quinta-feira, 23 de junho de 2016

O limite da propriedade da terra tem raízes cristãs e na Doutrina Social da Igreja

De tão evidente, pareceria dispensável lembrar as profundas raízes cristãs (inclusive na Doutrina Social da Igreja) da destinação universal dos bens fundamentais à dignidade e ao desenvolvimento do ser humano como um todo e de todos os seres humanos, na formulação da Encíclica “Populorum Progressio”, de Paulo VI. Defender e promover as fontes de vida (entre as quais a terra) como direito de todos pareceria algo desnecessário de relembrar, especialmente para os que se confessam cristãos, não fossem atitudes e opiniões em oposta direção, expressas por quem mais deveria zelar e defender como universais as fontes de vida, tais como a terra, a água, o ar, entre outros bens, ao invés de se aferrar ao conceito de propriedade, colocando-o tão próximo do valor da vida.
Em vão se buscará suporte seguro no Seguimento de Jesus, alvo maior a ser perseguido pelos Seus discípulos e discípulas, notadamente quando se trata de alguém chamado a ser pastor, conforme os critérios do Evangelho, como podemos observar tão bem, por exemplo, no capítulo 10 do Evangelho de João! É a vida das ovelhas – a começar pelas mais vulneráveis – que importa defender. Não a propriedade!
É também isto que inspira o direito à democratização da terra, na perspectiva tomada como fonte de vida, como lugar de habitação e de trabalho para os agricultores e suas famílias. “Terra de trabalho”, não “terra de negócio”, para lembrar expressões fortes de um importante documento da CNBB, na década de 80. Terra fonte donde os Trabalhadores e Trabalhadoras extraem o necessário para uma vida digna. Desde os textos bíblicos (do Antigo e do Novo Testamento) à grande tradição da Patrística; das encíclicas sociais aos documentos do Concílio Vaticano II; das conferências episcopais latino-americana aos textos da CNBB, é enfática a defesa do direito às fontes de vida.
No caso da terra, nossos olhos se voltam para a necessidade da Reforma Agrária, preocupação constante, de modo expresso ou implícito, em diversas encíclicas sociais (“Pacem in Terris”, do Papa João XXIII; em algumas das encíclicas de João Paulo II – como esquecer a ênfase que atribuía à “hipoteca social” que pesa sobre toda propriedade? -, na “Gaudium et Spes”, no Documento de Medellín, no de Puebla, em vários documentos da CNBB. Defesa de uma justa Reforma Agrária, significando não apenas uma mera distribuição de terras, mas também que seja capaz de assegurar as condições necessárias a uma vida digna (infraestrutura viária, equipamentos, assistência técnica, cooperativa, habitação digna, acesso de qualidade aos serviços públicos (saúde, educação, cultura, previdência social, lazer…). Direito dos Trabalhadores e dever, sim, do Estado. Soa como uma agressão desmedida – mais ainda quando partindo de um bispo – a insinuação de roubo ou de um delito o fato de o Estado atender às justas demandas dos que vivem à margem das benesses do sistema.
No que toca à Reforma Agrária, a despeito de importantes passos – protagonizados pelos Trabalhadores e Trabalhadoras do campo -, continua um pleito social a ser conquistado, uma dívida social ainda não equacionada. Ainda falta muito para que o Estado assuma sua parte. É nessa direção que se impõe a necessidade de se estabelecer, na Constituição e na lei ordinária, dispositivos capazes de estabelecer um limite ao tamanho da propriedade da terra. Medida, aliás, já há muito tempo tomada por vários países (a exemplo da Itália, do Japão e tantos outros). O estabelecimento de um limite no tamanho da propriedade da terra justifica-se, sob vários aspectos, dos quais, a seguir, destacaremos algumas.
Tal medida (do limite do tamanho da terra) impedirá que vastíssimas áreas da Amazônia e de outras regiões do país continuem sendo alienadas e passem ao controle de várias empresas multinacionais, sob o controle das quais já se acham milhões de hectares, representando uma verdadeira ameaça, não apenas à soberania nacional, mas igualmente à biodiversidade, à vida dos povos da região e seus territórios, bem como uma ameaça à soberania alimentar, uma vez que tais empresas, ou deixam cativa essa vasta extensão de terra, ou a devastam para nela implantar a monocultura (soja, cana, eucalipto, gado…) com a única finalidade de extrair lucros sem conta, em prejuízo da natureza e dos humanos.
Esse limite assegurará que a terra cumpra efetivamente sua-função social, inclusive a de produzir alimentos saudáveis para o nosso povo, visto que, ao adquirirem milhões de hectares, as grandes empresas (multinacionais ou mesmo “nacionais”, já que adquiridas em nome de “laranjas”) empenham-se de extrair de seus negócios o máximo de lucro, pouco se importando com a natureza ou com a qualidade de vida da população. É sabido que os alimentos básicos de nossa gente do campo e da cidade são produzidos, em mais de 70%, pelas pequenas propriedades, pela Agricultura Familiar, enquanto o agronegócio prefere investir na monocultura (de cana, de soja, de eucalipto, de gado…) para exportação, prática que, além de devastar a fauna e flora da região, e de expulsar os povos da floresta e os ribeirinhos, ameaça a soberania alimentar, à medida que vai convertendo em monocultura vastas áreas que deveriam ser destinadas a garantir os alimentos básicos de nossa população do campo e da cidade. Donde a sabedoria que costumamos ouvir, desde o grito das ruas: “Se a roça não planta, a cidade não janta!”; “Se destruírem o roça, a cidade não almoça!”
Ao se estabelecer um limite à propriedade da terra, a parte das terras que exceder tal limite, deverá ser destinada à Reforma Agrária, resolvendo assim, não apenas o problema grave de desemprego de milhões de trabalhadores e de jovens vivendo sufocados nos grandes centros, tornando-se, não raro, vítimas da violência e das drogas, como também essa dívida social secular para com os milhões de Trabalhadores e Trabalhadoras sem terra, que vegetam, como degredados na própria terra, permitindo-lhes acesso a condições de vida digna e de trabalho decente.
Eis a que vem o Plebiscito, que constitui um primeiro passo, nessa direção. O Plebiscito sobre o limite da terra arranca, no primeiro momento, da iniciativa de se realizar uma simples consulta à população brasileira, chamando-a a opinar sobre tal proposta.
Como se pode estar contra uma simples consulta à população? Centenas de milhares pessoas, ao votarem, vão expressar seu sentimento, vão externar sua posição: a favor ou contra as duas perguntas de que consta o Plebiscito. Nada tão democrático! Nada tem a ver com insinuações capciosas, como as que atribuem ao Plebiscito fins que não são os seus, a exemplo da insinuação de que a aprovação de tal medida seria uma tentativa de se impor o socialismo à sociedade brasileira, dando assim prova cabal de não se ter lido o material do Plebiscito, organizado pelas entidades promotoras, inclusive a CNBB, além de “esquecidos” de que a mesma medida (do limite da terra) já foi implantada, há tempo, por países capitalistas como o Japão e a própria Itália…
O Plebiscito trabalha com um limite bastante moderado, aliás. De tal sorte que, de acordo com o critério proposto (a fixação de um limite de 35 módulos fiscais) permitirá até mesmo que não se tenha que tocar em propriedade com até 3.500 ha…
Basta comparar com os limites estabelecidos em outros países: muito aquém dessa proposta.
Para alcançarmos tal meta, bem sabemos que não basta a realização do Plebiscito que é apenas uma consulta feita à população, à qual deve seguir-se a coleta de, pelo menos, 1.3 milhão de assinaturas em todo o país, de modo a permitir pressionar o Congresso a acatar tal demansda, convertendo-a numa Emenda à Constituiçao…
Difícil é saber, diante de algo tão claro, tão de acordo com a justiça social, com a Doutrina Social da Igreja (“Mater et Magistra”, “Pacem in Terris”, a própria “Populorum Progressio”, como é possível virar-se as costas para tais desafios? A hora segue sendo de muita autovigilância, sem perdermos a capacidade de ousar inovar…

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