quinta-feira, 23 de junho de 2016

De olho na conjuntura e sua incidência na Paraíba: breves considerações

Exercitar uma “leitura de mundo” constitui sempre uma empreitada desafiante, em qualquer tempo e em qualquer lugar! Em uns, é certo, mais do que em outros. Se o exercício de análise de conjuntura nunca foi algo apreensível a olho nu, muito menos ainda hoje, em tempos de intensa e crescente globalização capitalista. Pouco importa, se se trata ou não do âmbito internacional ou da escala local. As coisas andam muito entrelaçadas. Claro que é distinto analisar-se o que se passa numa realidade, no seu plano internacional, e outra mais localizada. O que realçamos é a dinâmica do seu interrelacionamento. Seja como for, temos que nos contentar apenas com elementos (portanto sempre limitados, parciais, provisórios) dessa mesma realidade, seja em escala macro ou em nível local, não apenas por limitações minhas – e estas não são poucas! -, como também pelo simples fato de que a realidade social não se deixa alcançar em sua totalidade.
Iniciamos destacando algumas dificuldades concretas que despontam a quem pretenda ter uma visão aproximada do quadro atual. Uma primeira dificuldade: distinguir, sem separar, o “quantum” da realidade analisada tem de conjuntural, e a porção estrutural nela imbricada. Nesse sentido, não deixa de se constituir em certo reducionismo pretender-se fazer análise de conjuntura, sem tomar em conta fatores histórico-estruturais que ela carrega. Imagine-se em que resultaria a pretensão de alguém, de explicar o complexo quadro de manifestações de violência (racismo, sexismo, discriminações de vários tipos…), apenas a partir do atual contexto conjuntural, sem tomar em conta séculos de dominação colonialista e capitalista, introjetada por um longo processo de educação, desde a Casa Grande, que hoje continua disfarçada em cenários sutis e sofisticados do nosso cotidiano…
Mais uma dificuldade: a necessidade de se trabalhar, de modo dosado, as diferentes esferas da realidade, sem determinismos reducionistas, até porque a realidade social é una, sendo formada, de modo a atuar, ao mesmo tempo, em cenários de caráter econômico, político e cultural. Restringir-se uma análise de conjuntura a qualquer uma dessas esferas, tomadas isoladamente, implicaria reducionismos desfigurantes da própria realidade analisada.
Aqui tratamos de levantar alguns fatos do atual contexto, com incidência no âmbito da Paraíba, a partir dos quais buscamos situar os projetos de sociedade em disputa, bem como as forças sociais que os representam, com suas respectivas estratégias de intervenção, de um lado e de outro. Ao final dessas linhas, levantamos alguns questionamentos acerca de nossos possíveis posicionamentos frente ao atual quadro.
Partindo de alguns fatos ou acontecimentos impactantes
Ainda vivemos um quadro de suspensão da rotina, alterada por uma confluência de situações extraordinárias: clima de festejos juninos, copa mundial de futebol, início oficial da campanha eleitoral, com eleições gerais (à Presidência da República, ao Senado Federal, à Câmara Federal, aos Governos estaduais, às Assembléias estaduais)… Desnecessário lembrar que cada uma dessas ocorrências comporta efeitos – positivos ou negativos, a depender do lugar social de quem faça tal exercício de análise. Determinada comemoração junina pode favorecer essa ou aquela força política local. O foco nesse ou naquele “flash” da Copa pode render créditos a esse ou àquele protagonista, nas disputas eleitorais.
Nesse sentido, a mídia aprimora, cada dia mais e “melhor”, seus artifícios de “marketing”… Basta prestar-se atenção aos apelos da publicidade da televisão. A capacidade de se associar desempenho elogioso, durante um jogo e outro, a determinadas “conquistas” como a do Pré-sal ou a essa ou àquela política governamental, dificilmente fica sem retorno eleitoral, ainda que, por vezes, se gaste mais com propaganda e publicidade, do que com a realização do prometido benefício… Como se tem gastado – e cada vez mais! – dinheiro público em propaganda! Centenas de milhões, por ano! E mais ainda, em tempos de eleições… Quanto se gasta para se fazer um mandatário, no Brasil, somando-se os gastos dos candidatos e candidatas a Presidente, a Senador, a Deputado Federal, a Governador, a Deputado Estadual?
Grande é o susto experimentado por algum Cidadão/Cidadã interessad@ em examinar a relação custo-benefício (no sentido da aplicação dos recursos públicos) do que se gasta para a manutenção de apenas uma casa parlamentar – no caso, o Senado – e o retorno de sua atuação, tomada em seu sentido estritamente público. A esse propósito, ainda recentemente, circulou pela internet o teor de uma ação ajuizada por dois advogados gaúchos contra o Senado, na qual consta inclusive uma especificação detalhada de gastos revoltantes que o erário faz para sustentar as despesas do Senado, cujo total monta a 406.400.000, 00 (quatrocentos e seis milhões e quatrocentos mil reais), por ano, o que equivale a uma despesa média, atribuída a cada senador, na ordem de 5.017.280, por ano…  Soma que inclui uma vasta lista de vantagens e privilégios, não apenas de cada senador, mas também relativa a despesas com uma estrutura perdulária que também comporta despesas com milhares de funcionários da casa. A lista inclui vantagens para cada senador, tais como: “-R$ 16.500,00 (13º, 14º e 15º salários); mais R$ 15.000,00 (verba de ga-
binete isenta de impostos);-mais R$ 3.800,00 de auxílio moradia; mais R$ 8.500,00 de cotas para materiais gráficos;-mais R$ 500,00 para telefonia fixa residencial, mais onze assessores parlamentares (ASPONES) com salários a partir de R$ 6.800,00;-mais 25 litros/DIA de combustível, com carro e motorista; -mais cota de cinco a sete passagens aéreas, ida e volta, para visitar a ‘base eleitoral’; -mais restituição integral de despesas médicas para si e todos os seus depen-dentes, sem limite de valor” …
(cf. http://jardim-aquarius.com/slide.php?id=25 )
Quando se examina a vasta lista de vantagens e de serviços privilegiados de que dispõem esses mandatários, a pergunta salta à vista: se esse é o padrão de vida dos “representantes”, qual é o padão de vida dos “representados”? A que serviço têm acesso os senadores e a que serviços públicos tem acesso a enorme maioria de nossa Gente. É daí que brotam versos como esses que fiz, seguindo o mote; “SE OS GESTORES NÃO SÃO SEUS USUÁRIOS / OS SERVIÇOS DO PÚBLICO SE DÃO MAL, assim glosados: “Quanto tempo esperando esse transporte! / Quando chega, é lotado, e vou em pé / Anda lento, parece em marcha à ré / Quatro vezes por dia, há quem suporte? / Pro gestor, isso já seria a morte… / Sua vida, porém, é especial / Pois a máquina lhe dá completo aval / E, não raro, tornando-o perdulário / Se os gestores não são seus usuários / Os serviços do público se dão mal! // Coisa igual se repete na saúde / É do SUS? O gestor não se habilita / Nunca vai ter noção de hora aflita / Com ambulância o povão então se ilude / E se instala de vez tal atitude / Na escola, é o mesmo ritual / Qual gestor põe seu filho em escola tal? / Toca aos pobres arcar com o ordinário / Se os gestores não são seus usuários / Os serviços do publico se dão mal! // Quanto ganha, de ofício, um magistrado? / Presidente e ministros ganham quanto? / E quem varre das ruas cada canto / Camponês vive à margem, maltratado / Quanto mal se percebe nesse estado / Por que, então, endeusar telejornal? / O que eles divulgam, afinal? / Pra que vale apostar em mandatáio / Se gestores não são seus usuários / Os serviços de público se dão mal! // Quanto ganha a doméstica ou um vigia? / Professora primária ganha quanto? / E quem varre na rua cada canto? / Vive à margem o campona, e se atrofia / E a Reforma não vem: que covardia! / E a mídia a incensar o Capital / Quer a Globo, ou a Band – é tudo igual / E por que apostar em mandatário? / Se os gestores não são seus usuários / Os serviços do público se dão mal // Quão distante a elite está dos pobres / Só na hora do voto chega perto / De mentira o sistema está coberto / Ao faminto eu não digo: “Não te dobres.” / Digo: “Pega! Ele é teu, se vem dos nobres…” / Eleição é ridículo festival / Que a elite inventou, de modo tal / A fazer do pilantra um mandatário / Se os gestores não são seus usuários / Os serviços do público se dão mal //
No contexto atual do Capitalismo, de tal modo funcionam os mecanismos, no plano estritamente econômico, que não é necessário que um quadro de crise aguda como o que é ora vivenciado, em escala mundial, se reflita de forma homogênea pelos diferentes países. Se é verdade que, de um modo ou de outro, todos são atingidos pela crise sistêmica, também é certo que, dados seus condicionamentos particulares, os efeitos da mesma crise são sentidos diferentemente, em termos de tempo (mais imediatamente, menos imediatamente, em relação ao epifenômeno do momento; com duração mais longa e menos longa dos respectivos efeitos sobre esse ou aquele país), de maior ou menor estrago nas contas públicas; de alcance social mais ou menos devastador, etc.
No caso do Brasil, dada sua maior adequação ao figurino macro-econômica, em relação inclusive aos índices oficiais do desempenho estritamente econômico, as vantagens são por quase todos elogiadas. Índices como “risco Brasil”, controle monetário e controle fiscal, controle da inflação, superávit primário (para garantir pagamento religioso dos juros abissais ao Capital…), entre outros, são alvo de constante enaltecimento e de freqüente alegação quanto à sanidade da economia brasileira. Por tabela, também se elogiam índices de crescimento e ritmo das atividades econômica, implicando inclusive crescimento do número de empregos formais. Exalta-se, alto e bom som, a “robustez dos fundamentos de nossa economia”, enquanto o Mercado faz a festa…
As estatísticas oficiais dando conta do aumento de postos de trabalho formais impressionam, sobremaneira, até quem costuma acompanhar, com senso crítico, a evolução dos números. Por outro lado, quando se pensa melhor no fato, vai-se com menos sede ao pote. Examinam-se a consistência e a extrema rotatividade dos empregos gerados. Dá-se conta da precariedade das condições de trabalho, dos salários oferecidos, dos direitos trabalhistas surrupiados, com ou sem cobertura legal… Vai-se comparando, por exemplo, o número dos “novos” postos de trabalho em relação ao número de Trabalhadores e Trabalhadoras desempregados. Some-se a esse exercício a quantidade de novos postos necessários (mais de um milhão e meio!), a cada ano, para atender ao número de jovens que atingem a idade de arrumar emprego, precisando portanto garantir seu posto trabalho. E, pouco a pouco, vai-se tendo um balanço mais consistente e bem menos eufórico…
Além disso, vale perguntar: que tipo de trabalho aparece ao alcance dos Trabalhadores do campo e da cidade. Ainda que estejamos longe de assegurar o que se convenciona chamar de “emprego pleno”, mesmo que atingíssemos tal patamar, como prometia o Estado do Bem-Estar Social, ainda assim isto não basta gara satisfazer adequadamente às justas aspirações dos Trabalhadores e das Trabalhadoras. Haveria, ainda, que indagar-se: a que tipo de trabalho se tem acesso. Será que vale a pena assumir qualquer tipo de trabalho, ainda que se trate de um trabalho formal (com carteira assinada e com outras garantias trabalhistas)? Por exemplo, o agronegócio alega que também gera emprego. Além de fazê-lo em número bem reduzido, em relação ao que propaga, há de se perguntar se vale mesmo a pena saudar esse tipo de conquista, sabendo-se que, ao assumi-lo, os Trabalhadores e Trabalhadoras, sem quererem, passam a ser sujeitos a condições, ritmo e tarefas nocivas à sua própria saúde bem como à do solo, das águas (de superfície e subterrâneas, da flora e da fauna…
No cenário urbano, de vez em quando, veiculam-se, com estardalhaço, notícias dando conta do aumento de milhares de empregos nas montadoras de automóveis… Será que isto é mesmo motivo de alegria a celebrar, apenas pelo fato de se contar com mais postos de trabalho, sem tomar em conta os terríveis problemas ambientais daí decorrentes – e para os humanos, também, claro – causados pela crescente poluição e pelo aumento incessante dos engarrafamentos nos centros urbanos, enquanto pouco ou nada se faz para se garantir transporte coletivo limpo e de boa qualidade para a maioria da população…
E assim, nós apenas começamos a relativizar a euforia da mídia e de seus financiadores, ao divulgarem notícias milagreiras sobre duvidosas conquistas…
No caso específico da Paraíba, tão grave é a situação que, mesmo nos restringindo tão somente aos dados relativos ao número de empregos formais (mesmo sem questionar que tipo de emprego), as estatísticas dão conta de um crescimento avassalador da economia informal, em que se enquadram algo em torno de três quartos dos Trabalhadores e Trabalhadoras. Não precisamos detalhar o que isto significa, no concreto do dia-a-dia: insegurança do amanhã, ausência ou negação de relevantes direitos sociais (seguidade social, previdência, saúde, férias, 13 mês, salário-desemprego…), propensão ao caminho das drogas, aumento dos índices de violência social…
Situação agravada, no caso desses mesmos Trabalhadores e Trabalhadoras, por conta da ausência do Estado em tantos outros serviços públicos com acesso precarizado ou até sem qualquer acesso: moradia digna, saneamento, água potável, transporte coletivo regular, postos de saúde de qualidade, escolas decentes…
O que, de hábito, se deve esperar, em relação a toda uma vasta parcela da população – a grande maioria! – em especial dos jovens e adultos mergulhados nesse turbilhão de problemas? É razoável daí esperar-se integração familiar, comportamento cordato dos moradores, crianças bem educadas, clima de paz social, resistência ao mundo das drogas, ausência de violência, etc.? Claro que NÃO! Assustamo-nos, cada dia mais, e com justo motivo, com o incessante crescimento da violência, a dizimar vastas parcelas de nossos jovens – mulheres e homens, as principais vítimas da violência, cujos níveis são comparáveis à situação de países em guerra aberta. Será que fazemos uma leitura capaz de dar conta dessas raízes sócio-econômicas, ou será que apostamos todas as fichas em assegurar eficácia a um policiamento ostensivo, crentes de que é pela repressão que vamos deter toda essa onda?
Na esfera mais diretamente política, a situação caminha de modo semelhante. Também aqui tem prevalecido o que vimos chamando de cultura da ambigüidade, um tipo de concepção de mundo, de ser humano e de sociedade, cuja estratégia tem sido marcada pela atitude de cultivo de sentires, de pensares, de quereres e de agires visivelmente antagônicos, contraditórios, misturados. No plano especificamente político, tal estratégia aparece, por exemplo, no empenho, por um lado, em assegurar-se, como nunca antes, políticas compensatórias para vastas parcelas da população quase completamente à margem dos serviços públicos essenciais, e, por outro lado, escancarar os cofres públicos ao agronegócio, aos bancos, às transnacionais (principalmente brasileiras), vantagens escandalosas. Há poucos meses, dava-se conta de que, a despeito das constantes reclamações da Senadora Kátia Abreu – principal referência do Agronegócio no Parlamento -, as verbas destinadas ao agronegócio correspondem 19 vezes ao que é destnado à Agricultura Familiar, que, entretanto, é responsável por cerca de 90 % da produção de alimentos…
Outro caso: por um lado, ousa-se, como nunca antes, romper o quase monopólio de comércio com os Estados Unidos e com as grandes potências ocidentais, abrindo-se amplo caminho para o fortalecimento do intercâmbio com países do Sul, em especial com os países africanos; por outro lado, mantém-se, por vezes, uma postura de aparente neutralidade nas situações de conflito, da qual se beneficiam as potências mais dominadoras, exceção feita ao honroso caso do contencioso internacional entre Irã e potências hegemônicas ocidentais, em que o Governo brasileiro vem tendo uma postura de altivez e independência.
No que tange ao campo congressual, as contradições são crescentes. Sob a insustentável alegação de uma tal de “governabilidade”, impõe-se à sociedade a prática danosa do aliancismo, por força do que são celebrados acordos escandalosos com forças políticas de uma amplamente reconhecida tradição de coronelismo, bem marcada pela combinação de práticas violentas, clientelísticas e de impostura. Basta que se examine o perfil dos aliados governamentais no Senado e na Câmara, estratégia que se tem estendido às demais instâncias e aos diferentes entes federativos, estados e municípios. A Paraíba e João Pessoa não são exceções…
É sobretudo nesse tipo de estratégia política – o aliancismo -, que se deve buscar as razões inclusive de sucessivos deslizes éticos. A dimensão ética, antes mesmo de sucederem os escândalos (mensalões e tantos outros), já impregnava tais sujeitos, por ocasião da celebração de pactos eleitorais inconseqüentes, movidos basicamente pela avidez de acesso aos espaços governamentais, a qualquer preço. A esse respeito, Leonardo Boff, em recente exercício de releitura de O Príncipe, de Maquiavel, destacava evidentes semelhanças de procedimentos entre as estratégias dos antigos e dos novos “príncipes”…
Os tempos se sucedem, e seguem basicamente as mesmas, as formas de se lidar com a experiência, seja por parte dos “de cima”, seja por parte “dos debaixo”. Quanto aos primeiros, é facilmente compreensível: por que haveriam de se preocupar com uma estratégia que só lhes tem trazido benesses? O mesmo, contudo, não se dá em relação aos “de baixo”. Bem ao contrário: entra governo, sai governo; vai eleição, vem eleição – e a cada dois anos! – e as coisas, não apenas não mudam no essencial, como até se agravam, ou, quando muito, apresentam, aqui e ali, um verniz de melhoria no superficial.
Experiência dolorida, evocada por um dos mais reconhecidos cientistas sociais brasileiros, Florestan Fernandes, num artigo intitulado “Um amargo quarto de século”, publicado noJornal do Brasil, de 1 de maio de 1990, em que fazia um balanço dos últimos vinte e cinco anos (1965 a 1990), e no qual se lamentava, ao final, por ver-se – juntamente com tantos e tantas de sua geração – empenhado em lutas seguidas, que, no entanto, ainda não tinham sido suficientes para mudar favoravelmente a qualidade de vida da sociedade brasileira, não sem acrescentar que, feitas as contas, a situação geral havia inclusive se degradado ainda mais…
Desde a publicação do referido artigo para os dias presentes, lá se vão vinte anos. E o balanço feito por Florestan Fernandes, agora relativo a essas últimas duas décadas, à parte conquistas de migalhas do orçamento público lançadas a significativas parcelas da população, não comportaria uma avaliação tão distante daquela feita em 1990.
Tão enraizada em nosso imaginário político é a forma de organização social hegemônica, que impede ou bloqueia decisivamente nossa capacidade de ousar outros caminhos. Isto não é sequer cogitado, em nossas discussões do dia-a-dia. Com raras exceções. Nossas reservas de criatividade se têm restringido a iniciativas de ensaiar “alternativas” apenas dentro da lógica do sistema reinante. Na ilusão de “mudar”, de vez em quando, estamos a empreender iniciativas novas, seja visando a “renovar” o Congresso, as Assembléias Legislativas e as Câmaras de Vereadores, seja empreender organização de campanhas de moralização (punição à venda de votos, inibição de mecanismos de corrupção, cujo exemplo mais recente foi a campanha do “Ficha Limpa”, entre outros.
Todavia, sentimos uma resistência quase invencível, quando se trata de ousar caminhos alternativos, até porque um exame mais acurado dos resultados concretos dessas iniciativas, digamos, intra-sistêmicas, tem mostrado a pouca eficácia de se investir no recurso eleitoral. Ao examinarmos judiciosamente uma a uma, damo-nos conta de quão pouco (ou quase nada) conseguimos avançar: afinal, em que tem resultado o gigantesco esforço de renovação parlamentar, mesmo quando conseguimos a “façanha” de renovar mais de 50%? O que sucede concretamente, quando logramos a eleição de alguns excelentes candidatos? Não há dúvidas, quanto às suas qualidades. Só que esquecemos as raízes estruturais do problema: na medida em que o Parlamento (em qualquer uma das três esferas – União, Estados, Municípios) é um aparelho do Estado, e este se move sob o controle dos interesses dos setores dominantes, não há como pretender-se que a eventual eleição de alguns bons candidatos seja suficiente para alterar signficativamente a correlação de forças, em favor dos setores subalternizados. O Parlamento e, de resto, os demais aparelhos do Estado se acham comprometidos pela raiz, e não comportam espaços de atuação individual com capacidade de “virar a mesa”… Quando muito, se consegue eleger bons candidatos, boas candidatas, que lugar estes ocupam no universo de seus respectivos espaços?
A mesma lógica vale em relação ao esforço de moralizar os espaços governamentais ou parlamentares, por meio de campanhas como a do Projeto “Ficha Limpa”. Num esforço individual e coletivo, requerendo o emprego de amplas energias e recursos, conseguimos finalmente o objetivo. Mas, será que nos damos conta de quão modesta foi nossa conquista? Inibir a candidatura de gente, direta ou indiretamente envolvida em falcatruas e imposturas, enfim, gente desonesta… Muitas dúvidas nos invadem:
– Quem disse que tal medida impede a incidência e mesmo a reincidência de atos incompatíveis com a decência?
– Os muitos casos de candidatos acusados decorrem, em grande parte, de flagrantes. E os atos ainda mais numerosos que não são flagrados?
– Ainda que se conseguisse “zerar” essa questão da compatibilidade ética dos candidatos, restaria a pergunta: tal predicado, bem antes de se exigir de alguém, enquanto candidato, não tem a ver com uma exigência elementar inerente a toda convivência humana e social?
– Quem disse que devemos votar num candidato, numa candidata, por ser portador apenas de predicados éticos? Não se trata de algo visivelmente insuficiente?
Uma das conseqüências concretas desse tipo de aposta, é que exaurimos, com freqüência, o melhor de nosso potencial de Cidadãos, de Cidadãs, nesse tipo de atividade eleitoral, restando-nos pouco ou nada de energia e de disposição para pensar e ousar coisas alternativas, fora da lógica desse sistema. Como costuma dizer o Prof. Ivandro da Costa Sales, é indispensável que pulemos fora da lógica desse sistema, ousando buscar acertar no que dá certo.
O “dá certo” aqui não quer dizer que se tenha receita pronta para alcançarmos as saídas desejadas. Receitas não há! Mas, há pistas instigantes, a partir mesmo de algumas indagações ou mesmo constatações:
– Onde e quando se obteve verdadeira mudança, seguindo-se o ritual eleitoreiro?
– É razoável esperar-se mudança para valer, a partir de cima para baixo ou a partir de fora para dentro?
– Nas mudanças concretas alcançadas ao longo da História, quem foram os verdadeiros protagonistas: os “de cima” ou os “de baixo”, representados por forças sociais organizadas em movimentos sociais e outras formas de organização de base?
– Aqui mesmo entre nós, na Paraíba, de quem tem mesmo dependido o ingente esforço de realização da Reforma Agrária, inclusive com a conquista de algumas centenas de assentamentos? Dos govenantes ou das lutas travadas pelos principais interessados, os Trabalhadores e Trabalhadoras?
– Se, de fato, as conquistas fundamentais não vêm de cima para baixo nem de fora para dentro, por que investir tantas energias, tanto esforço, tanto tempo precioso, em trincheiras cujos resultados já são sobejamente conhecidos pelas suas reiteradas frustrações, como no caso da via eleitoral, principalmente numa conjuntura de crescente descrédito desses espaços?
No tocante mais diretamente à esfera cultural, os dilemas não são de menor envergadura. A ideologia de mercado segue fazendo estragos profundos e irreparáveis. As forças dominantes têm nela uma formidável alavanca de manutenção “pacífica” do sistema, e até com a vantagem de multiplicar-se incessantemente, incluvise por áreas antes adversas. Aqui nos referimos a segmentos antes combativos da sociedade civil, que hoje dão crescentes sinais de domesticação, acomodação ou até mesmo de encantamento com as façanhas do deus Mercado.
Nesse sentido, não é sem rezão que as forças dominantes se têm empenhado uma ferramenta decisiva nesse processo de manipulação ideológica: o tratamento científico do “marketing” como preciosa ferramenta de convencimento. Ferramenta usada e abusada pelo Mercado e por seu Estado. Nunca se gastou tanto (inclusive dinheiro público!) com propaganda.
Uma das estratégias mais apreciadas é sondar, por meio de pesquisas, os gostos, os desejos, as aspirações mais em moda, e aí centrar a força dos argumentos ou os pretensos e anunciados predicados dos produtos… Destes pouco ou nada importa a qualidade real dos produtos anunciados, mas que estes pareçam e apareçam recheado dos predicados veiculados. Assim, “se vendem” quaisquer produtos: de automóveis de luxo a mansões; de agrotóxicos a alimentos suspeitos; de políticas governamentais fantasiosas a candidatos mais sujos do que pau galinheiro…
E a população, de tanto ver e escutar essa rede de propagandas e publicidades, em geral sucumbe a seus argumentos, passando consumir, a assumir e a reeditar os mesmos valores. Valores que têm incidência não desprezível, também, no “modus operandi” das igrejas, por meio da teologia da prosperidade…
Vai-se invertendo, com efeito, a grade de valores, até em instâncias antes comprometidas com o combate à ideologia de Mercado. Quem antes apostava nas lutas sociais como ferramenta de transformação, hoje se acha cada vez mais seduzido pela descoberta de um atalho: basta confiar nos eleitos do “nosso Governo ou do nosso partido”, pois “eles estão do nosso lado”… Valendo tal aposta, o caminho fica aberto a passos mais ousados, nessa direção. Um deles é o de se partir para a conhecida prática de aliança, inicialmente assumida como tática eleitoral, mesmo assim celebrada apenas com forças semelhantes ou diferentes, contanto que sejam do mesmo campo, e aliança feita em cima de um programa de governo coerente com os princípios essenciais das classes populares. Ato seguinte, tendo em vista o encantamento com os espaços governamentais e parlamentares = normalmente proporcional ao afastamento das bases e de suas lutas, o que facilita sobremaneira a lassidão em relação aos princípios fundantes, descambando, com freqüência para acordos espúrios -, chega-se à conclusão de que é preciso seguir governando e no Parlamento, o que exige a ampliação do arco de alianças, sem o que não se logrará resultado eleitoral favorável… Aí se escancara o arco de alianças, celebrando-se pacto, não apenas com as forças do campo de referência tradicional, mas também com outras (será preciso lembrar que casos houve em que o PT celebrou acordo até com o PSDB?). E assim, o que antes se fazia apenas como recurso tático, passa a fazer parte da estratégia de poder. Claro que, nessa prática, há vantagens para os donos do partido, e enormes estragos para as bases e para as classes populares.
Daí para a frente, tudo começa a valer: em vez de comitê do partido, cada candidato promove sua própria campanha; os recursos disponíveis ao Partido passam a ser distribuídos, não mais com eqüidade, mas de acordo com o prestígio do candidato perante os donos do partido… Tendo-se nivelado, por baixo, aos “paridos da ordem”, percebe-se que já não dá para dispensar financiamento vindo de onde vier, dando adeus ao bom hábito do autofinanciamento… Daí para deslizes éticos de grande monta é um passo…
Essa inversão de valores, é claro, também se dá em outras áreas: desdenha-se o processo de formação contínua das bases e das lideranças; já não se abre mão de um estilo de vida refinado (carro de luxo, equipamentos sofisticados, padrão distante dos trabalhadores comuns da base…). O discurso da razão cínica (“Os tempos agora são outros: como já não podemos mudar o mundo, tratemos de tirar o melhor proveito”)… passa a substituir a coerência com os princípios fundantes do Paritdo… Os valores agora apreciados são: imediatismo eleitoral, gastos com o marketing, apoio incondicional, não à causa, mas aos amigos que controlam as decisões, aproximação orgânica com antigos adversários, indisposição crescente até à intolerância com antigos companheiros “ultrapassados, renitentes”…
Questionamentos “finais”
Diante dos pontos acima considerados, vale perguntar-nos, para “fecho” dessas linhas:
– Se é uma constatação histórica que as verdadeiras mudanças sociais nascem da organização e das lutas dos principais interessados que são as classes populares, quais têm sido os sujeitos históricos que temos tido como nossos parceiros e alados?
– No estudo da literatura dos clássicos (Marx à frente), não se tem uma posição dogmática quanto à participação ou não em processos eleitorais protagonizados pelas forças da burguesia, dependendo das condições conjunturais concretas, o que nos assegura que a via eleitoral se presta efetivamente como prioridade nossa, na atual conjuntura?
– Examinando nossa agenda política, que tempo nosso é dedicado ao acompanhamento e presença efetiva junto aos movimentos sócias = principais protagonistas dos processos de mudança – e que tempo dedicamos às lides partidárias convencionais?
– Diante do abandono completo pelas forças partidárias dos processos formativos, em que atividades formativas contínuas estamos engajados e com elas comprometidas?
– Atos e comportamentos edificantes e contraditórios –  encontramo-los isoladamente ou mesmo eventualmente de modo coletivo – em quaisquer forças ou sujeitos políticos. A partir de cada um, de cada uma de nós. Também nos partidos políticos e respectivas coligações, de parte a parte. Há de tudo. Não é disso que estamos tratando. Aqui focamos diretamente esse aspecto: na atual conjuntura, o quê garante que, votando em A, B, C ou D, asseguramos avanços qualitativos, na direção das mudanças desejadas?
– Uma vez tendo êxito na eleição de candidato A, B, C ou D, que chances concretas vão ter eles/elas de levar adiante seus objetivos anunciados? Quais as chances maiores: a de mudarem as regras do jogo ou de a elas se adaptarem, ainda que mantendo discurso e promessas inovadores?
– Do ponto de vista político-pedagógico, em nossa relação com as pessoas comuns do povo, qual a atitude de maior discernimento ético-político: animá-las a votar X, Y ou Z, dentro de uma conjuntura extremamente confusa, ou  animá-las, sim, a apoiar os movimentos sociais com projeto alternativo de sociedade?
– O cerne de nossa contribuição almeja, de fato, a superação concreta da ordem capitalista ou sustenta a necessidade de irmos além da mesma? Ao optarmos pela luta eleitoral como centro de nossas intervenções, estamos contribuindo, objetivamente, para a superação do Capitalismo ou para o seu fortalecimento?
– É sabido que a tomada de consciência e de posição não é algo homogêneo. Depende de uma confluência de fatores, estilos e ritmos de pessoas e grupos. Inútil pretender-se que, embora admitindo-se a necessidade de se apostar em outra via de transformação social, a experiência diz que pessoas e grupos tomam um bom tempo até maturar suficientemente a idéia. Isto dá esperança, por um lado, mas, por outro, não deve iludir: há também pessoas e grupos para quem esse que está aí é o modo próprio de seguir atuando. É questão de escolha ético-política! Aqui deve falar mais forte a consciência de cada um, de cada uma. A História dirá quanto aos acertos e aos equívocos.

João Pessoa, julho de 2010

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