sábado, 25 de abril de 2020

Consciente, se elejo um incapaz Compartilho também de seus malfeitos

Consciente, se elejo um incapaz
Compartilho também de seus malfeitos

Alder Júlio Ferreira Calado

Acompanho com dor o que se passa 
Nas esferas do mundo e do Brasil 
Com efeitos danosos, mais de mil 
Quando o vírus se expande em toda praça 
Se propaga a doença, e o mal grassa
Outro vírus tem desfeito
Os avanços históricos por direito
Aumentando o terror, tirando a paz 
Consciente, se elejo um incapaz
Compartilho também de seus malfeitos

Más escolhas ocorrem, não duvido
Há, contudo, escolhas para as quais 
Bons critérios se tornam essenciais 
Na política também isto é devido 
Refletir sobre o fato então convido 
Na campanha de dois anos atrás 
Um grupelho aciona, de mil jeitos
A esquemas de fora então afeitos
Consciente, se elejo um incapaz
Compartilho também de seus malfeitos

Lições tantas agora a recolher 
Esqueci por acaso o que dizia 
postulante com a sua companhia?
que fazia então em meu lazer?
Por que não dos dois lados me abster 
Se eu julgasse o outro lado não aceito?
Não teria a curtir culpa no feito
Que dizer, se surfei neste rapaz?
Consciente, se elejo um incapaz
Compartilho também de seus malfeitos 

Se cristão me confesso - Jesus por guia
Eu não devo tomar estrada inversa
A não ser que não passe de conversa
Pois assim, torno a fé morta, vazia
Defender a tortura - quem diria!
Apoiar armamentos, incêndios feitos
Destruir a Natura e os direitos
Perseguir índios, negros e os demais
Consciente, se elejo um incapaz
Compartilho também de seus malfeitos

Como foi que meti-me com essa gente?
Se também me associo a sua mentira
Que rever essa prática eu prefira!
A não ser que eu me toque, e de repente
Eu me entregue a mudar a minha mente
Neste caso, eu evito um novo pleito
Renuncio, afinal, a ser eleito
Repetir meu caminho, sentido faz?
Consciente, se elejo um incapaz
Compartilho também de seus malfeitos

 João Pessoa, 25 de abril de 2020

domingo, 12 de abril de 2020

Mercantilização da vida, suprassumo da religião capitalista

Mercantilização da vida, suprassumo da religião capitalista 
Alder Júlio Ferreira Calado 

Em tempos de COVID-19, aparecem mais evidenciados os sinais da barbárie do capitalismo, em sua fase/face atual, hegemonizada pelo capital fetichista, pelo espírito financista. Nestes primeiros meses de 2020, temos acompanhado o espalhamento progressivo do novo Coronavírus, pelo mundo, pelo Brasil... enfrentamos, com efeito, uma verdadeira guerra, em escala internacional, a afetar as mais diversas esferas da realidade. Também a esfera religiosa assume relevante posição, nesta guerra. O propósito destas linhas prioriza o exercício de uma reflexão crítica em torno da esfera religiosa, em especial das manifestações declaradamente cristãs, examinando seu comportamento diante da profunda crise que a humanidade vem atravessando. Instigado também por reflexões emblemáticas desenvolvidas por alguns pesquisadores e pesquisadoras de grande respeitabilidade, dentro e fora da Academia, dentre os quais a figura do Sociólogo Michael Loüwy, sentimo-nos fortemente motivados a compartilhar algumas intuições acerca do papel de igrejas cristãs, conhecidas mais frequentemente como igrejas neopentecostais, diante dos desdobramentos e da crise sanitária.

Enquanto avança a onda ameaçadora e letal da COVID-19 pelo Brasil e pelo mundo, importa conhecer como os diversos sujeitos sociais (econômicos, políticos, culturais e também religiosos) se colocam diante desta adversidade. No caso dos grandes agentes econômicos, capitaneados pelos financistas e seus aliados, podemos acompanhar sua voracidade incessante, buscando auferir vantagens e lucros também no transcurso desta crise, como, aliás, este setor tem feito em todas as crises precedentes. No caso específico do Brasil, podemos observar a voracidade com que os bancos e os grandes fundos de investimento se assanham, a procura do governo brasileiro, especialmente dos dirigentes da Economia, à cata de maquinarem seus ganhos astronômicos, ainda que à custa da enorme crise que se abate sobre o Brasil e o mundo. A este respeito, resulta escandalosa a notícia dando conta de uma “entrevista” concedida, pelo presidente do Banco Central do Brasil, a agentes financeiros da corretora XP Investimentos. Em tempos menos despudorados, esse tipo de entrevista se concedia a jornalistas, não a diretamente a agentes do Mercado... Mais uma vez, os grandes agentes financistas dão prova de extrema insensibilidade e despudor em relação ao sofrimento indescritível de centenas de milhares de pessoas atingidas pela atual crise. Neste sentido, cuidamos de entender o caráter fetichista, religioso, como se comportam os grandes sujeitos econômico -financeiros, pelo mundo afora, inclusive no Brasil.

No âmbito das forças políticas, também observamos o comportamento necrófilo com que atuam estas forças, que aparentemente se apresentam dissociadas da corrente política mais extremada, a do bolsonarismo, que congrega em torno de si da terça parte da sociedade brasileira - com maior ênfase no segmento dito evangélico nas Milícias e em setores expressivos das próprias Forças Armadas -. A corrente da direita tradicional desponta, especialmente no que diz respeito ao programa político do desgoverno Bolsonaro, bem representado na figura do Ministro da Economia, Paulo Guedes, como forte aliada e defensora de seu programa. A direito tradicional, aí tem um relevante papel de sustentação, não obstante seu queixume contra os “excessos” do desvairado presidente Bolsonaro. Este segmento da direita tradicional, composto pelos principais dirigentes e líderes das forças da câmara e do senado, tem contado com o apoio, por vezes entusiástico, da mídia corporativa. Com efeito, foram estes mesmos segmentos da direita tradicional que, movidos pelo ódio contra o lulopetismo, acabaram votando na figura repulsiva de Jair Bolsonaro, cujo tenebroso histórico era evidenciado, inclusive durante a campanha presidencial. Este nunca escondeu seu verdadeiro projeto autoritário ditatorial de simpatia com figuras tenebrosas defensoras da tortura e do retorno da ditadura militar, sem esquecermos sua absoluta falta de conhecimento de economia e de gestão pública. Pois bem, foi esta figura, a que mereceu apoio e votos vergonhosos dos setores tradicionais da direita, no Brasil.

Quanto aos agentes culturais, o governo Bolsonaro, já desde a campanha presidencial, apontava claramente quais seriam suas preferências: os segmentos mais obscuro santistas ditos evangélicos, negacionistas a valores científicos já consolidados - parte desses setores não hesita em manifestar-se contra a constatação da esfericidade da terra... A partir, então, da chegada a presidência de Jair Bolsonaro, com o ministério escolhido a dedo, estas forças obscurantistas e negacionistas, atuantes nos ministérios chave (educação, cultura, direitos humanos, entre outros, passam a normatizar, nas diversas esferas governamentais, medidas e procedimentos completamente afinados com suas crenças tenebrosas. 

Outra sanha necropolítica se dá no âmbito sócio-ambiental já no primeiro semestre do seu governo, eis que se multiplicam as denúncias de incentivo aos incêndios das florestas e as invasões de terras indígenas, quilombolas e de áreas socioambientais legalmente protegidas. E, multiplicam-se os mecanismos de desmonte dos organismos responsáveis pela vigilância e pelo cuidado socioambientais, ao mesmo tempo em que se sucedem declarações oficiais e oficiosas de incentivo aumento da extensão de terras agricultáveis (para a pecuária do agronegócio), ainda que à custa da devastação da cobertura florestal, bem como do incentivo a invasão de terras indígenas, em busca da exploração ilegal do subsolo, de minérios, sob a orientação de grandes empresas de mineração trata-se da instalação e do fortalecimento da necropolítica de uma cultura de morte atacar forças culturais estabelecidas e de grande respeitabilidade nacional uma devastação cultural!

Nas linhas que seguem, nosso objetivo é o de compartilharmos algumas indagações que nos perseguem, ao tempo em que ousamos enunciar algumas intuições, em vista de uma compreensão mais objetiva das Profundas raízes destes impasses. 

Em oportunidades precedentes, cuidamos de tentar compreender a complexidade e a extensão da Realidade Atual, por meio de textos antes compartilhados (http://textosdealdercalado.blogspot.com/). Este tem o propósito específico de concentrar a atenção sobre o lugar da religião, tal como representada pelos principais líderes de igrejas neopentecostais e outras expressões ditas cristãs, claro apoio a devastação a civilização, tudo feito em nome dos valores religiosos, do modo como pastores e outras lideranças religiosas os entendem entendem e vivenciam.

Situando a posição de agentes religiosos a serviço da religião capitalista 

Ao buscarmos situar o pensamento de importantes lideranças de igrejas neopentecostais, tais como Edir Macedo, Silas Malafaia, entre outras lideranças religiosas, percebemos a vertiginosa influência do seu apoio a necropolítica levada a efeito pelo atual desgoverno Bolsonaro. Já durante a campanha presidencial, estes atores religiosos não escondiam sua simpatia e seu apoio a candidatura Jair Bolsonaro. Diversos são os links que constituem exemplos ilustrativos desta posição. Cumpre ter sempre presente que o comportamento adesista a campanha de Jair Bolsonaro, do ponto de vista dos grupos religiosos, não se restringe às vertentes neopentecostais - que alguns preferem chamar de pós-pentecostais -, vários outros grupos cristãos, reformados e católicos, também aderiram ao bolsonarismo, mesmo tendo amplo conhecimento dos vídeos que sua campanha fazia circular, apresentando-o frequentemente a simbolizar com as mãos sua aposta nas armas, seu desdém pelos pobres (pelos negros, pelos povos indígenas, pelos membros da comunidade LGBT e pelas mulheres... ), além de sua sólida afinidade com os ricos, com os poderosos, com o mundo financista. Nada disto, contudo, conseguiu sensibilizar pastores, bispos, padres e outros ministros, pelo menos para uma posição de aparente neutralidade, inclusive entendendo estar ao seu alcance a oportunidade de não apoiamento a nenhuma das candidaturas finalistas. Não foi este o seu caminho, não foi esta sua escolha. O que se viu e se tem visto, de lá para cá, é uma sucessão de apoios diretos e indiretos à figura do então candidato Bolsonaro. Isto pode ser compreendido, à luz das próprias fontes bíblicas - vétero e neotestamentária? Depende do modo de interpretá-las. Ao lermos textos escritos por teólogos e teólogas de referência, dentre os quais nos restringimos a mencionar apenas duas figuras - a do teólogo José Comblin e a do teólogo José Antonio Pagola - podemos observar que, em várias de suas pesquisas, eles apontam o comportamento dos doutores da lei e dos fariseus. Tinham na ponta da língua citações para as mais situações mais embaraçosas, tratavam de citar apenas aquelas passagens que lhes conviessem, ocultando ou omitindo passagens substantivas dos profeta,s tais como Isaías, Jeremias, Amós, Miquéias, além do grande profeta Jesus de Nazaré. Fingem, a todo momento, estar cumprindo os preceitos mais sagrados, enquanto, não raramente, suas atitudes constituem uma flagrante negação das fontes evangélicas, no que elas têm de mais substancioso. A esta gente, Jesus de Nazaré costumava dirigir-se com uma sagrada iracúndia, como podemos perceber em alguns episódios evangélicos: "este povo me louva com os lábios, mas longe de mim está o seu coração!" Impactante, igualmente, a este respeito, é o capítulo 23 de Mateus, onde se encontra uma lista de invectivas contra os “grandes” daquela religião:

Mas ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que fechais aos homens o reino dos céus; e nem vós entrais nem deixais entrar aos que estão entrando.
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que devorais as casas das viúvas, sob pretexto de prolongadas orações; por isso sofrereis mais rigoroso juízo. Mateus 23:13,14 (...)
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que dizimais a hortelã, o endro e o cominho, e desprezais o mais importante da lei, o juízo, a misericórdia e a fé; deveis, porém, fazer estas coisas, e não omitir aquelas. Mateus 23:23


Em uma sociedade composta por parcelas significativas da população envolvidas no processo permanente de formação de sua consciência crítica, essas lideranças religiosas (pastores, bispos, padres e outros) não ensejariam maiores estragos. Sucede, todavia, que não é o caso da sociedade brasileira, que apresenta alto índice de analfabetismo não apenas de letras, mas sobretudo analfabetismo funcional e político. É fundamentalmente a esta gente que se destinam numerosas e frequentes "fake news", forjadas por grupos ideológicos comprometidos com a institucionalização da mentira como forma principal de dominação, na esteira de grandes ideólogos nazi-fascistas, a exemplo de Goebbels. Por meio do uso e abuso intensivo de "fake news”, a elite escravagista, apoiada também pelo seu braço religioso, passa a transmitir uma verdadeira desfiguração da realidade concreta, para o que também se vale de sórdidos mecanismos de combate visceral à ciência, a fatos históricos , a conhecimentos já consolidados. Sendo assim, tais lideranças religiosas despontam como relevantes forças que potencializam os efeitos perversos desta necropolítica, a medida que se valem de valores religiosos de grande alcance para os segmentos mais vulneráveis e mais suscetíveis deste tipo de influência. Esta elite passa a encher-se de atrevimento, improvável em situações normais, dispondo-se a contrapor-se a orientações científicas, como a esfericidade da terra, a necessidade de seguir orientações científico-tecnológicas em relação a tratamento de saúde, a mecanismos consolidados de gestão pública, usando e abusando para tanto de interpretações religiosas, inclusive no campo das igrejas cristãs, de modo a apoiarem cegamente as orientações mais esdrúxulas de dirigentes políticos completamente alucinados. A mais recente campanha eleitoral realizada no Brasil constitui um atestado de como atuaram várias igrejas cristãs-neopentecostais, católicas e outras denominações, clamando pela votação de figuras cujo perfil já se apresentava com meridiana clareza durante a campanha presidencial, não faltaram pastores, padres e até bispos a, de modo direto ou indireto, induzirem seus fiéis a uma votação maciça na candidatura de Jair Bolsonaro, falso pretexto de que não tinham outra escolha, quando se sabe que ninguém está obrigado a votar em opções A ou B, até porque neste caso, poderiam e até deveriam ter se abstido, de algum modo.

Associadas a estas experiências profundamente funcionais à religião do capitalismo, a mercantilização da vida, se acham tantas outras estratégias concebidas e maciçamente difundidas, tanto pela mídia corporativa, quanto sobretudo pelas redes sociais controladas pelos sumos sacerdotes do mercado. Como exemplo ilustrativo destas estratégias necropolíticas, podemos destacar as iniciativas incessantes do marketing digital, de despertar em seus numerosos destinatários vulneráveis a uma sistemática influência desta religião do mercado capitalista, criar "necessidades" mil, para cuja satisfação o mercado ou o marketing digital oferece uma infinidade de receitas, de produtos, opções fortemente consumistas. E isto é feito de modo bastante sistemático e planejado, com alto potencial persuasivo, por meio de incessantes curtos vídeos de propaganda para todo tipo de “necessidade” artificialmente criada, com a intenção de auferir lucros em cima dos destinatários desavisados ou suscetíveis a “fake news”. Intrigante nesta armadilha é a percepção de valores falsos como uma suposta generosidade, por parte destes propagandistas, oferecerem sua alquimia de felicidade "gratuitamente" a quem se disponha a comprá-las, como se operadores bem sucedidos na movimentação das bolsas de valores e outras ofertas do mercado -praticados como verdadeiros cultos a Mamon - estivessem preocupados com a felicidade de seus destinatários, razão pela qual, dizem, dedicam seu “precioso” tempo a ajudarem os seus destinatários a serem ricos, em pouquíssimo tempo, e felizes para o resto da vida... 


A contribuição de Walter Benjamin, potencializada pela heurística leitura de Michael Löwy

Em busca de uma compreensão das raízes mais fundas deste comportamento, valemo-nos de pesquisadores e pesquisadoras que se tem consagrado à tarefa de buscar uma compreensão mais objetiva deste comportamento. No próprio Michael Löwy, buscamos apoio na esteira de Marx e Engels, que ele aponta como os fundadores da sociologia da religião, bem como de outros autores como Ernst Bloch (1885 - 1977), Walter Benjamin (1892 - 1940), Max Weber (1864- 1920) e outros. A este propósito, aliás, convém sublinhar o contexto propício deste tipo de reflexão, tomando em conta o período vivido por estes coetâneos, além dos quais vale lembrar Hannah Arendt (1906 - 1975), Theodor Adorno (1903 - 1969), Max Horkheimer (1895 - 1973), Karl Manheim (1893 - 1947). Além de coetâneos, vários deles eram amigos.

Com efeito, tivemos a oportunidade de acompanhar mais de uma dezena de vídeo-conferências ou de vídeo-cursos em português, em francês, em espanhol, ministrados por Michael Löwy. Em diversas circunstâncias de fato, estamos diante de um sociólogo que se tem destacado entre os mais penetrantes na compreensão do fenômeno religioso, especialmente das religiões cristãs, tornando-se uma das principais referências de autores marxistas. Nesta área dentre os autores mais destacados nos escritos e nas exposições feitas por Michael Löwy, tem um lugar excepcional os nomes de Ernst Bloch e de Walter Benjamin. Acerca deste último, por exemplo, cuidou de reunir em uma coletânea diversos escritos acerca de como Walter Benjamin lidava com a questão teológica. O entusiasmo com que Löwy vem se dedicando a décadas aos estudos da obra de Benjamin, constitui um fator suplementar de credibilidade, não bastasse o fato de ele próprio haver entrevistado interlocutores relevantes de Benjamin, como o fez em relação a Ernst Bloch e a György Lukács. A quem acompanha sua trajetória de pesquisador, não surpreende a atenção dedicada a Benjamin, não só pela tocante atualidade dos seus escritos, como também por particularidades excepcionais, seja no campo do papel teológico, seja em relação a contundente crítica de Benjamin ao capitalismo, inclusive como portador de alto potencial deletério não só em relação aos humanos como também em relação à  natureza (o capitalismo como “assassino da natureza”).

Aqui, nos deteremos mais especificamente em um dos fragmentos de Walter Benjamin, dentre vários outros que Michael Löwy reuniu em uma coletânea intitulada "O capitalismo como religião", editada pela Boitempo, em 2013. Não se trata propriamente de um ensaio ou mesmo de um texto originalmente pensado a ser publicado, lembra Löwy. Em verdade, Walter Benjamin escreveu este fragmento tendo como alvo um único destinatário, o próprio autor. Trata-se de um breve texto com poucas páginas (3 ou 4 páginas), em que Benjamin se limita a fazer anotações, indicando alguns autores, dos quais citava apenas o número da página das respectivas notas, não se tratando propriamente de citações. Isto sugere as enormes dificuldades para qualquer leitor, uma vez que somente o único destinatário poderia compreender, com precisão, suas anotações. Mesmo assim, um pesquisador refinado e respeitoso como Michael Löwy conseguiu extrair relevante entendimento, que ele compartilha, seja por escrito, seja por videoconferência. Os aspectos mais fortes que Löwy acentua, passo a rememorar. 

Remetendo, em suas anotações, a figuras como Ernst Bloch, Benjamin deixa perceber que, diferentemente de autores como Max Weber, que sublinhava o capitalismo como tendo sido condicionado e favorecido pelas práticas puritanas do protestantismo, para Benjamin, contudo, o capitalismo não apresentava apenas aproximações com o protestantismo, mas ele próprio (o capitalismo) se organizava em forma de religião, a religião do capitalismo.

Indo além da conhecida interpretação weberiana, segundo a qual há uma estreita afinidade entre a ética Protestante e o desenvolvimento do capitalismo, Benjamin, neste seu famoso fragmento, datado de 1921, entende que o capitalismo se comporta, ele próprio, como uma religião. O capitalismo apresenta uma essência religiosa, caracterizada por alguns elementos sublinhados por Benjamin. Um primeiro traço característico da religião do capitalismo é que ele se faz como um culto, mais do que como uma doutrina. O culto à religião do capitalismo se faz, por exemplo, no âmbito das bolsas de valores espalhadas pelo mundo, também no Brasil. O culto ao capitalismo também se presta por meio dos grandes negócios empresariais, também na instituição das indústrias como relevante fonte de renda para o Deus do capital. Acerca das ultrajantes condições desumanas das fábricas inglesas, vale lembrar a invectiva cáustica contra a religião capitalista ensaiada por Karl Marx, no “Capital”, Livro I, capítulo X, onde trata sobre a jornada de trabalho então vigente. Ao abordar o tema das fábricas, ele assinala que tais condições superam o próprio inferno dantesco (referência à Divina Comédia, de Dante Alighieri, especialmente ao verso "vocês que entram aqui, deixem fora toda a esperança exclamação". O capitalismo também se apresenta como uma religião ao prestar culto ao dinheiro, considerado seu Deus, o Deus Mamon, do qual as cédulas ou as moedas são tratadas como objeto de culto, à semelhança do que se passa em relação a imagens de Santos, no contexto do catolicismo. Não se trata apenas de um entre outros cultos, mas de um culto prestado incessantemente, dia e noite, do nascimento à morte, um culto permanentemente prestado pelo Deus do capital, “ sem trégua e sem piedade”. Convém lembrar que, no conceito de capital formulado por Marx, o dinheiro constitui uma de tantas formas, nem é a principal, em relação a outros componentes, tais como a propriedade fundiária, as indústrias, os bancos. Mas, na época em que Walter Benjamin redige este seu texto (“O capitalismo como religião”), ele ainda não se entendia como um marxista, ainda que que tivesse posição anarquista próxima da visão marxiana.

Ainda na concepção de Benjamin sobre o capitalismo atuando como uma religião, no mesmo fragmento, ele alude a um outro traço que ele considera relevante na estrutura capitalista enquanto religião: trata-se do sentimento da dívida ou da culpa (“Schuld”) - estes dois conceitos aparecem, na língua alemã, com a mesma grafia. Os diversos sujeitos que se acham envoltos na rede da religião capitalista são marcados por um profundo sentimento de culpa ou de endividamento. Todos são culpados todos se acham endividados, e de maneira insuperável, levando a todos ao extremo desespero. Eis por quê não é inapropriada a alegoria que Marx atribuira à imagem do inferno, as fábricas do capitalismo.

Em seu fragmento e em outros escritos posteriores, Benjamin sinaliza uma compreensão que se vai aprimorando sobre a realidade do capitalismo, enquanto religião. Para tanto, é relevante perceber, na bibliografia por ele citada, em seu fragmento, registra o aparecimento de figuras (quase todas representativas do movimento do Romantismo, em suas diferentes vertentes). Recorre, por conseguinte, a representantes do Romantismo, tanto a figuras identificadas com uma vertente reacionária, como é o caso do filósofo alemão Franz von Baader, como a figuras da corrente revolucionária, como é o caso de Marcel Brion. Vale a pena destacar o que de cada um deles Walter Benjamin recolhe, como inspiração, para reforçar o argumento chave de sua tese acerca da essência religiosa do capitalismo. Em relação ao filósofo von Baader, cuida de destacar passagens de sua obra dotadas de fortes imprecações e invectivas contra o sistema capitalista, tomando como um sistema de destruição dos seres humanos. Curioso é sublinhar que, em certo sentido, suas proféticas invectivas contra o sistema capitalista vão coincidir com alguns traços da posição de Karl Marx sobre o mesmo sistema. Em relação a Gustav Landauer, Benjamin também procede de modo a ressaltar passagens luminosas deste filósofo, a denunciar o caráter deletério do capitalismo, por meio também de sua dimensão religiosa.

Autor de textos de uma notável diversidade temática, alguns deles com estilo hermético, o reconhecimento do pensamento de Benjamin se dá "post mortem", 
Ele figura na lista dos chamados autores de "fama póstuma" (Hannah Arendt). Mesmo assim, Benjamin alcança reconhecimento, por motivos diversos: uns acentuam nele a sensibilidade artística; outros o vêem como crítico literário. Para Michael Löwy, a avaliação recai no conjunto de seu legado, como filósofo da história, como filósofo político e como filósofo da religião. Além disto, Löwy, a justo título, entende que sua melhor recepção se deu ou se dá na América Latina, especialmente, por meio da Teologia da Libertação. Reconhece, todavia, que os principais teólogos da libertação têm com Benjamin uma afinidade eletiva, tais como Franz Hinkelammert, Hugo Assmann, Enrique Dussel, Jung Mo Sung. Antes deles, há de se notar um outro filósofo peruano, José Carlos Mariátegui (1894 - 1930). Do ponto de vista latino-americano, entendemos um ganho especial da inspiração benjaminiana, seja no que diz respeito ao ecossocialismo, seja com relação ao paradigma do "buen vivir".


Pontos de arremate

Tomemos este último item como um ponto de arremate. Quem se quer comprometido com o processo de busca e de caminhos de superação da barbárie capitalista, manifesta também por meio da religião do capitalismo, cuida de recorrer inevitavelmente à memória histórica dos oprimidos. Além disto, trata de fazê-lo junto com as forças sociais grávidas de transformação, à cata de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de novo modo de gestão societal. Neste sentido, tratemos de sublinhar pontos-chave que podemos recolher desta reflexão, inclusive do frutuoso diálogo de Walter Benjamin, potencializada pela percuciente análise por Michael Löwy dos textos de Benjamin.

Em primeiro lugar, vale ressaltar a dinâmica organizativa do sistema capitalista, atuando nas mais distintas esferas da realidade social, econômica, política, e religiosa. Nunca é demais reforçar nossa memória, no sentido de entender a íntima conexão, ligando todas essas esferas da realidade, marcada pelo sistema capitalista. Aqui tomamos sua dimensão religiosa, fazemos conscientes das dinâmicas e interações que o braço religioso do capitalismo não tem com as demais dimensões deste sistema.

No caso específico de uma reflexão centrada principalmente em sua dimensão religiosa, podemos observar a força espantosa acumulada por diversas igrejas cristãs, inclusive a Igreja Católica, em várias de suas expressões, em especial a ligada mais diretamente à vertente neopentecostal. Com efeito, as principais lideranças destas igrejas vem acumulando, seja nos espaços dos templos, seja pelas numerosas emissões televisivas e radiofônicas, além de sua atuação notável nas redes sociais, seu potencial extremamente funcional ao modo de organização capitalista, inclusive em sua face mais deletéria, do mesmo. É, por conseguinte, vasta a lista de programas e emissões em que seu potencial ideológico corroborador do espírito capitalista se manifesta, de modo impactante seus cultos, não raramente, nos remetem à reflexão de Benjamin, em diálogo com outros filósofos.

Acompanhando a emissões radiofônicas, televisivas e pelas redes sociais, protagonizados por lideranças religiosas de referência, assistimos, com frequência, ao uso e às vezes abuso de estratégias de obtenção de dinheiro ou de vantagens econômicas, sempre ou quase sempre a pretexto de servir ao mesmo Deus. Iniciativas e estratégias múltiplas são utilizadas, justificativas não faltam, pois sempre retiram de sua caixa de auto justificativas explicações bíblicas para todas estas iniciativas, que vão desde a organização de grandes encontros com empresários, a pretexto de oração especial, até propaganda de produtos e objetos os mais diversos, inclusive água, que se transforma no objeto lucrativo, em não poucas destas experiências religiosas. Quando recuamos na história, inclusive na da Reforma, percebemos a força profética de figuras emblemáticas da Reforma Protestante contra as estratégias de lucro mantidas pela Igreja Católica Romana, em especial por meio da venda de indulgências. Ficamos a pensar no que figuras como a de Martinho Lutero e a de Thomas Müntzer, entre tantas outras, teriam a dizer sobre estes abusos cometidos, em Nome de Deus. Entre os textos que inspiraram Walter Benjamin, em seus escritos, se acha um, de autoria de Marcel Brion, biógrafo do Frei Bartolomeu de Las Casas. Seria fortemente recomendável a releitura das denúncias aterradoras que Las Casas faz, em seu livro ISTORIA ò Brevissima Relatione DELLA DISTRUTTIONE dell'Indie Occidentali  (http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/lb000174.pdf) em relação à sanha assassina dos colonizadores espanhois contra os povos originários da América, situação ainda pior do que a atribuída a Marx ao inferno das fábricas, na Inglaterra, do século XIX. Tudo em nome de Deus… Tanto é verdade que em um dos capítulos da obra de Las Casas, vem registrado um diálogo entre um representante dos colonizadores e o cacique Hatuey, em que este, após ouvir falar de céu e inferno, “encontrou forças para perguntar: - Os espanhóis também vão para o céu dos cristãos? - Sim, claro - disse Olmedo. - Então eu não quero o céu. Quero o inferno. Porque lá não estarão e lá não verei tão cruel gente.”

Com relação à contribuição consistente oferecida pela reflexão e pelos escritos de Benjamin, entre outros, somos instados a convidar muitas outras pessoas a também se debruçarem sobre tão densas reflexões, em especial como um tema a ser priorizado pelas forças sociais historicamente vocacionadas a protagonizar as mudanças desejáveis. Entre estas forças, ressaltamos a dos movimentos sociais populares, no sentido de levarem a termo uma extensa retomada, em novo estilo, do seu processo organizativo, formativo e de lutas, junto às classes populares do campo e da cidade.

João Pessoa, 12 de abril de 2020.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

A COVID19 EXPÕE AS VÍSCERAS DA NECROPOLÍTICA CAPITALISTA

A COVID19 EXPÕE AS VÍSCERAS DA NECROPOLÍTICA CAPITALISTA

  Alder Júlio Ferreira Calado  



Dúvidas e incertezas fazem e sempre fizeram parte da condição humana, em todos os tempos e lugares, em uns mais do que em outros. Também hoje, sufocadas por uma complexa conjuntura e estrutura sócio econômica, política e cultural, também enfrentamos dúvidas e incertezas, até bem mais do que no passado recente. Sucede, contudo, que a COVID19 nos surpreende, expondo- nos evidências antes negadas ou pouco visíveis pelos paladinos do capitalismo, que hoje atravessa sua fase/face mais perversa, controlada que vem sendo por seu segmento financista e seus paraísos fiscais. Com efeito, ao acompanharmos atentamente a irrupção do novo Coronavírus, mundo afora, também no Brasil, podemos perceber terríveis traços da barbárie capitalista, especialmente em sua feição Ultraliberal. Seus defensores mais conhecidos como os "Chicago’s boys" devem estar atravessando momentos de extrema frustração, ao sentirem que estão vindo por terra seus mais eloquentes compromissos com a financeirização da economia, em escala mundial também no Brasil. A economia conduzida pelos economistas ultraliberais, a exemplo de Paulo Guedes, devem estar experimentando uma frustração sem tamanho e sem precedentes.

Nas linhas que seguem, cuidamos de trazer a lume alguns exemplos ilustrativos do completo desmonte dos argumentos e das teses que sustentam a economia ultraliberal no Brasil e no mundo.

Um primeiro aspecto a considerar prende-se às teses neoliberais e, sobretudo, aos argumentos ultraliberais. Corresponde à obsessiva defesa do famigerado "estado mínimo". Não bastassem recentes irrupções de populações inteiras, no Chile, no Equador e em outros países latino-americanos, a se manifestarem vigorosamente nas praças e nas ruas contra os crimes cometidos pelos defensores da economia ultraliberal, eis que a irrupção do novo coronavírus acaba de colocar sobre aquelas teses uma pá de cal. Por conseguinte, como explicar a fúria com que Paulo Guedes e a elite do atraso do Brasil, com apoio do Executivo, do Legislativo e até do Judiciário, defendem a desnecessidade do Estado em face da gravíssima crise sanitária pela qual estamos passando?

O escopo principal deste texto é, portanto, buscar desmascarar várias teses equivocadas, profundamente nocivas à nossa sociedade e ao planeta, sustentadas pelos paladinos do ultraliberalismo, por meio de seus economistas ligados, em grande parte, à famigerada escola de Chicago, sem descartarmos exemplos alusivos a outros países - já que estamos tratando de um fenômeno globalizante -. Cuidamos de ilustrar, por meio de vários exemplos, os equívocos contidos nessas teses sustentadas pelo neoliberalismo no Brasil.

Uma delas baseia-se em uma axiologia profundamente centrada no indivíduo, em detrimento da coletividade. Parte-se da ideia de que só os indivíduos é que produzem riquezas, desfazendo-se da importância do “Ethos” comunitário ou coletivo, como sujeito de produção e de decisão da distribuição de suas riquezas. Na concepção neoliberal e ultraliberal, cabe a cada indivíduo a tarefa de produzir o necessário à sua própria existência (lembrem-se da defesa por Paulo Guedes da capitalização, no plano da “reforma previdenciária”). Trata-se de uma tese profundamente falsa, pelo fato de que qualquer indivíduo que esteja a usufruir do mercado capitalista só pode fazê-lo, por meio do trabalho coletivo (da cooperação forçada ou voluntária) dos demais cidadãos. É a partir de teses como esta, que se entende o que se tem passado no Brasil e no mundo, especialmente nos últimos anos. No caso do Brasil, esta tese vem apoiada no grupo capitaneado pelo PMDB, sob a presidência de Michel Temer, ainda vice-presidente do Brasil, quando propunha um plano econômico chamado "um salto para o futuro", com propostas que rompiam com as características das políticas econômicas até então adotadas. Toda atenção, daí por diante, passou a ser centrada na necessidade de materializar aquele insano plano. Sua execução tinha que passar pela destituição do governo Dilma, ainda que isto tenha significado a traição do vice-presidente à então Presidente da República, em conluio com a elite do atraso e com a avidez do setor financista - a face mais perversa do capitalismo -. Estes grupos passaram a viabilizar suas nefastas políticas, por meio de projetos de lei que foram capazes, uma vez aprovados pela Câmara e pelo Senado, de proceder a um verdadeiro desmonte das políticas sociais que contemplavam as camadas mais necessitadas da população, tendo alcançado êxito. Com o impacto do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o presidente Michel Temer passa a capitanear esta sucessão de políticas de desmonte das leis de proteção aos trabalhadores e trabalhadoras. Primeiro, graças a votação e aprovação da famigerada PEC do teto dos gastos. Por longos 20 anos, qualquer soma destinada a políticas sociais de reconhecida urgência e prioridade fica sustada. Não bastasse tamanha truculência e desrespeito com relação aos direitos dos mais pobres, eis que a mesma PEC em nada restringe a continuidade do pagamento religioso do serviço da dívida pública, em contraste espantoso com o que determina em relação às mais relevantes e urgentes políticas públicas. Mais do que antes, a irrupção da COVID19 põe às escâncaras as terríveis consequências desta medida. Basta um olhar sobre o desmonte da Saúde Pública, apanhada a rastejar, em razão do desinvestimento e do sucateamento de todo o sistema, agravando seriamente o risco da população brasileira de um índice altíssimo de casos fatais, insuficiente estrutura da saúde pública. 

O desgoverno Michel Temer, porém, não se restringiu a esta medida nociva, aprovada por um Congresso subserviente ao Executivo ou, mais precisamente, aos grandes grupos econômicos, especialmente ao setor rentista, ao qual o Executivo e o Congresso, sem esquecer o Judiciário, se subordinam vergonhosamente. O próximo passo do desmonte geral da economia brasileira se deu com a infame campanha e aprovação de uma legislação trabalhista que segue tendo drásticas consequências sobre o conjunto da população trabalhadora do Brasil.

O pior estaria por acontecer. As eleições de 2018 acontecem em um clima dominado amplamente pelo disparo de “fake news”, sobre o controle especialmente dos apoiadores do candidato Jair Bolsonaro. No início da campanha presidencial, os números que correspondiam às intenções de foto, não assinavam para um crescimento gigantesco de sua campanha, ao mesmo tempo em que se observava o progressivo declínio dos candidatos de direita e mesmo de centro-esquerda. O estrago se confirma com o resultado final das eleições, nas quais relevante sinais de fraude foram constatadas, mas não reconhecidos pela justiça eleitoral, de modo a garantir os resultados favoráveis a Jair Bolsonaro. Os partidos de direita que apostavam, de início, em seus candidatos preferidos, foram, movidos pelo ódio ao petismo e ao lulismo, levados então a flertar com a candidatura Bolsonaro, em claro detrimento da campanha do candidato petista, Fernando Haddad. Curioso e mesmo revoltante é constatar-se que os votos que a direita transfere para o candidato Jair Bolsonaro foram fundamentais para assegurar a Vitória do candidato da ultradireita, com a qual a própria direita tem se entendido muito bem, já que o núcleo duro do programa de ambas é o mesmo: conceber e implementar "reformas" que aprofundem as desigualdades sociais, em favor dos setores dominantes, em especial do rentismo "do qual o Ministro da Economia Paulo Guedes é forte porta-voz", sempre à custa da retirada de direitos dos trabalhadores e trabalhadoras.

Dando prosseguimento à mesma lógica posta em prática, durante o governo Temer, desde o seu início, também o desgoverno Bolsonaro empenha-se, especialmente por intermédio do seu Ministro da Economia (Paulo Guedes) em implementar rotações sucessivas de desmonte de direitos, seja pela votação da "reforma" da Previdência Social, seja por várias iniciativas, por via de medidas provisórias, a aprofundar diversos aspectos do desmonte das leis de proteção dos trabalhadores e trabalhadoras, em claro atestado de atendimento à gula dos setores dominantes, capitaneados pelas transnacionais, atuando na área rentista, mas organicamente articuladas a outros setores de transnacionais atuando nos mais diversos campos e ramos da economia.

A incidência repentina da COVID19 veio desmantelar, de certo modo, todo esse plano sucessivos DE desmontes, a serviço do grande capital, nacional e transnacional. À medida em que se espalha a COVID19 em outros países, para além da China, o desgoverno Bolsonaro cuida de minimizar ou mesmo desdenhar dos efeitos do novo coronavírus, de início, replicando palavras do presidente dos Estados Unidos, a quem bolsonaro se alinha incondicionalmente. À medida, porém, que Trump, pressionado pelas organizações mais influentes da sociedade civil estadunidense, recua do seu plano infame, não acontece coisa igual da parte do seu vassalo brasileiro que, qual asno chucro, desrespeita todas as normas de bom senso, inclusive as orientações do seu próprio Ministro da Saúde, além das orientações da Organização Mundial de Saúde, afrontando, de modo crescente, tais orientações, cometendo seguidos desvarios, em declarações e em atitudes de rompimento de quarentena, justamente quem deveria dar o bom exemplo, especialmente tomando-se em conta o fato de que, em sua recente viagem aos Estados Unidos, em companhia de ministros e outras figuras representativas do empresariado brasileiro, 20 pessoas desta comitiva retornaram acometidas da COVID19.

A Reforma da Previdência Social constituiu o primeiro grande ato do desgoverno Bolsonaro. Em sincrônica sequência com a mesma lógica adotada pelo desgoverno Michel Temer, inspirado no famigerado projeto "uma ponte para o futuro", recebeu do ministro Paulo Guedes e de todo o governo desgoverno Bolsonaro o melhor de seus esforços, tudo fazendo para passar de goela abaixo da enorme maioria do povo trabalhador, mais este desmonte. Todo o processo desta "Reforma" da Previdência Social comportava uma sequência de passos profundamente caracterizados por ou pela ideologia financista com base, por conseguinte, em uma série de estratégias de alto poder de convencimento, junto a enormes parcelas da população brasileiro. O desgoverno Bolsonaro seguiu à risca o plano de enriquecimento vergonhoso do setor rentista usando dinheiro público para uma larga campanha, pela mídia corporativa, pelas redes sociais, recorria a um bombardeio de informações contendo argumentos falaciosos, cálculos fantasiosos, promessas infundadas (das quais a mais perversa era vender aquele desmonte como um passo indispensável para o retorno do emprego e do crescimento do país), a pressão governamental sobre as lideranças partidárias que, também pressionados pela mídia corporativa, acabavam rendendo-se, votação após votação, na Câmara e no Senado, por aprovar esta "reforma", que se constituiu dos mais perversos mecanismos concentração de renda, transferindo vergonhosamente os tostões de milhões de trabalhadores e trabalhadoras para o enriquecimento ainda maior dos setores dominantes, em especial do setor financista. 

Ainda não satisfeitos com tamanho estrago, o desgoverno Bolsonaro, capitaneado pelo banqueiro Paulo Guedes, cuida de outras "reformas”, com a mesma finalidade de aumentar a concentração de renda, principalmente, nas mãos do setor financista, a exemplo de sua proposta de capitalização (recusada viva durante a "reforma da Previdência", pelas casas legislativas). Além desta, outras “reformas” estão sendo cogitados para serem impostas ao povo brasileiro, tais como a reforma administrativa e a reforma tributária.

É ainda durante as discussões sobre tais reformas em meio à sucessão de graves episódios protagonizados pelo presidente da república, que irrompe o novo coronavírus, a “atrapalhar” os planos em marcha do desgoverno Bolsonaro.


As notas precedentes, ainda que de modo sucinto, podem emprestar cheio a uma reflexão crítica a ser exercitado pelas forças sociais comprometidas com verdadeiras mudanças. Uma lição de todos esses episódios, inclusive da fúria assassina do desgoverno Bolsonaro contra a dignidade das populações originárias, das Comunidades Quilombolas, da comunidade LGBTQI, das mulheres, dos pobres em geral (sobre os quais reina, no desgoverno Bolsonaro, uma estrondosa "e topofobia"), contra a dignidade da mãe natureza, crime cometido de uma série de episódios: incentivo a incêndios da floresta amazônica ponto e, incitação a invasão de terras indígenas e de Comunidades Quilombolas; a expansão e legal diárias de reservas Florestais, com a finalidade de estender a área de pecuária extensiva, do interesse do agronegócio; a incitação a prática ilegal de garimpos - eis algumas das formas de que se tem valido o desgoverno bolsonaro. 

Outra lição a ser extraída dos atos cometidos por este desgoverno tem a ver com os interesses da classe dominante, inclusive daquele setores que, fingindo estarem contra os desmandos do presidente Bolsonaro, sentem-se altamente beneficiados com a política econômica exercida por seu governo. Aí se juntam figuras exponenciais do congresso nacional, do próprio judiciário, além do setor financista e outros representativos dos interesses da classe dominante, para apresentar em palavras hipócritas, críticas aparentes aos desmandos de seu presidente, com os olhos voltados para os lucros exponenciais resultantes da política criminosa, conduzida pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes. Isto significa, para quem quer ver, a necessidade e urgência de se entender o risco enorme de se fazer aliança com setores da direita, que fingem estar contra a ultra direita, mas se beneficiam de sua política, contra os interesses mais elementares da enorme maioria da população brasileira.

A título de arremate das linhas acima, havemos por bem de destacar os seguintes pontos: a exemplo de crises passadas, umas mais profundas do que outras, também esta nos oportuniza auferir ensinamentos, dos quais ousamos sublinhar, com mais ênfase, a natureza capitalista por excelência desta crise, que se manifesta, de modo organicamente articulado em várias frentes. Estamos diante de uma profunda crise financista, em primeiro lugar, crise que corresponde ao setor parasitário do capitalismo, sustentado fundamentalmente com base em fetiches, em falácias convertidas, por algum tempo, e aos olhos das parcelas mais vulneráveis da população, em verdade, com base, portanto, na larga utilização da crença no poder ilimitado do capital financeiro, diariamente propagado pela mídia corporativa, sustentada pelo próprio setor financista. Os controladores do capital financeiro, em escala internacional e nacional, cuidam de difundir uma acumulação fantasiosa de recursos financeiros, controlados por um número ínfimo de pessoas comprometidas com este setor, como em passado recente, por ocasião da crise de 2008. Também neste momento, a bolha financista acaba rompendo-se, e o véu de mentira que encobria este sistema, acaba caindo, de modo a tornar nu o rei... Além de seu caráter financista, a crise aguda que estamos a enfrentar também comporta outras características. Manifesta-se, ainda, por meio de uma acelerada agressão dos bens e recursos naturais, como meio extremo de acumulação para as transnacionais que operam em setores tais como as empresas de mineração, o agronegócio, a indústria armamentista, entre outros ramos. A combinação da avidez destes setores produz uma corrida doente em direção aos bens da humanidade, ocasionando uma ofensiva sem precedentes aos bens da natureza, bens da humanidade. Os graves crimes de que o Brasil do desgoverno Bolsonaro passou a ser manchete, especialmente em 2019, mas também precedido pelo desgoverno Michel Temer, ainda que em menor proporção, eis outra marca da crise atual. Trata-se, ainda, de uma profunda crise capitalista, que se manifesta na esfera política, com o conchavo estabelecido entre os setores da direita e da extrema-direita que produzem grandes estragos no campo da política. Nem sempre os efeitos perversos são reconhecidos como tendo origem também nos setores da direita, representativas da mesma elite do atraso. É mais frequente o reconhecimento dos malfeitos da ultra direita, por se apresentarem mais evidentes. Por outro lado, os setores da direita tradicional passam a comportar-se como críticos aos malfeitos mais extremados da ultra direita, encobrindo, porém, sua satisfação de que, no fundamental, a direita tradicional é igualmente beneficiada, no que diz respeito aos frutos das "reformas" postas em prática, graças à sua sólida aliança com a extrema direita. Outra face com a qual também se apresenta a crise atual tem a ver com a irrupção da COVID19, cuja natureza e efeitos devastadores muito tem ajudado a desvelar as estratégias do capitalismo, sistema que é alcançado em suas entranhas, o que permite esboçar-se, a médio prazo, uma saída para além do capitalismo. No entanto, não cairá pronta, é obra principalmente dos setores majoritários da sociedade, as organizações de base, especialmente os movimentos sociais populares, que, juntamente com outros parceiros e aliados, hão de buscar retomar, em novo estilo, suas atividades organizativas, formativas e de luta, como forma de enfrentar exitosamente o capitalismo, cujo deus (Mamon) exige de seus adoradores um culto incondicional e ininterrupto, como advertia Walter Benjamin ainda nas primeiras décadas do século XX.

João Pessoa, 01/04/2020.