonaria. Até que decidiu tomar uma semana fora da paróquia, pretextando ausentar-se para cuidados médicos de rotina, quando, de fato, buscou uma abadia, para fazer um retiro, animado por um outro amigo seu, muito afeiçoado aos seminários lacanianos, e que o acolheu e acompanhou, de bom grado.
Como lição dessa experiência, saúda sua disposição de ir em busca da verdade. Avalia como bastante positivo o acompanhamento fraterno que teve da parte do amigo, consciente, por outro lado, de que seu problema tinha que ser enfrentado por ele mesmo, não seria obra de nenhum diretor espiritual. Deus pediria contas, um dia, a ele próprio, não a terceiros agindo “por ele”.
Que aspectos sublinhar dessa leitura?
Em verdade, isto é obra de cada leitor, de cada leitora. Quanto a mim, destacaria os seguintes aspectos:
Embora se trate de um contexto bem característico – de um padre de uma pequena cidade do interior da França, da atualidade – há, sim, aspectos vários comuns a experiências de padres de nossa e de outras regiões.
Resulta insustentável a continuidade de uma estrutura pesada – por vezes, desumana -, em pleno século XXI. Algo tem que ser feito!
– Não se trata de tudo atribuir à lei do celibato, mas é verdade que tal obrigatoriedade segue (até quando?) fazendo profundos estragos, em especial à saúde de parte considerável dos padres;
Cada dia, torna-se mais improvável contar-se com padres psicologicamente maduros, a manter-se tal estrutura;
– há uma combinação de fatores a sustentar tal esta estrutura, entre os quais o descumprimento dos saudáveis princípios do Concílio Vaticano II: o entendimento de Igreja como Povo de Deus; o assumir a Igreja como servidora dos seres humanos, em especial dos pobres; o exercício do diálogo sem preconceitos com o mundo de hoje; o exercício da colegiado, entre outros.
Dificilmente muda essa estrutura, por iniciativa espontânea da alta hierarquia, que não abre mão do controle absoluto das decisões eclesiásticas.
João Pessoa, 13 de dezembro de 2010
Santa Luzia, rogai por nós!

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