quarta-feira, 29 de junho de 2016

Em busca de uma chave de leitura do legado de José Comblin: Enunciados acerca do seu vivido e dos seus escritos

Dinamicamente conectada à sua densa personalidade, a vida de José Comblin se confunde com um movimento impetuoso de renovação sócio-eclesial que ele anima, com viva paixão e incansável perseverança, na América Latina, e mais intensamente no Nordeste brasileiro, durante mais de cinqüenta anos. Ao acompanhar e animar tal movimento, também José Comblin, como excelente aprendiz, dele recebe bons influxos.
Dessa longa atuação missionária, profética, sócio-política, pedagógica, investigativa – densa de tal modo que mesmo sua recente partida (“a grande viagem”, como costumava anunciar) não só não consegue interromper, mas inspira e desperta iniciativas e desdobramentos impactantes, em distintos sujeitos e em diferentes campos de sua atuação. E não apenas em grupos e pessoas que o acompanharam mais de perto, seja pelos caminhos por ele trilhados, seja por meio de sua vastíssima obra teológica.
Como ousar ensaiar passos em busca de um olhar de conjunto, um perfil sinótico de José Comblin? Como ensaiar um esforço de compreensão do fundamental do seu legado de missionário, de profeta, de pedagogo, de teólogo? Para uma empreitada dessas não bastaria recorrer, de forma sistemática, à leitura de seus escritos? Eis algumas das questões que nos inquietam e que nos ocupam, nessas linhas. E tratamos de exercitar esse propósito, por meio de enunciados que vão brotando espontaneamente do nosso espírito, com a intenção de que possam servir de incentivo aos jovens do meio popular em processo formativo, e de pistas aos iniciados, em vista de eventuais aprofundamentos tópicos.
Torna-se supérfluo dizê-lo, mas ainda assim insisto em expressar – que se trata de enunciados (hipo)téticos – parciais, limitados, provisórios – sobre o que consigo alcançar de fundamental do legado de José Comblin, a partir do que consegui recolher dele e de tantos e tantas que com ele conviveram mais de perto, tomando como referências algumas dezenas de seus textos teológicos (sou membro de um grupo que, há alguns anos, vem estudando sua contribuição teológica, especialmente os textos que ele dedica à compreensão da ação do Espiírito Santo no mundo), bem como o conjunto de suas iniciativas missionárias e formativas, além das conversas mantidas, nas últimas décadas.
1. A libertação dos pobres constitui o núcleo fundamental da Proposta e do Seguimento de Jesus
2. A libertação dos pobres se faz pela força do Espírito Santo atuando incessantemente nos caminhos e entrechoques da História, à medida que os pobres, conscientizando-se e respondendo à sua vocação, se organizam e vão se constituindo como Povo de Deus, em uma rede de comunidades autônomas e dinamicamente relacionadas, cujas decisões são tomadas desde a periferia para o centro, de baixo para cima, de dentro para fora.
3. Ao longo de sua história, as igrejas sempre tiveram, de algum modo, preocupação com os pobres, enquanto alvo de comiseração e de sua obra assistencial. A Proposta de Jesus pede bem mais do que isso: que todos nos convertamos à causa libertadora dos pobres, dos enfermos, dos sem-poder, dos sem-voz e sem-vez. Isto só muito raramente tem ocorrido, graças ao testemunho profético de pessoas e grupos, tocados por e sensíveis ao apelo do Evangelho.
4. É pela incessante ação, multiforme e coerente com a Palavra, que se vai fazendo caminho na formação do Povo de Deus, em defesa da vida do Planeta e dos Humanos, sempre por caminhos de liberdade.
5. José Comblin mostrava-se alguém em permanente estado de busca, muito vigilante e atento aos sinais dos tempos, mantendo-se a par do que se passava no mundo e na sociedade, em diferentes escalas, e nas distintas esferas da realidade.
6. Tendo exercido com reconhecida competência, ao longo de toda a sua vida adulta, o ofício de teólogo, sempre fez da teologia, não um fim em si mesma, mas, a exemplo dos grandes teólogos, sempre relativizou esse ofício, assumindo-o como um instrumento, um ponto de partida, a partir do qual tratava de dialogar crítica e incansavelmente com diversos outros campos de saberes (científicos, artísticos e outros), procedimento transdisciplinar ao qual se atribui a fonte mais fecunda da contribuição do seu denso legado, inclusive na produção teológica.
7. Em consequência desse mesmo traço, sua obra teológica (em qualquer das áreas) se acha fortemente impregnada de múltiplas associações e interações com a realidade social. Em José Comblin, não se faz teologia fora do mundo, mas como um permenente exercício situado e datado.
8. Só por meio de uma formação permanente dos pobres, em que estes se sintam e ajam como autores ou protagonistas, quer como sujeitos coletivos, quer como pessoas, é que se vão tecendo caminhos rumo à Liberdade, e por meio do exercício da Liberdade.
9 Não se deve esperar mudanças substantivas (na sociedade e nas igrejas), confiaando-se em que venham espontaneamente de cima para baixo ou de fora para dentro. Cabe sempre a quem sofre a situação, a tomada de iniciativa de mudá-la.
10. \São amplamente conhecidas e reconhecidas sua refinada sensibilidade e sua abertura ecumênicas, de que são prova convincente a densa reputação e o fraterno apreço de que vinha crescentemente gozando, como teólogo e como profeta, também da parte dos irmãos e irmãs de igrejas reformadas.
11. No caso das igrejas, pouco se tem a apostar em mudanças significativas, a partir das estruturas obsoletas (por ex.: via modelo paroquial). Os autores dessas mudanças são sobretudo os leigos e as leigas que priorizarem trabalhos de, e na base, fora do templo, junto aos pobres e às pessoas e grupos mais esquecidos e mais discriminados.
12. Caminho semelhante, em relação aos desafios das mudanças sociais: não virão de cima (dos grandes grupos econômicos ou do Estado e suas instâncias, embora fragmentos destas últimas possam vir ocasionalmente em socorro). Devem ser, antes, buscadas e construídas junto aos “de baixo”, pela via dos movimentos sociais, enquanto se mantiverem fiéis à causa libertadora dos pobres e marginalizados.
13. Na ampla variedade de formas de exclusão social, uma consiste na exclusão pela linguagem. Há uma praxe academicista, largamente dominante, segundo a qual só a poucos iniciados é dado desvendar o que é expresso na fala ou nos escritos dos especialistas. Também aqui José Comblin adota a pedagogia do exemplo: sua fala e seus escritos, sem perderem a profundidade que o caracteriza, fala e escreve de modo acessível a todos, a todas que o escutam ou lêem.
14. Empenhava-se diuturnamente em pôr em prática suas convicções, de modo que em seu com-viver – aos olhos dos e das que dele estiveram mais próximos e o liam com assiduidade – era praxe observar-se a íntima associação entre gestos e palavras. E o fazia de modo mais sutil possível.
15. Com rara sensibilidade às pessoas de distintas idades, era visível sua confiança mais pronunciada pelos jovens, em quem depositava sua maior confiança e a quem dedicou o melhor de seu trabalho formativo.
16. Também no plano social, não apenas nutriu constante esperança, mas também exercitou contínuo diálogo com os movimentos sociais populares e com as pastorais sociais. Disso é prova, entre outras atividades por ele desenvolvidas, sua atuação formativa junto à Escola Nacional Florestan Fernandes, fundada para servir de espaço formativo contínuo dos movimentos sociais do campo e da cidade.
17. É conhecido e reconhecido o CUIDADO de José Comblin pela Mãe-Natureza. E não se trata de uma inquietação recente (como se deu em sua vigorosa atuação de combate teórico-prático ao Projeto de Transposição). Vem de longe sua aplicação apaixonada ao cuidado da água, das matas, dos rios… Contam-se em dezenas ou centenas as árvores que plantou e das quais cuidou. Poucos sabem, por exemplo, da queda que levou, ao tentar conter o início de incêndio do bosque em terreno extremamente acidentado, no sítio em que residia, em Bayeux – PB.
18. Como poucos, José Comblin tinha a capacidade habitual (já nele enraizada, de modo a dispensar com freqüência anotações mnemônicas), de passar de uma reflexão tópica, conjuntural a raízes estruturais e sua evolução ao longo dos séculos. Com freqüência, remetia-nos, em função da compreensão mais profunda dos temas, a distintos séculos, com grande erudição.
19. A condição da mulher e seu lugar na sociedade e nas igrejas vinham constituindo uma crescente inquietação na vida e nos trabalhos de José Comblin. Não bastassem as referências históricas a que nos remete, por exemplo, em Vocação para a Liberdade (Paulus, 1998), em suas iniciativas de caráter formativo tratou também de fundar e acompanhar, em Mogeiro – PB, em meados dos anos 80, o Centro de Formação Missionária específico para as jovens do meio popular. Mais recentemente, bem nos lembramos de sua profética posição reagindo à estratégia de criminalização do aborto, usada e abusada, durante a campanha eleitoral do ano passado, pelas forças reacionárias dentro e fora das igrejas.
20. De sua formação inicial e de sua formação contínua, é visível o especial apreço que cultiva pelo Trabalho como experiência humanizadora fundamental. Em José Comblin, o trabalho era mais do que rotina, era também fator ineludível do processo humanizador.
21. É notória a desconfiança radical de José Comblin em relação aos vícios característicos das instituições – civis, políticas e eclesiásticas – em sua esmagadora corrida de autopreservação. Embora não negasse a necessidade de um mínimo institucional, estava sempre a alertar – inclusive os movimentos sociais de esquerda (sindicatos, partidos, movimento popular, pastorais sociais) – do permanente risco de institucioanalizar-se, em nome do coletivo, mas, na prática, em benefício dos dirigentes e de seus protegidos.
22. O internacionalismo constitui um relevante marco de seu trabalho, de sua ação, não só enquanto missionário e teólogo, mas igualmente enquatno cidadão. Marca atestada pelo alcance latinoamericano de sua obra missionária, teológica e formativa.
23. Outra marca forte do legado de José Comblin tem a ver com sua pedagogia, cuja eficácia se destaca por manter sempre acesos horizonte da formação proposta (formação humanizadora como pressuposto da formação cristã), caminhos que conduzem a esse rumo (compromisso com as lutas dos pobres, protagonismo dos formandos, capacidade de intervenção social…), bem como postura definida por parte de seus protagonistas. O cerne de sua proposta visa a uma formação integral, capaz de promover junto aos formandos o desenvolvimento de uma personalidade madura, autônoma, consciente e livre, associado a uma formação comunitária, cujo acento é posto em todo o processo de formação, a partir do qual se dá atenção a cada momento específico: desde o planejamento, passando pelo perfil de formandos e formadores, pela relevância dos temas e conteúdos trabalhados, pela metodologia, pela avaliação, sempre numa perspectiva de promover a capacidade perceptiva e o protagonismo dos formandos, não apenas durante os momentos mais fortes da formação, mas também após o curso, por meio de um acompanhamento contínuo dos formandos, agora também formadores. Nesse sentido, é bem emblemático a formação vivenciada no quadro das Escolas Misssionárias, espalhadas pelo Nordeste. Formação cristã que implica necessariamente formação humanizadora.
24. É sempre possível e legítimo esboçar-se o perfil de um autor, de uma autora, a partir de sua produção bibliográfica. Mais complicado é esboçar-se o perfil de um legado que vai muito além de seus escritos, à medida que é fortemente impactado pelo vivido, o que parece bem ser o caso de José Comblin. Uma coisa é sabê-lo a escrever defendendo uma Igreja pobre e servidora; outra é vê-lo a visitar formandos e formandas em acampamentos, animando-os a seguirem na luta pela Reforma Agrária.
25. Num momento em que as forças eclesiásticas hegemônicas anunciavam o fim das CEBs, pretendendo substituí-las pela expansão de movimentos conservadores, cuidava José Comblin de anunciar, alto e bom som, que as CEBs correspondem precisamente ao novo, no espectro de tantos séculos de Cristandade. Se passam por dificulades, graças às perseguições sofridas, sua proposta é que está grávida do novo, que há de vingar, no tempo oportuno.
26. Analisado no espectro de grandes teólogos formuladores, na história do Cristianimso, José Comblin desponta, sempre sutil e humilde, como um dos interlocutores mais respeitáveis, à altura de dialogar criticamente com os teólogos da Patrística bem como com um Agostinho, com um Tomás de Aquino, com um Lutero e com os teólogos contemporâneos, em especial com os teólogos e teólogas latino-americanos.
27. Um toque particularmente vivificante da contribuição de José Comblin, em sua ação missionária e pedagógica, é assegurada por meio de uma vivência profunda da mística do Seguimento de Jesus de Nazaré, de uma espiritualidade de forte enraizamento evangélico, de modo a inspirar e a alimentar as diferentes atividades realizadas.
João Pessoa, junho de 2011

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