quarta-feira, 28 de outubro de 2020

LOUISE MICHEL, UMA FEMINISTA LIBERTÁRIA, EM SEU TEMPO: BREVES REGISTROS

LOUISE MICHEL, UMA FEMINISTA LIBERTÁRIA, EM SEU TEMPO: BREVES REGISTROS


 Alder Júlio Ferreira Calado



Segue a nos surpreender o alcance do exercício da memória histórica dos oprimidos impacta nos sua capacidade de reanimar as esperanças de todos os grupos oprimidos explorados marginalizados, indistintos lugares e tempos desta feita, trazemos à cena a figura de Louise Michel, uma participante da Comuna de Paris, hein cujos desdobramentos teve uma ampla participação nas linhas que seguem, buscamos situar inicialmente o cenário predominante deste grande acontecimento, em torno do qual gira a figura de Louise Michel em seguida, cuidamos de realçar, brevemente, vários aspectos de sua trajetória e do seu legado buscamos, ao final, sublinhar alguns pontos que nos interpelam, no atual contexto sócio-histórico a partir do legado da comuna e de Louise Michel


 Breves considerações acerca da Comuna de Paris


Da conturbada era napoleônica (Napoleão III), recheada de efervescentes crises e manifestações sociais, culminando com a eclosão da Comuna de Paris - (1871), também ecoam retumbantes vozes femininas, a exemplo da de Louise Michel, uma feminista libertária, sobre quem ousamos registrar estas breves linhas.

A era napoleônica transcorreu com imensas desigualdades sociais, de extrema penúria para as classes populares daquela época. Mais grave ainda, quando Napoleão III decide entrar em guerra com a Prússia (Alemanha), tendo ele levado a pior, trazendo desgraças ainda mais desoladoras para aquela população, especialmente para os segmentos populares. A fragorosa derrota da França para os exércitos da Prússia, trouxe trágicas consequências para a população francesa, especialmente no que diz respeito a extrema humilhação daquela gente, tendo que sofrer, além da cessão da alsácia e da lorena, invasão de seu território, também pesadas indenizações exigidas pelos vencedores. Antes e durante o início de 1870, multiplicam-se os incidentes provocados pelas manifestações das classes populares contra o governo de então (a frente Adolphe Thiers), o que culmina com a insurreição e a instalação  de um governo popular, em 26 de março 1871, estendendo-se por 72 dias.


Iniciada em meados do século 18 a Revolução Industrial, sobretudo em países como Inglaterra, França, Bélgica, mostrava seus efeitos contraditórios: ao lado de avanços tecnológicos e importantes conquistas e progresso, difundia, por outro lado, uma condição sub-humana para milhares de Operários e suas famílias. Em meados dos anos 1800, portanto mais de 100 anos depois, esta situação contraditória suscita muitas revoltas populares. Em 1870, havia um governo opressor, Napoleão terceiro, substituído por um governo provisório, de maioria monarquista, chefiada por Adolphe Thiers. Graças a fracassada empreitada de uma guerra contra a Prússia, os líderes governamentais protagonizam verdadeira devastação contra a França, por parte dos prussianos, vencedores daquela trágica guerra, com as humilhações de tropas inimigas a marcharem sobre a cidade, imporem pesadíssimas indenizações, às quais o moribundo governo se empenhava em responder, aumentando a opressão, a miséria, a penúria para o conjunto dos trabalhadores e trabalhadoras daquele país.

Pairava uma atmosfera profundamente vexaminosa e explosiva, de modo a levantar a população pobre contra aquela opressão entre enfrentamentos, conquistas e derrotas, por meio de protagonistas populares - advogados, artesãos, operários, intelectuais, artistas, professores, médicos, dezenas de mulheres, inclusive Louise Michel, entre outros - passaram a organizar os “debaixo”, no sentido de reagir contra a crescente pauperização, de modo que, em 18 de março de 1871, eclode o levante popular, sob o nome de Comuna de Paris, nome com que, durante a Revolução Francesa, ficou conhecida a cidade de Paris, a comuna. Por meio deste levante, criou-se um governo que substituia radicalmente os governantes monarco-burgueses.

Em um exercício retrospectivo de imaginação, por meio dos dados e documentos a que podemos ter acesso, também podemos apreciar os efeitos atrozes sofridos pela população francesa, em especial as camadas populares de Paris e seus arredores, tendo que amargar todo um conjunto de consequências perversas trazidas pela desventura da guerra contra a Prússia: perda territorial, a humilhação da invasão das forças prussianas em território francês, as pesadíssimas indenizações cobradas pelo vencedor, a imposição das principais consequências sobre as classes populares já economicamente exauridas... Com efeito, são múltiplas as consequências sobre as classes populares, bem como sobre estratos médios da população (artesãos, comerciantes, intelectuais artistas, operários. ) 


Não surpreende, por conseguinte, ter sido a comuna de Paris largamente caracterizada por protagonistas que também expressavam, em parte considerável, tais valores herdeiros da Revolução Francesa, interrompida por períodos imperiais, sob a figura de Napoleão. Protagonistas -  homens e mulheres - da Comuna de Paris que também se caracterizavam pelo empenho em fazer valer os interesses mais populares da Revolução Francesa, sobretudo fortemente enriquecidas pelo legado de Marx e seus seguidores. Isto explica, em grande medida, o ardor da luta por mudanças estruturais daquela sociedade. A isto se somou grandemente o sentimento de humilhação diante da acachapante derrota da guerra contra a Prússia. Estava, portanto, reacesa a centelha explosiva do movimento da Comuna de Paris. Em que pese a faceta de violência que marcou estas lutas, convém acentuar seu caráter libertário e humanista. Nesta linha, muito contribuiu aquele contexto protagonizado pelo movimento operário, na Europa ocidental, que tomou forte impulso com com os escritos marxianos e anarquistas, com a fundação da primeira Associação Internacional dos Trabalhadores mais conhecida como a Primeira Internacional, a partir de 1867, data aliás da primeira edição do Livro 1 de O Capital.

Em que pese a breve duração da Comuna de Paris, cumpre destacar os principais pontos de seu ideário, de seu programa governamental. Figuravam entre seus principais reclamos os seguintes pontos: 

  • Garantia do direito à moradia, por meio da suspensão de pagamento de aluguéis;

  • Ensino público gratuito e laico;

  • Obrigatória socialização das fábricas, geridas pelos operários, eleitos por seus respectivos comitês ou conselhos;

  • Expropriação dos templos, que deveriam servir aos encontros e reuniões dos trabalhadores e trabalhadoras, para debate e deliberação de assuntos do seu interesse;

  • Obrigatoriedade para os intelectuais, de combinarem trabalho intelectual e trabalho manual;

  • Deliberações, de caráter econômico, político e cultural, tomadas pela base, através dos diferentes comitês populares em atuação;

  • Participação das mulheres nas deliberações.

  •  Controle popular das ações governamentais, inclusive com o direito à revogação de dirigentes e coordenadores que não estivessem a cumprir satisfatoriamente suas funções;

  • Transporte público e gratuito;

  • Segurança exercida pelos comitês populares, espalhados pelos diferentes bairros da cidade;

  • Extinção dos aparelhos repressivos;

  • Garantia de autonomia e dos mesmos direitos da Comuna de Paris, extensiva a todas as comunas do país, em pé de igualdade.


Não é preciso lembrar que um programa tão avançado iria sofrer profunda retaliação da parte dos monarquistas e seus aliados europeus. E foi isto o que se deu. Agrupadas em Versalhes, as forças monarquistas cuidaram de recompor suas forças armadas e policiais, em um número correspondente ao dobro das forças da Comuna de Paris, e assim, trataram de cercar a cidade de Paris, vencendo a heróica resistência dos protagonistas da Comuna, a ponto de exigirem dos combatentes da Comuna a devolução dos armamentos ao Antigo Regime. Diante da negativa feita pelos combatentes da Comuna, trataram de executar milhares dos protagonistas da comuna, provocando uma chacina extraordinária, no lugar em que as forças populares se concentraram. 


 Traço da vida do trabalho e da militância de Louise Michel


Louise Michel nasceu em Vroncourt-la-Côte, em 1830, de uma rica família dona de um castelo, fruto de uma relação do filho do proprietário com a serva. Seus avós permitiram que Louise fosse criada naquele ambiente, pela sua mãe. Situação que resultou altamente favorável a sua formação, dadas as condições de estudo e leitura que lhe foram asseguradas. Consta de sua biografia tratar-se de uma leitora voraz de muitos autores, principalmente os filósofos Voltaire, Rousseau, Montesquieu, cujos valores ligadas ao ideário da Revolução Francesa conseguiram fascinar aquela adolescente/jovem de modo a encantar-se desde cedo pelos valores da Liberdade da igualdade e da Fraternidade. Concluiu seus estudos de Magistério, de modo que, aos 21 anos, decidiu mudar-se para outra cidade mais próxima da capital em busca de seguir sua profissão. Já de saída encontrou um sério obstáculo: para assumir suas funções de professora nas escolas governamentais ela precisava fazer o juramento de lealdade a Napoleão III,  tarefa fortemente recusada. Preferiu centrar força, na busca de fundar uma escola na qual pretendia formar moças livres e conscientes.  Desta maneira, conseguiu empreender diversos espaços escolares autônomos, em vários bairros da cidade. Em seguida, buscou alternar seu tempo de trabalho profissional com uma crescente participação em associações e outras organizações de base daquela sociedade, ao tempo em que frequentou debates com figuras ilustres de sua época, a exemplo de Victor Hugo, com quem manteve ampla correspondência.


Exercício de trabalho e de militância política, seguem sendo apreciados com um público crescente, com ampla aceitação e credibilidade, inclusive por meio de textos que ela produzia e fazia publicar em jornais e em periódicos do seu campo. Produzia poemas, textos críticos, ensaios, peças de teatro, sempre visando a despertar a consciência crítica e o compromisso com a lua contra as desigualdades sociais e o seximo, em sua época. 

Avança, a largos Passos, a formação política desta militante Louise Michel,  sempre distribuindo seu tempo profissional com o tempo de militancia em vários círculos de reflexão e espaços populares, acompanhando de perto as lutas sociais, na perspectivas dos interesses das classes populares, firmando um compromisso de classe cada vez mais profundo. Sua consciência de classe também se fortalece e, a partir daí, sua atuação política vai tomando uma direção revolucionária, passando de uma estudiosa ou simpatizante das ideias liberais, herdados de suas leituras dos iluministas da Revolução Francesa, para uma compreensão mais crítica e de uma atitude prática de uma lutadora libertária, mais tarde passando a ser conhecida como uma anarquista de referência .


Graças ao seu cultivo ininterrupto de uma formação sólida, a princípio inspirada pelos filósofos iluministas que inspiraram a Revolução Francesa (Voltaire, principalmente), condição favorável recebida da influência de seus avós paternos. Louise Michel, tão logo concluiu seu curso de Magistério, Passou a dedicar-se a educação. Tentou inserir-se na rede pública de ensino, no que foi impedida por conta de sua compreensível recusa em prestar juramento a um monarca, Napoleão III. A partir de então, entre 1852 e 1855 (dos 23 aos 25 anos), Louise Michel não hesitara em tentar sua vida de Educadora, criando Espaços educativos em outra cidade do interior, onde acolhia principalmente adolescentes e moças, com o propósito de ajudá-las no processo de emancipação, proporcionando-lhes um Despertar de sua consciência crítica. Para tanto, recorria há uma metodologia que contrastava visivelmente com as práticas habituais do seu tempo, marcadas por uma pedagogia punitiva e do medo. Ela, ao contrário, cuidava de exercitar uma dinâmica alternativa, incentivando leituras críticas, trazendo o teatro como possibilidade pedagógica de grande alcance, além da poesia que ela cultivou, ao longo de sua vida. Após esta experiência de educadora em uma cidade do interior, decidiu dar continuidade ao seu trabalho em Paris. Com efeito, Louise Michel foi experimentando uma crescente respeitabilidade pública, junto a diferentes públicos - de intelectuais, de trabalhadores, especialmente de mulheres. Em seguida, articulou sua prática pedagógica com seu exercício de militância, tornando-se uma protofeminista, em sua época, ao tempo em que exercitava fecunda interlocução com intelectuais do seu tempo, chegando a compartilhar ensaios, contos, peças teatrais. Em contínua intereção com estes públicos, sem deixar de escrever panfletos, muito apreciados nas lutas sociais, também em sua época. Tais experiências foram orientando-a em sua prática revolucionária, passando a  abraçar, cada vez mais profundamente, grandes causas de sua época: a causa anarco feminista, a causa revolucionária, ao mesmo tempo em que se sentia profundamente tocada pelas lutas contra as desigualdades sociais econômicas, políticas e culturais.


À altura de seus 40 anos, sua trajetória sócio-política depara-se  com um tempo tenebroso, representado pela guerra franco-prussiana, da qual resultaram profundas humilhações e danos, principalmente para as classes populares. Louise Michel, por volta de 1870 entra de peito aberto nas lutas de resistência, seja o contra o exército prussiano, seja contra o governo provisório de Adolphe Thier

fortemente apoiadas por um conjunto de intelectuais revolucionários, de protagonistas de Largo espectro profissional - artesãos, Operários, advogados médicos, artistas de vários ramos, poetas, escritores... -, dá-se início há uma mobilização intensa, especialmente em Paris diante da humilhação pela derrota, inclusive pela presença do exército invasor, as classes populares não aceitam a Rendição assinada pelo governo provisório de Adolphe Thier, em favor da Prússia, e se mantém em luta, inclusive com as armas de que dispunham, antes da Rendição. Recusam-se a entregar as armas ao governo provisório, com a brava intervenção das mulheres, inclusive de Louise Michel, em entregar os armamentos, generais do governo provisório dão ordem aos seus súditos para atirarem contra aquelas mulheres. Os soldados, porém, recusaram-se a obedecer às ordens do General, e em vez de atirarem contra as mulheres, fizeram-no contra o general e, assim, buscando organizar-se para o assalto contra Paris e os revoltosos.


Durante 72 dias, Paris passa a ser governada por um programa econômico, político, educacional alternativo àquela ordem vigente. A lista de pontos acima referidos bem indicava o potencial transformador do programa de governo da Comuna de Paris.


Pouco mais de dois meses de uma gestão revolucionária que os integrantes daquela Comuna desejavam propor ao conjunto de municipalidades da França não tiveram as condições e o tempo necessários. As forças oficiais, desde Versailles, se reorganizaram e atacaram, de forma fulminante, os bravos Federados, como também eram chamados os integrantes da Comuna de Paris, que acabaram sendo os últimos a serem destroçados no cemitério Père-Lachaise. Um saldo terrível: fala-se em 35.000 mortos, sem contar os 40 mil detentos e detentas, entre os quais dezenas de mulheres, inclusive Louise Michel. Procurada intensamente pela polícia do antigo regime, seus algozes recorrem à prisão de sua mãe como meio para a captura de Louise Michel, que não teve alternativa senão a de livrar sua mãe. É julgada e condenada à prisão, na qual amargou com tantos outros e tantas outras quase 2 anos de prisão, após o quê sua condenação foi convertida, juntamente com a de tantos outros e outras, em deportação para uma terra distante, Nova Caledônia, uma ilha no meio do Oceano Pacífico.


No encontro com seus julgadores (comitê de Guerra), ela não teve papas na lingua: "Eu pertenço inteiramente à revolução social. Nós, integrantes da comuna, outra coisa não quisemos senão concretizar os grandes valores da Revolução Francesa. Se vocês me perguntarem se eu estive envolvida na morte de Generais, eu lhe responderei que sim. Se vocês me perguntarem se eu estive envolvida em incêndios, também responderei que sim. Se vocês me perguntarem se eu estive a participar de um processo revolucionário, com certeza, sim. Diante de vocês, eu sou apenas uma mulher, mas, olhando o rosto de vocês, eu lhes digo: caso eu seja libertada, eu não cessarei de pedir vingança. E se vocês não forem covardes, matem-me." Tal posição é bem indicadora de uma revolucionária consequente e condenada à prisão, por dois anos, prisão posteriormente convertida em exílio.


Por outro lado, durante os vários anos em que passou em Nova Caledônia, não perdeu tempo. Passou a refletir e discutir com suas companheiras e companheiros deportados, acerca da experiência de participação na Comuna de Paris. Além disso, passou a aprofundar seus estudos, de modo a amadurecer cada vez mais sua posição de anarco feminista orientada pelas ideias de Auguste Blanqui, ao tempo em que não hesitou em aproximar-se dos povos originários de Nova Caledônia, o povo Kanak, que a recebeu com muita confiança e determinação. Louise Michel passa então a aprender a língua dos nativos e a condividir suas dores suas lutas e esperanças, mostrando-se solidária na luta anticolonialista. Ainda em seu tempo de deportada, aproveitou para aprofundar seus conhecimentos sobre a flora e a fauna daquela região, impactando positivamente a todos pela sua extrema sensibilidade com a mãe natureza. Também, em relação ao povo Kanak, escreveu um livro sobre suas lendas. 


Passado o tempo de sua deportação, Louise Michel com outros deportados e deportadas, retorna a França, onde dá sequência às suas lutas libertárias, organizando grupos e coletivos, aprofundando a consciência crítica, participando de palestras na Inglaterra, na Bélgica, na Holanda, na Argelia e na França. Seu caráter de anarco feminista ganhou enorme simpatia e respeitabilidade, de modo que, após uma existência de luta coerente, quando já se encontrava fragilizada, veio a falecer em Marselha, em Janeiro de 1905. Amplo reconhecimento e a clara gratidão demonstrados por tantos grupos feministas, revolucionários, anarquistas, libertários, foram bem atestados, por exemplo, no maciço comparecimento solidário aos seus funerais, realizados em Paris. Fala-se em uma participação de até 100 mil pessoas.


Que lições a vida de uma feminista libertária pode nos inspirar, frente aos desafios?


A trajetória revolucionária percorrida por Louise Michel não se limita, do ponto de vista das profundas influências que ela inspira, às gerações do século XIX, mas seguem como uma forte centelhas a reacender os ânimos e as esperanças de mulheres e de homens dos nossos tempos sob vários aspectos. Podemos destacar algumas lições que colhemos do percurso existencial desta educadora militante. Um primeiro aspecto a destacar diz respeito à coerência que ela guardou com seus princípios libertários, desde tenra idade. Tendo-se preparado para ensinar, não exerceu essa profissão, por estar apegada a valores de Mercado ou a uma simples busca de segurança profissional. O fato de ter se recusado a prestar juramento de fidelidade a Napoleão III, como uma condição de integrar o corpo docente das escolas governamentais, já é um atestado explícito de sua coerência revolucionária. Prefere empenhar-se em Semear iniciativas de formação junto a várias populações, priorizando a educação feminina, oportunidade em quê mostrou exímias qualidades de Educadora seja por conta dos valores que defendia, seja em razão de sua metodologia de trabalho, Louise Michel apresentava um diferencial enorme, em relação às práticas educativas convencionais, além de seu compromisso com a causa libertária, e especial da emancipação das mulheres frente à toda dominação de gênero, dominação conjugal e outras. Não hesitava em despertar em suas educandas interesse e compromisso de libertação, de emancipação. Além disto, também punha em prática uma metodologia que contrastava com a de então dominante. Invés de seguir os caminhos de uma Pedagogia do Medo ou de estratégias punitivas, preferiu despertar nas educandas um compromisso com a liberdade, também nos processos metodológicos; Daí o emprego da linguagem artística da poesia, do teatro, assim como do incentivo ao processo de aquisição do conhecimento, como caminho de libertação


Poderia ter-se cingido apenas ao campo estritamente educacional, mas não hesitou em expandir sua militância por outros Campos, tais como o da escrita (ensaios, contos, peças teatrais, panfletos…), além de dividir o seu tempo entre o trabalho profissional e as discussões políticas com diversos coletivos, por meio dos comitês ou dos conselhos populares que ela animava, em especial no 18 “Arrondissement” (18ª zona urbana de Paris), correspondente à famosa região de Montmartre, lugar de atuação política de Louise Michel, referência capital das lutas travadas pelos “comunnards”.


Há muito, sim, a aprendermos da experiência tanto da Comuna de Paris quanto da trajetória humana, intelectual e política de Louise Michel. Como em tantos outros acontecimentos dignos de memória, também nestes, não se trata de tentar reedita-las, mas de extrair deles inspirações, intuições, idéias que nos sejam úteis no enfrentamento dos desafios da atualidade da Comuna de Paris. Como não nos deixarmos impactar pelas atitudes ético-políticas postas em prática, inclusive no que diz respeito aos princípios que orientaram aquela gestão? Como desdenharmos as práticas de autogestão? Como desprezarmos princípios fundamentais como protagonismo de homens e mulheres, na tomada conjunta de decisões, a partir dos comitês ou dos conselhos populares, verdadeiros núcleos autônomos interconectados e de decisão? Como não tomarmos em conta o princípio da alternância de cargos e funções bem como na revogabilidade dos cargos eletivos? Como não apreciarmos o compromisso efetivo com os interesses da coletividade, das classes populares? Como ignorarmos a relevância de princípios postos em prática, tais como a da garantia das condições justas de trabalho, dos direitos sociais, da garantia dos serviços públicos essenciais, da responsabilidade de todos pela segurança da coletividade, por meio dos comitês de bairros, em vez de se reduzir a segurança pública a instâncias estatais (exército, polícia), com o constante risco de manipulação (das elites econômicas), tornando estes aparelhos apenas a seu serviço e contra o da maioria da população?


Quanto ao exercício da memória de Louise Michel, além de dezenas de outras mulheres que tiveram um protagonismo reconhecido nas ações desenvolvidas, ainda que brevemente, pelos integrantes da Comuna de Paris em razão de sua ampla participação, como não tomarmos na devida conta? Como menosprezar a gama de talentos reunidos por Louise Michel - de Educadora Popular, de escritora, de apaixonada pelas ciências naturais, tendo sido inclusive professora de Química e pesquisadora da flora e da fauna da nova caledônia . E, como não nos impactar pela sua coragem e pelo seu incessante compromisso com as grandes causas da humanidade, inclusive por meio de sua posição anti-colonialista, pela sua incansável militância em favor dos direitos dos de baixo, de sua respeitabilidade dentro e fora da França, como convidada frequente a fazer palestras e cursos na Inglaterra, na Bélgica, na Holanda, na Argélia, além de tantos lugares na própria França? Como não nos incomodarmos com certa invisibilidade de tantas mulheres, a exemplo de Louise Michel, nos dias atuais, inclusive entre nós, salvo algumas exceções? 



A quem interessar possa, sugiro a (re)leitura ou (re)escuta dos seguintes vídeos ou textos:


  1. https://ithanarquista.files.wordpress.com/2019/03/samanta_mendes_comuna_de_paris_louise_michel.pdf

  2. https://revistas.pucsp.br/index.php/verve/article/view/5435/3882 

  3. http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/321601 

  4. https://www.youtube.com/watch?v=vmzmWy7pvUY 

  5. https://www.youtube.com/watch?v=lYPv_ngyim4 

  6. https://www.youtube.com/watch?v=YN22jQTeqRU

  7. https://www.youtube.com/watch?v=IZEAGAtMBC8 

  8. https://www.youtube.com/watch?v=ILzsOctQt9s


João Pessoa, 28 de outubro de 2020

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

FRATERNIDADE/SORORIDADE COMO NOVA SÍNTESE DA RELAÇÃO IGUALDADE E LIBERDADE: notas sobre a Encíclica "Fratelli Tutti", do Papa Francisco.

FRATERNIDADE/SORORIDADE COMO NOVA SÍNTESE DA RELAÇÃO IGUALDADE E LIBERDADE: notas sobre a Encíclica "Fratelli Tutti", do Papa Francisco


Alder Júlio Ferreira Calado


Veio a lume, nesse 4 de outubro, data comemorativa de Francisco de Assis, a mais recente Encíclica social subscrita pelo atual Bispo de Roma. Foi significativo o modo como o Papa Francisco decidiu também firmar este Documento: ele o fez, após a celebração eucarística realizada em Assis, sobre o túmulo de Francisco. Eloquente também foi o silêncio que o presidente daquela celebração eucaristia decidiu exercitar, no espaço reservado à homilia. No dia quatro, finalmente, foi dada a conhecer a íntegra da Encíclica, que vem composta de 287 parágrafos, distribuídos em oito capítulos. Nas linhas que seguem, trataremos de recuperar seus temas-chave, como um alvo de uma primeira leitura, de nossa parte.


Após esta primeira leitura da íntegra do referido texto, nosso sentimento predominante foi o

de estarmos diante de uma reflexão que nos remete a um Francisco de Assis franciscanamente atualizado, sob vários aspectos. Iniciamos nossa leitura da Fratelli Tutti com um breve registro de algumas observações, principalmente de caráter metodológico, além de outras considerações. Em seguida, buscamos centrar nossa atenção na concepção manifesta na” Fratelli Tutti”, quanto ao conceito e a experiência de “Liberdade” nos tempos atuais. De modo semelhante, procedemos em relação ao conceito e a experiência do que se tem tomado como “Igualdade”, em nossos dias, confrontando-a com o conceito de “Fraternidade” assumido pelo Papa Francisco , fazendo questão de distingui-la de uma noção ou categoria exclusivamente teológica. Por último, cuidamos de extrair desta leitura algumas pistas concretas, a partir das quais podemos, construir no  dia  - a -dia, um novo modo de produção, um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal, alternativos ao modelo vigente. Algumas observações iniciais sobre a Fratelli Tutti


Trata-se da terceira Encíclica social assinada pelo Papa Francisco, mesmo considerando que a primeira teve autoria mais diretamente atribuída ao seu antecessor, o Papa Bento XVI, tratando-se, portanto, de uma ocorrência circunstancial, antes que de uma palavra própria do Papa Francisco. Em verdade, sua grande primeira Encíclica social foi, como se sabe, a memorável e apreciadíssima “ Laudato sì”, passando esta - a Fratelli Tutti - como sendo a sua segunda Encíclica, propriamente dita. Para além destas encíclicas, não devemos esquecer, no curso do ainda breve pontificado do atual Bispo de Roma, do conjunto de seus outros escritos, entre os quais exortações apostólicas, a exemplo de seu programa de governo eclesial “Evangelii Gaudium”, bem como de seus numerosos pronunciamentos, homilias, decorrentes inclusive de mais de três dezenas de viagens apostólicas por ele realizadas nestes sete anos de pontificado, tendo percorrido os cinco continentes.


Outra observação relevante tem a ver com a extraordinária coerência que vem mantendo, no conjunto de seus escritos, pronunciamentos e posições desde o início de seu pontificado. Coerência nos conteúdos refletidos e na metodologia utilizada. Quanto a um primeiro aspecto, ele se tem ocupado, de modo contínuo, das grandes causas da humanidade, o quê o distingue da enorme maioria dos chefes do Vaticano, enquanto o aproxima de figuras excepcionais como a Papa João XXIII. Não se trata de atribuir qualquer descaso ou desatenção aos problemas intra eclesiais ou intereclesiais, mas de reconhecer seu compromisso maior, inspirado no Seguimento de Jesus, de priorizar o conjunto dos humanos e da criação: “tudo o que é humano nos diz respeito”;. Embora constando nesta Encíclica, esta máxima não é originariamente de autoria do atual Bispo de Roma, nem do Papa Paulo VI , citada em sua Encíclica Ecclesiam suam, mas de de autoria do poeta latino Terêncio,, para quem “Homo Sum et nihil humani a me alienum puto”; (sou um ser humano, e nada do que é humano me é estranho).. Ainda que numa livre tradução em relação a mesma Máxima de Terêncio atitudes como esta tem implicado enorme e crescente atenção, para além do mundo católico e do Mundo Cristão, de modo a torná-lo, reconhecidamente, uma liderança mundial de novo tipo. Assunto sobre o qual já tivemos oportunidade de refletir (Cf.http://textosdealdercalado.blogspot.com/2017/09/voem-alto-sonhem-grande-francisco-

bispo.html) Quanto à Encíclica “Fratelli Tutti”, dedicada à fraternidade e à amizade social convém ressaltar uma atitude metodológica recorrente em seus escritos e pronunciamentos. Em primeiro lugar, por assumir uma metodologia profundamente conectada aos conteúdos de seus escritos e pronunciamentos, expressão mesma de sua posição como ser humano, como cidadão, como cristão. Neste sentido, cabe sublinhar algumas marcas metodológicas que nele tem sido habituais: a firme convicção de uma íntima dinâmica conexão entre situações, fatos, acontecimentos da realidade social humana. “;Laudato si”; constitui, nesta mesma linha, uma primorosa ilustração, o mesmo ocorrendo nesta “Fratelli Tutti”;. Outro aspecto de ordem metodológica, digno de registro, diz respeito a sua leitura de mundo, da realidade socioambiental e eclesial, de modo incessantemente problematizador, isto é, analisando também suas contradições, seus entrechoques, fugindo a qualquer verdade linear de entendimento da realidade. Outro princípio por ele seguidamente manifesto tem a ver com sua aposta radical na esperança, no esperançar, isto é, sua convicção ético política de quê a barbárie - inclusive a de caráter sócio ambiental - não terá a última palavra, no processo de humanização.


Ainda no terreno dos procedimentos metodológicos, cumpre salientar sua incessante atenção e escuta a uma diversidade de posições com as quais ele dialoga, em seus textos. No caso da “Fratelli Tutti”, isto se pode comprovar pela quantidade de notas por ele apresentadas, de tal modo que o número de notas bem se aproxima do número de parágrafos, constitutivos deste mesmo Documento. Convém, ainda, atentar-se para a diversidade de fontes por ele consultadas, indo de uma pluralidade de fontes laicas a uma atenção a fontes relativas a sujeitos eclesiais e cristãs. Observe se, por exemplo, a atenção que o Papa Francisco dedica e expressa, em relação a um amplo leque de Conferências Episcopais de vários países do mundo - do Congo, da África do Sul, da Coreia do Sul, da Índia, da Austrália, dos Estados Unidos, da Colômbia... O que bem demonstra a qualidade de sua interlocução ou do exercício concreto de Colegialidade, uma das palavras-chave dos documentos do Concílio Vaticano II.


Coerente com sua linha teórico-prática de análise, há de se sublinhar ainda sua atenção prioritária às forças e organizações de base de nossa sociedade, em especial os movimentos populares, que Francisco toma como referência prioritária, por entendê-los agentes de transformação qualificados, diante dos enormes desafios sócio econômicos, políticos e culturais que temos diante de nós, sem deixarmos de frisar o desafio ecológico de nossos tempos. Não é, com efeito, a primeira nem a segunda vez, que o Papa Francisco dá provas de sua escuta, de sua observação e de seu investimento, não nas figuras tradicionais de referência, ligadas às estruturas de poder, mas àquelas organizações da sociedade civil em especial os movimentos populares, nos quais ele entende residir a raiz em que devemos nos apoiar, como forças dotadas de potencialidades transformadoras, diante do sistema imperante. Não é ´por acaso que vários encontros mundiais de representantes de movimentos populares têm sido patrocinados, acompanhados, como alvos privilegiados de interlocução, por parte do Papa Francisco. O justo e merecido tributo ao Papa Francisco, como uma figura exemplar, entre as lideranças mundiais de nossa atualidade, não o exime de críticas, inclusive por parte dos “de baixo”, entre os quais os coletivos feministas que dele esperavam uma posição mais afirmativa, na defesa e promoção das mulheres, em especial quanto ao seu papel de sujeitos eclesiais. Não foram tão isoladas as vozes que expressaram sua expectativa, inclusive quanto ao título desta Encíclica, ao silenciar, no título, o polo feminino das relações de gênero: as “Sorelle”. Mas não apenas quanto ao título. Se, por um lado, o louvamos pelo reconhecimento e legitimidade de uma efetiva cidadania no feminino, como afirma neste Documento: “Por conseguinte, ninguém pode ser excluído; não importa onde tenha nascido, e menos ainda contam os privilégios que outros possam ter porque nasceram em lugares com maiores possibilidades. Os confins e as fronteiras dos Estados não podem impedir que isto se cumpra. Assim, como é inaceitável que uma pessoa tenha menos direitos pelo simples facto de ser mulher, de igual modo é inaceitável que o local de nascimento ou de residência determine, de por si, menores oportunidades de vida digna e de desenvolvimento.” (n.121); por outro lado, há de se reconhecer que tal reconhecimento de cidadania também precisa estender-se aos espaços eclesiais.


Sem embargo, convém ressaltar a qualidade e a eficácia da palavra de Francisco, em seu exercício de manifestar uma leitura crítica qualificada sobre nossa realidade econômica, política, cultural e também socioambiental, o quê pode ser atestado pelo leque de temas abordados nestes escritos, a despeito de sua humilde advertência inicial de quê trataria apenas de alguns aspectos da questão assumida no título da encíclica. Com um propósito didático, houvemos por bem destacar temas-chave abordados nesta Encíclica: Mundo fechado e em retrocesso; hipertrofia dos poderes econômicos transnacionais; Ressurgimento de nacionalismos obtusos; Neoliberalismo garante liberdade de poucos a custa da supressão ou redução dos direitos das maiorias; A covid-19 como expressão do gemido da Mãe Terra e de sua rebeldia; A excessiva concentração de riquezas e poderes em mãos de poucos ameaça nossa Casa Comum - os humanos e o conjunto dos viventes; aos olhos dos” donos do mundo”, os migrantes são tratados como se fossem menos humanos; tratamento privilegiado dispensado, no processo de migração, a cientistas e a grandes investidores; poderes econômicos transnacionais superpõem-se governos nacionais; democracia sequestrada pelas estratégias de mentira e desinformação em massa; Cultura do Encontro; demolir muros e construir pontes; Política como meio eficaz de resolver problemas coletivos:“Alguém ajuda um idoso a atravessar um rio, e isto é caridade primorosa; mas o político constrói-lhe uma ponte, e isto também é caridade” (cf. n. 186); recrudescimento do recurso à razão da força; a parábola do Bom Samaritano como critério de avaliação das práticas dominantes e de sua superação; gestação de um novo mundo, orientado pelos valores da Fraternidade/Sororidade. Universal movido pela garantia da liberdade e da igualdade; reconhecimento e respeito à diversidade cultural, da qual a figura do poliedro expressa um símbolo inspirador; exercício das práticas de interculturalidade dos povos e das Nações; a primazia atômicos, biológicos e de destruição em massa; postura de universalização dos direitos fundamentais, bem como da satisfação das aspirações humanizadoras; o papel das religiões como fomentadoras de o mundo de paz..do Diálogo como meio eficaz de alcançar a Paz; esforço mundial contra os armamentos

 

Liberdade, sim! Mas, de quem e para quem?


Não se deve perder de vista o valioso lema da Revolução Francesa: " Liberdade, Igualdade,Fraternidade" de que liberdade porém se trata? Um exame dos frutos de nossas sociedades ocidentais, em especial na atualidade, nos permite avaliar o alcance e o significado desta palavra. Nas sociedades ocidentais, o termo "Liberdade" quase chega assumir um sentido dogmático nas relações do cotidiano, entretanto, podemos melhor aquilatar a densidade ou esvaziamento deste termo, por meio dos frutos que esta árvore da Liberdade tem produzido. Que liberdade pode haver para milhares de jovens, negros, favelados, jogados nos porões do nosso sistema prisional, durante anos, sem que cerca de 40% deste contingente sejam sequer julgados? Por outro lado, como se queixar de liberdade quem - uma minúscula quantidade de pessoas privilegiadas - goza de todos os privilégios possíveis e imagináveis: contando com um acúmulo espantoso de bens, de riquezas, de patrimônio (mesmo em tempos de pandemia, conseguem aumentar significativamente suas riquezas, graças aos mecanismos financistas sob seu controle)? Um percentual mínimo de financistas, atuando em negócios espúrios, em seus paraísos fiscais, auferindo lucros extorsivos com negócios sujos, com dinheiro proveniente do tráfico de armas, do tráfico de drogas, do Comércio de pessoas, tráfico de animais, tráficos de orgãos, trabalho infantil análogo ao trabalho escravo? Um punhado desses megabilionários concentram em suas mãos riquezas equivalentes a soma de dezenas de países, enquanto centenas de milhões de pessoas, mundo afora, sobrevivem à míngua, com fome, no desemprego estrutural, sem moradia digna, sem serviços públicos de saúde, de educação, de previdência, de transporte público... que liberdade é esta? É a liberdade reclamada e proclamada aos quatro ventos pelo Neoliberalismo. Trata-se de uma liberdade para muito poucos, enquanto dela são sistematicamente privadas multidões, pelo mundo afora. Tal é o controle que estes agentes financistas detêm sobre os negócios, que ficam suas decisões muito acima do poder decisório dos próprios Estados, o que representa verdadeiro clamor de Justiça e de liberdade, para a enorme maioria da população mundial.


O direito de ir e vir a poucos é assegurado, enquanto a enorme maioria da população mundial se vê continuamente perseguida, julgada e condenada, quando parte destas multidões ousa ganhar a vida dignamente fora de sua terra, por nas suas não encontrarem as condições mínimas de uma vida digna, não apenas quanto as suas necessidades básicas, mas também, como lembra a Encíclica, as condições necessárias ao seu desenvolvimento integral de pessoas. De que "Liberdade" gozam centenas de milhões de pessoas desempregadas, sub-empregadas, mal-empregadas, em tantas partes do mundo? Que liberdade se pode dizer daquelas multidões numerosas de habitantes sem terra para viver e trabalhar, sem teto para seus familiares, sem acesso a condições dignas de saúde, de educação, de Previdência Social, de transporte público, de assistência, de Segurança Pública, entre outras…


Igualdade: experiência efetiva no chão do cotidiano ou mera formalidade legal?


Tal como o conceito de Liberdade, também de Igualdade encontra extremas dificuldades de efetividade, isto é, embora este conceito conste nas leis principais de nossas sociedades, inclusive por inspiração direta da Declaração Universal dos Direitos Humanos e, a partir daí, nos textos constitucionais e das leis ordinárias. No chão do dia a dia, porém, sua efetividade se torna questionável e mesmo contraditória. As razões disto são muitas: "todos são iguais perante a lei" , mas, como isto sucede concretamente, nas relações sociais do dia a dia? A Encíclica "Fratelli Tutti" se reporta, com efeito, a múltiplas situações, fatos e acontecimentos, em escala mundial, de modo a visibilizar e mesmo a escancarar tais contradições, profundo hiato entre o que se diz garantir legalmente e o quê acontece, de modo concreto, no chão do dia a dia, em relação ao qual os povos originários,  as Comunidades Quilombolas, as comunidades ribeirinhas, os camponeses, os Operários, as mulheres, os jovens favelados, a Comunidade LGBTs, entre outros sujeitos destituídos de sua efetiva cidadania, graças a um modelo de organização social impregnado de contradições de garantia de privilégios à custa dos constantes desrespeitos e violações aos efetivos direitos de grandes maiorias das populações, espalhadas nos vários continentes. 


Nas sociedades burguesas, inclusive na nossa, fala-se muito em meritocracia, isto é, no princípio segundo o qual as pessoas ascendem a cargos mais prestigiosos, em razão de seus méritos pessoais. Na prática, porém, como sustentar tal princípio, quando se tem em consideração milhões de crianças e jovens, especialmente negros e favelados, sem as mínimas condições e oportunidades de galgarem condições mais reconhecidas, enquanto aos membros da classe dominante e dirigente, todas essas condições e outras mais são asseguradas, até antes do seu nascimento? Isto nos remete a muitos casos emblemáticos, dos quais destaco apenas dois. Uma figura famosa, Silvio Santos, costuma gabar-se do fato de que ascendeu profissionalmente, graças aos seus méritos pessoais, passando de ambulante a um dos mais bem sucedidos empresários brasileiros… outra figura, que aqui tomo como um contra ponto, é a do sociólogo Florestan Fernandes (cujo centenário de natalício, estamos a comemorar), filho de uma doméstica, ele próprio não tendo conhecido seu pai, tendo que, desde tenra idade (apenas 6 anos) enfrentar pequenos trabalhos (como o de ajudante de uma barbearia, trabalhando na limpeza da mesma, trabalhando como engraxate, trabalhando como vendedor de produtos farmacêuticos, entre outras ocupações) e tendo que aplicar-se também aos estudos, que teve que abandonar por alguns anos, para ajudar a garantir sua sobrevivência e a de sua mãe. Ainda assim, retomando seus estudos, consegue ingressar na USP (Universidade de São Paulo), na qual, após vários anos de formação acadêmica, ascende ao cargo de professor, ao lado de Roger Bastide, tornando-se em seguida, também professor daquela Universidade, vindo a figurar como um dos maiores sociólogos do Brasil. Florestan Fernandes, diferentemente de Silvio Santos, cuidava de fundamentar, de modo mais crítico, este seu sucesso, indo além do seu empenho volitivo, de sua paixão pelos estudos, atribuindo também as condições sociais que, de certo modo, lhe foram asseguradas. Não é por acaso, que expressa o sentimento de que sua trajetória é uma rara exceção, lembrando tantos de seus amigos de infância , aos quais não foram asseguradas as mesmas oportunidades. Permito-me um breve parêntese, em homenagem a Florestan Fernandes. Já em uma idade relativamente avançada, recebeu solicitação para se candidatar a Deputado Constituinte. Empenhou-se bravamente, no processo constituinte, em defender os serviços públicos, com muita ênfase (especialmente Educação e Saúde). Tendo defendido arduamente a aprovação do SUS, tornou-se conhecido pela sua coerência, ao recusar convite de FHC, para fazer tratamento de sua saúde, fortemente combalida, fora do país, preferindo socorrer-se às filas do SUS. Igualdade? Tem para todos?


Ainda no âmbito da Igualdade, importa prosseguir considerando as diferentes contradições que rodeiam este conceito. Como considerar igualdade de condições, quando se pensa, por exemplo, nas classes populares, nos desempregados e desempregadas, em tantos segmentos sem terem asseguradas as condições materiais e imateriais de seu processo de humanização em Face de pequena minoria da classe dominante e dirigente, para quem são asseguradas as condições e os privilégios de classe? Desigualdade de condições compromete o próprio exercício da democracia, a medida que implica a existência de cidadãos e cidadãs privilegiados de um lado, e, do outro lado, cidadãos e cidadãs de segunda ou terceira categoria, isso é, aos quais são negados os direitos elementares como aqueles e aquelas que, a exemplo dos integrantes do Parlamento, do Executivo, do Judiciário, tem a seu favor um conjunto amplo de regalias: transporte gratuito assegurado, planos de saúde caríssimos, garantia para seus filhos nas melhores escolas e universidades, altos vencimentos, além de um amplo conjunto de condições privilegiadas. Como compreender, nestas condições, que os ditos “representantes” do Povo não tenham qualquer experiência de se locomoverem em transporte público, ignorarem as dificuldades de moradia, contarem com os melhores serviços de Saúde privada, de terem a seu favor dezenas de assessores e assessorias pagos pelo erário? Como compreender que tais pessoas possam mesmo representar os interesses da maioria da população, devendo parte considerável dela o financiamento de sua eleição à grandes corporações? A isto se deve acrescentar os frequentes episódios de extorsão do dinheiro público, por meio de mazelas e conchavos político-partidários e outros, tal como neste momento, tomamos conhecimento do escandaloso flagrante de um Senador da República, a esconder dezenas de milhares de reais em seu apartamento, parte dentro da própria cueca... 


Fraternidade/Sororidade como uma nova síntese da relação Igualdade/Liberdade


Dadas as condições de normose, em que vivemos mergulhados, poucas são as pessoas que ainda conseguem atentar para a necessária diferenciação no uso dos termos "fratres/fraternidade"e o termo "sorores/sororidade” para não poucas pessoas, trazê-las de forma conjuntas estes dois termos parece, para dizer o mínimo, algo estranho, soando mesmo como um rebuscar de linguagem, como um recurso desnecessário, já que durante séculos, o termo "fraternidade" tem sido utilizado com um amplo consenso, sem qualquer necessidade de fazer diferença entre o ao outro polo das relações sociais de gênero (as "sorores": as irmãs). Daí, nossa insistência em busca de reparação, também no âmbito das palavras, às injustiças de que as mulheres , ainda que constituindo-se maioria da população humana, são tratadas como minoria. Também, ao analisarmos a Encíclica "Fratelli Tutti", sentimos falta da expressão do termo "sorores "ao lado do termo "fratres"/fraternidade isto, vale insistir, não deve soar como um preciosismo ou algo supérfluo, mas como indicativo do nosso esforço, também no âmbito da linguagem, de não cometer injustiça nas relações sociais de gênero. Isto nos remete também a uma outra figura querida, a do Educador Paulo Freire, tendo recebidos amáveis críticas e cobranças da parte de um público feminino apreciador de sua obra, respondeu que, ao usar o masculino plural, não tinha intenção de discriminar as mulheres, e que elas se sentissem incluídas no masculino plural.


Como se percebe, o ensaio de uma nova síntese, representada pela Encíclica social "Fratelli Tutti", arranca da própria necessidade de melhor se precisar o título da referida Encíclica, à medida que, enquanto fio condutor do entrelaçamento perseguido entre " Liberdade e Fraternidade ", implica a necessidade de reexaminar o termo isolado "Fraternidade", em vez de articular adequadamente com o termo de "sororidade". Com efeito, somente assim, podemos aspirar a uma prática de liberdade e de igualdade, conforme as aspirações mais generosa só das mulheres e dos homens deste tempo. Não se trata, todavia, de reduzir tal retificação apenas a uma questão de termos ou de conceitos, mas se trata sobretudo de assegurar substância e legitimidade às práticas do cotidiano em breve, cuida-se de assegurar, por meio da fraternidade/sororidade, um substantivo também às experiências de liberdade e de igualdade. É assim que se pode falar em fraternidade/sororidade como um fio condutor a costurar, adequadamente, as relações sociais e interpessoais de liberdade e de igualdade.


Ao longo da "Fratelli Tutti", encontramos diversos parágrafos a indicarem um profundo hiato, quando, nas sociedades ocidentais, inclusive na nossa, se fala nas experiências e nos conceitos de liberdade e igualdade no plano das relações de produção. Não alcança legitimidade o tratamento corrente desses conceitos, trabalhados apenas do ponto de vista formal , seja no âmbito das leis vigentes, seja nas esferas institucionais (família, igrejas, relações de trabalho, entre outros). Os próprios dados estatísticos relativos às relações de produção, nas mais diversas áreas e setores da economia, apontam as graves contradições entre, de um lado, o que se passa de privilégios para parcelas mínimas das populações e o que sucede, na prática, a imensa maioria dos grupos sociais. Liberdade, para uns poucos, contrasta com a liberdade ou a falta de liberdade de imensas maiorias: concentração extrema da renda e das riquezas contrastando com os índices espantosos relativos ao desemprego estrutural de imensas massas desprotegidas, das quais as mulheres, os jovens, os negros, as populações LGBT, os migrantes forçados e outros segmentos de nossas sociedades constituem imensas maiorias, às quais são negados direitos fundamentais - trabalho digno, salário justo, direitos sindicais, direitos de proteção social, previdenciários, acesso regular aos serviços públicos essenciais, o mesmo se diga em relação à questão da igualdade e não apenas na esfera econômica, mas também no que concerne à proteção em relação aos gravíssimos efeitos resultantes do desequilíbrio ecológico, dada a suprema ambição, por parte das grandes corporações transnacionais, das grandes empresas, dos estados nacionais, que não cessam de cometer e violar direitos ferindo também a dignidade da mãe terra e de seus viventes.


É com o fio condutor da Fraternidade/sororidade, que vamos poder costurar as dimensões mais generosa da liberdade e da igualdade de modo que não se trate mais de meros conceitos, mas de experiências humanizadoras e em respeito à dignidade do planeta e de toda a comunidade dos viventes a partir deste entendimento, o grande desafio passa a ser o de revisarmos constantemente e repararmos as deformações escandalosas contidas no conceito de liberdade e de igualdade, em todas as esferas da realidade social, econômica, política, cultural, socioambiental. É ainda, por este caminho, que buscaremos superar o desafio das crescentes agressões ecológicas sofridas pelo planeta e pelos humanos. É por esta via que buscaremos reorganizar as atividades de produção, buscando respeitar nossas relações com a mãe natureza e com o conjunto dos viventes, inclusive os humanos, à medida que organizar o processo produtivo implica, por exemplo, na adoção de um estilo de vida alternativo, compatível com os bens e os recursos disponíveis, de tal modo que não tenha mais lugar mórbido acúmulo capitalista, produtor de vários tipos de barbárie.


Por outro lado, também será por meio da fraternidade/sororidade, que seremos capazes de reorganizar nossos valores, nossas crenças, nossos interesses, nossos investimentos e nossas prioridades.


Que lições outras somos capazes de extrair da leitura desta Encíclica?


Um primeiro aspecto a sublinhar tem a ver com todo um processo de conversão, a que somos chamados - mulheres e homens - a perseguir, no chão do nosso dia a dia, de forma incessante, processual conversão. Significa, por exemplo, estarmos dispostos a mudar de vida, a ousar modificar o nosso estilo de vida pessoal e coletivo, de tal modo que sejamos capazes de ir construindo, ousando dar passos em direção à construção de um novo modo de produção, um novo modo de consumo e um novo modo de gestão societal quanto a este. A Encíclica "Fratelli Tutti" nos convoca a reinventarmos a política, entendendo-a como um meio precioso de construirmos uma cidadania, da qual todos são chamados a ser protagonistas. Cuida-se de uma política capaz de examinar, com profundidade, diferentes dimensões de estruturação ou reestruturação e exercício do poder, não tanto apenas em escala nacional, mas em escala global. Reinventar a política - o nosso desafio, a envolver gerações atuais e vindouras, e de forma permanente.


 João Pessoa, 22 de outubro de 2020





sábado, 10 de outubro de 2020

UMA PRIMEIRA RESSONÂNCIA SOBRE A X SEMANA TEOLÓGICA PE. JOSÉ COMBLIN

UMA PRIMEIRA RESSONÂNCIA SOBRE A X SEMANA TEOLÓGICA PE. JOSÉ COMBLIN

Alder Júlio Ferreira Calado


  Teve lugar (por meio virtual, por conta da atual pandemia) a Sessão de Encerramento da X Semana Teológica Pe. José Comblin (X STPJC). Nas linhas que seguem, cuidaremos de lançar um primeiro olhar acerca de como foi organizada e como se deu esta X STPJC, em especial sua Sessão de Encerramento, realizada no dia 3 de outubro de 2020. Iniciamos pelos passos dados na realização das Jornadas comunitárias  (transformadas, por conta da pandemia, em noites comunitárias). Em seguida, tratamos de trazer uma primeira ressonância acerca da sessão de encerramento. Por fim, ousamos propor alguns passos aos seus organizadores e organizadoras, não apenas com um intuito avaliativo, mas também com um propósito prospectivo, que nos permita dar prosseguimento, no chão de nosso dia a dia, em relação ao enfrentamento dos atuais desafios, em especial o das Profundas desigualdades de gênero que seguem reinando, na Igreja Católica Romana e em outras igrejas, como também no dia a dia das macrorrelações sociais.


Como nas precedentes STPJC também nesta 10ª edição, reuniram-se virtualmente representantes dos distintos grupos corresponsáveis pela sua organização. Assim, foram realizadas as Noites Comunitárias de modo virtual com a participação de uma dezena de componentes da organização geral, dentre os quais: representantes do kairós, do CEBI, da Escola de Formação missionária de Santa Fé, da CPT, do coletivo feminista, do grupo José Comblin, do MTC. Foram realizadas três noites comunitárias, além de uma última, em busca de conferir e ultimar os preparativos para a sessão de encerramento, prevista e realizada no dia 3 de outubro das 9 horas às 12 horas.


Dinâmica das Noites Comunitárias


Constaram das noites comunitárias, além da definição do tema central da X STPJC - "por que e para que uma teologia feminista? " -, também o empenho na produção de textos e pequenos vídeos, que circularam e continuam disponíveis no site Teologia Nordeste (cf. https://www.teologianordeste.net/). Desses textos, individuais e coletivo (este último de autoria de quatro das mulheres participantes das noites comunitárias) também constou um texto, em nome das equipes organizadoras, sublinhando a importância da realização, ainda que de modo virtual, da 10ª edição da STPJC a partir do tema principal, incluindo seus objetivos, uma breve memória do Pe. José Comblin, e das semanas precedentes, além de algumas questões sobre os textos trabalhados. Tratou-se, em verdade, de momentos candentes de uma vivência, de um debate caloroso. 


Um dos frutos destas Noites Comunitárias já se experimentou, durante este mesmo espaço, a medida que despertou nas participantes o empenho em refletir, a partir de suas próprias experiências, os desafios enfrentados pelas mulheres, em seu dia a dia. Experiência que, além da própria produção individual e coletiva desses textos, acarretou discussões teórico-práticas instigantes, o que se pode verificar, relendo estes textos de autoria feminista, acessando o site teologia Nordeste.


Um outro aspecto que marcou as vivências destas Noites Comunitárias diz respeito ao incentivo à produção de curtos vídeos, a partir do tema central desta X STPJC.


Retalhos memoráveis da sessão de encerramento


Como havia sido amplamente divulgada, a X STPJC culminou na sessão de encerramento, realizada na manhã do dia 3 de outubro de 2020. As coordenações dos trabalhos, coube à Teóloga Elinaide Carvalho, que também abriu a sessão. De acordo com a programação, a Sessão seguiu com a Mística de abertura, protagonizada por um grupo de mulheres participantes da organização da STPJC. Esta Mística, constante de cantos e poemas feministas, de uma leitura adaptada do Êxodo. Todos profundamente conectados com a memória, as dores, os sofrimentos, as esperanças e as lutas das mulheres, na defesa e na promoção dos seus direitos. Palavras e cantos que expressaram, de modo denso, os clamores das mulheres, em luta pelo respeito e pelo protagonismo, pela condição de sujeitos históricos e eclesiais. 


Ao final da Mística, Elinaide Carvalho retoma a coordenação, convida o Pe. Hermínio Canova para um breve relato da memória das STPJC anteriores. Pe. Hermínio, saudando Ivone Gebara, põem-se a rememorar fatos e episódios relevantes da caminhada da Igreja na Base, desde os anos 70. Relembra a densa atuação de Ivone Gebara no Nordeste, por 34 anos, desde quando integrava a Equipe de assessoria de Dom Hélder Câmara, juntamente com Pe. Humberto Plumen, Sebastião Armando, Eduardo Hoornaert, por meio do DEPA (Departamento de Pesquisa e Assessoria). Destaca ainda, em sua memória, os tempos proféticos vividos por vários grupos e pastorais, tais como as CEBs, os Encontros de Irmãos, as PCIs, a CPT, o CEBI, entre outros. Com emoção, Pe. Hermínio expressava a vitalidade desta Igreja na Base, tão animada pelo Pe. José Comblin, sempre presente e atuante nestas e noutras iniciativas que inspirou, a exemplo do Seminário Rural, do Centro de Formação Missionária, das Escolas de Formação Missionária, espalhadas pelo Nordeste. Lembra, por último, da realização anual das STPJC, cuja primeira edição foi realizada em 2011, ano da páscoa do Pe. José Comblin. As STPJC protagonizadas por um conjunto de grupos (Kairós, Centro de Espiritualidade Hélder Câmara, CEBI, MTC, Grupo José Comblin, Grupo Igreja dos Pobres, entre outros), trabalharam diversos temas: Memória e Legado de Comblin, o Espírito Santo e a Tradição de Jesus (título do livro póstumo de José Comblin), Protagonismo dos Jovens, Migrações, Medellín e Puebla, desafíos socioambientais, entre outros. Em todas essas TPJC contamos com densa colaboração de convidados e convidadas, especialmente nas sessões de encerramento. Dentre estes convidados e convidadas, convém rememorar as figuras de Eduardo Hoornaert, Mônica Muggler, Pe. Josenildo Lima, Pe. Luis Carlos Susin, Pe. Agenor Brighenti, Pastor Luciano Batista de Souza, Pastor Paulo Cézar Pereira, Dom Sebastião Armando Gameleira, Alzirinha Souza, Pe. Francisco Aquino Júnior, Elinaide Carvalho, entre outras. 


Em seguida, Elinaide Carvalho, com o precioso apoio de Carmelo, na técnica digital, convida a todos e todas a apreciarem três curtos vídeos, trazendo as experiências relatadas por três mulheres (Ir. Rose Bertoldo, Isabel Félix, e Ir. Silvia Rodrigues), refletindo sobre seus trabalhos e suas experiências em grupos de mulheres, seja na Amazônia, seja no âmbito das lutas das católicas pelo direito de decidir, seja no campo da Terapia Comunitária Integrativa.


Pontos axiais focados por Ivone Gebara, em sua reflexão sobre o tema da sessão de encerramento da X STPJC


Ainda sobre a coordenação de Elinaide Carvalho, a quem também coube uma apresentação de Ivone Gebara, esta iniciou agradecendo as múltiplas referências a ela feitas tanto na apresentação de Elinaide, quanto pelo padre Hermínio Canova. Fez questão de sublinhar seus 34 anos vividos no Nordeste, inclusive sua aproximação e seu acompanhamento do grupo Chimalmans, de jovens teólogas, do qual faziam parte algumas das organizadoras desta X STPJC, sendo o caso da própria Elinaide Carvalho, e de irmã Rose Bertoldo.


Em seguida, Ivone tratou de propor 4 pontos em torno dos quais giraria sua reflexão: a metáfora Corpo/Fé e Roupa/Teologia, aliança entre a cruz e a espada, Teologia no chão do cotidiano e a Vida Como Referência Maior. Tendo sempre presente o tema daquela sessão, " Para que e para quem uma teologia feminista?" acentuou diferentes aspectos do fazer teológico ao interno da igreja católica e de outras igrejas cristãs, quase sempre monopolizado por homens, em sua maioria, pouco sensíveis à participação das mulheres como produtoras também de conhecimento teológico. Tanto Ivone quanto membros do grupo de jovens teólogas fizeram referência ao grande incômodo que aquelas estudantes cursando teologia, no seminário católico de João Pessoa, causavam aos seminaristas e professores, eles perguntavam para quê mulher fazer teologia. Não se tratava, contudo, de uma posição exclusiva daqueles seminaristas, mas expressava o olhar predominante de teólogos e membros da hierarquia uma postura de quem se sentia incomodado com a possibilidade de compartilhar estudos e produção de teologia por sujeitos femininos. Postura que datava de muitos séculos e que nem as inovações do Concílio Vaticano II conseguiram superar.


Tratou, então, de ilustrar tal posição, recorrendo a vários episódios da história da igreja, inclusive citando as místicas da idade média, entre as quais Marguerite Porète, nascida em 1250, e condenada à fogueira pela inquisição, em 1310.


Androcentrismo Eclesiástico atravessou séculos, até hoje, inclusive em tempos do Papa Francisco, que não tem demonstrado simpatia pela causa feminista. Eis porque assume importância em sua fala, a metáfora corpo/fé e roupa/teologia, isto é, foi institucionalizada indevidamente a identificação entre fé e teologia, em detrimento do protagonismo teológico das mulheres. Estas não cessam de reagir à esta “roupa” costurado pelos clérigos, que já não lhes diz respeito. 

O segundo ponto destacado por Ivone nos remete à conhecida aliança entre o trono e o altar, entre a cruz e a espada, conforme pesquisas e estudos realizados inclusive por Eduardo Hoornaert, um dos coordenadores da CEHILA/Brasil. O conluio entre o poder eclesiástico e o poder secular não é algo recente, vem de séculos, expressando a consagração de um poder imperial, secular ou religioso. 


Um terceiro aspecto destacado por Ivone Gebara em torno do tema, e que entendia portador de um potencial transformador deste estado de coisas, tem a ver com o trabalho de teólogas, a partir das relações do cotidiano. Com efeito, o cotidiano é impregnado de situações concretas, diante das quais a vida fala mais alto, enquanto as doutrinas passam a ter quase nenhum significado decisivo. É, pois, nas relações concretas, no chão do dia a dia, que as mulheres e também as teólogas feministas encontram suporte teórico-prática mais apropriado, para um combate eficaz, também na produção da teologia feminista. Situações concretas, por exemplo, como as enfrentados por crianças e adolescentes, vítimas de estupro, do qual decorre também engravidamento, como sucedeu ainda recentemente aquela criança levada a um hospital do Recife, e sobre quem pesou a dureza de coração de bispos e de outros integrantes da igreja católica e de outras igrejas. As relações do cotidiano se acham impregnadas de uma força vital capaz de encorajar as mulheres, inclusive as teólogas feministas, a ousarem denunciar e anunciar, sempre fiéis aos apelos da vida, até porque a vida constitui o valor maior. Mesmo diante da Bíblia, as teólogas feministas não cessam de entendê-la, não como "a" palavra única, antes, entendendo ser a vida a palavra maior, sendo sua principal referência, até porque, ao longo da história do cristianismo, as páginas da Bíblia e sua interpretação tem tido o monopólio de uma hermenêutica androcêntrica. Daí a importância , para as teólogas feministas, de exercitarem continuamente a hermenêutica, como um instrumento valioso de leitura e releitura da Bíblia e de outros textos sagrados.


Que ensinamentos podemos recolher da vivência desta décima edição da semana teológica Padre José comblin?


Durante estes meses de agosto setembro e outubro, as organizadoras e organizadores desta X STPJC, se tem empenhado na construção de condições que favoreçam uma reflexão e uma ação mais diretas quanto ao tema escolhido - porquê e para quê uma teologia feminista ? desde os primeiros encontros virtuais, fomos impactados pela densidade e atualidade desta questão, principalmente graças ao protagonismo das e dos participantes do processo organizativo fomos positivamente surpreendidos com com a profundidade das questões levantadas, do quê resultaram textos instigantes produzidos pelas participantes, individual e coletivamente, e compartilhados no site teologia Nordeste, despertando um interesse marcante, não só dos membros dos grupos organizadores desta décima edição da STPJC, como também da parte de leitores e leitoras que visitaram o referido site. As noites comunitárias ainda despertaram o interesse e o compromisso de algumas das participantes, na produção de pequenos vídeos, inclusive dos que foram compartilhados na sessão de encerramento, de autoria de irmã Rose Bertoldo, de Isabel feliz e irmã Silvia Rodrigues.


Textos e vídeos que nos têm ajudado a aprofundar diferentes ângulos da questão, seja em ambientes marcados mais diretamente pela questão socioambiental, das mulheres indígenas, seja no plano das protagonistas do Equilíbrio do Ser, iniciativa assumida por aquelas mulheres que lidam com a Terapia Comunitária Integrativa, seja ainda pelos embates teórico-práticos enfrentados pelas mulheres membros da Católicas pelo Direito de decidir. Os textos produzidos, por sua vez, nos instigam a um constante aprofundamento de distintos aspectos relacionados à teologia feminista, protagonizada por mulheres e, no caso, participantes da Escola de Formação Missionária de Santa Fé.


 Da sessão de encerramento e, especialmente da reflexão problematizadora compartilhada por Ivone Gebara, nos fortalece o sentimento do compromisso de consolidar os grupos e coletivos feministas, bem como implicando o compromisso também dos homens, no sentido de levarem adiante e mais a fundo seu compromisso com a causa emancipadora assumida pelas mulheres, no contexto das relações sociais de gênero, dentro e fora dos espaços eclesiais.


 A memória trazida pelo padre Hermínio Canova, relativa à caminhada de meio século da igreja na base, no nordeste, protagonizada por diferentes grupos, comunidades e pastorais sociais -  as CEBs, as CPIs, Os encontros de irmãos, a CPT, entre outras-, nos fortalece o compromisso de seguir adiante, na luta e na esperança de um enfrentamento exitoso dos atuais desafios sócio-eclesiais.


 Há de se sublinhar a disposição, por várias vezes expressa, tanto nas noites comunitárias, quanto em outros espaços, de fortalecer os coletivos feministas, nos espaços sócio eclesiais de que participamos, num sentido não apenas do exercício da crítica, mas também da formulação de iniciativas com potencial transformador, com propósitos de alternatividade aos valores dominantes, tanto nas igrejas quanto nas macro relações sociais.


 Pessoa, 10 de outubro de 2020