quinta-feira, 20 de junho de 2019

O CAPITALISMO COMO RELIGIÃO: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO ALCANCE DELETÉRIO DE SUAS MANIFESTAÇÕES IDOLÁTRICAS


O CAPITALISMO COMO RELIGIÃO: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO ALCANCE DELETÉRIO DE SUAS MANIFESTAÇÕES IDOLÁTRICAS

Alder Júlio Ferreira Calado

No Brasil, na América Latina, assim como no mundo inteiro, o Capitalismo vem deixando marcas pavorosas de devastação, não apenas de parcelas consideráveis e crescentes das populações, mas também do Planeta e de toda a comunidade dos viventes. Tais marcas comportam múltiplos e complexos traços, de modo a afetarem todas as esferas da realidade social. Não se trata apenas de destacar seus sinais de barbárie presentes no processo produtivo, mas também de perceber-se os vínculos orgânicos que mantém com outras esferas da mesma realidade, interferindo igualmente no âmbito das relações sociais também presentes na esfera política e na grade de valores dos humanos, de modo a ameaçar de morte toda a comunidade dos viventes. 

Reconhecendo a íntima conexão dos fatores deletérios exercidos pelo Capitalismo, aqui nos restringimos, de maneira mais enfática, aos fatores incidentes no plano da religiosidade, imprimindo maior eficácia no seu potencial destrutivo, em especial por lidar com uma esfera que cuida de conferir ou tolher sentido à vida dos humanos e do Planeta. Tratamos de examinar que forças especiais aí incidem, de modo a impelirem os seres humanos, em escala mundial, a fazerem tais escolhas. Ousamos compartilhar alguns questionamentos a título de busca de pistas capazes de superar - ou ir superando - tais aporias ou impasses de grande monta.

Buscando situar e entender melhor o problema.
Como entender as profundas e crescentes desigualdades sociais, que se registram no Brasil e no mundo contemporâneo. No caso do Brasil, como explicar/justificar que um país tão rico (biodiversidade privilegiada, solo fecundo, subsolo rico, rede hidrográfica extraordinária, território banhado, em seu longo litoral, pelo Atlântico, a abrigar as mais cobiçadas riquezas...) albergue milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, enquanto uma ínfima minoria (transnacionais atuando nos mais diversas esferas da vida social – inclusive na área religiosa -, setor financista, novos latifundiários, etc. ) concentra cada vez mais riquezas, terras, bens... E os que já têm demais, não se conformam: em sua avidez extrema, não cessam de promover a retirada de direitos sociais, a venda do patrimônio nacional e ainda se pretendem patriotas... Desta feita, sempre atentos a uma confluência de fatores, já evocados em outras oportunidades, aqui centramos atenção apenas na dimensão religiosa como um dos fatores - não o menos importante! - desta barbárie em curso, no Brasil, na América Latina, no mundo. Elegemos como questão orientadora destas linhas, a seguinte: dinamicamente conectada a outros fatores (econômicos, políticos, culturais), que lugar se tem reservado à dimensão religiosa, em todo esse processo? 

Estamos assumindo "Religião" como um sistema de crenças e práticas orientadas a uma determinada divindade, à qual se atribui todo o poder, e a quem se entrega o destino da criação, dos seres humanos e de toda a comunidade dos viventes, contando para tanto com mediadores especiais (lideranças religiosas), lugares de culto, ritos, valores tais como obediência incondicional, fidelidade extrema, submissão, deveres, como condição de concessão de benefícios. Mostra-se quase infindo o leque de expressões religiosas, espalhadas pelo mundo, alcançando em especial religiões tais como Judaísmo, Islamismo e Cristianismo, além de inúmeras religiões de matriz asiática, africana... Para além dessas religiões, é preciso reconhecer outras formas de religião, inclusive diversas delas não tidas como tais, mas agindo com uma eficácia ainda maior. É o caso do sistema capitalista aqui tomado como uma religião. Neste sistema é que nos vamos fixar.  Trataremos, a seguir, de trazer a lume algumas de suas manifestações, presentes no dia-a-dia de centenas de milhões de pessoas, mudo a fora.

O núcleo mais forte da religião do Capitalismo opera por meio do fetiche. O fetiche é uma espécie de espírito que anima as relações do sistema capitalista. Karl Marx segue sendo a figura que mais aprofundou, em suas pesquisas durante décadas, a complexidade e o alcance do fetiche. E o fez, não apenas nas obras atribuídas ao jovem Marx. Também em O Capital, Marx lhe dedica atenção especial, inclusive a partir do tópico IV do capítulo I de seu principal livro (“O caráter do fetiche na mercadoria e seu segredo”). Diversos autores e autoras também se dedicaram ao estudo de como funciona a religiosidade capitalista, dentre os quais destaco apenas dois: Hugo Assmann e Enique Dussel. Durante décadas, Dussel, por exemplo, vem se dedicando a este estudo, do qual resultou a publicação do seu livro "Las metáforas teológicas de Marx", do qual se acha disponibilizada uma versão em PDF, acessando-se o "link": (Cf.http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/otros/20120522093403/marx3.pdf)


O fetichismo construí a marca particular de como opera o Capitalismo. E em que consiste tal fetichismo? O fetiche constitui fundamentalmente em uma relação social de inversão do sujeito em objeto, e do objeto em sujeito. Trata-se de uma característica que as mercadorias adquirem neste sistema. 

Por meio de suas estratégias capciosas, a religião do Capital transforma pessoas em coisas, e coisas em pessoas, das mais diferentes maneiras. Neste processo, tem lugar privilegiado a promoção e entronização do deus Mamon, representando ouro, dinheiro, riqueza. Mamon se vai tornando, pelas estratégias do Capitalismo, "o” tesouro da vida, a merecer todas as atenções, todos os cultos, todos os sacrifícios, inclusive o sacrifício de inocentes, de crianças, adolescentes, jovens, adultos, homens e mulheres. A vida se converte em uma incessante busca por riquezas, a qualquer preço. Riqueza por meio da qual todos os falsos planos de felicidade e de realização se tornam válidos e fascinantes. Aí entram em jogo seus agentes operadores, seus "sacerdotes", seus acólitos, orientados pelo "Mercado", uma figura do próprio deus Mamon. Seu "modus opearandi" revela-se sedutor para amplas parcelas de seus "fiéis". Um desses "modus operandi" se dá por meio da propaganda e da publicidade, verdadeiros entes mágicos que, uma vez acionados, produzem um fascínio irresistível em amplas parcelas da população. Publicidade e propaganda a serviço de suas vendas e de seus produtos, nas mais diversas áreas da vida humana: produtos econômicos, produtos religiosos, produtos de beleza - uma beleza padronizada conforme a gula de lucros fáceis -, produtos de ordem política. Tal é a relevância da propaganda e das publicidade para os ministros da Religião Capitalista, que chegam a alcançar o patamar de uma refinada ciência, especializada em "vender" não importa o quê, como se tratasse de um produto imprescindível, extremamente concorrido alvo da voracidade consumista. Neste sentido, publicidade e propaganda nos remetem a uma poesia medieval, por meio da qual os Goliardos -espécie de "hippies" da época - satirizavam o fascínio provocado pelo dinheiro nos seguintes termos:

O dinheiro reina, soberano, sobre a terra/ É admirado por reis e pelos grandes/ A ordem episcopal, venal, lhe rende homenagem/ O dinheiro é o juiz dos grandes concílios/ O dinheiro faz a guerra, e quando quer, obtém a paz/ O dinheiro é que faz os processos, para que sua conclusão dele dependa/ O dinheiro compra e vende tudo, dá e toma de volta o que deu/ (...) Graças ao dinheiro, o idiota se torna incontestável falante/ O dinheiro compra médicos, adquire amigos prestimosos/ (...) torna barato o que é caro, e suave o que é amargo.” (ap. Wolff, 1995:62).

Nas trilhas de uma sociedade alternativa a este modelo hegemônico

Diante de tal realidade desumanizante, que passos somos historicamente chamados a empreender, em busca de um horizonte alternativo? Conscientes da complexidade de tal desafio, sentimo-nos chamados a ousar trilhas alternativas, em vista da construção processual de uma nova sociedade. Os questionamentos que compartilhamos, em seguida, têm o propósito de nos ajudar, nesta direção.

- Como lidar com as convicções de ordem religiosa, que, pelos seus frutos, vêm produzindo uma consciência invertida, a serviço do deus Mamon, em nossas sociedades?
- Como enfrentar criticamente a profusão de manifestações idolátricas que o espírito capitalista propaga, também na atualidade?
- Se é verdade que a Religião ao longo da história, tem cumprido um papel eminentemente de dominação, não será igualmente verdadeiro entender e trabalhar a Religião, numa perspectiva libertadora?
- Entre as tentativas bem-sucedidas do exercício da dimensão libertadora da Religião destaca-se o Cristianismo de Libertação, tal como bem corresponde à tradição de Jesus, ao movimento de Jesus. Como enfrentar os mecanismos idolátricos do deus Mamon, travestidos de um cristianismo sem Jesus de Nazaré?
- Considerando-se o enraizamento popular da fé religiosa de multidões latino-americanas e de outros continentes, é possível ou razoável pretender-se combater a religião capitalista, prescindindo-se de suas vítimas?
-A este respeito, convém lembrar uma afirmação emblemática feita por Michael Löwy, como uma conclusão verossímil num de seus textos acerca da Teologia da Libertação em seu relacionamento com a filosofia da Práxis, de que “Em numerosos países da América Latina, a revolução será feita com a participação dos cristãos, ou não se fará.”.
- Lida esta afirmação, correspondente ao contexto dos anos 80, e considerando-se o atual cenário brasileiro latino-americano, pode parecer estranha. Por outro lado, o estranhamento se desfaz à medida que somos capazes de reavaliar a caminhada de nossas principais organizações de bases (inclusive no terreno da “Igreja na Base”), no que toca ao processo organizativo e formativo, não levado devidamente a termo, nas últimas décadas...

João Pessoa, 20 de junho de 2019.

sexta-feira, 14 de junho de 2019

AUTOGESTÃO COMO DESAFIO RUMO A UMA NOVA SOCIEDADE: notas esparsas sobre o conceito e experiências


Alder Júlio Ferreira Calado

Mais um dia de mobilização pelas ruas e praças do Brasil. Nossas organizações de base resistem aos ataques ultraliberais, desferidos pela pauta necrófila do governo de plantão.

Acompanhamos e brindamos, com alegria e esperança, esta e as demais recentes manifestações de rua no Brasil, inclusive a protagonizada principalmente pelos profissionais da Educação, os universitários e secundaristas. Congratulamo-nos, de modo igual, com as redes sociais alternativas à mídia comercial no que diz respeito às diversas reflexões críticas sobre o atual desgoverno e suas manifestações obscurantistas. Ao mesmo tempo, sentimo-nos profundamente preocupados em relação ao atual momento vivenciado por nossas organizações de base, no tocante a qualidade de suas análises e intervenções atinentes ao movimento do Capitalismo, pelos diversos continentes, inclusive no Brasil. Damo-nos conta de um inquietante déficit de acúmulo teórico, por parte de nossas organizações de base – em especial, os movimentos populares lidando com um projeto alternativo de sociedade -, em relação aos atuais desafios de natureza teórica. E não se diga que nos bastem as mobilizações de rua, por mais expressivos que se revelem em termos de adesão popular. É claro que elas são importantes, mas desconectadas do exercício teórico, não somente perdem força, como podem comprometer a qualidade do horizonte almejado. Não se trata, portanto, de isolar o exercício da teoria do exercício da prática: uma se torna estéril sem a outra. É conhecida, a este respeito, a afirmação de que “nada mais prático do que uma boa teoria”, entendida como expressão da indissociabilidade entre teoria e prática, ou seja, Práxis. Sob o pretexto de priorizarmos a prática, não raro, o que se constata é uma crescente subestimação do exercício teórico, a comprometer, de modo preocupante, nosso propósito de mudança social, na perspectiva de uma nova sociedade, alternativa à barbárie capitalista.

Neste sentido torna-se temerário e suscetível de graves equívocos o exagerado acento dado à resistência como mera reação a cada pauta desastrada protagonizada por sucessivos governos, sem que tais atos de resistência não se achem organicamente associados as atuais estratégias de combate ao capitalismo, não em termos de varejo, mas por meio de uma rede de ações capazes de enfrentar, processualmente, as atuais estratégias geopolíticas do capitalismo.  
As linhas que seguem, a título de breve nota, vêm distribuídas em três momentos organicamente conectados. Começamos por ensaiar nossa memória histórica recente e menos recente acerca da fecundidade do conceito de “Autogestão”, como horizonte maior a ser perseguido pelo mundo do Trabalho, enquanto Classe. Em seguida, tentamos contribuir com a atualização do conceito de Autogestão, de modo não apenas a distingui-lo de outros tais como Economia Solidária e Experiências Convencionais de Cooperativa, como também de reinseri-lo num contexto bem mais complexo do que o que tínhamos nos séculos XIX e XX. No terceiro momento dessas linhas, ousamos ensaiar, por meio de perguntas algumas pistas destinadas a fortalecer o alcance da autogestão social, como uma possiblidade fecunda de enfrentamento exitoso da barbárie capitalista, nos dias atuais.

Revisitando o conceito e algumas experiências de autogestão, no século passado

O modo capitalista de produção, como nenhum outro antes, comporta, em seu desenrolar histórico, diversos modos de processamento, que devem ser tomados na devida conta pelos protagonistas comprometidos com a construção (processual) de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal, trabalhados em harmonia com a dignidade do Planeta e toda a comunidade dos viventes.

Com tal perspectiva, é sempre útil (re)examinarmos, ainda que de passagem, alguns clássicos, a começar de Marx, acerca do que entendem como “Autogestão”. No caso de Marx, é conhecida sua defesa de autogoverno dos produtores.

Sabe-se que no primeiro esboço do livro O Capital, Marx distribuíra em 6 partes o livro, dentre as quais: a mercadoria, o dinheiro, a mais-valia e o Estado. Pelas circunstâncias concretas por ele enfrentadas, acabou limitando-se a apenas uma parte destes tópicos, ficando de fora outros, inclusive sua posição sistematizada sobre o Estado. A despeito de tal limitação, em sua obra de maturidade, é possível identificar elementos germinais do que Marx entendia característico de uma nova sociedade alternativa ao capitalismo, como é o caso de sua defesa de uma nova sociedade, caracterizando-a como livres associação dos produtores, o que implica o principal fundamento de auto-gestão social. A nova sociedade teria então, como característica fundamental um novo modo de produção como alternativa ao regime capitalista, à medida que caberia à associação de produtores definir o que produzir, como produzir para que e para quem produzir, de modo a ter horizonte o princípio de “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”. Resulta evidente que numa sociedade deste tipo, não há lugar para uma sociedade de classes, e, por conseguinte, também não para o Estado.

Também em sua fase mais avançada de produção, por volta de meados da década de 1870, em seu conhecido texto acerca do Programa de Gotha, Marx se mantinha e se manteve coerente com sua tese de autogestão, sob a forma de livre associação dos produtores ou de autogoverno dos produtores, ao reafirmar que o processo de libertação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores.
Na esteira de Marx, igualmente se põe Rosa Luxemburgo, revolucionária militante e exímia teórica. Em vários de seus textos, defende a autogestão social, entendendo-a como o coração da nova sociedade, de modo a não interferir apenas nos processos produtivos, mas de forma a envolver o conjunto das relações sociais. Para tanto, entendia como fundamental que a autogestão se fizesse de modo coerente, ao trabalhar objetivos e meios: não se trata de almejar determinado fim meritório, sem que os caminhos que a ele levassem também não fossem coerentes com os respectivos objetivos. De tal modo arraigado Rosa Luxemburgo se manteve a tais princípios, que não hesitou em travar com diversos seguimentos de revolucionários russos, inclusive com o próprio Lênin, acalorados debates. O mesmo fazendo quando enfrentou experiências de autogestão em outros países, inclusive na Alemanha.
A pesquisadora Isabel Loureiro, a este respeito, se tem destacado pela sua densa contribuição, ao focar a relevância do legado de Rosa Luxemburgo, inclusive por meio de sua tese de dourado a ela consagrada (cf. por exemplo: https://www.youtube.com/watch?v=1vbAFQMlLxk e https://www.youtube.com/watch?v=HPqZoGFbRb4).  No que toca especificamente ao desafio da autogestão, Rosa Luxemburgo se destaca fortemente pela fecundidade e pela coerência de suas posições. Portadora de um acúmulo teórico do legado de Marx, ela de forma coerente, passa a enfrentar este desafio, seja do ponto de vista teórico, seja do ponto de vista prático, enquanto militante revolucionária, atuando ora na Polônia, ora na Alemanha. Já antes da Revolução Russa de 1917, Rosa Luxemburgo contribui com alguns de seus textos, nessa direção. A Revolução de 1917 vai proporcionar a Rosa Luxemburgo acompanhar mais de perto tal processo, de tal modo a sentir-se capaz de dialogar com Lênin, de modo crítico, chamando a atenção para o risco de burocratização do modo de se gerir aquela sociedade.



Rememorando criticamente experiências de autogestão...
Desde a Comuna de Paris, em 1871, passaram a ser ensaiadas diversas experiências de autogestão social, em várias partes do mundo, em especial no mundo europeu: nos primeiros anos da Revolução Russa, na Espanha, na Alemanha, na Polônia...Em cada uma destas experiências, tanto o processo quanto os resultados se revelaram diferenciados, a despeito dos pontos comuns. Aqui vamos destacar a experiência de autogestão que teve lugar na ex-Iugoslávia, desde o final da II Guerra Mundial, estendendo-se aos inícios dos anos 1990. Experiência da qual se tem ressaltado a figura de Tito, por várias razões.  Nas linhas que seguem, vamos tratar do caso, com apoio na tese recém-elaborada por Sinuê Neckel, intitulada "O labirinto da Autogestão: caminhos e bloqueios da experiência de Socialismo, na Iugoslávia". Passado mais de século e meio de experiências de autogestão, quase sempre - e não me parece a justo título - confundidas com experiências socialistas, cumpre às novas gerações de militantes revolucionários - mulheres e homens - seguirem avaliando criticamente tais processos, em vista de uma merecida correção de rumo e caminhos, em tantos casos, bem como com vistas a uma necessária atualização conceitual e sobretudo experiencial desses processos.

No complexo cenário das experiências de Socialismo, o caso da ex-Iuguslávia desponta como algo excêntrico, pela relativa atipicidade intentada da experiência autogestionária. Desenvolvida durante as décadas que se situam entre o final da Segunda Guerra Mundial e inícios dos anos 1990, a experiência socialista da/na Iugoslávia de Tito revela-se como um desafiante "labirinto", a suscitar no complexo espectro dos teóricos marxistas um debate incessante. 
Ao revisitarmos a desafiante experiência de autogestão da/na Iugoslávia, podemos observar caminhos e descaminhos ali percorridos, com ganhos extraordinários, o ponto de vista da Classe Trabalhadora; acompanhados de “bloqueios” contundentes, quase sempre ligados aos vícios do Antigo Regime que, a despeito da nova experiência, acabaram introjetados por seus protagonistas.
Um dos pontos mais desafiadores da experiência de autogestão na/da Iugoslávia foi lidar com as pronunciadas diferenças étnicas de uma região composta por uma meia dúzia de etnias, constituindo um verdadeiro labirinto para uma figura como Tito, sob cuja liderança recaía a responsabilidade maior de costurar tais diferenças, mediante critérios republicanos de uma Democracia de base, ancorada na Autogestão, exercitada para além dos ambientes fabris. Outros desafios de monta cercaram este período. ´Foi o caso de manter uma postura de autonomia em relação, não apenas à URSS, como também aos sedutores acenos das forças ocidentais, o que exigiu uma capacidade rara de postura ético-política das lideranças de base. Além disto, tal experiência despontava como uma ameaça grave tanto aos regimes de orientação stalinista quanto aos modelos de orientação capitalista.  Situação que alude ao desafio de se ousar caminhar sobre um fio de navalha.  O fato é que, a despeito de suas insuficiências - todas elas tendo a ver com situações influenciadas por valores e práticas burocráticas, a serviço de interesses de pequenos grupos - , há de se cumprimentar os protagonistas desta empreitada por tantos frutos conquistados (vale a pena conferir, também a este respeito, a tese do Prof. Sinuê Neckel), disponibilizada em PDF, à qual se pode ter acesso por meio do "link":


Que lições podem ser extraídas dessas e outras experiências de Autogestão?

Tomamos a liberdade de ousar compartilhar, em forma de perguntas, algumas inquietações de natureza avaliativo-prospectiva, com o propósito de alimentar ou de realimentar o debate, com vistas a uma necessária atualização, de modo a identificarmos e retificar descaminhos, e sobretudo de adaptar tais processos e ensaios à realidade contemporânea.
- Mesmo com o cuidado de retificar conceitos, sob os quais se têm dado experiências socialistas - cerca de uma centena -, será mesmo adequado equipararmos os conceitos de Socialismo e Autogestão? 
-Até que ponto tal confusão ou mesmo tal intimidade corresponde ao potencial transformador de cada um desses conceitos e, sobretudo, de suas respectivas experiências?
- Por exemplo, o lugar que o Estado ocupa no Socialismo será mesmo idêntico ao que ele deve ocupar - se é que deve ocupar algum... - nas experiências de Autogestão?
- Será mesmo irrelevante diferenciar conceitos e experiências que tais?
- Sem prejuízo das atividades de resistência e das manifestações de rua, que compromisso se pode firmar, no sentido de fazer chegar às bases, como um processo de formação contínua, a necessidade e urgência de se consagrar tempo e espaços para uma revisitação acurada de experiências que tais?

- Como assumir nossa vasta agenda de trabalhos de base, inclusive com o cultivo de nossas propostas no campo das atividades agroecológicas, de modo a semear e cultivar, nelas e por elas, sementes de autogestão, de modo a não confundi-las com programas convencionais de cooperação, desenvolvidos de forma pouco crítica correndo o risco de serem cooptadas pelo Estado e pelo Mercado capitalistas:

- Como articular o grito das ruas ao trabalho rotineiro e continuado do exercício teórico, de contínua aprendizagem e de exercício da memória histórica?

João Pessoa, 14 de junho de 2019.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

PAPA FRANCISCO NA ROMÊNIA: anotações em torno de sua trigésima viagem apostólica


PAPA FRANCISCO NA ROMÊNIA: anotações em torno de sua trigésima viagem apostólica

Alder Júlio Ferreira Calado

Encerrou-se ontem, 02 de junho, a visita apostólica feita pelo Papa Francisco, desta vez à terra e à gente da Romênia. Que traços gerais compõem o perfil da terra e da gente romenas: O que os Romenos esperam do Bispo de Roma? Qual o sentido de sua visita: Que propósitos inspiraram o Bispo de Roma, neste encontro com aquela gente? Que sentido tem esta visita, no espectro geral de sua missão: Eis algumas questões que nos provocam, nas linhas que seguem. Começamos por situar, brevemente, alguns traços gerais da Romênia atual e de seu povo. Em seguida, ocupamo-nos do principal foco da visita do Bispo de Roma, acentuando especialmente aspectos da memória histórica daquela terra e daquela gente; seu propósito de visitar aquele povo, enquanto um peregrino em busca de outros peregrinos e peregrinas, pelos caminhos do Reino de Deus; encorajar a todos no sentido de renovação do compromisso com as causas da Tradição de Jesus.

Alguns aspectos da Romênia atual

Terra e gente de uma história multissecular, a Romênia ocupa um território de pouco mais de 238 mil Km2 - pouco menor do que o Estado de São Paulo -, tendo uma população de cerca de 22 milhões de habitantes. Povo, território e cultura de uma longa tradição. O Romeno é uma das línguas filhas diretas do Latim, a exemplo do Italiano, do Espanhol, do Francês, do Português. Do ponto de vista das confissões religiosas, os cristãos formam expressiva maioria, sendo que em torno de 87 por cento se confessam cristãos ortodoxos, enquanto os católicos somam em torno de 7 por cento, completando-se a população por pessoas de outras confissões cristãs (protestantes), muçulmanos, Judeus, além de Agnósticos. Cumpre salientar, no espectro da população romena a presença do povo cigano. Dispersa pelo mundo, inclusive no Brasil e no Nordeste (na Paraíba, é significativa a população de Ciganos e Ciganas, em especial na região de Souza). Trata-se de um povo marcado por ser alvo de muitas discriminações, aspecto a que o Papa Francisco também chamou a atenção.

Do ponto de vista econômico, a população romena constitui uma das mais pobres da Europa, convivendo com uma desigualdade social das mais acentuadas. Em escala mundial, também a Romênia é conhecida por suas lendas, tais como a da existência de lobisomens e vampiros...

Outra marca importante da Romênia se deve à sua condição um tanto paradoxal: de um lado, abriga distintas minorias étnicas em seu território (terra de imigração); por outro lado, centenas de milhares de seus cidadãos e cidadãs se vêem obrigados a migrar - em especial, para países tais como Alemanha, Itália, Espanha -, em busca de oportunidades de vida e de trabalho, (país de emigração). Vale ressaltar, como o fez o próprio Papa Francisco, um aspecto importante desta situação: a notável contribuição que os Romenos emigrantes asseguram aos seus, quando do exterior, enviam aos familiares e compatriotas parte do que conseguem em seu trabalho, no exterior.

A quem se dá ao trabalho de analisar o conjunto das falas expressas, por ocasião de suas visitas apostólicas - também nesta, à Romênia -, não escapa a percepção de um traço especial: a do fio condutor que atravessa seus discursos e suas práticas. No caso da Romênia, mesmo dirigindo-se a públicos diversos, não se passa despercebido esse fio, que atravessa suas falas. Fio condutor que se pode resumir, no caso da visita apostólica à Romênia, nos seguintes pontos:
- vai como peregrino irmão, em busca de outros irmãos e irmãs, com o propósito de construir juntos a unidade, na diversidade, conforme os critérios característicos do Reino de Deus e sua justiça;
- Vai como um caminheiro, em busca de outros caminheiros e caminheiras, disposto a exercitar com eles, com elas a memória da Tradição de Jesus;
- Vai como um irmão, na perspectiva da “fraternidade de sangue”, disposto a animar a caminhada de compromisso com a causa libertadora dos pobres, dos desvalidos, dos últimos.

Isto se faz presente, com efeito, desde seu primeiro discurso de saudação ao Presidente Klaus Iohannis e à Primeira Ministro Viorica Dăncilă, bem como ao Patriarca Daniel e outras autoridades civis e religiosas e a tantos outros membros daquela sociedade. Já em cada saudação a cada um dos presentes, o Bispo de Roma encontra um jeito sutil de antecipar algum elemento de boa nova: o encanto pela beleza do país e sua história; o compartilhar das alegrias por importantes conquistas; a expressão de sua reverência à memória dos protagonistas da fraternidade de sangue (uma referência aos mártires do país); entre outros elementos.


Sensível à fala do Presidente Iohannis (como noutra ocasião, também à fala do Patriarca Daniel), mostra-se solidário com o sentimento de libertação de um regime opressivo, que fez o povo empobrecido e sugou-lhe as energias criativas. Mas, não se detém neste passado sombrio. Reconhece profeticamente que o período que se seguiu à reconquista da soberania nacional, ao devolver ao povo romeno o protagonismo de sua história, e a despeito de outras conquistas, também apresenta graves problemas: o crescimento de desigualdades sociais, o grave problema das migrações, ou melhor dito, do tratamento dado pelas políticas estatais, em âmbito continental, a expansão do individualismo, do consumismo, a desestruturação da família, o desrespeito a tantas condições necessárias para o pleno exercício de uma cidadania proativa.

No que toca especificamente ao drama da migração, o Bispo de Roma indo sempre à contracorrente dos discursos hegemônicos, insiste em destacar as positividades trazidas pelos imigrantes: contribuem para o enriquecimento dos lugares que os recebem; mostram-se solidários à sua terra e sua gente, ao remeterem para os seus, parte de seus vencimentos; contribuem para o enriquecimento econômico cultural, na perspectiva de um mundo sem fronteiras, um mundo de irmãos e irmãs, não de concorrentes; um mundo em que floresçam relações de respeito e de complementaridade, e não um mundo de ódio e preconceitos.

O discurso proferido pelo Papa Francisco, de saudação ao Patriarca Daniel e aos demais presentes membros da Igreja Ortodoxa da Romênia, constitui uma síntese preciosa do sentido anunciado e cumprido desta visita apostólica à terra e à gente romena. Vale a pena dele destacarmos aspectos mais fortes, que podem ser conferidos acessando o "link" que segue:

Em breves palavras...
Conforme prometido no título que encima este texto, nossa intenção foi, não tanto de relatar, mas de compartilhar um comentário a partir da recente viagem do Papa Francisco, em sua trigésima viagem apostólica, desta vez feita à terra e à gente romenas. A título de síntese, o que merece especial ênfase?  Ainda que isto não esteja explicitado em detalhes, vale a pena ressaltar o empenho na construção da unidade dos cristãos e cristãs, através do exercício de um Ecumenismo de Base. Trata-se de um objetivo perseguido pelo Bispo de Roma, durante esses seis anos de exercício da função petrina. Unidade dos cristãos como sinal de um objetivo ainda maior: o de construir pontes em vista da unidade de todas as gentes. De unidade, não de uniformidade, menos ainda hierarquizada. Neste sentido, é possível entrever em meio às intensas atividades de Francisco, Bispo de Roma, seu empenho de unidade de todo o gênero humano, em harmonia com o Planeta, nossa "Casa Comum".
Os trabalhos pela unidade dos cristãos e cristãs emerge, pois, como um primeiro passo capaz de alavancar o objetivo maior.
No caso específico de esforços pela unidade dos cristãos, convém assinalar tanto os esforços pela unidade entre as diversas expressões do Catolicismo, como também da unidade com os irmãos e irmãs das Igrejas Reformadas. Um rápido olhar para seu calendário de viagens e visitas é suficiente para comprovar seu incansável intento de suscitar e fortalecer o diálogo com as mais diversas figuras dessas distintas expressões da fé cristã. Importante não menos assinalar que não se trata de qualquer estratégia com o menor traço de hegemonia. Disto dão provas diversas atitudes suas, para além de seus pronunciamentos e conversas, sempre a insistir no que se conhece como Ecumenismo de Base, isto é, exercitado, não tanto em vista de inquietações de caráter doutrinário, mas sobretudo a partir do clamor da Mãe Terra e dos humanos junto com os demais viventes.
Sua recente visita à Romênia também vai nesse sentido. As dezenas de visitas feitas pelo Bispo de Roma, nos diferentes continentes, logram resultados distintos: em alguns casos (cito, por exemplo, o relativo à visita feita à Bulgária, em que os impactos no plano da missão e do Ecumenismo parecem ter sido mais intensos e mais frutuosos). Mas, considerando que o verdadeiro animador desses encontros é o Espírito Santo, há de se dar o devido desconto nesta avaliação feita com olhos humanos.
Ao exercitar o Ecumenismo de Base, sempre a serviço do Reino de Deus e sua justiça, cumpre destacar o lugar que aí ocupam os pobres, os descartados, os desvalidos, de vários matizes (migrantes, populações marginalizadas, povos empobrecidos, crianças, adolescentes, jovens, pessoas idosas, mulheres, pessoas discriminadas por conta de sua orientação sexual, enfim, um amplo leque de segmentos das classes populares).
No caso de sua visita à Romênia, a tal compromisso ecumênico estiveram associados os objetivos que priorizou: exercitar a memória da Tradição de Jesus; alimentar-se desta memória pelos caminhos da história, inclusive da terra e da gente romenas; dar passos efetivos, na esperança e na luta por um horizonte alternativo a um sistema produtor de morte. Um acompanhamento mais atento de suas várias falas e gestos há de ajudar, nesse sentido. E é isto que destacamos como o ponto alto desta sua trigésima visita apostólica.

João Pessoa, 3 de junho de 2019.