segunda-feira, 24 de setembro de 2018

TECENDO FIOS DE NOVA TEIA: notas sobre o IX Encontro Nacional da Raiz Movimento Cidadanista


TECENDO FIOS DE NOVA TEIA: notas sobre o IX Encontro Nacional da Raiz Movimento Cidadanista

Alder Júlio Ferreira Calado

Tive a alegria de participar, como convidado, da IX Teia (assim é que se chamam os encontros nacionais deste movimento), realizada, de 17 a 19/08/2018, em Arcoverde - PE, da recém criada Raiz Movimento Cidadanista (doravante chamarei apenas de Raiz). Trata-se de uma iniciativa de uma organização de base, já presente em vários Estados de todas as regiões do País, surgida em 2015, cujas marcas centrais podem ser resumidas, ao meu ver nas seguintes:

- Forte aposta e empenho na tecedura de relações sociais alternativas ao modelo capitalista vigente;

- Cultivo de uma mística revolucionária alimentada pelo legado dos povos originários, de nossas raízes afro-brasileiras, do compromisso com a promoção da dignidade do Planeta, dos humanos e de toda a comunidade dos viventes;

- Compromisso com o ensaio de novos passos de superação da velha política, por meio da inserção e desenvolvimento de relações, junto as classes populares, com vistas à construção de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal.

Para se apreender melhor o perfil deste novo movimento popular, sugiro acessar sua própria página virtual: http://raiz.org.br/ http://raiz.org.br/pernambuco-1a-teia-regional-do-nordeste

Quanto ao perfil de seus protagonistas, a Raiz compõe-se de membros oriundos das lutas sociais do período precedente ao Golpe de Estado de 1964; de outros militantes – mulheres e homens -, provenientes da luta de resistência contra a ditadura civil-militar; e ainda outros, mais recentes, que seguem participando como militantes de esquerda, nos embates das últimas décadas. Ainda que tendo surgido, como movimento social popular, em 2015, desde então, seus organizadores e organizadoras já tiveram 9 encontros, chamados “Teias, em âmbito nacional”, realizados em diversas regiões do país, inclusive no Nordeste.

Tratamos de explicitar, a seguir, suas principais motivações e bandeiras de lutas. A raiz surge do empenho em manifestar seu compromisso mudancista, a partir do melhor legado protagonizado, em escala mundial, pelos mais diversos povos, inclusive daqueles de quem procedemos, de modo mais direto. Revela-se forte o compromisso de zelar nossas raízes identitárias com os povos originários. Neste sentido manifesta-se como referencial sua adesão ao paradigma do Bem Viver (cf, por exemplo: https://www.youtube.com/watch?v=h4yK2ugTvWQ), expressão das ricas experiências vividas pelos povos Andinos e da própria Amazônia, consistindo fundamentalmente na busca incessante de uma convivência simbiótica com a mãe natureza, com Pachamama. Mais do que uma motivação ou um propósito, a raiz trata de desenvolver, desde o cotidiano de seus militantes, práticas efetivas que apontem nessa direção. Articulada a estas dimensões, a Raiz também centra forças num enfrentamento do Estado, entendendo-o como instrumento auxiliar do Mercado Capitalista, por meio da imposição de políticas econômicas e sociais nocivas ao Planeta, aos humanos e a toda a comunidade dos viventes. Durante a IX Teia, também se tratou esta questão, no quadro geral de suas demais bandeiras prioritárias, que cuidarei de analisar, em seguida.

Compromisso com a dignidade do Planeta, dos humanos, e de toda a comunidade dos viventes

Na IX Teia, bem como nos encontros precedentes (cf. relatos à proposito de seus documentos fundantes e dos encontros precedentes), é tocante a ênfase que se dá ao sentimento de pertença de seus membros a Mãe-Terra, bem como aos povos originários e às comunidades quilombolas, tratados como referência maior e fonte de inspiração de suas lutas, no dia a dia. Percebe-se um empenho marcante de seus membros em se sentirem parte da Mãe Natureza, na defesa e promoção de sua dignidade. Mais que com compromisso internacionalista, a luta pelo Eco socialismo constitui uma de suas principais referências, à medida que se fortalece a convicção do altíssimo poder destrutivo, necrófilo, do modo de produção capitalista, que tudo tenta transformar em mercadoria, pelo que se tem mostrado verdadeira ameaça ao planeta, aos humanos e a toda a comunidade dos viventes.

Experiências articuladas, animadas pelo eixo principal de Luta: ousar passos em direção a uma nova sociedade, alternativa ao modelo capitalista

Na própria programação da IX Teia, percebe-se a inquietação permanente de seus protagonistas – mulheres e homens -, em se manterem atentos ao rumo que perseguem, bem como aos caminhos que levam a este rumo, a ser construído, desde já, a partir das relações do cotidiano e do leque de ações programáticas em curso. Destas, foram compartilhadas principalmente as seguintes:

- Relatos de experiências de convivência alternativa com o Semiárido. Aqui, foram apresentadas e discutidas várias iniciativas moleculares de membros da raiz, em várias regiões do País, especialmente no sertão nordestino. Para tanto, a título de exemplo remetemos a uma série de reportagens protagonizadas por José Artur Padilha  https://www.youtube.com/watch?v=CCb1xR485S8  https://www.youtube.com/watch?v=o39WZlQ0b-w https://www.youtube.com/watch?v=SWpuwVRpTHM

- Também, no cariri cearense, foram relatadas promissoras experiências de permacultura, iniciativas igualmente presentes no protagonismo do Serta (http://www.serta.org.br/inicial/)

- Ainda que de passagem foram igualmente mencionadas iniciativas moleculares, no campo das terapias naturalistas e no das terapias comunitárias integrativas.

Trata-se apenas de algumas ilustrações, de caráter molecular, capazes de acenar para a busca de alternatividade, sempre conscientes, seus protagonistas, de novo, de que são passos embrionários, mas portadores de sementes alternativas ao modelo hegemônico desde que devidamente articuladas a centenas de experiências similares desenvolvidas por outros sujeitos sociais, especialmente outros movimentos sociais populares, animados por projetos de sociedade alternativa ao modo de produção, ao modo de consumo  e ao modo de gestão societal característico do modelo capitalista. Convém, ao final destes registros, lembrar a importância de outros Movimentos Sócias Populares, no campo e na cidade, espalhados pelo Brasil, pelo continente e pelo mundo. Em outras ocasiões, já tivemos oportunidade de nos debruçar sobre alguns deles, à exemplo do MCP – Movimento das Comunidades Populares, que já tem meio século de caminhada (cf. http://textosdealdercalado.blogspot.com/2016/06/movimento-das-comunidades-populares-40.html?q=mcp


João Pessoa 24 de setembro de 2018.

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

UM REVOLUCIONÁRIO ENSINA PELO TESTEMUNHO: notas em torno do cap. IX - "Mestre de Vida" - do livro "Jesus, aproximação histórica", de autoria do teólogo José Antonio Pagola

UM REVOLUCIONÁRIO ENSINA PELO TESTEMUNHO: notas em torno do cap. IX - "Mestre de Vida" - do livro "Jesus, aproximação histórica", de autoria do teólogo José Antonio Pagola

Alder Júlio Ferreira Calado

O cap. IX - "Mestre de Vida" descreve, analisa e reflete sobre mais uma marca identitária da figura de Jesus de Nazaré, um revolucionário que ensina, quase sempre à contracorrente, pelo exemplo de sua vida. Neste capítulo, o autor do livro começa sublinhando que Jesus, além de ter sido reconhecido como "Curador da vida", "Poeta da Misericórdia", "Amigo dos Últimos" e outras títulos, também se manifesta como "Mestre de Vida", distinguindo-se profundamente dos guias de então, dos escribas e doutores da lei, à medida que não tratava de interpretar as centenas de preceitos da lei judaica, nem de referir-se a autoridades precedentes, mas aplicava-se em ensinar como quem tem autoridade. Autoridade que cuidava de cultivar por meio do que recolhia do Projeto do Pai, do Reino de Deus, uma proposta de profundo acolhimento e ternura para com os mais injustiçados, de todo tipo: as mulheres, os mendigos, os paralíticos, os surdos-mudos, os cegos, os marginalizados, os indesejáveis daquela sociedade. Destes Jesus fazia Sua grande prioridade: deles/delas se aproximou; curou-os, fez-se deles e delas acompanhar por onde andava, por aquelas aldeias da Galiléia; com eles/elas fazia refeição, compartilhava de suas alegrias, de suas tristezas, de seus sofrimentos, reacendendo neles e nelas as esperanças, graças à sua ação de compaixão, de ternura, chamando os sempre à conversão. Havia, porém, quem estranhasse sua atitude de tal proximidade com pessoas de má fama. Ele, então, responde: "Não são os sãos que precisam de médico, são os enfermos." Jesus ensinava com gestos, palavras, testemunhos.

Sempre fiel ao Projeto do Reino de Deus, de cujos valores se alimentava pela sua comunhão com o Pai e pela inspiração do sopro divino, cuidava de testemunhar, por onde passava, fazendo bem, e seguido por homens e mulheres, em sua dinâmica de Missionário itinerante. Despontava como um guia que destoava, a olhos vistos, dos mestres convencionais do seu tempo – os doutores da lei, os escribas... Estes recolhiam sua autoridade dos textos sagrados, que bem manipulava, conforme suas conveniências. Esta era sua grande estratégia, que lhes permitia manter e ampliar seu prestígio e seu domínio sobre as consciências do povo de seu tempo. Em meio a uma população em sua grande maioria, desprovida dos códigos de leitura e escrita, tais mestres reinavam incólumes, à medida que monopolizavam os textos sagrados e sua respectiva interpretação, impondo centenas de preceitos e obrigações, um verdadeiro fardo para o cotidiano de sua gente, sem que eles fossem capazes de mover um só dedo para aliviar este fardo. Tratava-se de uma estrutura social e cultural que, privilegiando um pequeno percentual daquela população – grandes proprietários de terra, a casta sacerdotal, os beneficiários romanos e locais dos pesados imposto que faziam recair nos ombros dos “debaixo” -, mantendo e buscando perpetuar tal “status quo”.

É neste contexto que desponta um revolucionário desconcertante, sobre vários aspectos:

- Não hauria Sua autoridade do controle da lei, nem dos valores tradicionais então dominantes; em palavras, mas sobretudo em gestos, rompia com os fundamentos daquela tradição, à medida que exercitava sua solidariedade radical com os explorados, os oprimidos, os marginalizados de seu tempo, deles e delas se aproximando, fazendo com eles e elas refeições públicas, curando-os, dirigindo-lhes palavras que recaíam direto em seu coração e em sua mente, ao mesmo tempo em que cuidava de denunciar as graves injustiças daquela sociedade, apontando suas raízes econômicas, políticas e culturais, sem deixar de acusar os principais responsáveis (cf. Mt 23).

O autor do livro, como de hábito nos faz passear por uma série de fontes bíblicas (vétero-testamentárias e neotestamentárias), além de outras fontes históricas ou literárias, descrevendo e refletindo densos traços do perfil de Jesus.

Diferentemente da tradição vétero-testamentária, inclusive parte expressiva dos Salmos, que apresentava Deus como um vingador, como alguém que vinha para eliminar os opressores, Jesus, por seu lado, descrito como “Mestre” de vida, cheio de compaixão e de ternura à desapontar a raigadas expetativas de quem O imaginava um Messias vingador, empenhado em mudar o mundo pelo emprego da violência contra os maus, pela bala ou pela faca. Aqui, nos vem à lembrança um canto ainda hoje executado, por ocasião da Semana Santa, em várias comunidades: “eles queriam um grande Rei/que fosse forte e dominador/e por isso não creram nelE/e mataram o Salvador.”. Diferente deste perfil, Jesus se apresentava como um revolucionário movido pela compaixão e solidariedade com todos os que viviam sob o peso da opressão, da exploração e da marginalização, ao mesmo tempo em que demonstrava uma atitude de não se pagar o mal com o mal, no que trouxe surpresa e até decepção para muitos que O admirava, pois não entendiam como seguir a recomendação de Jesus, de se “amar os inimigos e rezar por eles”, recusando a proposta do “Mestre de vida”, de preferir tentar tocar o coração também dos maus, até porque, justamente por ser “Mestre de vida”, Jesus conhecia profundamente nossa condição humana, estava côncio de que também nós, que nos julgamos “bons”, carregamos nossas maldades e nossas misérias, no sentir, no pensar e no agir, razão por que aos Seus discípulos e discípulas, de ontem e de hoje, Jesus advertia: “Não julguem, para não serem julgados”, enquanto no Pai Nosso, Ele nos ensina a orar: "Perdoai as nossas ofensas, como nós perdoamos a quem nos tem ofendido.”

Este ensinamento de Jesus sacode o conjunto de Seus ouvintes, a começar pelos Seus discípulos mais próximos: como, assim, amar os inimigos, quando a Lei só nos mandava amar o próximo? Um escândalo! E não será o último. Outros virão. É o caso da estranha relativização que Jesus expressava, em gestos e palavras, em relação à rigidez do código de purificação, cegamente seguido pelos observadores da Lei. Há, com efeito, uma gama de episódios relatados nos textos evangélicos, a indicarem, da parte de Jesus, uma postura crítica, sob vários aspectos:
- Ora a relativizar os critérios de conduta então dominantes, e tendentes a absolutizar os códigos de purificação: não é o entra, mas o que sai do interior da pessoa, que caracteriza a sanidade do seu sentir, do seu pensar, do seu agir;
- ora a contestar a atitude daqueles que o acusam de andar com, e fazer-se rodear, inclusive em refeições, de gente de má fama: Jesus dá mostras evidentes de que, de um lado, são os enfermos que precisam de quem os cure, e, de outro lado, de que é Sua bondade que contagia os que O rodeiam, e não os malfeitos dos que Ele acolhe, com ternura e compaixão de Pastor, que O contaminam...;
- ora cuidando de desmascarar, com sua iracúndia profética, atitudes hipócritas.

 A marca revolucionária inaugurada por Jesus, por outro lado, não se exaure em suas reprimendas contra toda ordem estabelecida de exploração, de dominação, de marginalização, mas sobretudo em Suas atitudes e palavras prenhes de alternatividade, reveladoras da Proposta do Reino de Deus e Sua justiça.  Daí as reiteradas passagens evangélicas em que faz questão de acentuar o que é DECISIVO, na Proposta do "Mestre de Vida": o Amor, a Compaixão, tornados práticas efetivas, para bem além de palavras e discursos jogados ao vento. Com efeito, de que valeria o discurso doutrinário, elaborado com as mais refinadas técnicas da retórica ou dos sedutores procedimentos de "Marketing", ante, por exemplo, o episódio de assalto enfrentado pelo samaritano, que, diferentemente da casta sacerdotal e dos homens da Lei, cuida de socorrer o ferido, com práticas efetivas, de quem são provas os cerca de 8 verbos utilizados no relato deste episódio.

Destacamos, neste capítulo, as atitudes revolucionárias de Jesus de Nazaré, mostradas em gestos, palavras e testemunhos desconcertantes, não apenas para a sociedade daquele tempo, mas também para as sociedades atuais, inclusive ao interno das Igrejas Cristãs, também estas tentadas a rejeitar os ensinamentos fundamentais do “Mestre de vida”...

João Pessoa, 19 de setembro de 2018.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

UM JOVEM NOS INTERPELA, DESDE AS ENTRANHAS DO NOSSO SER SOCIAL: revisitando os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, de Karl Marx


UM JOVEM NOS INTERPELA, DESDE AS ENTRANHAS DO NOSSO SER SOCIAL: revisitando os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, de Karl Marx


Alder Júlio Ferreira Calado

Também neste ano de 2018, coincidindo com as comemorações dos 200 anos do natalício de Karl Marx, este continua a despertar fortes interesses, por toda parte, de um lado,  provoca  incessantes frustrações às vãs expectativas dos que se têm empenhado em seu definitivo silenciamento (quantas vezes Marx já foi sepultado! Que defunto teimoso!), por outro lado, também não cessam as vozes daquelas e daqueles que o reconhecem atual, fecundo, vivente, razão por que se põem a revisitá-lo, buscando atualizá-lo, diante de aspectos e fatos novos e desafios da contemporaneidade. E, ao revisitá-lo, perguntam-se:

- O que levaria alguém de classe média, a aceitar viver na penúria quase ao longo de sua vida com graves repercussões sobre a própria família (3 de seus filhos morreram, na penúria), por assumir tão radicalmente por décadas a fio, o compromisso de ajudar a desvendar as profundas raízes socioeconômicas e culturais em que vive mergulhada a humanidade, sobre o peso do modo de produção capitalista?
- O que levaria a alguém a manter-se fiel ao projeto de investigação das raízes perversas deste sistema, ocupando-se, por toda vida, em pesquisar suas causas, enfrentando toda sorte de adversidades (perseguições, sucessivos exílios, tratado como apátrida)?
- Têm ou não fundamento máximas de sua escolha, tais como: “Nihil humani a me alienum puto” – “Nada do que é humano me é estranho”; “De omnibus dubitandum” – “Devemos duvidar de tudo”?
- O que move alguém, ao longo do seu labor investigativo, a manter-se contínuo observador e leitor assíduo de uma infinidade de autores, clássicos e contemporâneos, de todas as correntes de pensamento, e referências dos mais diversos campos de saberes, do que é prova a imensa lista de notas que produziu, enquanto redigia milhares de páginas ao longo de sua vida?
- E o quê dizer de sua vasta obra, parte da qual ainda nem veio a público e que tantos insistem em condenar, sem sequer tê-la lido?
Aqui destacamos apenas uma dessas obras, produzida em sua juventude: “Os Manuscritos Econômico- Filosóficos de 1844”. Intrigante é percebermos que tal obra só tenha vindo à público, em 1932, graças ao trabalho de uma equipe de pesquisadores de alto nível intelectual, da qual fazia parte G. Lukács. Fato que se dá não apenas em relação a esta obra.  Há, com efeito, escritos vários da lavra de Marx ainda por virem a público. Digno de reconhecimento, a este respeito, tem sido o empenho hercúleo de uma equipe de pesquisadores, em publicar a íntegra das obras de Marx e Engels, iniciativa conhecida pela sigla MEGA (“Marx unt Engels Gesamtausgabe” – Edição Completa de Marx e Engels, cf. https://www.youtube.com/watch?v=d1SngcUKD8M).

A propósito especificamente de seu empenho em exercitar ampla interlocução com autores de vários tempos e lugares, e de distintas correntes de pensamento, convém sublinhar o vasto espectro de clássicos e contemporâneos, lidos e anotados por Marx. Seu interesse de observador perspicaz, vai dos antigos filósofos gregos – não é à-toa sua escolha temática de Demócrito e Epicuro como referências de sua tese doutoral - , passando por poetas latinos (uma de suas máximas preferidas ele extrai de Terêncio), por figuras paradigmáticas, como Shakespeare (ver, por exemplo, como aparece nos “Manuscritos”, emblemática citação sobre o dinheiro, presente na tragédia Shakespeariana “Timão de Atenas”), por figuras exponenciais da literatura francesa, até à sua atitude de decompor com rigor científico obras de clássicos da economia, tais como Adam Smith, David Ricardo, Jean Baptiste Say.

Impactante, contudo, foi e tem sido polêmica a recepção dos “Manuscritos de 1844”, em várias partes do mundo, de um lado alguns de seus críticos, à exemplo de Louis Althusser, (cf. “Pour Marx”) avaliando-o como um escrito sem muito a contribuir com o legado marxiano; outros, por outro lado – e não são poucos – a saudarem com entusiasmo a densa contribuição do Jovem Marx. Entre estes últimos, podem ser destacadas figuras tais como: Henri Lefebvre (segundo Amdré Tosel “ele foi um dos primeiros a dar importância aos Manuscritos de 1844, a sublinhar a função central da práxis, e a da teoria da alienação”), Jean Paul Sartre (confira “Siuations”- materialisme et revolution) Marcuse (cf. “Los manuscritos econômicos-filosoficos de Marx: nuevas fonte para la interpretacion de los fundamentos del materialismo histórico”), Michael Lowy (cf.“ A teoria da revolução no jovem Marx”, focando o conjunto da produção do jovem Marx), István Mészáros, (cf. ‘A educação em Mészáros: trabalho, alienação e emancipação, Erich Fromm (cf. “O conceito marxista de homem”), Perry Anderson (cf. “Considerações sobre o marxismo ocidental”), entre outros.

Uma leitura mais cuidadosa dos manuscritos econômicos filosóficos de 1844, de autoria de Karl Marx, permite vislumbrar a genialidade do autor, já aos seus 26 anos. Os conceitos aí desenvolvidos constituem um atestado do equívoco reiteradamente cometido, de se pretender estabelecer um muro intransponível entre o jovem Marx e o Marx maduro. Uma leitura igualmente atenta das obras mais tardias de Marx, inclusive “O Capital”, também permite conferir uma linha de continuidade (ainda que comportando alguma descontinuidade pontual) entre o mesmo autor dos “Manuscritos” e suas obras mais tardias. Certa vez, questionado acerca da continuidade ou descontinuidade de sua obra, o próprio Marx expressa uma autoavaliação de sua obra, assumindo-a como um “Tout artistique”, isto é, assim como não faz sentido examinar uma obra de arte aos pedaços decompondo-a em partes estanques e desconexas, também não faz sentido não se reconhecer o caráter conectivo de sua obra. Nesse sentido, ajuda-nos a entender tal linha de continuidade, mais do que uma aposta em meros resultados uma atenção acurada ao processo de pesquisa a que Marx se entregou, durante décadas a fio.

Outro aspecto impactante com que saímos da leitura dos manuscritos, é a verificação de sua forte atualidade, pelo menos em relação a conceitos-chave ali desenvolvidos. O objetivo destas linhas é ressaltar nos manuscritos marxianos de 1844, vários traços de intrigante continuidade e vigência, no atual cenário capitalista, de crescente globalização. Para tanto, cuidamos de destacar várias passagens que julgamos mais significativas e portadoras de atualidade, confrontando diversas passagens dos “Manuscritos” com elementos conjunturais e estruturais do momento atual.  Da vasta gama de conceitos tratados por Marx, nos Manuscritos de 1844, elegemos focar apenas quatro: “Trabalho”, “Alienação”, “Ser Social” e “Dinheiro.

No modo de produção capitalista, para o trabalhador, o que significa o trabalho?  

No espectro da obra geral de Marx, convém ter sempre presente, antes de tudo, a centralidade do conceito “Trabalho”. E, antes mesmo de nela assumir uma conotação negativa, cumpre destacar sua profunda positividade. Em Marx, o trabalho corresponde à marca principal do Ser humano, à medida que por esta atividade, ele próprio vai se fazendo, vai auto-organizando-se, seja enquanto individuo seja como partícipe do gênero humano. Trata-se aqui de um contínuo exercício de “auto-poiêsis”. No caso dos “Manuscritos” e demais obras, Marx restringe-se analisar o “Trabalho”, tal como exercido no modo de produção capitalista.
 Em se tratando, no caso, de relações sociais no horizonte de uma sociedade de classes, e mais precisamente, numa sociabilidade capitalista, bem diversas passam a ser as características do Trabalho, como teremos oportunidade de sublinhar, a partir do próprio texto dos “Manuscritos”. Comecemos por uma longa, mas bem eloquente citação:

“A economia Política oculta a alienação na natureza do trabalho por não examinar a relação direta entre o trabalhador (trabalho) e a produção. Por certo, o trabalho humano produz maravilhas para os ricos, mas produz privação para o trabalhador. Ele produz palácios, porém choupanas é o que toca ao trabalhador. Ele produz beleza, porém para o trabalhador só fealdade. Ele substitui o trabalho humano por maquinas, mas atira alguns dos trabalhadores a um gênero bárbaro de trabalho e converte outros em máquinas. Ele produz inteligência, porém também estupidez e cretinice para os trabalhadores. (...) O que constitui a alienação do trabalho? Primeiramente, ser o trabalho externo ao trabalhador, não fazer parte de sua natureza, e por conseguinte, ele não se realizar em seu trabalho mas negar a si mesmo, ter um sentimento de sofrimento em vez de bem-estar, não desenvolver livremente suas energias mentais e físicas mas ficar fisicamente exausto e mentalmente deprimido. O trabalhador, portanto, só se sente à vontade em seu tempo de folga, enquanto no trabalho se sente contrafeito. Seu trabalho não é voluntário, porém imposto, é trabalho forçado. Ele não é a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio para satisfazer outras necessidades. Seu caráter alienado é claramente atestado pelo fato, de logo que não haja compulsão física ou outra qualquer, ser evitado como uma praga. O trabalho exteriorizado, trabalho em que o homem se aliena a si mesmo, é um trabalho de sacrifício próprio, de mortificação. Por fim, o caráter exteriorizado do trabalho para o trabalhador é demonstrado por não ser o trabalho dele mesmo mas trabalho para outrem, por no trabalho ele não se pertencer a si mesmo mas sim a outra pessoa.” (...)
“Chegamos à conclusão de que o homem (o trabalhador) só se sente livremente ativo em suas funções animais - comer, beber e procriar, ou no máximo também em sua residência e no seu próprio embelezamento - enquanto que em suas funções humanas se reduz a um animal. O animal se torna humano e o humano se torna animal. Comer, beber e procriar são, evidentemente, também funções genuinamente humanas. Mas, consideradas abstratamente, à parte do ambiente de outras atividades humanas, e convertidas em fins definitivos e exclusivos, são funções animais.”
Em toda sociedade de classes – e em grau maior, no modo de produção capitalista – não há horizonte de verdadeira realização do ser humano, na medida em que ele se sente desintegrado do/no seu trabalho. Ele se sente partido, cindido do que produz e da riqueza, fruto do seu trabalho. Sobre o processo de produção não exerce qualquer controle. Passa a ser mera peça na e para a engrenagem do Capital, como bem sugere aquela cena do filme de Chaplin, “Tempos Modernos”, em que o trabalhador se transforma em mero apertador de parafusos...

        Concepção de ser social nos “Manuscritos” de 1844

Sempre lembrados de que as categorias aqui priorizadas (“Trabalho”, “Ser social”, “Alienação”, “Dinheiro”) e outras tantas, no conjunto da obra de Marx, devem ser compreendidas em sua dinâmica interconexão, aqui destacamos, com um propósito didático, seu enfoque específico sobre a natureza social do ser humano. E me permito citar mais um trecho dos “Manuscritos”:
“Ainda quando realizo trabalho cientifico, etc., uma atividade que raramente posso conduzir em associação direta com outros homens, efetuo um ato social, por ser humano. Não é só o material de minha atividade - como a própria língua que o pensador utiliza - que me é dado como um produto social. Minha própria existência é uma atividade social. Por essa razão, o que eu próprio produzo, o faço para a sociedade, e com a consciência de agir como um ser social. ”

Com efeito, o trabalho, ainda quando realizado individualmente comporta uma dimensão coletiva, inclusive de caráter societal. Por esta razão a cisão imposta pelo modo de produção capitalista entre o trabalhador e o seu produto, implica necessariamente uma experiência de alienação. Por vezes, tal experiência se expressa de modo tão profundo, que o próprio trabalhador acaba “naturalizando” esta cisão como se observa, por exemplo, no conhecido poema de Baudelaire, “le spleen de Paris”, em que o autor descreve o comportamento de seres humanos que marcham, sob o peso de um monstro agarrado ao seu pescoço e oprimindo seu tórax, sem que o oprimido esboce reação, tal é o grau de introjeção que ele acaba naturalizando, e, perguntado para onde marcham, responde apenas “para um lugar qualquer”. Tal reação nos faz remeter ao conhecido filme “Queimada”, uma de cujas personagens, José Dolores, costumava dizer: “É melhor saber para onde ir, sem saber como, do que saber como e não saber para onde ir.”


É difícil ler-se passagens como estas, acerca do que Marx pôde observar, em 1844, e não conectá-las, de algum modo, com as condições atuais, de profunda opressão, a que seguem submetidos os trabalhadores e trabalhadoras. Com efeito, continua e se aprofunda o hiato ou fosso entre o trabalhador e sua atividade laboral, em verdade, o que hoje, se vive, por exemplo, no Brasil de Temer, sob sucessivas políticas de desmonte das condições de trabalho, ressoa, de modo clamoroso, o processo de alienação em curso, não apenas no Brasil, mas por todo mundo submetido ao modo de produção capitalista. A este respeito, desponta sugestivo o vídeo intitulado “de la servitude moderne” (cf. https://www.youtube.com/watch?v=VOfPUnCOUGI), bem como vale a pena revisitarmos o denso poema de Vinicius de Moraes intitulado “Operário em Construção”, do qual ressaltamos os seguintes versos: “Era ele que erguia casas Onde antes só havia chão. Como um pássaro sem asas Ele subia com as casas Que lhe brotavam da mão. Mas tudo desconhecia De sua grande missão: Não sabia, por exemplo Que a casa de um homem é um templo Um templo sem religião Como tampouco sabia Que a casa que ele fazia Sendo a sua liberdade Era a sua escravidão.”, “De fato, como podia Um operário em construção Compreender por que um tijolo Valia mais do que um pão? Tijolos ele empilhava Com pá, cimento e esquadria Quanto ao pão, ele o comia... Mas fosse comer tijolo! E assim o operário ia Com suor e com cimento Erguendo uma casa aqui Adiante um apartamento Além uma igreja, à frente Um quartel e uma prisão: Prisão de que sofreria Não fosse, eventualmente Um operário em construção.”, “À mesa, ao cortar o pão O operário foi tomado De uma súbita emoção Ao constatar assombrado Que tudo naquela mesa - Garrafa, prato, facão - Era ele quem os fazia Ele, um humilde operário, Um operário em construção. Olhou em torno: gamela Banco, enxerga, caldeirão Vidro, parede, janela Casa, cidade, nação! Tudo, tudo o que existia Era ele quem o fazia Ele, um humilde operário Um operário que sabia Exercer a profissão.”


Vale, ressaltar a força semântica das linguagens artísticas, inclusive da poesia, por meio da criação empreendida por Vinicius de Moraes, em seu poema acima mencionado, podemos entrever, por exemplo, relevantes passos de como se dá a passagem entre as condições de alienação e o processo de “Consciência de Classe”. Tudo começa pela experiência da brutal exploração sofrida pelo trabalhador, vítima do modo de produção capitalista. Toda via, mesmo nesta dolorosa experiência, o trabalhador “cava” um espaço de liberdade ao ousar pensar sobre sua condição e vai descobrindo quantas potencialidades se acham “escondidas” em sua atividade laboral. Passa, então, a rememorar uma gama de produtos que passam pelas suas mãos, e aí se vê como um produtor, ao mesmo tempo em que se revolta ao descobrir que o seu trabalho, ao oprimi-lo é fonte de enriquecimento para o patrão. Vai-se forjando, assim, sua Consciência de Classe, sobretudo quando também descobre que não é um trabalhador isolado, mas que, ao seu lado, há incontáveis outros trabalhadores e trabalhadoras com quem pode contar, na luta contra sua exploração individual e coletiva.

Partindo destas inspirações poéticas, oferecidas por Baudelaire e Vincius de Moraes, sigamos dialogando com o Jovem Marx, buscando conferir coincidências apreciáveis, inclusive no que toca as potencialidades humanas destruídas pela sociabilidade capitalista, a partir mesmo da deformação da capacidade perceptiva dos humanos, à medida que tal sistema alija os sentidos materiais e imateriais. Vejamos isto no seguinte trecho dos “Manuscritos”:
   
“Consideremos, a seguir, o aspecto subjetivo. O sentido musical do homem só é despertado pela música. A mais bela música não tem significado para o ouvido não-musical, não é um objeto para ele, porque meu objeto só pode ser a corroboração de uma de minhas próprias faculdades. Ele só pode existir para mim na medida em que minha faculdade existe por si mesma como capacidade subjetiva, porquanto o significado de um objeto para mim só se estende até onde o sentido se estende (só faz sentido para um sentido adequado). Por essa razão, os sentidos do homem social são diferentes dos do homem não-social. E só por intermédio da riqueza objetivamente desdobrada do ser humano que a riqueza da sensibilidade humana subjetiva (um ouvido musical, um olho sensível à beleza das formas, em suma, sentidos capazes de satisfação humana e que se confirmam como faculdades humanas) é cultivada ou criada. Pois não são apenas os cinco sentidos, mas igualmente os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (desejar, amar, etc.), em suma, a sensibilidade humana e o caráter humano dos sentidos, que só podem vingar através da existência de seu objeto, através da natureza humanizada. O cultivo dos cinco sentidos é a obra de toda a história anterior. O sentido subserviente às necessidades grosseiras só tem um significado restrito. Para um homem faminto, a forma humana de alimento não existe, mas apenas seu caráter abstrato como alimento. Poderia muito bem existir na mais tosca forma, e é impossível afirmar de que modo essa atividade de alimentar-se diferia da dos animais. O homem necessitado, assoberbado de cuidados, não é capaz de apreciar o mais belo espetáculo. O vendedor de minerais só vê seu valor comercial, não sua beleza ou suas características particulares; ele não possui senso mineralógico. Assim, a objetificação da essência humana tanto teórica quanto praticamente, é necessária para humanizar os sentidos humanos, e também para criar os sentidos humanos correspondentes a toda a riqueza do ser humano e natural. (...)
A resolução das contradições teóricas somente é possível através de meios práticos, somente através da energia prática do homem. Sua resolução não é, de forma alguma, portanto, apenas um problema de conhecimentos, mas um problema real da vida, que a filosofia foi incapaz de solucionar exatamente porque viu nele um problema puramente teórico. (...)

Na sociabilidade capitalista, o quê representa o Dinheiro, na constituição do “Ser social”?

Componente relevante da/na engrenagem capitalista, o dinheiro se manifesta como elemento (de)formador do ser humano, no contexto da sociabilidade capitalista. Nos “Manuscritos”, Marx também recorre a Shakespeare, para ilustrar as perversas potencialidades do dinheiro, nas sociedades de classes. Sabe-se, por outro lado, que bem antes de Shakespeare, tais propriedades do dinheiro foram demonstradas em versos e prosas. Na Idade Média – para não recuarmos mais no tempo, alguns movimentos populares, a exemplo dos Goliardos (cf., por ex., http://textosdealdercalado.blogspot.com/2018/06/movimentos-libertarios-do-segundo.htm ), já se mostravam mordazes em suas críticas aos miraculosos poderes do dinheiro. Em uma de suas poesias, assim se expressavam, a este respeito:
“O dinheiro reina, soberano, sobre a terra/ É admirado por reis e pelos grandes/ A ordem episcopal, venal, lhe rende homenagem/ O dinheiro é o juiz dos grandes concílios/ O dinheiro faz a guerra, e quando quer, obtém a paz/ O dinheiro é que faz os processos, para que sua conclusão dele dependa/ O dinheiro compra e vende tudo, dá e toma de volta o que deu/ (...) Graças ao dinheiro, o idiota se torna incontestável falante/ O dinheiro compra médicos, adquire amigos prestimosos/ (...) torna barato o que é caro, e suave o que é amargo.”
Havia, sim, um sentimento generalizado de protesto contra as injustiças quer das condições de trabalho, quer do significado do dinheiro, entre os trabalhadores e trabalhadoras medievais, como o lembra Le Goff:
“Nós estamos sempre a tecer panos de seda/ E nem por isso seremos melhor vestidas/ (...) Mas, os nossos salários enricam/ Aquele para quem nós trabalhamos.” 
 No caso específico dos “Manuscritos”, recorrendo a Shakespeare, Marx assim se expressa:
“Shakespeare ressalta particularmente duas propriedades do dinheiro:
(1) ele é a divindade visível, a transformação de todas as qualidades humanas e naturais em seus antônimos, a confusão e inversão universal das coisas; ele converte a incompatibilidade em fraternidade;
(2) ele é a meretriz universal, o alcoviteiro universal entre homens e nações.
O poder de inverter e confundir todos os atributos humanos e naturais, de levar os incompatíveis a confraternizarem, o poder divino do dinheiro reside em seu caráter como a vida espécie alienada e auto-alienadora do homem. Ele é a força alienada da humanidade.
O que sou incapaz de fazer como homem, e, pois, o que todas as minhas faculdades individuais são incapazes de fazer, me é possibilitado pelo dinheiro. O dinheiro, por conseguinte, transforma cada uma dessas faculdades em algo que ela não é, em seu antônimo.”(...)

E o que propõe o Jovem Marx?

Diante deste quadro dantesco alimentado pela lógica do Capital, o Jovem Marx acena para uma saída, que supõe como alternativa, a construção de uma nova sociedade, ou, em seus próprios termos:

“(3) O comunismo é a abolição positiva da propriedade privada, da auto-alienação humana e, pois, a verdadeira apropriação da natureza humana através do e para o homem. ele é, portanto, o retorno do homem a si mesmo como um ser social, isto é, realmente humano, um regresso completo e consciente que assimila toda a riqueza da evolução precedente. O comunismo como um naturalismo plenamente desenvolvido é humanismo e como humanismo plenamente desenvolvido é naturalismo. É a resolução definitiva do antagonismo entre o homem e a natureza, e entre o homem e seu semelhante. É a verdadeira solução do conflito entre existência e essência, entre objetificação e auto-afirmação, entre liberdade e necessidade, entre indivíduo e espécie. É a resposta ao enigma da História e tem conhecimento disso.”

Eis algumas notas despretensiosas a propósito dos Manuscritos de 1844. Não se trata – bem o sabemos – de engessar os escritos marxianos (nem de ninguém), mas de seguirmos buscando, a partir deles, pistas que nos ajudem a enfrentar melhor os desafios presentes.


João Pessoa, 10 de Setembro de 2018.


sábado, 8 de setembro de 2018

SUBVERTENDO AS RELAÇÕES MACHISTAS DO MODELO PATRIARCAL: resumo do capítulo 8º- "Amigo da Mulher" -, do livro "Jesus, aproximação histórica", de autoria do teólogo José Antonio Pagola

SUBVERTENDO AS RELAÇÕES MACHISTAS DO MODELO PATRIARCAL: resumo do capítulo 8º- "Amigo da Mulher" -, do livro "Jesus, aproximação histórica", de autoria do teólogo José Antonio Pagola

Alder Júlio Ferreira Calado
 
Milênios se passam, sem que tenham mudanças substantivas as relações sociais de opressão, a que seguem submetidas as mulheres, sob distintas formas. Aqui, ali, algumas conquistas, arrancadas a duras penas. Mesmo assim, isto não tem sido suficiente para fazer face às escabrosas estatísticas, relativas às mais distintas formas de violência contra as mulheres - dos altos índices de feminicídios, estupros, às desigualdades sócio-econômicas e culturais (desemprego, níveis discrepantes salariais pela mesma função exercida por homens e mulheres, postos de chefia, sem contar as múltiplas formas de discriminação, de que são vítimas no dia-a-dia...) E como se dava isto, no tempo de Jesus? Ele próprio como agia, frente a tais desigualdades? É o que nos oferece o teólogo José Antonio Pagola, no capítulo oitavo, do seu livro "Jesus, aproximação histórica", que vai a seguir resumido.

Este capítulo tem como título, "Amigos das Mulheres". O autor começa a situar o lugar social em que as mulheres se sentem inseridas:
- são as principais vítimas do código de pureza então reinante: por conta da menstruação (ou mesmo do parto, onde o sangue flui, interpretado como um elemento de impureza, as mulheres são avaliadas como seres dos quais se deve manter distância, para não se contaminar;
- são tratadas como propriedade dos homens, devendo-se limitar a servir a todas as suas vontades, inclusive as ligadas às relações sexuais;
- seu papel resumia-se em passarem da dominação do pai à dominação do marido;
- eram-lhes proibidos os espaços públicos: não podiam circular sozinhas ou acompanhadas por homens, nem participar de atos públicos, tinham limites até na participação na sinagoga;
- as que ousassem sair deste circuito social, eram postas à margem da sociedade, sendo empurradas para a prostituição ou a situações de profunda humilhação.
 
É nesse contexto, que Jesus aparece como subversivo deste código misógino. Aproxima-se das mulheres. É seguido por um número expressivo delas, em suas caminhadas pelas aldeias da Galileia. Rompe interditos consolidados: conversa com as mulheres, inclusive com aquelas que nem pertenciam ao seu povo (vide exemplo do seu famoso diálogo com a samaritana); mantém laços de profunda amizade, a exemplo das irmãs Marta e Maria; entretém com Maria Madalena uma profunda relação afetiva, a ponto de ter sido considerada "a apóstola dos apóstolos", tendo que enfrentar o ciúme dos apóstolos.

Entre as páginas 265 e 275, situam-se três tópicos:
- "Um olhar diferente", "Espaço de dominação masculina" e "Discípulas de Jesus". No primeiro destes três tópicos, "Um olhar diferente", o autor, sempre bem fundamentado em diferentes fontes evangélicas (e bíblicas, em geral), segue analisando a postura de Jesus, em relação às mulheres, num contexto sócio-histórico extremamente hostil à dignidade das mulheres. É precisamente aí, que o "profeta do Reino de Deus" se põe a testemunhar uma solidariedade explícita às vítimas do patriarcalismo dominante, no que não teme em afrontar corajosamente as regras do jogo daquela sociedade, ao mostrar-se claramente em defesa e na promoção da dignidade daquelas vítimas. E o faz, em sucessivas circunstâncias e por métodos revolucionários;
- quando a norma dominante era a de tomar-se distância das mulheres, por força dos interditos de impureza, Jesus ousava delas aproximar-se, com elas falar, curar as que Lhe suplicavam cura; 
- quando as leis proibiam que as mulheres fossem acompanhas ou acompanhassem grupos de homens, Jesus se mostrava por elas cercado, a contar-lhes histórias, a partir de uma linguagem com a qual elas se mostravam identificadas;
- enquanto os doutores da lei, no afã de transmitir suas normas - em nome de Deus - cuidavam de multiplicar preceitos e preconceitos, Jesus tratava de pronunciar parábolas, a partir da experiência própria das mulheres, como sucede em relação à do fermento na massa, a da alegria do achado da moeda,após a varredura da casa, etc.; 
- aliás, tal pedagogia era amplamente empregada por Jesus, não apenas em relação às mulheres. Ele a usava, também, com os homens, com os agricultores, lembra o autor, dando como exemplo a parábola do semeador e a da recomendação que Jesus lhes fazia, de que, em sua ida ao campo, contemplassem os lírios do campo, que não tecem, e aos quais o Pai veste com roupa de beleza superior à que vestia Salomão; e que contemplassem os pássaros, que não têm celeiro, e aos quais o Pai não deixa faltar alimento.

No tópico seguinte, "Um espaço sem dominação masculina", o autor descreve as condições concretas de dominação patriarcal, a que eram as mulheres submetidas, seja por seus pais, seja por seus maridos, e com o aval do conjunto da sociedade,com poucas exceções. Jesus, por Sua vez, segue rompendo normas, transgredindo práticas estabelecidas, e fazendo-o, por meio de práticas eficazes, que calavam profundamente os mais aferrados àquele sistema dominante. Por exemplo, no caso do episódio da mulher flagrada em adultério, e levada pra Jesus, para que Ele a condenasse publicamente à morte por apedrejamento, Ele não hesita em dizer aos acusadores: "Quem não tiver pecado, atire a primeira pedra", uma forma genial de desmascarar os acusadores, adúlteros e hipócritas...

No terceiro tópico - "Discípulas de Jesus" - , Pagola cuida de trazer à tona vários episódios dos Evangelhos, mostrando o protagonismo de várias mulheres, dentre as quais, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e José, Salomé, Marta e Maria, por quem Jesus mostrava grande afeto, e que acompanharam seu grupo de discípulos e discípulas. No caso de Maria Madalena, com um protagonismo especial, tendo sido a primeira pessoa a quem Jesus se revela como Ressuscitado. Outro ponto forte do discipulado feminino está no fato de que, diferentemente dos discípulos, que fugiram, quando da crucifixão de Jesus, elas firmemente se puseram presentes.

O último tópico deste capítulo versa sobre a especificidade de Maria Madalena, como amiga de Jesus. O autor, com base em diferentes fontes evangélicas, atesta o lugar especial que Maria Madalena teve no conjunto dos seus discípulos e discípulas, apesar de ela ter sofrido muita resistência da parte dos próprio apóstolos, inclusive de Pedro, por estranharem o fato o lugar que Jesus reservava à Maria Madalena. 

Será, que tais formas de opressão, de exploração e de marginalização das mulheres são coisas só do passado? E hoje, a despeito de sua organização em movimento sociais e e suas lutas, que lugar lhes é reservado, em nossa sociedade? E em nossas Igrejas Cristãs, que lugar elas ocupam? 

João Pessoa, 8 de Setembro de 2018.