quarta-feira, 29 de junho de 2016

Das ações de alcance institucional às da ousadia instituinte

Potencializando o alcance de nossa ação em defesa e promoção da Cidadania e dos Direitos Humanos
Atuamos numa sociedade extremamente complexa, globalizada, com graves incidências nas esferas econômica, política e cultural. Há quem assinale, a justo título, estarmos vivendo, mais que numa época de mudança, uma “mudança de época”. A exemplo de tantas outras, a sociedade brasileira também se acha – e hoje mais do que nunca – organicamente integrada a essa rede de relações, em escala mundial.
Esse fenômeno que deveria, em princípio, ser saudado com entusiasmo – pois bem poderia ensejar um congraçamento entre os humanos, e destes com o Planeta – vem, ao contrário, convertendo-se em tragédia, não apenas para os humanos, como também para a Mãe-Natureza. Não se trata de ignorar ou subestimar significativos avanços alcançados, seja na área científico-tecnológica, seja no âmbito de distintas outras áreas de saberes, ainda que tais avanços beneficiem, com frequência, apenas uma pequena minoria. Sucede que, não obstante tais avanços, o horizonte geral do Planeta e da Humanidade não se apresenta nada animador. À semelhança de uma árvore que se conhece pela qualidade dos seus frutos, um olhar analítico para a nossa sociedade nos dá conta de uma sucessão de graves descaminhos que afetam o Planeta e amplas maiorias dos humanos, tais como:
– degradação com gravidade sem precedente das condições do Planeta;
– crescente concentração de riquezas, de terras e de renda em mãos de poderosos grupos transnacionais, operando “em tenebrosas transações” (Chico Buarque: “Vai Passar”), com seus paraísos fiscais à custa de centenas de milhões de humanos que jazem na miséria, num mundo de opulência para tão poucos;
– extremada pilhagem dos recursos naturais não-renováveis, não raro, sob o controle de gigantescas empresas transnacionais, favorecidas pela privatização desavergonhada do patrimônio nacional e das fontes de vida (rios, mananciais, florestas, além da terra mortalmente ferida por garimpos que espalham substâncias químicas comprometedoras do equilíbrio dos ecossistemas…
– crescente redução das funções sociais dos Estados nacionais, em especial dos Estados periféricos, implicando uma progressiva
precarização ou mesmo desmonte dos serviços públicos essenciais;
– agressiva propaganda consumista a tornar vulneráveis amplos setores da sociedade, convertendo-se, não raro, em reféns fáceis da volúpia consumista do mercado;
– inversão de valores fundamentais junto principalmente aos setores mais jovens das populações;
– extrema absorção e reprodução de uma cultura “presidencialista” (esperar que as decisões venham do chefe, de cima para baixo ou de fora para dentro), fortemente atestada pela “democracia representativa” e seus mecanismos de falsa representação política… Apenas alguns aspectos ilustrativos num amplo espectro de tantos outros.
Não se estranha que daí surja uma sociedade de extrema desigualdade, a espalhar toda sorte de violência, de preconceito, de discriminações de gênero (inclusive homofobia), de etnia, de geração, de espacialidade (perseguição a nordestinos, por exemplo)…
Nessas breves notas, tratamos de focar como se tem dado nossa resistência habitual, no plano do dia-a-dia. Em seguida, buscamos examinar nossa ação de rotina institucional, quanto ao seu limitado alcance de garantir a todos a efetividade dos direitos humanos e do exercício da Cidadania. No terceiro tópico, oferecemos à discussão uma breve reflexão problematizadora, com o propósito de que nos ajude a passar de ações rotineiras de alcance institucional, realizadas quase sempre em cima de efeitos dos problemas enfrentados, em direção a um combate dos mesmos problemas por suas raízes, numa perspectiva instituinte ou de alternatividade.

1. Nossa luta do dia-a-dia
Não se pode acusar-nos de omissão. Não temos cruzado os braços diante das mais diversas manifestações de violação dos direitos humanos e do Planeta. Basta que nos remetamos a um amplo leque de paginas e sítios eletrônicos de numerosas ONGs e organizações da sociedade civil, empenhadas no combate a uma considerável gama de atividades de defesa e de promoção dos direitos humanos, nos mais distintos espaços: dos direitos ambientais aos políticos; dos direitos econômicos aos civis; dos direitos sociais aos culturais, implicando relações de gênero (sexismo, homofobia), de etnia (discriminações de toda sorte), de geração (dizimação dos nossos jovens e de nossas crianças, marginalização das pessoas idosas), de espacialidade (estigmatização de segmentos como os nordestinos, por exemplo, e casos de xenofobia), de religião (crimes cometidos em nome de Deus…), de classe (criminalização dos pobres e dos movimentos sociais populares)…
Desse empenho têm resultado várias conquistas que reacendem nossas esperanças, aqui e ali. E daí tendemos a dar-nos como satisfeitos, envidando novos esforços para novas conquistas. De um projeto passamos a outro, indefinidamente. E, apesar dos tempos de “vacas magras”, quanto às fontes de financiamnento, sempre encontramos entidades que se disponham a nos socorrer. Tanto entidades governamentais (embora nos apresentemos como organizações não-governamentais…) como entidades particulares, algumas inclusive atuando como grandes grupos transnacionais.
A despeito de algum eventual estranhamento quanto ao perfil de quem financia, isto não tem sido uma barreira em nosso trabalho, até porque alentamos a idéia de que não nos deixamos influenciar por tais agências de financiamento, sem um exame mais detido dessa relação. Sempre achamos que podemos usar o dinheiro para atingir nossos objetivos– mesmo quando de origem politicamente questionável. Prevalece, entre nós, a ilusão de que podemos imprimir ao financiamento um destino diverso da intencionalidade do mercado ou do Estado.
Tais critérios uma vez assim assumidos, tratamos de tocar nossos projetos e programas, recorrendo, não raro, ao que temos chamado de “parceria” com essas instâncias, até porque assim também por elas somos tratados, sejam elas ligadas ao Mercado ou ao Estado. Que elas assim nos tratem, nada de estranho: são coerentes com seus procedimentos estratégicos e táticos. Com isso, elas acabam sendo as principais beneficiárias. Seus objetivos estão sendo, por certo, alcançados, mesmo quando os projetos financiados não resultem fecundos. Desde que não atrapalhem…
Aqui me vem à cabeça algo semelhante ao que sucede na relação entre um grande banco financiador de um programa de televisão, por exemplo, e a postura da emissora financiada. Imaginemos que um banco desses – hipótese, aliás, tão próxima!. – resolva financiar madeireiras ou empresas de mineração da Amazônia, com escandalosa devastação de enormes áreas florestais, enquanto o mesmo banco financia uma sedutora propaganda de proteção de nossa biodiversidade. Que atitude tomaria a emissora de televisão: ousaria cobrir um noticiário desses? Chegaria a emitir críticas ao despautério? Ou se limitaria a projetar, silente e cúmplice, a tal propaganda, seguindo a lógica do dito popular, segundo o qual “Quem como do meu pirão, prova do meu cinturão”?
E assim vão se celebrando as tais “parcerias”, quase sempre com muita astúcia da parte de quem financia, contrastando com a baixa de guarda por parte das entidades que se querem comprometidas com os interesses populares. Entre estas, tem falado mais forte a crença no caráter inofensivo das “parcerias”. Para tanto, concorre o fato de que, do ponto de vista estritamente pragmático, as metas são alcançadas. Mas, pouco se questiona: por que será que nossas metas são alcançadas?
2. Nosso tipo de atuação depende do caráter dos nossos sonhos
Não há por que desconhecer ou ser indiferentes em relação aos bons propósitos que inspiram e encorajam entidades e organizações de base da sociedade civil que lidam com direitos humanos e cidadania, ao colherem bons resultados de suas mais distintas formas de intervenção, por meio da implementação de seus programas e projetos. Como não avaliar como positivas conquistas alcançadas em tantas áreas? Quantas crianças e adolescentes, beneficiadas por projetos pontuais em aprendizado profissional, em atividades artístico-culturais ou em programas de inclusão digital?
Como não saudar resultados animadores decorrentes de trabalhos junto a jovens do meio popular do campo e da cidade, em seus cursos de educação ambiental e de inclusão social? Como não congratular-nos com experiências impactantes de acompanhamento e assistência a mulheres vítimas de violência doméstica? Como não expressar nossa satisfação em relação a trabalhos de intervenção junto a segmentos afrodescendentes, envolvidos em projetos comunitários?
Não dá para ignorar os esforços de numerosas entidades empenhadas na sensibilização de relevantes segmentos sociais, em sua luta por políticas públicas de moradia, de saúde, de educação, de transporte público, de políticas específicas para os jovens, para as mulheres e tantos outros segmentos sociais. Quantos frutos promissores aí se conquistam!
Saudando, por conseguinte, os bons frutos desses projetos e programas, já colhidos ou ainda em curso, importa, sim – até como um recurso avaliativo -, problematizar pedagogicamente o alcance dessas conquistas. E vamos tentar fazê-lo por meio de alguns questionamentos:
– o conjunto dessas conquistas pontuais quê lugar têm no conjunto geral das demandas e aspirações legítimas envolvendo o conjunto da população brasileira (ou de cada Estado, ou de cada município)?
– Tomando a política de moradia, como uma ilustração didática, nosso empenho de intervenção, ao realizar determinada ação, não deveria, antes, ter bem presente o déficit geral de habitações (do Brasil, de cada Estado, de cada município), o que permitiria dimensionar o alcance de nossa ação?
– Neste caso, estimando-se em 12 ou 15 milhões o déficit habitacional do país (as estatísticas oficiais o situam em torno de 7 milhões…), e assumindo-se como real a promessa de construção de um ou dois milhões de casas populares, no período de oito anos, quê direito de moradia o Estado assegura para tantos milhões de sem-teto, que têm o mesmo direito a moradia (e a outros bens e serviços, claro)?
Exercício semelhante somos convidados a fazer em todas as demais políticas públicas: acesso digno aos serviços de trabalho, de terra, de saúde, de educação, de transporte público, de saneamento, de atendimento às justas reivindicações de mulheres, de jovens, de crianças e adolescentes, de justiça, etc., etc.
– Qual é mesmo nossa concepção de Direitos Humanos ou de Cidadania? Afinal, defendemos ou não o alcance efetivo e universal de Direitos Humanos ou de Cidadania? Seria legítimo confessar-nos adeptos de uma concepção de Direitos Humanos e de Cidadania para todos e todas, enquanto nossa prática – e “a árvore se conhece pelos frutos”! -, sinaliza uma estratégia que se contenta com uma experiência de garantia gradativa de direitos?
Nessa altura dos desafios é que podemos testar a qualidade de nosso sonho de sociedade, enfrentando e tendo que decidir entre várias possibilidades:
– “A gente faz o que é possível. Esses problemas vêm de longe. Não dá para resolver tudo de uma vez. Vamos fazendo aos poucos”;
– “Vivemos numa sociedade capitalista. É preciso tomar bem em conta que não temos como mudar isto. Só aliviar o drama de tanta gente constitui um passo muito importante”;
– “Sabemos que ainda é pouco o que fazemos, mas é o possível. A lógica dos poderes públicos é assim, desde sempre, e a gente não tem como mudar”;
– “Até que percebemos que nossas ações são limitadas. Se o Estado assume seu papel, bem que as coisas seriam diferentes. Sendo assim, cabe-nos pressionar os poderes públicos, cuidando de eleger bons representantes”.
São algumas das variantes de opções possíveis que parecem corresponde à tendência dominante. Neste caso, nosso sonho, embora se declare como o de uma sociedade justa, solidária, culturalmente diversa, de uma relação amorosa com a Natureza, etc., tende a remeter sua realização para um horizonte praticamente inatingível, ficando apenas como um sonho generoso, reportado para as calendas gregas…
Haveria uma outra forma de sonhar mais ousada, mais exigente quanto à sua efetividade, ainda que a médio e longo prazos? É o que tentaremos trazer ao debate, no item a seguir.
3. Em busca de ações de alcance estrutural
Ao ousarmos ensaiar passos priorizando a busca de ações de alcance estrutural, seja quanto ao combate aos males sociais e ambientais (modo de produção e de consumo capitalista, gestão elitista de sociedade, distintas formas de agressão ambiental, desigualdade social, concentração de riquezas, de terra, de renda, subserviência do Estado aos interesses do Mercado, formas de violência social, discriminações de toda sorte..) quanto em relação às ações de caráter instituinte (as que nos permitem ensaiar, desde já, ações grávidas de alternatividade, seja no âmbito macro-social, seja nas micro-relações e no terreno pessoal), entendemos como complementares (e não necessariamente opostas) as iniciativas moleculares já em curso e outras iniciativas de caráter mais diretamente alternativo.
De modo semelhante ao nosso procedimento precedente, também aqui tratamos de compartilhar nossas inquietações em forma de questionamentos.
– Mantido o atual modo de produção, de consumo e de gestão da sociedade, as atuais condições de organização de sociedade, teremos mesmo chances reais de assegurar ao Planeta e ao conjunto dos Humanos a plenitude dos direitos e do exercício de Cidadania pelos quais nos batemos?
– Será que, consentindo objetivamente a continuidade do atual modelo de produção, de consumo e de gestão de sociedade, não se tornarão, no fundamental, inócuas nossas ações pontuais ou “etapistas” (“pouco a pouco, vamos estendendo aos que faltam, seus respectivos direitos”), acabando sendo funcionais ao Mercado e ao Estado, e por eles absorvidas nossas intervenções intra-sistêmicas?
– Será que as raízes dessa rotina de violência social não devem ser buscadas – por intimamente associadas/e condicionadas – na natureza mesma de nossa organização social, fundada na extrema desigualdade: sendo o Brasil a nona maior potência, também ocupa o sétimo lugar entre os países mais socialmente desiguais do mundo?
– Será que estamos dispostos a fazer a distinção entre países pobres (o que também já não somos tanto!) e países socialmente desiguais (no que nos tornamos dos maiores)?
– O que podemos esperar de nossos filhos e filhas, crianças, adolescentes, jovens, se, em vez de estarem, durante todo o dia, em escola de qualidade e criativamente ocupados, ficassem a vagar à toa, abandonados, hostilizados, criminalizados?
– Será que nos damos conta do enorme contingente de crianças, adolescentes e jovens, mantidos, dia após dia, e de modo crescente, nesse estado de precarização de vida?
– Sem assegurarmos as condições de formação humana mais elementares, o que pretendemos obter?
– Que práticas podem ser esperadas desse enorme contingente de nossos filhos e filhas, e de nós próprios, submetidos o dia todo e todos os dias à grade de valores do Mercado (consumismo, cultura do endividamento, multiplicação de “necessidades” artificiais ditadas apenas pelo império do lucro, a que nos submetemos, com freqüência?
– Sabendo, por longa, dolorosa e reiterada experiência, da incapacidade invencível do Mercado e do Estado e seus aparelhos, de responderem ao essencial de nossas demandas e aspirações, até quando vamos seguir apostando neles, e não em nós próprios, como protagonistas chamados a resolver, por caminhos alternativos, nossos gravíssimos problemas?
– Mesmo não tendo, nem acreditando em receitas milagrosas para os nossos males, é razoável seguirmos apostando no que JÁ HÁ TANTO TEMPO, NÃO VEM DANDO CERTO, ou ousarmos ensaiar caminhos alternativos, junto com outros sujeitos parceiros de nossa caminhada?
– Nesse processo de busca incessante, não terá chegado a hora de, em vez de seguirmos apostando cegamente em “parceiros” com frutos fartamente conhecidos, tratemos de investir nossa ação, nossa energia e nossa esperança num mutirão alternativo, somando forças com quem, de fato, tem interesse de mudar esse estado de coisas, buscando ensaiar rumo, caminhos e posturas alternativos à lógica dominante?

João Pessoa, maio de 2011

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