quarta-feira, 22 de junho de 2016

As damas de Salerno

Este texto é uma breve nota sobre Trótula de Ruggiero, uma sábia do século XI, a serviço da vida e da saúde das mulheres.
É sobejamente conhecida e reconhecida a contribuição do Renascimento ao desenvolvimento científico, em diversas áreas. Menos conhecidas e reconhecidas são as diferentes vagas de Renascimento: a dos séculos XII e XIII, a dos séculos XV e XVI, além da que se seguiu desde o século XVII…
No caso da sábia medieval Trótula de Ruggiero, trata-se do século XI, menos conhecido ainda, inclusive sob esse aspecto. Já então, Salerno tornara-se célebre como centro de medicina de referência em várias outras universidades européias. O dado mais impactante, porém, é que se tratava de um centro de medicina protagonizado por mulheres, sob a liderança de Trótula de Ruggiero.
Mais: firmando uma posição investigativa que ia de encontro à linha de interpretação dogmática sustentada pelas autoridades eclesiásticas de então… Não foi por acaso que se notabilizaram essas sábias, como as “Damas de Salerno” ou, na expressão em Latim, “Mulieres Salernitae”.
Dificilmente, prosperaria uma tal empreitada, numa época hostil à pesquisa científica (preconceitos contra as mulheres, androcentrismo, hegemonia eclesiástica…), não fosse resultado e expressão de uma comunidade científica protagonizada pelas mulheres, sob a liderança de alguém como Trótula, de indiscutível respeitabilidade científica e de afirmação da condição feminina.
Trotula de Ruggiero viveu durante o século XI. É desconhecido o ano de seu nascimento, mas não o de sua morte: 1097. Foi piorneira nos estudos científicos da Ginecologia e da Obstetrícia, sobre as quais escreveu diversas obras. Suas pesquisas se notabilizariam, de tal modo, a servirem de referência obrigatória, não apenas em seu tempo, mas com forte ressonância nas universidadades européias até o século XVI.
Tal era o reconhecimento da importância dos tratados e dos livros de Trótula, bem como das médicas que com ela atuavam na Escola de Medicina de Salerno (àquela época, em Salerno, só havia a Escola de Medicina, antes mesmo da fundação das universidades), que para lá acorriam estudantes de distintas partes da Europa, para se formarem como as médicas que lecionavam na Escola de Salerno.
Diversos são os aspectos a destacar dessa densa experiência de protagonismo feminino, em pleno século XI. Um deles tem a ver com o caráter laico dos estudos então desenvolvidos. Num contexto sócio-histórico hegemonizado por figuras masculinas, as mesmas, aliás, que compunham os setores eclesiásticos e sua ideologia, importa assinalar o perfil de autônomia daquela experiência, que passava por sua opção laica.
Em alguns relatos referentes aos estudos então desenvolvidos, encontram-se aqui e ali sinais de confronto de caráter religoso. Conta-se que, certa feita, um religioso incomodado com o fato de Trótula dedicar-se a aliviar a dor sofrida pelas mulheres, no trabalho de parto, interpelara a Trótula, com argumento bíblico: por que ela se dedicava a esse ofício, se o Gênesis relata que as mulheres hão de parir com dor e sofrimento.
Ao que Trótula responde que acha não estar fazendo mal algum, ao buscar aliviar o sofrimento das mulheres. Mais: a própria Trótula indagava se fosse o homem que parisse, gostaria de vê-lo a parir, ao mesmo tempo em que lesse o referido trecho bíblico…
Há uma outra referência ao estranhamento de um médico, ao ser chamado a se pronunciar sobre o desempenho da assistência prestada por Trótula a uma parturiente. Segundo o médico, Trótula, ao assistir o parto, teria procedido de modo heterodoxo: ela teria feito sair a criança por uma posição não convencional.
Ao que Trótula argumenta, convincente: “O importante é que consegui salvar a criança e sua mãe.” Como se percebe, há, sim, um cuidado de se exercitar um trabalho laico eficiente.
Outro aspecto não menos importante diz respeito à metodologia do trabalho. Num tempo em que se sentia a influência dos procedimentos especulativos/dedutivos de estudo, como expressão do legado helenístico, eis que as médicas da Escola de Salerno tratavam de desenvolver suas pesquisas, seguindo outro caminho: o da indução, o da observação.
Aspecto fundamental à excelência de suas descobertas nas áreas da anatomia, da fisiiologia, da ginecologia, da obstetrícia, da prevenção, das condições de saúde feminina, entre outras.
Dos escritos de Trótula, o que mais se destaca é seu trabalho intitulado De Passionibus Mulierum (Sobre as doenças da mulheres), que se compõe de 63 capítulos, em que aborda procedimentos médicos e cuidados preventivos e curativos relativos aos períodos antes, durante e depois do parto, reportando-se a problemas tais como menstruação, concepção, gravidez, parto, cuidados pós-parto, bem como doenças femininas, em geral e respectivas curas.
Algo curioso: já àquela época, Trótula sustentava que os insucessos da fecundação não se deviam apenas às mulheres: podiam estar ligados tanto às mulheres quanto aos homens.
Tão impactante foi a contribuição científica das Damas de Salerno, essas verdadeiras sábias medievais, à frente Trótula, que suscitou toda uma onda de suspeitas e difamações descabidas, a expressar a fúria e a inveja androcêntricas, a ponto de desfigurar e negar-lhe (a Trótula) a autoria da obra, atribuindo a um autor masculino, sob o pretexto de que tais descobertas estariam fora do alcance da mente feminina…
Dessas breves linhas, vale a pena ressaltar, entre outros, os seguintes pontos:
– Trótula de Ruggiero foi uma vigorosa expressão de um núcleo de mulheres pesquisadoras, pioneiras na exploração de procedimentos médicos, especialmente nas áreas da ginecologia e da obstetrícia, sem desconsiderar seu foco maior em cima dos cuidados específicos em relação à saúde das mulheres.
– Não se tratou de um protagonismo apenas individual. Seu legado aponta para um trabalaho em mutirão, envolvendo um conjunto de mulheres protagonistas dos cuidadados de sua saúde e da própria vida.
– Tal foi o alcance de sua contribuição, que elas se tornariam a principal referência junto aos grandes centros de medicina europeus.
– Inovadores, também, seus procedimentos metodológicos: apostando na observação e na indução, e não mais nos processos especulativos da dedução. Partiam da experiência concreta, e não da teoria acabada…
– Outro aspecto relevante reside na promoção da socialização dos saberes – no caso, da medicina -, como ferramenta de promoção do protagonismo dos “de baixo”, no caso, das mulheres de então. Exemplo a ser seguido hoje e estendido a todos os tipos de saberes. Não é por acaso a expansão tão frutuosa das experiências de Educação Popular, inclusive no campo da saúde, a exemplo da Terapia Comunitária.
Referências
http://www.fmujeresprogresistas.org/fichavisibilidad/Trotula.htm
http://www.radialistas.net/clip.php?id=1600036

Este texto foi produzido como uma primeira motivação ao trabaho de tradução (para o Protuguês) da obra de Trótula De Passionibus Mulierum, junto com as professoras Luciana Eleonora de F. Calado Deplagne e Karine …..como atividade proposta pelo Grupo Interdisciplinar de Estudos Medievais (cf. página eletrônica )

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