quarta-feira, 28 de junho de 2017

SUJEITOS HISTÓRICOS REVOLUCIONÁRIOS: ousando ensaiar passos de retomada, em novo estilo

SUJEITOS HISTÓRICOS REVOLUCIONÁRIOS: ousando ensaiar passos de retomada, em novo estilo

Alder Júlio Ferreira Calado

Tempos de crises societais mais agudas comportam, não raramente, um fenômeno paradoxal: de um lado, favorecem, em relação às forças sociais historicamente vocacionadas ao quefazer de transformação societal, certa apatia; por outro lado, também servem para o acúmulo de ações altervativas, a virem a lume, a seu tempo. Tudo está a indicar que vivemos um período assim: entre a apatia e um silencioso  acúmulo de sinergias mobilizadoras. Pesquisando situações similares, características de outros tempos, figuras como Max Weber e Ernst Troeltsch, entre outras, forneceram, a este respeito, elementos teóricos a serem tomados em conta. Referiam-se a uma certa alternância – para forças sociais de transformação - de tempos de intenso ímpeto mudancista e tempos de relativa calmaria ou recuo. Assim interpretavam a dialética entre o instituído e o instituinte, como um traço histórico próprio de movimentos sociais.
À semelhança de tudo que é humano, também os sujeitos históricos revolucionários – movimentos sociais, associações, cooperativas e tantas outras organizaçãoe de base de nossas sociedades – também se acham marcadas pelo inacabamento. Sendo, como são,  forças sociais transformadoras do status quo, sujeitas ao movimento da história, em seus altos e baixos, em seus períodos de ascenso, de descenso e de reascenso, não têm por que se renderem ao fatalismo, ao atravessarem momentos de pequenas ou de graves turbulências, como lhes sucede, na atualidade. Têm, sim, que seguir adiante! Não sem antes, fazerem sua autocrítica, sob pena de nada lhes adiantar seguir cometendo os mesmos desatinos históricos.

Em outras ocasiões recentes, já nos pronunciamos sobre a necessidade inafastável, para as forças que se pretendam comprometidas com mudanças substantivas, de fazerem autocrítica. Nestas notas, cuidamos de concentrar nossos esforços de reflexão crítico-prospectiva no aceno de experiências vivenciadas molecularmente por algumas organizações de base, em vista de atividades prenhes de alternatividade ao modelo hegemônico vigente. Nesse sentido, começamos por explicitar alguns critérios portadores de traços de alternatividade, que já inspiram e que poderão inspirar ainda mais fundamente os passos de retomada desses sujeitos históricos revolucionários, em novo estilo.

Que valores critérios se apresentam condizentes a uma retomada, em novo estilo, para tais forças grávidas de alternatividade? É fundamentalmente esta a questão que ora alimenta nossa reflexão, que tratamos de distribuir em alguns tópicos, de modo a contemplar as principais dimensões de uma sociabilidade alternativa ao modelo capitalista de produção, de consumo e de gestão societal. Trata-se de definir, coletivamente, quais os valores e critérios que devem inspirar os passos ensaiados, em vista da construção de um horizonte alternativo ao atual modelo hegemônico, de modo a se fazerem presentes nas mais diversas dimensões da realidade social, bem como de seus protagonistas. Destacamos os seguintes valores ou critérios de atuação, no cotidiano das relações dos sujeitos históricos revolucionários:
- Sentimento de pertença cósmico planetário de cada sujeito histórico revolucionário
Trata-se de nos entendermos, ao mesmo tempo, como seres de natureza e de cultura. Irmanados com os humanos e com todos os demais membros da comunidade dos viventes, somos natureza, animais, vegetais, minerais, marcados por características  e condições diversificadas e simultaneamente assemelhadas. Por outro lado somos, os humanos, também seres de cultura, vale dizer, conscientes do nosso inacabamento, vocacionados à liberdade, dotados de criatividade, de capacidade, de contemplação, e de fruição do belo, das artes, numa palavra, seres tecelões de unidade, na diversidade, seres promotores de interculturalidade.

- Sujeitos históricos revoluconários também marcados pela memória histórica, pela sede de aprender, pelos sonhos e utopias –Seres de natureza de de cultura,  buscamos na memória histórica nossas raízes mais fundas, repletas de lutas, conquisas, invenções, revesis, esperança... Ao nos Debruçarmos sobre o percurso histórico de povos  e lugares  e tempos mais diversos, colocomonos aí como seres aprendentes, sempre em busca de tercer as várias dimensões do tempo (passado-presente-futuro), buscando nesta diversidade fios de unidade, que nos façam, ao mesmo tempo, diversos e unos, irmanados com a Mãe Natureza e com os nossos ancestrais. Ao mesmo tempo também somos seres de desejo, de sonhos, de utopias, razão por que  nos sentimos vocacionados à liberdade, vale dizer seres criativos e inventivos, impulsionados pela busca do lemo, das artes, do “inédito viável” (Paulo Freire).

- A sociabilidade que almejamos ir construindo pressupõe protagonistas – mulheres e homens – livres, autônomos, que priorizem a vida comunitária, promovendo, ao mesmo tempo, a dimensão pessoal de cada protagonista, assegurando-lhe condições favoráveis de desenvolvimento de suas mais diversas potencialidades, com o que poderá melhor contribuir com as distintas comunidades, de que é parte viva. Tais aquisições, porém, não se dão espontaneisticamente nem por acaso. Antes, são expressão e resultado da dinâmica interação dos processos organizativo, formativo e de luta. Eis o útero social em que se forjam as condições de Liberdade, horizonte maior, para o qual se orientam tais sujeitos históricos revolucionários, também por vias de liberdade, e só por estas vias: em vão se pretende alcançar horizonte de Liberdade, a não ser por caminhos também de Liberdade.

Sujeitos revolucionários não se improvisam. Nascem da articulação permanente entre  os processos  organizativo, formativo e mobilizador. No processo formativo, por exemplo, tais sujeitos passam por uma formação contínua, protagonizada pelas forças sociais ou pelas organizações de base que tratam de assegurar, ao longo da vida de seus militantes, condições educativas, na perspectiva da Classe Trabalhadora. Nos diversos espaços formativos, são trabalhados cuidadosamente, no conteúdo e na metodologia, temas e questões tais como: A memória histórica, biografias de revolucionários e revolucionárias de referência, critérios de análise de conjuntura, estudo e discussão de temas e desafios relevantes da atualidade, principais obras dos clássicos, relações sociais de gênero, de etnia, de espacialidade, de geração, subjetividade, relações cósmicas, ecologicas, mística, evolucionária....

De que modo tais valores e critérios se materializam (ou devem) materiarlizar-se nas relações cotidianas dos sujeitos revolucionário? Eis o que buscamos explicitar, a seguir nas várias dimensões da realidade.

1) Na esfera da produção -  Começamos por perguntas do tipo: O quê produzir? Para quê (m) produzir? Quem e como se ocupará desta produção? Trata-se de apenas de alguns dos questionamentos que nos devem ocupar, nesta esfera da realidade.

Tomando em consideração os critérios e valores acima referidos, os sujeitos históricos, dispostos a retomarem, em novo estilo, passos em vista de uma sociabilidade alternativa ao modelo vigente, cuidam de ficar  atentos, em primeiro lugar, ao sentido de sua convivência, em harmonia, não apenas com os humanos, mas igualmente com toda a comunidade dos viventes.

Tal consciência ilumina as decisões também no plano da produção. O sentido desta, por exemplo, nada tem a ver com a avidez de acumulação de riquezas e bens, a serem apropriados e utilizados por poucos, em prejuízo das maioria de humanos e da Mãe-Natureza. Tanto coletivamente quanto no plano pessoal, o (con)viver bem (“Bien Vivi”)“ não depende de acumulação ou de concentração de riquezas e de bens, mas orienta-se a satisfazer as necessidades materiais do (co)existir. Não se precisa de supérfluos, tão pouco de esbanjamentos, ou desperdícios.

Nessa direção, é fundamental decidir-se coletivamente o quê é importante produzir, levando-se em consideração as reais necessidades materiais de cada um e do conjunto dos humanos e dos demais viventes, bem como a dignidade do Planeta (nada de produção que implique degradação das condições da Natureza – das fontes de água, dos rios, dos mares e oceanos, das florestas, do subsolo, etc., por conta do excesso ou das formas de exploração adotadas em funão do lucro... Também, nada de produção que implique a desfiguração dos humanos, a exemplo do trabalho escravo e das incontáveis e graves manifestações do trabalho precarizado, de que é impactante expressão o filme-documentário “Da servidão moderna”, cf.: https://www.youtube.com/watch?v=Ybp5s9ElmcY

No caso da formação econômica do Brasil e de outras sociedades colonizadas, a  precarização do trabalho é algo inerente, por exemplo, à lógica da monocultura. Não é por acaso, que a monocultura demande uma estrutura escravagista ou algo parecido. A lógica do monocultivo manifesta-se multiplamente danosa, seja em relação à Mãe-Natureza, seja em relação especificamente aos humanos.

Eis por que só temos a felicitar as numerosas iniciativas de multicultivo, de cuidado com o solo, com a vegetação nativa, de convivência com o Semiárido, respeitando-se os manejos a agroecologia – experiências que se têm multiplicado, mas que ainda representam um enorme desafio, a compará-la com o hidro-agronegócio...

Outro ponto a merecer atenção especial tem a ver com a relação cidade-campo. Não raramente, se constata um enorme fosso entre a vida da cidade e a vida do campo, quando, de fato, é a sua interrelação qu se deve destacar, afinal, “Se a roça não planta, a cidade não janta”; “Se destruírem a roça, a cidade não almoça”... Mas, tal interrelação vai muito além de um patamar estritamente econômico, de modo a alcançar outras esferas do (co)existir, inclusive a dimensão estética e do Sagrado...
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Nas mais distintas experiências de produção, seja nas atividades extrativas, na agricultura; seja nas atividades de produção artesanal; seja nas atividades de transformação industrial; seja na área da troca, na área da oferta de serviços, seja ainda no terreno do consumo, uma condição sempre relevante com que se preocupar, prende-se a fazer valer, na ampla diversidade de atividades produtivas, critérios equânimes de distribuição de riquezas e bens, de modo a evitar-se o império das odiosas desigualdades sociais e suas nefastas consequências para o Planeta e para toda a comunidade dos viventes.

2) Na esfera política -
Para sujeitos históricos que se pretendam revolucionários, resulta urgente e primordial a tarefa  de testemunharem, também no campo da Política, atitudes e ações alternativas ao modelo vigente, sem pretenderem, primeiro, “desbancar” o velho Príncipe, para só então, implantarem o “milagroso” modelo alternativo. Trágico equívoco seria cometido, e não pela primeira vez... Ou bem ensaiam, coletiva e pessoalmente, desde já, passos de alternatividade ao modelo combatido, ou virariam letra morta seus planos miraculosos, de mudarem, de repente, “água em vinho”... A este filme, aliás, já assistimos...

No espectro organizativo, por exemplo, consoante os critérios acima mencionados, os sujeitos históricos revolucionários parte dos “de baixo”, arrancam desde a base, fazem sua ação revolucionária brotar de pequenas comunidades – coletivos, círculos de cultura, conselhos populares, célula ou que outros nomes tenham. Coletivos fundados e mantidos duradouramente, espalhados por locais de trabalho, de moradia, de estudos, etc., ciosos de sua autonomia relativa, em que todos os participantes têm voz, vez e voto assegurados, enquanto protagonistas do processo. Para aí são trazidos e compartilhados as mais diversas questões relativas à conjuntura, às atividades programadas, à avaliação, e tomadas decisões. Não se tratando de orgãos estanques isolados, tratam de se conectar com as demais instâncias, por meio de delegados e delegadas eleitos. Funcionam com periodicidade semanal ou quinzenal, elegendo-se uma coordenação por um prazo determinado, findo o qual tais coordenadores voltam para a base, enquanto membros da base são eleitos para coordenação do período seguinte. Trata-se de mecanismos (a delegação e alternância de cargos e funções) de considerável potencial  revolucionário. A estes mecanismos, associa-se ainda seu investimento no autofinanciamento, isto é, na iniciativa de manter suas atividades, sem depender do Mercado ou do Estado, mas dos tostões arrecadados de seus próprios membros, de acordo com suas possibilidades.

3) – Na esfera cultural -  Nos processos organizativo, formativo e de luta, os sujeitos históricos revolucionários vão se forjando, no enfrentamento dos desafios do cotidiano, para o que resta determinante a articulação adequada das atividades mais diversas, cumpridas nas distintas esferas da vida. No caso da esfera cultural, mais diretamente, cuidam de lapidar sua condição de seres humanos, por meio do exercício de distintas atividades. Aprendem, dia após dia, a superar a falsa dicotomia estabelecida pela ideologia dominante, entre trabalho manual e trabalho intelectual. Temos de trabalhar com as mãos (e com a cabeça) nas tarefas caseiras, preparando a comida, cuidando da limpeza, trabalhando na roça, na oficina, praticando exercícios físicos. Aprendem a contemplar a natureza, por meio da qual também vão aprendendo a contemplar o belo, inclusive exercitando-se nas mais distintas linguagens artísticas. Em um de seus escritos de juventude, Marx aludia a uma das crueldades infligidas pelo Capitalismo: a de inviabilizar a parcelas expressivas de trabalhadores a oportunidade de contemplação artística – de contemplar um quadro, a de fruir um prato de fina culinária... Não importa qual seja a forma de linguagem artística – poesia, literatura, desenho, pintura, escultura, arquitetura, cinema, fotografia, dança, música... -, o ser humano não se humaniza sem recorrer também às artes, pela produção, pela contemplação, pela fruição.  
Ainda no campo cultural, vale ressaltar a importância das atividades voltadas ao aprimoramento contínuo da capacidade  perceptiva, de modo a que o ser humano seja capaz de ver melhor o que antes não percebia, ou percebia mal; o de escutar coisas novas, o de ler, interpretar e extrair ensinamentos concretos dos sinais dos tempos. Por meio do aprimoramento constante dos sentidos, da observação, e registro dos acontecimentos, os sujeitos históricos revolucionários também vão tendo condições crescentes de, não apenas lerem a realiade, mas também de reescrevê-la.

Considerações complementares  -

Diante de velhos desafios ainda largamente remanescentes, aos quais se agregam tantos outros de novo tipo, em vão, espera-se de nossos melhores clássicos, que deem conta do enfrentamento de questões como a necessidade e urgência de um novo tipo de militância, cuja formação adequada já não se deve restringir à formação política, mas, antes, ensaiar passos em direção a uma formação integral – da qual fazem parte, além da Política (apenas uma dimensão do ser humano), outras tantas dimensões, capazes de testemunhar um compromisso pessoal e coletivo de ir mudando a realidade, a partir de passos novos, coerentes com o sonho que almejam. Compromisso a ser cotidianamente renovado, pessoal e coletivamente, pelo exercício da mística revolucionária, de modo a refletir-se nos processos organizativo, formativo e de luta.

No que se refere especificamente ao processo de mobilização ou de luta, na próxima sexta-feira, dia 30/06, está prevista uma greve geral, instrumento necessário e oportuno para se fazer frente ao desmonte acintoso de políticas públicas essenciais. Com efeito, não bastassem as escandalosas falcatruas em que está metido o presidente Michel Temer, em escancarado conluio com o que há de mais asqueroso do meio empresarial, eis que se acha em curso um brutal desmonte dos direitos sociais (trabalhistas, previdenciários e outros) dos trabalhadores brasileiros, protagonizado pelos aliados de Temer, no Congresso e fora dele. Diante de tão grave ameaça à já frágil democracia brasileira, impõe-se aos sujeitos históricos revolucionários manifestarem publicamente, quantas vezes isto for necessário, não apenas sua indignação e sua revolta, como sobretudo irem forjando caminhos de superação, para além da pauta oficial.



João Pessoa, 28 de junho de 2017












sexta-feira, 23 de junho de 2017

CONTEMPLATIVAS NA AÇÃO: notas em busca de entendimento da Mística feminina, no Medievo

CONTEMPLATIVAS NA AÇÃO: notas em busca de entendimento da Mística feminina, no Medievo

Alder Júlio Ferreira Calado


Encerrou-se, no dia 14 próximo passado, o IV Seminário de Estudos Medievais, promovido pelo Grupo Interdisciplinar de Estudos Medievais (GIEM), na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), tendo como tema dos trabalhos “Utopias Medievais”. Entre conferências, Mesas de debate, minicursos e outras atividades, prevaleceram amplamente os trabalhos acerca das místicas medievais, dentre as quais: Hildegard de Bingen (1098-1179), Hadewijch de Antuérpia (1190-1240), Mechthild de Magdeburg (1207 –1282/1294), Marguerite Porete (1230-1310), Christine de Pizan (1363-1430). Duplo é o objetivo das notas que seguem: 1) destacar aspectos biobibliográficos de algumas protagonistas da Mística feminina medieval, e 2) buscar compreender quais componentes principais movem ou estão por trás da Mística exercitada por algumas mulheres ligadas ao, ou protagonistas do Movimento das Beguinas, no Medievo.

1) Traços biobibliográficos de algumas Místicas medievais

A chamada Idade Média (conceito atribuído pelos modernos ocidentais, em especial, a baixa idade media, é pródiga em movimentos e experiências de caráter utópico. Com efeito, do século XI ao século XV, prosperaram fortemente tais experiências.

São deste período os movimentos pauperísticos – os Cátaros, os Fraticelli, os Albigenses, os Valdenses, os Goliardos, os Begardos, as Beguinas... Eis um conjunto de experiências comunitárias de contestação ao poder clerical, reinante durante a Idade Média. Tais experiências constituíram relevante prenúncio da Reforma que aconteceria alguns séculos depois. Tinham em comum, não apenas um protesto contra os hierarcas eclesiásticos, como também significativos elementos de rebelião em busca de uma nova sociabilidade, alternativa ao regime feudal protagonizado pela nobreza e pelo alto clero. Nestas características, encontram-se preciosas sementes de Utopia, revestidas de formas diversas de libertação -  autonomia, liberdade, justiça, prosperidade, dignidade dos desvalidos, que animam experiência do Divino... (cf., a propósito das atividades beguinais, por ex.:

Tratamos, em seguida de sumarizar alguns elementos sobre a vida e a obra de algumas místicas medievais, mulheres que cultivavam uma íntima experiência de Deus, vivenciada de maneia muito pessoal e independente do controle da hierarquia eclesiástica. Tratava-se de mulheres contemplativas na ação, na medida em que sabiam aliar sua experiência mística ao trabalha artesanal , bem como ao serviço aos desamparados da época – doentes, crianças, pessoas idosas, mulheres marginalizadas.

A) Hildegard de Bingen - Começamos pela figura de Hildegard de Bingen, uma beneditina alemã  que viveu entre 1098 e 1179, considerada uma precursora das Beguinas, ao menos no que toca ao reconhecido potencial intelectual, como escritora, como compositora, como filosofa e como mística. Como abadessa beneditina, Hildegard de Bingen foi também fundadora de alguns mosteiros. Como compositora, é de sua autoria um antigo drama litúrgico, “Ordo Virtutum”, além de mais de 70 poemas e cantos litúrgicos. Escritora prolífica, escreveu obras teológicas e textos de temas medicinais e de Botânica. A ela é atribuída um número expressivo de cartas. Fala-se em três centenas! Fato curioso foi sua canonização pelo Papa Bento XVI de q (cf. http://en.wikipedia.org/wiki/Hildegard_of_Bingen ). Fato que reforça suas multifacetadas potencialidades, que atraíam, em seu tempo, a admiração de papas, de bispos, de príncipes.

B) Fragmentos biobibliográficos acerca de Hadewijch de Antuérpia (1190-1240)  - Uma vez mais, cabe reiterar, de início, também em relação a Hadewijch de Antuérpia, a praxe histórica de invisibilização das mulheres medievais, em especial das místicas e das sábias. Não poucas delas foram vítimas de múltiplas práticas misóginas: desde a ocultação de seus escritos, passando pelo plágio, pela desfiguração parcial de seus escritos, pela apropriação indébita de suas idéias, à perseguição sistemática, à prisão e à condenação. No caso de Hadewijch, cenas se repetem. Dela se dispõe de poucas informações, em grande parte graças à extração desde seus próprios escritos, que lograram chegar aos dias de hoje. Tem-se seu período de vida como sendo proveniente de Antuérpia ou de Brabante, região dos Países Baixos, tendo vivido entre 1190 e 1240. Trata-se de uma mística e poetisa de grande talento, a cujos escritos se atribui a fundação da língua flamenga. Além de escrever poemas, relatos de suas visões de Deus, também escreveu numerosas cartas, endereçadas a um público seleto. Diz-se também tratar-se de alguém muito viajada,
mulher erudita, portadora de vastos conhecimentos de Teologia, de línguas clássicas, mas fazendo questão – como, aliás, as demais Beguinas – de escrever em vernáculo. Seu objetivo também era de compartilhar seus escritos, poemas, relatos de visões, produção litúrgica, etc. com as pessoas leigas de seu tempo. Eis uma empreitada considerada das mais ousadas e ofensivas, pelos hierarcas de então. Eram interpretadas como demasiado atrevidas, por diversas “razões”: ousavam confessar uma relação pessoal com Deus, sem a necessidade da mediação eclesiástica;
- atreviam-se a “viver religiosamente” sem pronunciarem votos ante a Instituição controlada exclusivamente por homens que se pretendiam proprietários do Espírito Santo e exclusivos produtores dos bens simbólicos;
- nutriam pesadas suspeições contra as mulheres, associadas a eterna fonte de diabólicas tentações...

Eis algumas das “razões”, que se podem destacar para o cometimento de diversos atos contra também Hadewijch de Brabante. Ainda que pouco se saiba quanto às circunstâncias mais precisas, é tida como uma mulher perseguida pela Instituição eclesiástica. Fato bastante verossímil, a considerar-se que seus escritos foram silenciados durante cerca de seis de séculos, “guardados” que foram a sete chaves... E ao reaparecerem, nem todos foram recuperados, sem mencionar o fato de trechos questionáveis, enquanto outros “aliviados” pelos guardiães dos referidos escritos. A este respeito, ver, por ex., o depoimento de Jacqueline Kelen:
Tal “atrevimento” custou-lhe – a Hadewijch bem como às beguinas sem vínculo eclesiástico – muita perseguição, prisão e exílio – preço característico da profecia, em todos os tempos e lugares...


C) Brevíssima notícia biobibliográfica sobre Mechthild de Magdeburg -  - À semelhança de outras Beguinas, também despontam relativamente escassos os dados sobre o percurso existencial de Mechthild. Consta ter suas raízes fincadas em Magdeburg, Alemanha, onde nasceu em 1207. Desde os doze anos, começa a ter visões místicas, que mais tarde viriam a ser registradas. Trata-se de uma pessoa movida por uma forte espiritualidade marcada por uma experiência de intimadade pessoal com o Divino. Também à semelhança de outras beguinas, vocacionadas a uma vida contemplativa na ação, Mechthild não pronuncia votos convencionais, como costumavam fazer as mulheres que escolhiam consagrar-se à vida religiosa do seu tempo. As beguinas – Michthild, por igual – preferiram exercitar sua mística, sem necessitarem subordinar-se a normas de vida consagrada ditadas pelo clero. O fato de não se contraporem explicitamente – até por uma eventual razão estratégica: a correlação de forças seria extremamente desigual... – aos ditames masculinos, não raramente de caráter misógino – não queria dizer que não fossem profundamente contemplativas, sem prejuízo de sua multiforme ação no mundo, seja como pessoas dedicadas ao trabalho manual (artesanato), seja ao trabalho intelectual (estudiosas da teologia, da liturgia, das línguas clássicas e modernas, das belas letras..., seja ainda, e não menos, ao serviço dos desamparados do seu tempo.

No caso de Mechthild de Magdeburg, também manteve-se, ao longo da vida, com bastante autonomia. Sua obra, composta de sete textos que recolhem seus escritos, relatos de suas visões e diálogos com o Divino, caracterizados por uma densa e profunda experiência de intimidade pessoal com Divino, enseja um visível mal-estar a membros da hierarquia eclesiástica, inclusive a quem eventualmente se mostrava “simpático”  aos seus escritos Um deles acabou reunindo seus escritos e publicando-os, mas não sem antes estabelecer critérios seletivos, de modo a omitir ou a mitigar aspectos dos escritos considerados menos palatáveis, aos olhos clericais do seu tempo. Em especial, incomodavam passagens mais fortes de uma experiência pessoal de profunda intimidade com Deus, interpretadas como algo estranho, se não desbordando para algo erótico... Mechthild viveu até por volta de 1283.

D) Dados do perfil de Marguerite Porete (Valenciennes, França, 1250-1310) – Um dos obstáculos que se interpõem às pesquisas de personagens ou coletividades vítimas da sanha do poder tem a ver com a escassez de fontes ou dados provenientes das mesmas vítimas. Não raro, tem-se que trabalhar com os dados fornecidos pelos sujeitos que as perseguiram. É o que também se passa em relação a Marguerite Porete. De todos os modos, sabe-se que viveu entre 1250 e 1310, tendo vivido em Valenciennes (França) adjacências. Trata-se de uma das místicas mais destacadas da Baixa Idade Média, sobretudo pela força de sua heterodoxia, interpretada como heresia, razão de sua condenação à fogueira, em 1310. Mística notabilizada pela sua coragem e coerência em não ceder aos apelos dos perseguidores, que, após aprisiona-la por um período, dela exigiam retratação, sobretudo pela imputação de cometer heresia, já que, em seus poemas e meditações, entendia que tal eram seus liames íntimos com Deus, que não necessitava de mediação eclesiástica nem do clero...

Ter-se-ia livrado da fogueira, caso abrisse mão de suas convicções. Dela pretendiam que renegasse sua principal obra – O Espelho das Almas Simples – e que aceitasse tirá-lo de circulação, e teria livrado a pele. Coerente, serena e confortada por seu Amado, ousou enfrentar a pena maior.

Não apenas no caso de Marguerite Porete, vale destacar o alcance da corrente de espiritualidade conhecida como a do Livre Espírito, associada ao pensamento de Giocchino da Fiore, em sua interpretação bíclico-apocalíptica da Idade do Espírito Santo, que se seguia à Idade do Pai e à Idade do Filho, numa interpretação das funções específicas de cada pessoa da Santíssima Trindade. A Idade do Espírito Santo é a era da Liberdade – “Onde o Espírito Santo se faz presente, aí renia a Liberdade.” 


E) Breve notícia sobre a vida e da obra de Cristine de Pizan (1363 – 1430 ) -  Outra personagem medieval que sacudiu a consciência do seu tempo, e para além do mesmo. Como sugere seu nome de referência geográfica (Pizzano), Cristina da Pizzano provém da região em torno de Bologna (Itália), nascida em 1363 e tendo vivido até 1430. Em virtude da profissão do pai, médico do rei da França, é educada na França, onde é conhecida como Christine de Pizan. O pai, além de médico, era um homem cultivado, professor universitário, astrônomo. Detentor de uma vasta biblioteca, onde a adolescente Cristina passava parte expressiva do seu tempo a ler distintas obras, inclusive os autores greco-latinos. Como era praxe, à sua época, casou-se muito cedo – aos quatorze ou quinze anos. Filhos aparecem, em seguida. Mas, cerca de dez anos após, seu marido vem a falecer. Para sustentar os filhos, decide não se recasar, mas, antes, dedicar o melhor de si a escrever profissionalmente. Foi a primeira mulher a manter-se dos livros publicados. Escreve poemas, depois textos ou livros, sob encomenda, que passam a fazer crescente sucesso. Mas, sem prejuízo dos escritos encomendados, também investe em textos de sua iniciativa, e com bem mais afinco. É o caso de sua obra-prima, A Cidade das Damas (1405). É, ademais, digno de nota seu talento não apenas de escritora. Ela própria cuida de todas as etapas requeridas na confecção de um livro, inclusive das imagens. Uma artista completa. (cf. sobre isto:

Em sua obra mais conhecida – A Cidade das Damas -, Christine de Pizan entrega-se a um labor de grande alcance edificante: o de recobrar a memória de mulheres de distintas épocas históricas, com o propósito de fazer um estratégico contraponto à tendência de ocultação, de invisibilização, de plágio, de apropriação indébita da produção literária, filosófica, teológica, científica de mulheres de várias épocas, em favor do pretenso monopólio dos homens na produção de saberes. Na mencionada obra, Christine de Pizan põe em cena três Damas – Razão, Retidão e Justiça – a dialogarem, acerca da autoconsciência a ser exercitada pelas mulheres, quanto às suas efetivas potencialidades intelectuais, éticas e políticas, a partir da rememoração de importantes figuras femininas do passado e  do presente. No primeiro livro desta obra, dedicada à Dama Razão as personagens em cena tratam de se queixar do desprezo sofrido pelas mulheres, por parte dos homens, por considerá-las desprovidas de inteligência e de saber. No livro II entra em cena a dama Retidão, em que prossegue o diálogo entre as mulheres acerca dos preconceitos e das violações por elas sofridos da parte dos homens, sempre contando com o aconselhamento criterioso da Dama Retidão. No livro III entra em cena a Dama Justiça, a rememorar diversos exemplos de mulheres sabias, cientistas e de grandes virtudes, tendo como propósito principal encorajar as mulheres a construírem uma cidade só de mulheres, em vista de assegurar-lhes as condições de pleno desenvolvimento de suas capacidades e virtudes

2) Considerações em busca de entendimento de componentes  da Mística feminina do Medievo

Há, com certeza, passos animadores, quanto ao reconhecimento da densa contribuição ao pensamento crítico das Místicas e das Mulheres da chamada Idade Média. Mas, convenhamos, resta ainda muita estrada a percorrer, nesse sentido. Debruçando-nos sobre o sua densa e vasta obra, cuidamos de ressaltar, nas linhas que seguem, cinco dimensões que entendemos presentes no exercício da Mística feminina do Medievo:  a) uma primeira, relativa a certa conotação erótica, presente em alguns de seus diálogos com o Divino; b) uma segunda, atinente a uma dimensão estética; c) uma terceira dimensão prende-se à sua postura ética; d) uma quarta dimensão concerne a um modo específico de lidar politicamente; e e) uma quinta dimensão está ligada à esfera econômica de organizar-se. Cumpre, todavia, tomar em conta a dinâmica interação dessas cinco dimensões, que nunca agem, em separado, ainda que cada qual possa ser observada mais fortemente do que outras, em certas circunstâncias.

a) Apelo erótico no exercício da Mística de figuras femininas medievais  - Há ou não uma Erótica subjacente ou implícita em trechos de obras das Místicas medievais? Eis a questão que nos ocupa. Em se tratando de mulheres que se queriam consagradas a uma vida de intensa espiritualidade, mas, ao mesmo tempo, sem tutelas eclesiásticas ou da família, não se deve desprezar sua vivência específica de Espiritualidade, desde uma perspectiva integral ou integrativa, isto é, de conceberem a vida humana (e dos demais seres) como dom de Deus, como um todo harmônico, composto de Natureza e Cultura, de modo a abraçar toda a vida humana. Neste sentido, não só não lhes aparece estranha a dimensão erótica da vida humana, mas como uma marca fundamental, um componente vital, associado a outros componentes igualmente fundamentais – a contemplação, o lúdico, o artístico, a dimensão econômica, etc. Aqui, convém alertar de que Eros não se confunde com erotismo, o que descambaria para uma apreciação reducionista e distorcida da função vital de Eros, em complementaridade com tantas outras dimensões do (co)existir humano.

Por outro lado, cumpre lembrar que as Místicas medievais eram mulheres eruditas, conhecedoras também da Teologia, familiarizadas com a Bíblia, com o Antigo e o Novo Testamentos, inclusive com os Salmos e o com o Livro do Canto dos Cânticos (Cantares).  Tal familiaridade permite-lhes, não apenas ler com naturalidade passagens do Canto dos Canticos como as adiante citadas,  como também nutrir-se de metáforas similares em seus diálogos com a Divindade. Com efeito, versículos tais como: “Ah! Beija-me com os beijos de tua boca! Porque os teus amores são mais deliciosos que o vinho” (Cânticos 1:2); “e suave é a fragrância de teus perfumes; o teu nome é como um perfume derramado: por isto amam-te as jovens.” (Cânticos 1:3); “Arrasta-me após ti; corramos! O rei introduziu-me nos seus aposentos. Exultaremos de alegria e de júbilo em ti. Tuas carícias nos inebriarão mais que o vinho. Quanta razão há de te amar!” (Cânticos 1:4) Terão exercido provável influência em momentos mais densos desses diálogos. Nesse sentido, não nos surpreendem trechos de poemas ou de visões por elas relatadas, tais como:

“Este laço une aqueles que amam
 de forma que um penetra inteiramente no outro,
 na dor ou no repouso ou na ira de amor,
 e come a sua carne e bebe o seu sangue:
 o coração de cada um devora o outro coração,
o espírito assalta o espírito e invade-o por inteiro,
como nos mostrou Aquele que é o próprio amor,
tornando-se o nosso pão e o nosso alimento,
e desfazendo todos os pensamentos do homem.
Ele deu-nos a conhecer que nisto
está a mais íntima união de amor:
comer, saborear, ver interiormente.
Ele come-nos, nós julgamos comê-lo,
e sem dúvida que o fazemos”.[1]

“Oh Dios, que te derramas en tu don!
Oh Dios,que resplandeces en tu amor!
Oh Dios, que ardes en tu deseo!
Oh Dios, que te fundes en unión con el amado!
Oh Dios, que reposas entre mis pechos, sin ti no puedo ser!.”[2]


b) Dimensão ética na experiência existencial de Místicas da Idade Média – Acoplada a outras dimensões da Mística feminina medieval, desponta também uma ética, como baliza de conduta específica destas místicas do Medievo. Sua principal característica reside da busca de uma vivência coerente entre o sentir, o pensar, o querer, e o fazer. Procuravam viver coerentemente com o que pensavam e sentiam da vida das pessoas de Deus. Neste sentido, a inspiração bíblica lhes era de capital importância, especialmente no que se refere à ação do Espirito Santo, dada a missão especificamente atribuída à Terceira Pessoa da Trindade, conhecida como doadora dos dons e inspiradora de liberdade. Como se dizia, “Onde está o Espirito aí há Liberdade.” (“Ubi Spiritus, ibi Libertas.”).

Em sua experiência pessoal de Deus as Místicas medievais, inspiradas pelo Espirito Santo sentiam-se motivadas a reconhecerem a diversidade como uma bênção, a ser acolhida e cultivada, como primeiro passo em busca da unidade. Tratavam de costurar os mais diferentes fios da diversidade humana e do mundo, como passo fundamental na busca da unidade: “unidade na diversidade”. Eis um critério que abre caminho contra preconceitos e intolerância, em especial em tempos de intensa misoginia, como se pode observar, por exemplo, nos relatos das personagens da obra principal de Christine de Pizan – A Cidade das Damas.

No exercício da Mística feminina, no Medievo, observa-se um cuidado especial com a observância de valores carregados de alternatividade aos valores hegemônicos de então. Tal postura explica, por exemplo, seu compromisso com a causa libertária dos segmentos mais vulneráveis daquela época: as mulheres, os enfermos, as pessoas idosas, as crianças, a quem dedicam o melhor de sua ação contemplativa e de suas práticas do cotidiano. Aos valores de dominação, propõem e testemunham práticas de solidariedade, de partilha, de horizontalidade, de fraternidade radical.  

c) Incidência de uma dimensão estética entre as Místicas do Medievo – As Místicas medievais também se caracterizam por um especial apreço pelo belo. A beleza constituía, com efeito, um traço dos mais importantes do seu estilo de vida. Traços de beleza podem ser observados em várias de suas produções artístico-artesanais, literárias, inclusive na confecção de seus livros. Um rápido olhar sobre algumas de suas obras, será bastante para se conferir a qualidade (também) estética do seu trabalho. Como ilustração, vale a pena conferir, de passagem, alguns exemplos de elementos estéticos elaboradas por Hildegard de Bingen, (cf. https://www.google.com.br/search?q=hildegard+of+bingen+ilustra%C3%A7%C3%B5es+ilumin%C3%A1rias&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwipisK1x9TUAhXDGpAKHWrFABIQ_AUICigB&biw=840&bih=435)

Exemplos igualmente extensivos a outras Místicas e sábias medievais, como a própria Christine de Pizan (cf.https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/236x/a4/08/61/a408614455dafd1826914db7d4fbe237.jpg


Reiteramos o zelo de Christine de Pizan em confeccionar várias ilustrações a comporem  sua produção literária.



d) Aspectos da dimensão política na experiência mística medieval – O agir político das Místicas medievais pode ser observado, igualmente, de vários modos. Um primeiro aspecto a destacar, remete à sua concepção e à sua prática de lidar com o poder. Diferentemente do estilo hegemônico da época, em que vigia o poder-dominação (de exploração, de possessão, de de marginalização...), as Beguinas e as Místicas testemunhavam um outro sentido de poder – o do poder-serviço, o do poder-partilha, o do poder-solidariedade. À prepotência machista reinante, opunham o testemunho do respeito às diferenças; em oposição aos privilégios de poucos, punham em prática o reconhecimento da dignidade de todos, a começar pelos segmentos mais vulneráveis da sociedade – os desamparados, os pobres, os doentes, as crianças, as pessoas idosas. À competição doentia opunham a convivência respeitosa dos direitos de todos, sobretudo das vítimas.

A práxis política das Beguinas orientava-se pelo respeito à diversidade, com se tratasse de múltiplos fios existenciais a serem costurados , em busca da unidade possível. Outro aspecto que merece destaque, na prática e na concepção de Política, por parte das Beguinas, prende-se ao seu lidar com as relações de poder em suas minúsculas manifestações, de que é pródiga a vida cotidiana. Tratavam de conferir sentido às relações moleculares, por entendê-las impregnadas de sentido tal como sucede nas macro manifestações de poder.

e) Incidência da esfera econômica na (con)vivência de Místicas do Medievo –
Por último, mas não menos importante, convém situar o lugar da produção no contexto da vida pessoal e comunitária das Místicas e das Beguinas, no período medieval. Considerando seu horizonte libertário, que implicava livrarem-se da tutela patrimonial e eclesiástica, estas mulheres trataram de criar as condições materiais como forma de viabilização de seu modo de vida baseado numa autonomia relativa frente às forças hegemônica de sua época. Para tanto cuidavam de distribuir adequadamente seu tempo e suas atividades, de modo a permitir uma vida sem tutelas. Algumas das Beguinas puderam contar com a herança de bens familiares, que trataram de orientar em favor de sua organização. Por outro lado, dedicavam tempo a trabalhos manuais e intelectuais, dos quais extraíam algum rendimento. Tratava-se de trabalhos artesanais, feitos a partir de diferentes matérias primas, aos quais se empenhavam em imprimir especial toque de beleza. Outras, uma minoria, empregavam parte do tempo como copistas, como compositoras, como escritoras, etc. Sobre esta última atividade, convém lembrar o exemplo de Christine de Pizan, que viveu exclusivamente do seu trabalho profissional de escritora.



Considerações sinóticas – Nestas notas, cuidamos de fornecer elementos que permitam a não-iniciados na temática, uma visão de conjunto sobre algumas alumas figuras femininas, protagonistas da Mística medieval. Nesse sentido, buscamos entendê-las, a partir de cinco componentes constitutivos ou presentes em seu estilo de vida, em especial em sua experiência de Deus, a quem costumavam tratar, em seus poemas e em suas visões, como o Bem Amado. Em tais experiências, destacamos as dimensões erótica, ética, estética, política e econômica, chamando, porém a atenção para a dinâmica inter-relação dessas mesmas dimensões.

Convém a leitoras e leitores dos nossos dias a lembrança de que, ao revisita-nos essas experiências prenhes de alternatividade ao modelo hegemônico vigente, poder vislumbrar, também hoje, continuidades dentro das descontinuidades, de modo que possamos descobrir que, também hoje, podemos registrar, “correntezas subterrâneas”, experiências moleculares, similares, de algum modo, às aqui aludidas. Como negar, por exemplo, que a densa experiência das Pequenas Comunidades de Religiosas Inseridas no Meio Popular (PCIs) ou como a organização das lideranças religiosas dos EUA, The Leadership Conference of Women Religious (LCWR) não constituem experiências atualizada das antigas Beguinas?





João Pessoa, 23 de junho de 2017





[1] Cf. RÉGNIER-BOHLER, Danielle Régnier-Bohler, “Vozes literárias, vozes místicas”, In: DUBY, Georges Duby, PERROT, Michelle, Perrot, História das Mulheres: a Idade Média, Vol 2, Porto: Edições Afrontamento, 1990, p.578.
[2]ÉPINEY-BURGARD, G; ZUM BRUNN, É. Mujeres trovadoras de Dios. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 2007, p. 109.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

FRANCISCO, BISPO DE ROMA, E ENRIQUE DUSSEL: afinidades desde sua diversidade como testemunhas de valores alternativos à sociabilidade capitalista

FRANCISCO, BISPO DE ROMA, E ENRIQUE DUSSEL: afinidades desde sua diversidade como testemunhas de valores alternativos à sociabilidade capitalista

Alder Júlio Ferreira Calado

Despontam, com espantosa recorrência, cobranças e queixas sobre a crescente escassez de referências éticas, na contemporaneidade. Atravessamos, com efeito, quanto a isto, um longo e tenebroso túnel. Aqui, ali, contudo, um fio de luminosidade: experimentamos a grata sensação de nos depararmos com sutis manifestações das “correntezas subterrâneas” que brotam no deserto (“O deserto é fértil”, dizia Dom Helder Câmara), impregnadas de alternatividade, desde seu estilo de vida. Elas nos infundem consolo, em tempos áridos; elas nos ajudam a restituir a esperança/”esperançamento” de que precisamos, para manter vivos nossos sonhos mais generosos, de um outro mundo, possível e necessário.

Escassez, felizmente, não quer dizer ausência absoluta. Ontem como hoje, as “minorias abrahâmicas” seguem fazendo seu trabalho, conduzidas pelo Sopro fontal. As testamunhas podem ser mais escasssas em certas épocas do que em outras. Mas, têm algo em comum: o próprio testemuho diferencial (pessoal e comunitário). Tornou-se emblemática uma afirmação feita pelo Papa Paulo VI, num de seus escritos de referência – “Evangelii nuntiandi”, em 1975: “Os homens de hoje prestam mais atenção às testemunhas do que aos mestres, e se prestam atenção também a estes, é porque são testemunhas”.  

Ontem como hoje, em todos os continentes, encontramos testemunhas com tocantes testemunhos de alternatividade. Antes de pensar em figuras de reconhecimento notório, cumpre destacar tantas figuras ANÔNIMAS de mulheres e de homens, dedicados e com perseverança, a servirem suas gentes, desinteressadamente, com verdadeiro espírito PÚBLICO. A tais figuras se somam outras, que gozam de notoriedade. Aind há pouco, dia 06/06/2017, recebemos, com saudade,  gratidão e esperança, a notícia da “grande viagem” feita por uma dessas figuras que entregaram sua vida a serviço ao “Bem Comum da Humanidade” – François Houtart, presbítero blega, exemplar revolucionário, a cuja contribuição teórico-prática muito devem os empobrecidos de todo o mundo. (cf. um dos mais recentes livros seus, dentre os cerca de setenta publicados:

 Aos 92 anos, sociólogo e pesquisador incansável, tendo peregrinado por mais de 70 países, François Houtart vivia a trabalhar no Equador! Sim, porque também na América Latina, temos exemplos de testemunhas paradigmáticas. Ocorre-me pensar em figuras como Dom Leonidas Proaño, Dom Helder Câmara, Dom Oscar Romero, Dom Antônio Batista Fragoso, Paulo Freire, Pe. José Comblin, João Pedro e Elizabeth Teixeira, Irmã Dorothy Stang, Adolfo  Pérez Esquivel, Rigoberta Menchú, Eduardo Galeano, Pepe Mujica, Xicão Xukuru e tantas outras, sempre começando pelas figuras anônimas...

Nas linhas que seguem, destacamos duas figuras latinoamericanas; por coincidência, ambas nascidas na Argentina: Francisco, Bispo de Roma,  e Enrique Dussel, filósofo, historiador e teólogo, e com doutoramento nessas áreas. Sem pretensão de caráter propriamente biobibliográfico, nosso propósito é bem pontual: ressaltar traços comuns de sua trajetória existencial e ético-política,  cada qual, a partir de seu lugar social/institucional, no que concerne à sua reconhecida contribuição no campo dos valores alternativos à sociabilidade capitalista.

Antes de ressaltar aspectos comuns entre essas duas personalidades, convém fornecer uma brevíssima notícia sobre cada uma delas.

1) Com relação a Fransisco, Bispo de Roma, trata-se de um jesuíta argentino, nascido em 1936, que, antes de ingressar na referida Ordem religiosa, frequentou curso superior de Química, experiência  que lhe propiciou uma salutar convivência mais próxima com os jovens do meio não-eclesiástico. Filho de imigrantes italianos, de tradição católica, sentiu-se vocacionado ao sacerdócio ministerial.  Após sua ordenação presbiteral, exerceu distintas missões, ligadas ao ministério presbiteral. Mais adiante, também recebeu a Ormem episcopal, tendo passado um bom tempo a trabalhar pastoralmente com comunidades da região periférica de  Buenos Aires. Tempos depois, foi nomeado Cardeal.

Consta de sua biografia pastoral uma proximidade especial  com as populações ods bairros periféricos de Buenos Aires, para onde se costumava deslocar-se, em transporte coletivo, como um cidadão comum.  Teve uma atuação destacada, na realização da Conferência Episcopal Latinoamericana em Aparecida, em 2007.

Como autoridade eclesiástica, teve que enfrentar desafios embaraçosos, por conta da Ditadura Militar, que infelicitou também o povo argentino, entre 1976 e 1983. Durante este período, contra ele foram assacadas algumas cobranças de postura profética, diante da crueldade do regime.

Em se tratando, no plano eclesial, de personagem pouco conhecida, em relação a vários outros cardeais apontadas como favoritos à sucessão do Papa Bento XVI, constituiu grande surpresa o fato de ter sido escolhido, entre os pares, justamente a figura do Cardeal Mario Jorge Bergoglio. É a partir daí, que Mario Jorge Bergoglio passa a assumir o papel surpreendente de uma liderançade novo tipo, não só ao interno da Igreja Católica Romana, mas sobretudo aos olhos do mundo não-católico, evangélico, de várias religiões e de segmentos ateus, ou de confissão não definida.

Assumindo o nome de Fransisco (referência explícita a Fransisco de Assis), sendo ele um jesuíta, o mundo é surpreendido progressivamente por seus gestos, por seus escritos e por seus pronunciamentos.


Quanto aos gestos, impacta sobremaneira sua linha de coerência com os valores evangélicos mais expressivos – simplicidade, humildade, estilo de vida pobre, sobriedade, compromisso com a causa libertadora dos pobres; testemunho concreto de solidariedade aos migrantes forçados e regugiados, em vários momentos cruciais (Lampadusa, Lesbos...); faz questão de ter proximdade, contato concreto com as multidões, ainda que contrariando protocolos e regras de segurança; faz denúncia vigorosa do sistema hegemônico, insistência na conversão como um processo contínuo, na alegria, no serviço como principal marca do amor evangélico, no perdão e na misericordia. Gestos continuamente confirmados em seu estilo sóbrio e alegre de vida, nas muitas visitas pastorais, nas incessantes viagens apostólicas pelos vários continentes.

No tocante aos seus escritos, destacamos, de passagem, apenas dois  dos documentos de sua lavra: a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (2013) e a Encíclica Social Laudato sì (2015). O primeiro documento dirige ao público católico, em especial os pastores, propondo um programa de governo pastoral para a Igreja, em vista das próximos anos. Nele, trata de sublinhar a primazia do Povo de Deus como principal protagonista na estrutura organizativa da Igreja; denuncia os vícios do cleritalismo: a “psicologia principesca”, a praga do carreirismo;   enfatiza  a urgência de uma Igreja missíonaria (“Igreja em saída missionária”); defende o espírito evangélico da centralodade dos pobres como pririoridade da missão da Igreja; denuncia vigorosamente a “economia de morte”, característica principal do modelo vigente; apregoa abertura ao exercício ecumênico; chama a atenção para a importância da homilia; anuncia a relevância de uma espiritualidade radicada no Evangélica...

Com relação à Laudato sì, dirige-se a todo o mundo, a todos os homens e mulheres de boa vontade, convocando-os a cuidarem responsavelmente de nossa “Casa Comum”. Trata-se de um documento elaborado com profunda base científica, apoi8ando-se em autores de reconhecida contribuição na área,  sem deixar de ser um documento profundamnte  pastoral, razão pela qual obteve  ampla recepção e impacto, pelas denúncias proféticas das diversas manifestações de agressão sócio-ambiental, ao mesmo tempo em que oferece pistas concretas (comunitárias e pessoais), em busca de superação dos grandes impasses socio-ambiêntais da atualidade. Vale registrar, igualmente, a inovação metodológica de sua abordagem da questão sócio-ambiental: exercita um olhar de múltiplas conexões e integrativo.

Em seus numerosos pronunciamentos, feitos nas mais distintas ocasiões – nas celebrações  litúrgicos, nas diversas intervenções públicas, por ocasião das viagens aos mais diversos países, além de entrevistas e outras participações -, o Bispo de Roma expressa, de modo consequente com seus gestos e escritos,  posições-chave, em boa medida sintetizáveis por idéias-força tais como: 
- primazia do testemunho sobre discursos e  prédicas;
- consciência dos limites humanos, a partir dos seus (“Eu também sou um pecador”);
- enfatiza a unidade na diversidade, não a unidade como uniformidade;
- ainda que nem sempre o explicite, nele é forte a perspectiva fundante de “Reino de Deus”, núcleo duro da pregação de Jesus, e que ultrapassa o horizonte da Igreja, de modo a abranger todo o Povo de Deus, portanto, toda a humanidade (quando se restringe a Boa Nova à Igreja, alimenta-se objetivamente a tentação de uma autoreferência, razão por que não poucos lidam com as coisas da Igreja como se dela fossem funcionários, donde a tentação ao carreirismo, entre outras);
- aposta na conversão enquanto processo (a conversão não se faz uma vez e para sempre acabada, mas se vai fazendo processualmente, pela força da Graça e pela generosa abertura e resposta  à voz do Espírito Santo); - aposta mais no processo do que nos resultados (em um de seus pronunciamentos aos delegados e delegadas de movimentos populares, realizado  em Santa Cruz de la Sierra – Bolívia, ele afirma preferir sempre apostar nos processos, em vez de “ocupar espaços”);
-  sistematica desconfiança na força dos “grandes”, a que se contrapõe sua enorme confiança na força dos pobres;
- invencível aposta em estar em contato direto com o povo, nas praças e nas ruas;
- relevância atribuída à “cultura do encontro”;
- insistência reiterada no serviço (em especial, aos pobres e necessitados) como principal marca do amor cristão;
- persistente  combate ao clericalismo, rejeitando, com veemência, uma “psicologia principesca” ou a praga do carreirismo;
- combate a uma Igreja “auto-referênciada”, a que contrapõe a necessidade de uma “Igreja em saída missionária”;
- defesa e promoção das pequenas comunidades, funcionando organicamente e de modo interconectado;
- preocupação, defesa e promoção da dignidade do Planeta;
- convicção de que a alegria deve ser marca essencial dos cristãos;


2) No que toca a Enrique Dussel, segue, igualmente uma brevíssima notícia biobibligráfica. Trata–se de um argentino, nascido em Mendoza em 1934, em cuja Universid de Cuyo concluiu seu Curso de Filosofia, em 1957, tendo apressentado como trabalho de conclusão de sua Gradução em Filosofia uma monografia versando sobre o Bem Comum, na concepção dos filosofos gregros.
Segue, depois, para a Espanha, onde conclui seu Doutorado em Filosofia, na Universidad Complutiense de Madrid, em 1959, tendo apresentado, então, uma tese abordando a questão do Bem Comum.

Entre 1959 e 1961, viveu em Nazaré, na Palestina, na companhia de padres operários, entre os quais o famoso jesuíta Paul Gauthier. Uma experiência que o marcaria profundamente, seja do ponto de vista da atividade laboral, seja também com relação à pesquisa. Nesta temporada, houve por bem fazer uma imersão reflexiva sobre o humanismo semita, como meio de fazer a crítica à filosofia helenística, em especial de seu dualismo – corpo e alma. Foi-lhe, então, de grande proveito o aprofundamento sobre o humanismo semita, nome do livro escrito em 1961. Depois, segue para a França, onde dá prosseguimento a seus estudos teológicos, na Universidade Católica de Paris, e onde também cursará seu Doutorado em História, especialiando-se em história da Igreja. Sua tese de doutorado investiga a evolução do Episcopado latinoamericano dos séculos XV e XVI. De lá, ainda segue para a Alemanha, sempre em busca de aprofundar suas pesquisas, no campo da Teologia, bem como sobre a Ameríndia.

De retorno a Mendoza, após cerca de dez anos de Europa e Oriente Médio, enfrenta, com sua esposa que conhece na Alemanha, sérias ameaças, graças ao clima de perseguição lá existente, e de onde tem que sair, estabelecendo-se, finalmente no México.

Teve relevante contribuição ao povo do Equador, onde, em Quito, ministrou cursos no Centro ligado a Dom Leonida Proaño. Aí desenvolveu sobremaneira suas pesquisas no campo da história da América Latina, inclusive das Igrejas. É co-fundador e dirigente da Comisión de Estudios de la Historia de la Iglesia Latinoamericana y Caribe.  Desde tal lugar, empreende com a briosa Equipe da CEHILA um fecundo plano de pesquisa e de publicações sobre a história da Igreja Latinoamericana e do Caribe, “a partir do povo”.

Sem prejuízo de sua competente incursão pela história da(s) Igreja(s), na América Latina e do Caribe, bem como sobre a história dos povos aborígenes, talvez tenha sido o campo da Ética Comunitária, o em que mais se tenha notabilizado. Com efeito, Dussel segue o principal nome de referência da Filosofia da Libertação, onde sua contribuição é considerada original. Ligado à Filosofia da Libertação, Dussel também é apreciado pelas suas incursões heurísticas pelo campo da Teologia da Libertação, tendo-se notabilizado pelo seu enfoque marxiano, de par com nomes de reconhecida contribuição, a exemplo de Hugo Assmann e Franz Himkelammert, e entre outros.

Cumpre ainda ter presentes mais dois campos de pesquisa de suas incursões analíticas. Uma tem a ver com sua cuidadosa e aguda leitura de parte expressiva da obra de Karl Marx.  Tornou-se um clássico seu livro de análise acurada dos Grudrisse. Ainda no campo dos estudos marxianos, cabe sublinhar seu genial livro sobre as metáforas teológica de Karl Marx.

Densa contribuição Dussel igualmente tem assegurado com sua investida original pelas pesquisas em torno da descolonização do pensamento ocidental.

Sempre entendendo a pesquisa ciêntífica como processo, nunca hesitou em reconhecer seus próprios limites, estando aberto a abraçar abordagens teórico-metodológicas de maior pdoer explicativo. É assim que acaba por esposar o metodo analéctico (cf. https://www.youtube.com/watch?v=0Kzov0Hepc4 ), que combina componentes da Dialética com recursos da analogia, isto é, vai investindo, cada vez mais no esforço de compreender melhor a realidade, por meio do reconhecimento de semelhanças e distinções dos mais diversos objetos da mesma realidade.

Este cidadão do mundo nascido em Mendoza, Argentina, e tornado também mexicano, onde se encontra radicado, desde os anos 60. Filósofo, historiador, teólogo - talvez os campos mais referenciais de sua contribuição, dentre outros pelos quais também circula, com reconhecida competência.

No campo da descolonização do pensamento eurocêntrico, Dussel nos faz lembrar a conhecida afirmação de Roger Garaudy, de que "O Ocidente é um acidente"... Seu denso legado inclui, também, numerosas conferências pronunciadas em vários países do mundo, a exemplo da que proferiu na região de Andaluzia, Espanha, da qual nos permitimos destacar os seguintes pontos.


Já antes de se introduzir ao tema central da conferência – Walter Benjamin -, Dussel faz questão de enfatizar a relevância daquele lugar (Andaluzia), região em que durante seis ou sete séculos, eram os árabes, e não os europeus, os grandes protagonistas do mundo. Com efeito, partindo de Marrocos, com grandes centros (universidades, ciências desenvolvidas, grandes incursões pelo mundo de então), espalhados pela Líbia, pelo Egito e, sobretudo, no Iraque, sendo Baguidá a maior referência civilizatória, durante 5 ou 6 séculos. À época, a Europa era simples periferia do mundo, subdesenvolvida, com um papel secundário em comparação com a civilização árabe. Lembra que eram centenas de árabes – e não apenas um europeu, Marco Polo, a circularem constantemente pelo mundo de então, China, Índia, etc, em viagens de empreendimentos comerciais.

Ainda antes de empreender uma incursão pela trajetória intelectual de Walter Benjamin, Dussel ousa antecipar alguns traços comuns entre Walter Benjamin e ele próprio. Alude ao seu primeiro livro, escrito em 1961, intitulado Humanismo Semita, aos 27 anos, um caminho original que ele escolheu, para fazer a crítica à filosofia grega, de perfil dualista, que separava corpo e alma. Dussel entendia que era preciso  ousar fazer a crítica a filosofia helenistica, a partir de um olhar desde fora do helenismo. Dois pontos significativos por ele sublinhados têm a ver com o critério de analises da filosofia semitica e da importância, e  com seu entendimento de crítica, na perspectiva do filósofo judeu alemão, Hermann Cohen. No primeiro caso, Dulsseu, ressaltava com enfâ-se, o metodo seguido pela filosofia semítica, segundo o qual o analista tinha que se colocar, primeiro, no  lugar epistemológico do pobre, para em seguida, fazer o diágnostico da patologia do Estado.

Em qualquer lugar do mundo importaria ao analistica imergi-se no mundo dos pobres, dos oprimidos, como condição de examinar a patologia da Sociedade, da Política, do Estado. Quanto ao segundo ponto de observação, Enfativaza comportar a Crítica 3 níveis: um nível material, representado pelo texto; o nível de uma primeira interpretação do texto ; e a críica propriamente dita, que implicava uma recriação do texto, em que a obra criticada se realizava. 


3) O quê, então, sublinhar de comum desses dois argentinos octogenários, em plena atividade criativa?

·         Não nos ocupamos aqui, a não ser implicitamente, das distinções observáveis entre as duas personagens tomadas, sob um olhar analógico. Nosso propósito é, antes, o de sublinhar suas semelhanças.  Em busca de um roteiro que permita destacar seus traços comuns, cuidamos de distribuir este tópico em três dimensões  organicamente interconectadas: a) uma incidindo mais diretamente no plano existencial; b) uma segunda concernente mais enfaticamente à esfera ética, e c) uma terceira dimensão mais explicitamente vinculada ao plano político.

a) No plano existencial:
-  Ambos defendem e promovem a vida do Planeta, dos Humanos e do conjunto da comunidade dos viventes.
- Como seres humanos, perseguem, apaixonadamente, uma sociabilidade que assegure condições dignas a cada ser humano e ao conjunto das socieades, de satisfazerem a contento suas necessidades e aspirações mais profundas.
- Cada qual partindo do seu lugar institucional de referência, ambos coincidem quanto ao mesmo horizonte ético: o do caráter “universal”/pluriversal do processo de humanização. Em Francisco, para além do horizonte “Igreja”, a Boa Nova se estende a todo o gênero humano, a toda a Terra, enquanto que, no caso de Dussel, seja quando lida com a questão da interculturalidade, seja quando se empenha em desmascarar a ideologia do Eurocentrismo, o que fundamentalmente o anima é a vocação “pluriversal” à Liberdade do conjunto da humanidade, em harmonia com toda a comunidade dos viventes e com o Planeta.
- Ora  por vias semelhantes, ora por vias distintas, ambos se têm marcado pela abertura à inovação, à criatividade, sempre que se trate de assegurar condições de construção de relações sociais alternativas ao sistema de morte, em vigor, em todas as esferas da realidade.

b) Na esfera ética

- Ambos costumam ser enfáticos na advertência quanto à prioridade da prática sobre o discurso. Enquanto Francisco se vale, para tanto, da inspiração evangélica (“A árvore se conhece pelos frutos”, “Nem todo aquele que diz ‘Senhor’, ‘Senhor’... Mas aquele que faz a vontade do meu Pai”), Dussel, por sua vez, recorrendo à inspiração marxiana e ao metodo analético, tem insistido igualmente na práxis.

Ao pensarem na condição humana buscam não cair na armadilha de apontar uma determinada cultura como modelo a ser seguido por todas as demais culturas, nesse sentido, cada qual ao seu modo, não cessam de questionar sobre os graves riscos do Eurocentrismo.

- ambos costumam observar o critério de respeitabilidade a todo e qualquer povo, independentemente de riqueza, de credo, de modos de pensar, de sentir e agir, desde que assegurem tratamento de dignidade uns com os outros.

c) No âmbito da Política

- São críticos do Estado enquanto organismo a serviço dos interesses das Elites econômicas e políticas, preferindo apostar na organização e no processo formativo e de mobilização dos povos subalternizados, ao mesmo tempo em que incentivam seu protagonismo como meio de sua libertação.

- Incentivam e promovem a capacidade transformadora e criativa dos povos subjugados, em busca de experiências alternativas ao modelo vigente.

- Costumam ressaltar a importância de pequenas comunidades em sua organização autônoma, fundadas na busca da unidade a partir de sua enorme diversidade

- Alertam com frequência, quanto aos riscos de se esperar demasiadamente em personagens famosas como principais protagonistas de processos de mudanças.

- Promovem a consciência crítica do conjunto de cidadãos e cidadãs, desde sua capacidade de mudança, a partir do cotidiano de suas relações.

- Defendem o recurso da memória histórica, das experiências mais diversas dos povos, ao longo da história da humanidade, como inspiração em suas melhores intuições comunitárias e pessoais, a serviço do processo de construção de um modelo alternativo à ordem vigente.
João Pessoa, 14 de junho de 2017.