sexta-feira, 24 de junho de 2016

Elementos para uma avaliação alternativa da gestão Lula/PT: dialogando com Leonardo Boff

As notas que seguem, brotaram do impacto contundente provocado por um recente artigo de Leonardo Boff, amplamente divulgado, inclusive em diferentes listas de contatos virtuais. O artigo intitula-se: “Consolidar a ruptura histórica operada pelo PT” (cf. www.adital.com.br de 30 de agosto de 2010). Trato de repercutir minhas impressões de leitura, desde meu lugar social, de um cristão militante que acompanha de perto a caminhada dos movimentos sociais populares, em especial os que lidam com um projeto alternativo de sociedade.
O primeiro impacto sobre mim nasce do próprio título, “consolidar a ruptura histórica operada pelo PT”. Já me sentindo mexido desde aí, prossigo, atento, curioso e aberto a outros olhares. Não sem esquecer, em momento algum, da grande reverência que nutro, junto com tantas e tantos, pela figura de Leonardo Boff, formador de tantas gerações, a quem eu também tanto devo. Tal reverência, em respeito mesmo aos ensinamentos por ele compartilhados, não exime de eventual dissenso. É bem o caso, sob certos aspectos, pelo menos.
Começo por destacar pontos de consenso. Compartilho fortemente sua avaliação do legado das elites brasileiras, que Darcy Ribeiro (figura tão cara a Leonardo Boff – e a recíproca também era verdadeira) estimava das mais cruéis do mundo. Vasta é a lista de suas atitudes perversas de exploração, de dominação, de discriminação, de marginalização. Não foi por ocaso que se deu o enorme atraso de mais de meio século com que, mesmo no plano estritamente jurídico-formal, a tal da abolição da escravidão. Enquanto entre 1808 e 1830, quase todos os países da América Latina romperam com suas ex-metrópoles, fazendo coincidir sua “independência” com o processo de abolição jurídica da escravidão, no caso do Brasil, como se sabe, fez-se a “ruptura” em 1822, mantendo-se a escravidão por mais 66 anos… Claro que isso teve e tem marcas profundas em nossa sociabilidade. Faço ressoar, forte e firme, sua profética indignação contra tais elites: “São vinte mil famílias que, mais ou menos, controlam toda a riqueza nacional, sendo que 1% delas possui 44% de todas as terras. Não admira que estejamos entre os países mais desiguais do mundo, o que equivale a dizer, um dos mais injustos e perversos do planeta.”
Coincidimos, também, no reconhecimento de outros estigmas perversos, decorrentes da relação entre a casa grande e a senzala, por meio do controle dos aparelhos do Estado e, em casos de risco de perder seus dedos, também recorrendo a sucessivos estratagemas de “conciliação” de forças antagônicas. Esse é um aspecto bem acentuado por Boff do legado das elites brasileiras. Há outros, claro. Nisso estamos de acordo.
Nossas diferenças incidem em pontos relevantes do artigo. Desde sua primeira tese, a sustentação de que o PT e o Governo Lula operaram uma ruptura com tais elites, tratando-se agora de consolidá-la. Em algum segmento delas, até concedo. O fato de reconhecer e de saudar avanços pontuais na gestão do Governo Lula não nos deve fazer esquecidos de suas relevantes inconsistências, com conseqüências graves sobre as classes populares. É claro que o amplo apoio decorre das políticas compensatórias. Quem nada tinha antes, e agora recebe umas migalhas do orçamento, agora aplaude. É compreensível, e não me queixo nem cobro dos segmentos mais abandonados da população. Cobro, sim, de quem tem o dever de inverter prioridades, a começar na repartição do bolo orçamentário. A este respeito, deixo no ar as seguintes perguntas:
– É razoável falar-se em ruptura em relação à política macro-econômica, da qual são precisamente essas elites e seus aliados os grandes beneficiários?
– De que os grandes grupos financeiros têm a queixar-se do Governo Lula, durante o qual tanto lucraram. Momento houve em que foi o próprio Presidente que se sentiu obrigado a fazer declaração pública, num tom algo como “Calma lá! Vocês nunca ganharam tanto antes!”…
– Que fatia do orçamento tem sido destinada à Reforma Agrária, no primeiro e no segundo Lula, e que fatia tem sido concedida ao agronegócio? Não faz muito, lia uma publicação cuja manchete era mais ou menos assim: “Agronegócio recebe 19 vezes mais verbas, no Governo Lula, do que o agronegócio”…
– E o quê dizer da política ambiental do Governo Lula? Nela são, mais uma vez, os grandes grupos econômicos que se locupletam de projetos desastrados, em flagrante desrespeito aos povos indígenas, às comunidades quilombolas, aos povos ribeirinhos, aos pescadores, aos camponeses, sem esquecer a terrível agressão cometida contra a Mãe-Natureza. A esse respeito, chamo curiosamente a atenção para uma avaliação feita pelo próprio Leonardo Boff sobre o PAC, em particular sobre a política ambiental do Governo Lula, por ocasião do XII Encontro Intereclesial das CEBs, ocorrido em Rondônia, em 2009. Cito o próprio Leonardo Boff, numa entrevista sua publicada por Adital, em 27 de julho de 2009, sob o título “Boff: PAC vai na contramão da história”” (cf. www.adital.com.br), a começar pelo que avalia ser o PAC
“Nem é desenvolvimento, é um modelo velho do século XIX, tem que ser criticado, submetido à discussão pública, porque ele vai implicar na devastação da natureza com as 57 hidrelétricas que vão ser construídas na Amazônia.
Vai ser um impacto terrível nas florestas, nos indígenas, nos seringueiros, nos ribeirinhos. (…) Se impõe um modelo econômico altamente destrutuvo e capitalista, sem escutar aqueles que vão ser as vítimas. Então, acho um projeto profundamente equivocado, que vai na contramão da história.” E nessa linha, segue
– No plano ético-político, é razoável silenciar sobre a participação vergonhosa do PT e do próprio Governo Lula, diante de tantos episódios graves? E aqui não me tocam os argumentos das elites, que não têm moral alguma de cobrar nada de ética na política. Refiro-me à agressão inaceitável – e nada republicana! – cometida contra a própria sociedade, e em benefício dos donos do partido e seus aliados.
– Não bastasse essa experiência de escândalos ético-políticos, vem mais recentemente a imposição de alianças espúrias, indo da família Sarney a Collor de Melo; do fisiológico PMDB aos partidos de aluguel, enfiando goela abaixo da própria base e de lideranças históricas petistas, entre as quais Manoel da Conceição. Que ruptura é essa?
Ainda que a vitória eleitoral de Dilma Rousseff estivesse a perigo – tudo indica, e já há um bom tempo – vitória no primeiro turno, isto não justificaria abrirmos de critérios consistentes. Não seria recomendável nem ética nem pedagogicamente. Disso seremos cobrados.
São apenas alguns elementos avaliativos que compartilho fraternalmente, convencido cada vez mais de que bem outros são os caminhos de nossa Utopia: “Nem o passado como era, nem o presente como está!”

João Pessoa, 17 de setembro de 2010.

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