terça-feira, 28 de agosto de 2018

AÇÃO LIBERTADORA DESDE O CHÃO DOS OPRIMIDOS: Resumo do Capítulo VII "Defensor dos últimos", do livro de José Antonio Pagola. "Jesus, aproximação histórica"

O capítulo sétimo, adiante resumido, trata da preferência de Jesus pelos pobres, os doentes, os necessitados, os pecadores... O autor destaca a situação socioeconômica reinante na Galiléia e arredores, inclusive nos principais centros urbanos, tais como Cesaréia e Séforis. Ao assinalar as extremas desigualdades sociais aí reinantes, em especial entre o modo de vida das elites urbanas e a pungente penúria da vida dos camponeses da Galiléia, o autor vai mostrando, com fundamento nos textos bíblicos, sobretudo nos Evangelhos, bem como em autores especialistas no campo estudado, como Jesus tratava de exercitar incansavelmente sua solidariedade com os últimos daquela sociedade, ao tempo em que cuidava de desmascarar os mecanismos de opressão política, de exploração econômica e de marginalização cultural, de que eram vítimas os empobrecidos. E Jesus o fazia, como de hábito, por meio de parábolas. Uma delas, a do pobre Lázaro e a do rico que se banqueteava, insensível ao sofrimento dos pobres. Enquanto o rico epulão – acompanhado de seus comparsas, deliciava-se em seus banquetes Nababescos, a massa sobrante dos pobres da cidade e do campo – dos quais Lázaro constitui uma representação emblemática -, se arrastava, coberto de feridas, que os cães vinham lamber, atrás de migalhas jogadas ao chão pelos banqueteadores. Tempo depois, Lázaro vem a falecer, e é acolhido por Abraão. Também, o rico vem a morrer, e vai para o “Sheol” (lugar da infelicidade), onde, ao avistar Lázaro, agora feliz, na companhia de Abraão, no Paraíso, e a este se dirige, suplicando que Abraão mande a Làzaro, de volta à terra, até seus irmãos, para avisá-los do lugar terrível em que ele, o rico insensível ao sofrimento dos pobres, agora se acha, pedindo que Lázaro vá advertir seus irmãos, para evitarem de fazer o mal. Mas, intervindo, Abraão declara haver um abismo insuperável entre ele e Lázaro, e que não adianta que Lázaro desça para advertir os irmãos do rico, pois lá eles têm os profetas, então que os escutem. O rico contesta, afirmando que eles só escutariam, se lhes fosse enviado um morto, ao que Abraão retruca, dizendo que, se eles não escutam os vivos, tampouco escutariam um morto. Ao recorrer à parábola, como seu instrumento pedagógico predileto, o autor afirma que a intenção de Jesus é menos a de descrever a vida no além, e mais a de denunciar as injustiças sociais clamorosas daquela sociedade.

Outras parábolas e episódios evangélicos são ainda mencionados pelo autor, sempre com o propósito de mostrar que os últimos são os prediletos da ação misericordiosa de Jesus: os leprosos, os cegos, os coxos, os surdos, as mulheres marginalizadas, os pobres, os pecadores, os injustiçados, em favor de quem sempre agiu, e por causa de quem foi acusado de “comilão” e “beberrão”. Um Jesus tão humano – é o que o autor cuida de nos mostrar, bem fundamentado na Sagrada Escritura e em vasta documentação pesquisada.

Como em toda sociedade de classes, também a Galiléia do tempo de Jesus achava-se marcada pela segregação e por profundas desigualdades sociais. Na base daquela pirâmide social, estavam os desvalidos, os indesejáveis, a massa sobrante, os "Zé-Ninguém", os desclassificados, os que viviam à margem: mendigos, vítimas da prostituição, aleijados, cegos, leprosos... Eram vítimas de múltipla segregação: econômica, política, cultural, religiosa. Viviam explorados pelos grandes latifundiários de então, trabalhando (se e quando encontravam algum trabalho, como diaristas). Mal conseguiam obter o pão de cada dia. Também sofriam o peso da dominação de classe, de religião e dos valores predominantes. Eram igualmente desprezados em sua vida cultural, sendo-lhes vedada a participação em eventos privativos dos puros. Eram, portanto, segregados também pela religião, vítimas da cruel vigência de 2 códigos que regiam o cotidiano das relações sociais de então: o código da exclusão sócio-econômica e o código da santidade (ou da "pureza").

no que diz respeito ao código da santidade, viviam excluídos dos espaços considerados puros, em especial do templo, a grande marca dos puros (dos sacerdotes, dos fariseus, enfim, dos "puros"). A novidade irrompe nas práticas e no estilo de um profeta chamado Jesus. Não apenas sua pregação, mas sobretudo suas práticas se confrontavam fortemente com os valores dominantes. Não apenas porque acolhia ternamente os "debaixo", mas a eles se misturava, conversando, fazendo refeições e brindando, donde a acusação e o estranhamento dos que com ele se escandalizavam, chamando-O de "comilão", "beberrão", cúmplice dos pecadores.

É, sobretudo, no tópico seguinte - "amigo dos pecadores"-, que o autor cuida de descrever o comportamento de Jesus face a esse conturbado contexto. Enquanto, de um lado, imperavam as práticas de segregação, Jesus aparecia como um verdadeiro rebelde a esses valores dominantes. Diferentemente da lógica ritualística, característica do Antigo Testamento, em que segundo o livro do levítico e outros, vigia o código de santidade (o essencial é cumprir centenas de normas para se mantes santo), Jesus, por sua vez, contrapunha um outro código - o código da compaixão. Em consequência desta reviravolta trazida por Jesus, a santidade se traduzia, não pelas formalidades ritualísticas praticadas em nome de Deus mas pelas práticas de compaixão, de acolhimento, de solidariedade com as vítimas daquele sistema: os pobres, os mendigos, os paralíticos, os cegos, os surdos, os leprosos, as mulheres...   


O capítulo "Defensor dos últimos" encerra-se com uma longa e pertinente reflexão sobre a atitude de Jesus em relação aos marginalizados, aos discriminados, aos desvalidos: atitude de compaixão, de acolhimento, de profundo respeito pela sua dignidade de pessoas e de incentivo à recuperação de sua auto-estima, sabendo-se como filhas e filhos de Deus muito amados. Eis por que cai como uma luva aquela parábola do rei que preparou um grande banquete para os seus amigos - pessoas privilegiadas pela sua condição sócio-econômica, tendo com elas ajustado data. Ao preparar o grande banquete, envia seu servo a confirmar a festa junto aos mesmos convidados. Estes, porém, um após outro, se põem a desculpar-se, inventando os mais deferentes motivos, para não irem ao banquete. Contrariado com a recusa, o rei torna a enviar seu servo, desta vez, a quem encontrasse pelas praças e pelas ruas, convidando a todos, independentemente de sua condição: cegos, coxos, mendigos. Nem esta ordem tendo surtido o efeito desejado, mandou o rei que o servo voltasse e compelisse a trazer quem encontrasse, inclusive os forasteiros. Em sua reflexão, o autor deixa clara a proposta do Reino de Deus: acolher a todos em Seu banquete, sem qualquer discriminação. Eis por que Jesus se mostra amigo dos pecadores, tendo mesmo chegado a advertir os que se têm como "puros", de que os publicanos e as prostitutas os precederão, no Reino dos Céus, e que não são os sadios que precisam de médico, mas sim os doentes. 


João Pessoa, 28 de agosto de 2018.

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Igreja e Realidade Social: Problemas e Perspectivas "Pontos do curso ministrado por Alder Júlio Ferreira Calado", junto à comunidade Paroquial de Manaíra - João Pessoa - PB (Julho - Setembro, 2006)


COMUNIDADE PAROQUIAL DE SÃO PEDRO PESCADOR

CURSO DE FORMAÇÃO CONTÍNUA
TEMA: A REALIDADE SOCIAL À LUZ DA BÍBLIA E DA DOUTR. SOC. IGR. MINISRANTE: Alder Júlio Ferreira Calado
DIAS: 12, 19 e 26/07 e 02/09/2006

PROPOSTA DO CURSO


          A iniciativa busca dar seqüência à demanda da Comunidade Paroquial, de assegurar aos membros dos distintos setores, serviços, movimentos e associações da Paróquia, cursos, seminários ou oficinas, que lhes permitam a contínua atualização e aprofundamento de temas relevantes para a sua formação teológico-pastoral e de cidadã(o)s.
          Neste ano, após várias semanas seguidas de estudos sobre o Evangelho de Marcos, animados pelo Diácono Valter Paiva, a Equipe responsável está oferecendo um breve curso sobre a atual realidade brasileira e internacional, à luz dos ensinamentos bíblicos e da Doutrina Social da Igreja.
          O curso vem sendo oferecido pelo Diácono Alder Júlio F. Calado, sociólogo, em quatro semanas seguidas, sempre às quartas-feiras, das 19h30 às 21 horas.

TEMAS TRATADOS

          Tendo em vista tratar-se de um mini-curso (apenas quatro sessões), a proposta é de buscar fazer uma rápida abordagem dos seguintes tópicos:

1 - Aproximação conceitual sobre o sentido de “Realidade social” e de “Doutrina Social da Igreja” (Foi o assunto da primeira sessão).

2 – Principais desafios da atual realidade social

3 – Um olhar sobre tais desafios à luz dos ensinamentos bíblicos, da tradição e da Doutrina Social da Igreja.

4 – Que pistas podemos, enquanto cristãos e cristãs, recolher desses ensinamentos para um enfrentamento crítico-propositivos dos desafios atuais?


DINÂMICA

          As sessões começam com uma breve exposição pelo ministrante acerca do tópico da respectiva noite. Em seguida, faz-se uma rodada de intervenções por parte das pessoas presentes. Cabe ao ministrante tentar “costurar” os pontos mais relevantes socializados na discussão.




COMUNIDADE PAROQUIAL DE SÃO PEDRO PESCADOR

CURSO DE FORMAÇÃO CONTÍNUA
TEMA: A REALIDADE SOCIAL À LUZ DA BÍBLIA E DA DOUTR. SOC. IGR. MINISRANTE: Alder Júlio Ferreira Calado
DIAS: 12, 19 e 26/07 e 02/09/2006



1A. SESSÃO (12/07/2006): APRESENTAÇÃO DA PROPOSTA E DISCUSSÃO DOS CONCEITOS ELEMENTARES DO CURSO


- Apresentação e discussão sobre os temas e dinâmica propostos para o Curso
- Conceitos básicos a serem trabalhados:
* Realidade Social: Conjunto das relações que nos envolvem nas distintas circunstâncias do existir, e das quais também somos expressão e protagonistas, no dia-a-dia. São constituídas de três esferas básicas:

a esfera econômica: diz respeito às atividades de produção, nos distintos setores que compõem o processo de produção: o setor primário (agricult., pecuária, extrativismo); o setor secundário (artesanato e indústria) e setor terciário (o da circulação dos produtos e dos bens, via serviços e comércio);
a)    a esfera política: envolve as realações de poder, como este se acha estruturado e como é exercido. Envolve relações com o Estado e as micro-relações da Oikía;
b)    a esfera cultural: (envolve as relações que implicam valores, idéias, ideologias, interesses, crenças, etc.).

* Doutrina Social da Igreja: É também conhecida por outros nomes: Ensinamento Social da Igreja, Magistério Social da Igreja, etc. Não tendo, embora, valor de dogma, apresenta a posição oficial da hierarquia da Igreja sobre temas de natureza social, econômica, política e cultural. Suas raízes mais fundas estão fincadas nos ensinamentos bíblicos e nos ensinamentos pastorais das gerações de cristãos dos primeiros séculos, na tradição dos chamados Padres da Igreja...
Essa expressão passou a ser consagrada, a partir do final do século XIX, com a publicação da Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, em 1891. Daí por diante, outros papas também se pronunciariam sobre os desafios da conjuntura de sua época: Pio XI (1931: Quadragésimo Anno), João XXIII (1961: Mater et Magistra, e 1963: Pacem in Terris); Paulo VI (1967: Populorum Progressio; 1971: Octogesima Adveniens), João Paulo II (1981: Sollicitudo Rei Socialis; 1991: Centesimus Annus), Bento XV (2006: Deus Charitas est). Além de se pronunciar por meio de encíclicas sociais, cartas apostólicas e outros instrumentos, convém ainda destacar a importância de outros pronunciamentos como alguns documentos conciliares (Gaudium et Spes, Apostolicam Actuositatem...) e alguns documentos das conferências episcopais regionais (a exemplo do Documento de Medellín, do Documento de Puebla) e nacionais.

COMUNIDADE PAROQUIAL DE SÃO PEDRO PESCADOR

CURSO DE FORMAÇÃO CONTÍNUA
TEMA: A REALIDADE SOCIAL À LUZ DA BÍBLIA E DA DOUTR. SOC. IGR. MINISRANTE: Alder Júlio Ferreira Calado
DIAS: 12, 19 e 26/07 e 02/09/2006


2a SESSÃO DO CURSO SOBRE REALIDADE SOCIAL
(MANAÍRA, PARÓQUIA DE S. PEDRO PESCADOR, 19/07/2006)

PRINCIPAIS DESAFIOS DA ATUAL REALIDADE SOCIAL


1. NA ESFERA ECONÔMICA
- Concentração de riqueza, de rendas, de terras...
- Hegemonia do capital financeiro, o mais parasitário do Capitalismo
- A política de endividamento
- A política de privatização do patrimônio nacional, nos países periféricos


2. NA ESFERA POLÍTICA
- O império das transnacionais e seus aliados do G-7
- A perda de soberania dos Estados nacionais
- A subserviência dos governos ao império do Capital
- A impotência dos partidos para mudar tal espectro


3. NO PLANO DA CULTURA
- O império da mídia
- A inversão de valores
- O império das religiões de mercado
- A desintegração da família

4. TRECHOS BÍBLICOS QUE AJUDAM A DISCERNIR

O Sl 115 nos convida a discernir os sinais dos tempos, à luz do Projeto de Deus, aguçando o alcance de nossos sentidos: olhos, ouvidos, coração, etc.

Rm 12, 2: “Não se amoldem às estruturas deste mundo”

1Ts 5, 21: “Examinem todas as coisas e retenham o que é bom.”

Mc 10, 42-45: alerta-nos para não reeditarmos as estruturas de dominação características dos nossos tempos, convidando-nos a apostar na pedagogia do serviço: “Entre vocês não seja assim.”



COMUNIDADE PAROQUIAL SÃO PEDRO PESCADOR (MANAÍRA)
CURSO DE FORMAÇÃO CONTÍNUA
TEMA: A REALIDADE SOCIAL À LUZ DA BÍBLIA E DA DOUTR. SOC. IGR. MINISRANTE: Alder Júlio Ferreira Calado
DIAS: 12, 19 e 26/07 e 02/09/2006

3a. SESSÃO (DIA 26/07/2006)

UM OLHAR SOBRE TAIS DESAFIOS À LUZ DOS ENSINAMENTOS BÍBLICOS, DA TRADIÇÃO E DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA.

*Conceito de Bem Comum: “Consiste no conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral  da personalidade humana.” (Pacem in Terris, p. 36)

*Sobre o destino universal dos bens e das riquezas: Gaudium et Spes, N. 69

*Sobre o direito de quem, estando em extrema necessidade, recorrer a quem tem, para satisfazer suas necessidades: Gaudium et Spes, n. 69

*Sobre o direito de propriedade: Populorum Progressio, n. 23

* Sobre o esbanjamento público ou privado: Populorum Progressio, n. 53.

* Sobre o dever de se distinguir “Caridade” de Justiça: Apostolicam Actuositatem, n. 8.

* A concentração de riquezas é um escândalo: Populorum Progressio, nn. 9 e 33.

* Conceito de desenvolvimento integral: Populorum Progressio, n. 42.

* Garantia de emprego pleno: Pacem in Terris, p. 36 e Octogésima Adv., n. 14,

* Defesa da destruição de todas as armas atômicas: Pacem in Terris, p. 55.

* Condenação da concentração de riquezas e do “imperialismo do dinheiro”: Mater et Magistra, nn. 32 e 33.

* Sobre o protagonismo dos agricultores: Mater et Magistra, n. 141.

* Denúncia das multinacionais: Octogésima Adveniens, n. 44.

* O Cristianismo não se confunde com nenhum sistema político, inclusive a Democracia: Octogésima Adveniens, n. 34 e Centesimus Annus, n. 13.

* A Democracia formal reedita erros do Socialismo real: Centesimus Annus, n. 46.
COMUNIDADE PAROQUIAL SÃO PEDRO PESCADOR (MANAÍRA)
CURSO DE FORMAÇÃO CONTÍNUA
TEMA: A REALIDADE SOCIAL À LUZ DA BÍBLIA E DA DOUTR. SOC. IGR. MINISRANTE: Alder Júlio Ferreira Calado
DIAS: 12, 19 e 26/07 e 02/09/2006

4a. SESSÃO (DIA 02/08/2006)

QUE PISTAS PODEMOS, ENQUANTO CRISTÃOS E CRISTÃS, RECOLHER DESSES ENSINAMENTOS PARA UM ENFRENTAMENTO CRÍTICO-PROPOSITIVOS DOS DESAFIOS ATUAIS?

          Pistas são, como se sabe, vestígios, sinais indicativos de algo ou de alguém que se busca. Não são “receita”. Enquanto cristã(o)s e cidadã(o)s, somos chamados a, não apenas conhecer melhor os problemas sociais que nos afligem, mas sobretudo a buscar enfrentá-los e superá-los. Como tentativa, portanto, é que devemos entender a indicação das seguintes pistas, considerando as reflexões que temos feito, durante essas quatro semanas sucessivas por nós vivenciadas.

- Buscar responder ao apelo evangélico do “Vigiem e orem” (Mc 14, 38) – Manter-nos antenados aos sinais que o Espírito de Deus nos inspira, por meio dos acontecimentos do dia-a-dia. Ver melhor o que não conseguimos enxergar bem, ou nem chegamos a perceber. Ouvir coisas distintas daquelas às quais nos habituamos, sucumbindo à mesmice à mediocridade, à lógica do “menos ruim”. Sentir tantas coisas que estão acontecendo e que, por não nos mexermos, não percebemos, e em relação às quais nada fazemos. Em breve: aprimorar sem cessar nossa capacidade perceptiva. Ir atrás das “correntezas subterrâneas”...

- Manifestar nossa indignação ante as injustiças praticadas por parte de quem quer que seja e cometidas não importa contra quem, deve ser um primeiro passo. Gesto que nasce do nosso incessante esforço de conhecer melhor a realidade por suas causas. Isto implica, entre outras atitudes, buscar acercar-nos de fontes fidedignas. Pretender conhecer bem o Brasil pelos telejornais é passar atestado de desinteligência... Sugestões de fontes alternativas: Revista Caros Amigos; Sem Fronteira, Mundo Jovem, Brasil de Fato, entre outras. Sites interessantes: alainet.com , andes.org.br , cnbb.org.br (análise de conjuntura), servicioskoinonia.com

- Ir além da indignação – Esta constitui um primeiro passo importante. Mas, não é suficiente. Não queremos apenas denunciar. Precisamos anunciar, por gestos, palavras e atitudes criativas, que um outro mundo é possível. Para sermos, porém, levados a sério por quem nos ouve, temos que dar provas convincentes de que estamos mesmo engajados para valer, buscando começar a mudança por nós mesmos. Sermos melhores hoje do éramos ontem, e amanhã, do que somos hoje.

- Ousar para nós um programa de formação contínua – Se desejamos mesmo mudar o mundo, começando de nós, precisamos aprender, aprender e aprender incessantemente. Nossa educação é lacunosa. Não criamos o hábito de seguir aprofundando nossa visão de mundo, de sociedade, de ser humano, de Igreja. Isso exige estudo continuado, formação incessante, tanto no plano social como no plano teológico. Que tal organizarmos um plano de leituras para os próximos quatro anos, a partir dos temas que mais nos interessem acerca da realidade social e da Igreja?  Autores e autoras tais como Paulo Freire, Milton Santos, José Comblin, Pedro Casaldáliga, Frei Betto, Leonardo Boff, Eduardo Hoornaert, Rubem Alves, Elsa Tamez, Ivone Gebara, Marcelo Barros, César Benjamin, Ricardo Antunes, entre tantos outros e outras. São igualmente fecundas produções como as do CEBI, da CEHILA, do DEI (órgão de pesquisa ecumênica, da Costa Rica), etc.

- Buscar fecundar os nossos bons achados, em qualquer área de saber, sendo conseqüentes e testemunhando no dia-a-dia com práticas coerentes. – No Projeto de Deus, todo bom aprendizado tem que se traduzir em ações concretas. Não vale aprender por aprender, mas aprender para mudar, para ser melhor, para tornar melhores a nós mesmos e as pessoas com quem vivemos.

- Estender nossa tenda para além de nossa casa – Assim, vamos amar de tal modo nossa família, que vamos buscar ampliar essa família, buscando que muito mais gente dela faça parte: a família humana, sentindo o Planeta como a casa de todos os viventes. As relações com o Estado (política partidária, Governo, eleições, Parlamento) constituem uma dimensão importante de nossa atividade política, mas, não apenas não devem esgotar nossas atividades de cidad(ã)os, como também, dependendo da conjuntura  - e este parece ser o caso atual - devem ser relativizadas, à medida que podemos encontrar espaços alternativos com maior potencial transformador, como, por exemplo, ajudando a organizar os movimentos sociais populares, os principais protagonistas de transformação social alternativa.

- Compreender melhor as potencialidades e principalmente os profundos limites de instituições como Estado, Governo, Parlamento, Partido, etc., em comparação com outros sujeitos sociais de maior poder de mudança.

- No plano eclesial, tomando como referência definitiva o Evangelho, e vencendo a tentação de obediência cega às suas estruturas (contrariando inclusive o alerta de At 5, 29), exercitar uma leitura orante da Sagrada Escritura, e tirar as conseqüências práticas que o Espírito nos comunica, Ele que é o Doador dos Dons. Leitura orante que pode ser ajudada por um plano de leituras sobre História da Igreja (Hoornaert, Comblin, Beozzo, por ex.) e outros temas correlatos.




 João Pessoa, 10 de julho de 2006.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

CIDADANIA PARA ALÉM DO JOGO DE CARTAS MARCADAS


CIDADANIA PARA ALÉM DO JOGO DE CARTAS MARCADAS

Admitindo ser meu eventual equívoco de interpretação do atual momento, confesso ter enorme dificuldade em me alinhar aos critérios de analises dominantes no campo das forças de esquerda, vira e mexe, atônica das preocupações centra-se no trivial: falcatruas do Governo Temer, eleições, alianças, candidatura de Lula... É claro que estas também são questões que devem permear as forças que buscam um novo tempo, mas me preocupa a centralidade destas inquietações, se queremos de fato ir além do corriqueiro ou mesmo das cartas marcadas do jogo eleitoral. De pouco têm valido reiteradas manifestações e alerta, quanto a necessidade e urgência de ousarmos fazer nossa autocrítica, admitindo nossa parcela de responsabilidade no desfecho político que amargamos. Sem tal ousadia corremos o risco de reeditar nossas práticas e nossos deslizes ético-políticos.
Ao revisitar arquivos que julgava perdidos, eis que encontro este, sob o título “CIDADANIA PARA ALÉM DO JOGO DE CARTAS MARCADAS”, que se achava apenas iniciado. O referido arquivo estava datado de fevereiro de 2006.... Dadas as inquietações-chave então experimentadas, percebo, com tristeza, que o quadro conjuntural talvez traga mais continuidade do que descontinuidades. Resolvi, por tanto, partindo daquele texto incompleto, alinhavar algumas notas sobre minhas-nossas inquietações presentes.

Que considerações foram registradas, naquela oportunidade? Entre aspas, trato de trazer à tona, aquelas linhas:

“LISTA DE ARGUMENTOS

* EVIDÊNCIAS:
- SUJEIÇÃO E FAVORECIMENTO AO CAPITAL FINANCEIRO, O SETOR MAIS PARASITÁRIO DO CAPITALISMO;
- ENDIVIDAMENTO RÉCORDE DO PAÍS
- SUJEIÇÃO ÀS GRANDES POTÊNCIAS (PRESENÇA MILITAR NO HAITI)
- RESPONSABILIDADE POR DESASTRES ECOLÓGICOS NA AMAZÔNIA COM GENTE DO PT DIRETAMENTE IMPLICADA, INCLUSIVE NO PROJETO DE TRANSPOSIÇÃO DO SÃO FRANCISCO
- OPÇÃO PELO AGRONEGÓCIO
- DESCUMPRIMENTO DA PROMESSA DE REFORMA AGRÁRIA
- GERAÇÃO DE EMPREGOS INSUFICIENTES
- ARROCHO SALARIAL
- SUPERESTIMAÇÃO DAS MIGALHAS ORÇAMENTÁRIAS DESTINADAS AOS PROJETOS SOCIAIS
- EXPANSÃO DAS UNIVERSIDADES SEM ASSEGURAR AS CONDIÇÕES INFRAESTRUTURAIS DIGNAS DAS JÁ EXISTENTES
- CONTINUAÇÃO DA SUBORDINAÇÃO ÀS AGÊNCIAS REGULADORAS
- HIPERTROFIA DOS GASTOS COM PROPAGANDA
- INTERMINÁVEL IMPLICAÇÃO DOS DIRIGENTES DO PT COM MARACUTAIS
- INCAPACIDADE DO CONGRESSO QUANTO A MUDANÇAS SIGNIFICATIVAS
- INEFICÁCIA DE LEIS TAPA-BURACO
- NIVELAMENTO DO PT AOS PARTIDOS DA ORDEM
- MILITÂNCIA PERDE TEMPO EM BUSCAR TIRAR LEITE DE BODE
- DESCOMPROMISSO OBJETIVO COM PASSOS INOVADORES

            Sobretudo nos últimos anos, tenho sido cada vez mais tocado pela relevância (ainda pouco reconhecida - a julgar pela apatia da enorme maioria dos protagonistas) das relações humanas e sociais do cotidiano. E mais do que todas, as que são pouco perceptíveis, quase invisíveis: as micro-relações do dia-a-dia, em todas as esferas da realidade. Impacta-me especialmente sua eficácia, sua capacidade de enraizamento nas pessoas e nos grupos. Têm um peso considerável, decisivo, no equacionamento dos processos humanos e sociais. Constituem um fiel mostruário dos reais valores dominantes em qualquer sociedade.
            Restrinjo-me aqui a algumas notas sobre uma única dimensão: as relações da esfera política. O exercício da Cidadania no cotidiano acena, com poderosa fidelidade, para as características mais profundas da forma do exercício do poder em sua dimensão macro-relacional: as relações Sociedade-Estado-Governo (Parlamento, Partidos Políticos).
            Para tanto, parto de alguns recortes casualmente extraídos da mídia, no dia 08//02/2006 (Poderiam ter sido recolhidos de qualquer outro espaço social e em qualquer outro dia). O primeiro vem de mais uma reportagem convencional sobre a maciça reação do mundo muçulmano à publicação de “charges” em jornais ocidentais ofensivas à religião islâmica. Desde o início, os enfoques se restringem à mera publicação das “charges”, sem qualquer vínculo com o tratamento dispensado aos muçulmanos.





            Sucessivas experiências desastradas no terreno governamental e político-partidário convencional parecem não mexer suficientemente com os brios de suas principais vítimas: os empobrecidos e seus aliados.
            Eleição vai, eleição vem, todo o mundo sabe quais os resultados finais concretos, e a tendência quase unânime é continuar reproduzindo a estrutura, sempre na vã esperança de que “o próximo Governo e o próximo Parlamento serão melhores”... De pouco ou nada adianta lembrar uma constatação ao alcance de todos: eleição não muda realidade social. Nunca mudou, em nenhuma sociedade, em tempo algum. Mas, continuamos fazendo ouvidos moucos, e apostando com unhas e dentes na chegada de um salvador.

- Claro que há ganhos, no Governo Lula. A rigor, a nenhum Governo devem ser imputadas apenas perdas. Por pior que seja, um Governo, até por instinto de sobrevivência, precisa “mostrar” alguma coisa. Isso não está em discussão. O problema é: numa avaliação global de um Governo que se pretende de esquerda, abrangendo todas as esferas da realidade social, para que lado efetivamente pende a balança? ”.

A partir das linhas acima revisitadas, permito-me compartilhar alguns questionamentos:

- A exemplo de Fernando Cardenal, ex-Ministro de Educação do Governo Sandinista, que ousou fazer autocrítica em relação aos revezes eleitorais sofridos em 1990, será que nós também somos capazes de reconhecer nossa parcela de responsabilidade ético-política no trágico desfecho que se seguiu aos governos Lula e Dilma?

- Será que ousamos refrescar nossa memória histórica (recente e menos recente) de um tempo em que fomos capazes de buscar coerência em nossas ações organizativas, formativas e de mobilização?

- Até que ponto deixamos de lado os riscos de apostar todas as fichas na conquista dos espaços governamentais, em prejuízo crescente de nossa ação junto às bases?

- Segue ou não atual o famoso alerta da personagem José Dolores, do filme "Queimada": "É melhor saber para onde ir, sem saber como, do que saber como e não saber para onde ir."?

João Pessoa, 14 de agosto de 2018.

domingo, 12 de agosto de 2018

A SERVIÇO DA CARIDADE: incidência no dia-a-dia diaconal

A SERVIÇO DA CARIDADE:
incidência no dia-a-dia diaconal

Alder Júlio Ferreira Calado

        Cada encontro nosso, qualquer que seja seu propósito específico - de caráter de coordenação, avaliação, planejamento, retiro ou outro) comporta sempre, de algum modo, um traço formativo. É neste plano que talvez melhor se insira a reflexão fraterna que ora ousamos compartilhar com os irmãos diáconos, candidatos ao Diaconado e respectivas esposas aqui presentes, em Parnamirim, tão bem acolhidos pelos irmãos da Província do Rio Grande do Norte.
        Como sugere o título desta reflexão, nosso propósito, visando a atender ao convite da Coordenação Executiva da CRD, é de nos atermos mais diretamente a como vem sendo exercido por nós o Ministério da Caridade, nos distintos âmbitos de nossa atuação diaconal, incluindo os macro e os micro-espaços do nosso dia-a-dia. Ao socializarmos nossa reflexão, valemo-nos de dois momentos: inicialmente, compartilhamos inquietações a partir de situações concretas, observáveis no cotidiano diaconal; em seguida, buscamos problematizar alguns casos, esboçando possíveis pistas.

1. Incidências formativas do apelo do Amor, no cotidiano diaconal

        Nos pontos que seguem, tratamos de sublinhar alguns aspectos que julgamos mais desafiadores ao nosso processo formativo contínuo, na atual conjuntura sócio-eclesial.
        Um primeiro aspecto a pontuar tem a ver com o lugar que, na tríplice dimensão do nosso Diaconado (a Palavra, a Caridade e a Liturgia), ocupa a Caridade. Do ponto de vista do Seguimento de Jesus, não parece haver dúvida a esse respeito: assim como em 1Cor 13, também na tríplice dimensão do Diaconado, a prevalência deve ser a do Amor, alimentado pela Palavra de Deus e celebrado na Liturgia, ainda com maior razão na liturgia da vida. Era assim que Paulo e seus irmãos viviam a “Ekklesía”, empenhados na formação de um povo, o Povo de Deus: “Paulo sabia que não vinha estabelecer na cidade uma religião, um culto. A religião, o culto não interessavam. Para ele, o culto dos discípulos de Jesus era a própria vida.” (José Comblin, “A Igreja e os carismas segundo São Paulo”, in Vida Pastoral, n. 270, jan. e fev. 2010, p. 29).
        Exercitar a primazia do Amor não exclui nem nos isenta do cuidado com as demais dimensões do Diaconado. Ao contrário, fortece-as, plenifica-as. O Amor, tal como o descreve Paulo, implica exigências e condições nem sempre fáceis de ser cumpridas, e nomeia quinze de suas características: a paciência, a disposição de servir, não é invejosa, não se exibe, não se incha de orgulho, nada faz de inconveniente, não busca seus próprios interesses, não se irrita, não guarda rancor, não se alegra com a injustiça, regozija-se com a verdade, tudo perdoa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. (1 Cor 13, 4-7). Parece-nos missão impossível? Sim, aos nossos olhos, mas a Deus nada é impossível, bem o sabemos. Se achássemos que tudo isso cumprimos sem falta, não teríamos necessidade de Jesus, que veio para os pecadores... Essa, porém, é a meta para a qual nos chama, e nos fornece as condições necessárias. Estamos dispostos a correr atrás dessa Boa Notícia?
        Um segundo ponto: o Amor de Deus, presente no outro, em especial nos pobres e sofredores, deve impregnar todo o nosso viver. Nosso esforço de viver a Caridade deve, com efeito, impregnar todas as esferas da vida (econômica, política, cultural) e dimensões (relação subjetiva, intersubjetiva, cósmica, afetiva, de gênero, de etnia, de trabalho, de geração, relação com o Sagrado...). Do mesmo modo que nos esforçamos por emitir sinais convincentes nas relações familiares, o mesmo esforço deve se refletir em outros espaços vitais: no ambiente profissional, no exercício da Cidadania (desde nossa corresponsabilidade nos destinos de nossa País, do nosso Estado, do nosso Município, até nos minúsculos espaços do cotidiano (inclinação ao tratamento privilegiado, nas repartições públicas ou privadas; ou na tendência - ativa ou passiva, pela omissão - à privatização dos espaços públicos, inclusive mediante bem-intencionadas “parcerias” com o Estado; desrespeito às regras de trânsito...); na (in)justa repartição dos trabalhos caseiros, de modo a sobrecarregar alguém, em geral a mulher; nas relações com a Mãe-Natureza e com o Cosmo...
        Um outro aspecto aqui compartilhado tem a ver com o desafio de mostrar-nos, menos por palavras e mais por ações concretas, o que nos remete, aliás, ao oportuno alerta feito pelo Papa Paulo VI, na Evangelii Nuntiandi: “Os homens de nossa época escutam antes as testemunhas do que aos mestres; e se também escutam a estes, é que também eles são testemunhas.” (EN, nº 41). E isto não se dá por méritos nossos. É um dom, e, por ser dom, vem de Deus, mas, por outro lado, a ninguém é imposto. O Deus da Liberdade não impõe nada a ninguém. Propõe. Convida-nos, por força do Seu Espírito, a vivermos o dom da Caridade. Isto implica, de nossa parte, a necessidade de incessante renovação do nosso compromisso de responder positivamente à Graça que paira em nós. Renovação que se verifica a cada momento, diante dos grandes e pequenos desafios do cotidiano, seja nos macro, seja nos micro-espaços, nos gestos moleculares, quase imperceptíveis aos olhos do mundo. É mais fácil que, diante de um público, mesmo o público de casa, nos disponhamos mais facilmente a esboçar gestos generosos. Difícil é tomarmos a mesma atitude diante de situações minúsculas, fora da vista de qualquer público...
        Refontizar-nos continuamente na Palavra de Deus, inclusive pela leitura orante da Bíblia, tem sido um caminho fecundo de enfrentamento exitoso de nossos desafios. A esse respeito, há muita estrada a ser feita. Não raro, temos tido uma motivação extraordinária a acompanhar de perto as demandas institucionais de nossa Igreja, seja em relação a normas e recomendações administrativas, ao próprio Direito Canônico, enfim, às exigências da Diocese, da Paróquia, etc. Menor disposição sentimos quando se trata de exercitar uma familiaridade mais íntima com a Palavra de Deus, por vezes até com a inclinação de tomar o primeiro caso como suficiente e capaz de secundarizar um propósito de maior intimidade com a Palavra de Deus, correndo até o risco, em situações de claro conflito, de fazer ouvidos moucos à advertência de Pedro e dos demais apóstolos, de que “É preciso obedecer antes a Deus do que aos homens.” (At 5, 29). Sem descuidar-nos de acompanhar com atenção a evolução da palavra do magistério da Igreja, a exemplo da recente encíclica social Caritas in Veritate, de Bento XVI, importa que exercitemos uma atenção ainda maior ao que o Espírito nos tem a dizer, a todos e a cada um de nós.
        Mais um ponto: as diversas circunstâncias de incidência da Caridade no dia-a-dia diaconal, que nos interpela e apela à conversão incessante, diante dos enormes desafios enfrentados. Tomemos aqui apenas alguns poucos casos como referência, sempre a partir, em primeiro lugar, da Palavra de Deus, como, por exemplo, é o caso do alerta que, em diferentes situações, nos é feito por Jesus, acerca dos sedutores caminhos e sinais apresentados pela grade de valores dominantes: “Sabeis que os que governam as nações, as oprimem, e os grandes as tiranizam. Entre vós, porém, não deve ser assim. Ao contrário, quem de vós quiser ser grande, seja vosso servidor; e quem quiser ser o primeiro, seja o servidor de todos. Pois também o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate de muitos.” (Mc 10, 42-45).
        Quando nos colocamos diante do quadro de valores da moda (o individualismo, a famigerada “lei do Gerson” (tirar vantagem em tudo), o oportunismo, o carreirismo, a busca de poder e prestígio, o exibicionismo, a concorrência desenfreada, o imediatismo, a instrumentalização da natureza, em breve, o império do deus Mercado), continua vigente o alerta de de Jesus, segundo Marcos, reiterado, ainda que em outra situação, em Lucas. “Videte ne seducamini” (Cuidado para não vos deixardes seduzir) (Lc 21, 8).

2. Problematizando situações de apelo à nossa conversão contínua: em busca de possíveis pistas

        Em nosso dia-a-dia de vida diaconal, com que situações concretas nos defrontamos, e que inspirações colhemos em busca de superá-las?
        Tal é o poder de penetração dos valores dominantes, que de repente também nos flagramos a introjetá-los e a reproduzi-los, inclusive como diáconos. Mais complicado ainda: não são poucas as vezes em que os introjetamos e reproduzimos, sem nos darmos conta.Vejamos alguns casos dignos de uma problematização crítica e autocrítica, sempre em vista de um empenho contínuo de conversão, até porque esta deve ser tomada, não como algo acabado, mas como um processo incessantemente renovado.
        No plano econômico, aqui sublinhamos apenas duas situações embaraçosas. Por um lado, a tendência a nos conformarmos com a situação de extremas desigualdades sociais, sob a forma de uma esdrúxula concentração de riquezas, de rendas e de terras, feita à custa de um número sempre crescente de pessoas e nações cada vez mais postas à margem das conquistas da Globalização, ao estilo capitalista. Passo relevante – ainda que não suficiente – é o de tomarmos consciência dessa realidade, desde que tal tomada de consciência venha em nós acompanhada de um firme compromisso de mudança radical dessa realidade. Não parece ser a situação mais freqüentemente observada entre nós, com raras exceções. Na maioria das vezes, a tendência dominante entre nós é de nos limitarmos à mera constatação da mesma, e nos contentarmos  com uma expressão de desabafo, de desaprovação e até de indignação. A isto poderíamos chamar de uma manifestação de um sentimento de indignação estéril, à medida que não se faz acompanhar de gestos concretos, ao nosso alcance.
        Em outros casos, conseguimos, sim, ir além da mera constatação, a ponto de esboçarmos algum tipo de gesto concreto. Então, tratamos de empreender iniciativas de caráter assistencial, mantendo e até ampliando o jeito mais tradicional que a Igreja pós-constantiniana tem encontrado de lidar com os pobres. Aqueles a quem buscamos servir como alvo de nossa comiseração ou de nossos gestos caritativos. Por certo, trata-se de um serviço de socorro aos pobres. Iniciativas que são (quase) sempre bem-vindas, especialmente naquelas situações pontuais de agravamento conjuntural de sofrimento dos pobres. Menos eficazes, por outro lado, quando se trata de enfrentar efetivamente as raízes do empobrecimento, numa situação de agravamento estrutural, daquelas a que o Evangelho se refere como a tentativa de se pôr remendo novo em pano velho (cf. Mt 9, 16).
        Na experiência do Seguimento de Jesus, os pobres são tratados bem mais do que como alvo de gestos caritativos. Em alguns documentos do Concílio Vaticano II, encontramos certa inquietação quanto a freqüentes equívocos e confusões entre atos de justiça e atos de caridade. O Vaticano II estava preocupado com evitar que “se ofereça como dom de caridade aquilo que já é devido a título de justiça.” (Apostolicam Actuositatem, nº 8).
        No espírito do Evangelho, os pobres são chamados por Jesus a serem protagonistas de sua libertação. É assim que Jesus lida com os enfermos curados:“Minha filha, tua fé te salvou. Vai em paz.” (cf. Lc 8, 48). E o quê dizer da palavra de Jesus dirigida aos discípulos que lhe pediam para despedir a massa faminta: “Dêem vocês mesmos de comer”, Mt 14, 16). É Jesus quem chama os pobres a fazerem sua parte no processo de libertação, simplesmente por serem os primeiros destinatários do anúncio da Boa Nova, como lemos em Lc 4, 18-19: “O Espírito do Senhor repousa sobre mim, pois Ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e, aos cegos, a recuperação da vista; para dar liberdade aos oprimidos.”
        Não é por acaso que não poucos se reportam a essa passagem do Evangelho, nela vislumbrando o Programa de Jesus. Tem sido também o nosso, nas atividades diaconais?
        Nesse sentido, que pistas poderíamos ensaiar, de modo a dar um salto qualitativo (do ponto de vista do Seguimento de Jesus), em relação aos procedimentos mais convencionais de cuidarmos dos pobres, hoje? Será que não somos chamados a reavaliar certas práticas de cuidado dos pobres? Não se trata de desconhecer as boas intenções e os bons propósitos aí observáveis. Há muita generosidade e dedicação aos pobres, por aí afora. Graças a Deus por tanta gente dedicada à assistência aos pobres. A imagem que nos acorre é a de uma grande multidão de enfermeiros e enfermeiras a acudirem tantas vítimas desprotegidas. Trabalho por certo indispensável. Desafio é percebermos o quê fazer, quando observamos o incessante crescimento dessas vítimas, num ritmo alucinante, como se estivéssemos numa guerra de enormes proporções, de modo a inviabilizar nosso gigantesco esforço de dar vencimento a esse trabalho. Quanto mais nos desdobramos, conseguimos aliviar a dor de muita gente, por um lado, e, por outro, sentimo-nos impotentes para atender a uma quantidade incontável de outros enfermos tombados nessa “guerra”. É bem o caso que se passa em nossa sociedade globalizada nos padrões do  Capitalismo. Neste caso, somos chamados a rever nossas práticas, de modo a que possamos atender a todos os necessitados.
        A partir de tal constatação, vamo-nos convencendo de que precisamos, sim, manter os serviços de assistência aos caídos, e, ao mesmo tempo – e com prioridade - dispor de não menos gente a buscar conter a máquina de guerra de fazer feridos aos milhões... É aqui que se impõe o dever de combater o mal pela raiz. A essa altura, surgem vários caminhos e possibilidades, a partir do levantamento de questões do tipo:
- De onde estão vindo tantas vítimas, bem além daquelas que conseguimos cuidar?
- Que máquina ou que mecanismos são esses, geradores de mortes e feridos aos milhões?
- Quem está por trás dessa máquina?
- Apesar de multiplicarmos as nossas atividades de assistência, constatamos que as vítimas não cessam de crescer e de se multiplicar. Será mesmo porque não há comida para todos? Será que as riquezas hoje disponíveis não são suficientes para garantir vida digna para todos? Será que é preciso apoiar os governantes de tantos países que prometem distribuir riquezas somente depois de conseguirem crescimento econômico? Será que já não vimos esse filme, como no tempo da Ditadura empresarial-militar, em que o então Ministro Delfim Netto defendia o “Primeiro, vamos fazer o bolo crescer, para depois distribuir”...  
- Será mesmo necessário um aumentar tão alto de ONGs (só no Brasil, fala=se em mais de 250 mil...), para receberem recursos públicos e privados, para depois repassarem aos necessitados? Isto não significa, em parte, dispensar o Estado de cumprir suas políticas públicas, com os meios financeiros e infraestruturais de que se acha dotado?
- Ou, em vez disso, devemos mudar radicalmente nossas atitudes, em busca de uma mudança eficaz?
- Será que, em vez de confiarmos às instituições particulares – inclusive as igrejas – a missão de dar conta das demandas dessas multidões abandonadas, como ovelhas sem pastor, recorrendo também a parcerias com o Estado e instâncias privadas, não seria mais eficaz juntarmos forças na organização das vítimas, no sentido de ajudá-las a serem protagonistas de mudanças efetivas e de longo alcance nas políticas públicas?
- Ao longo de séculos do regime do Padroado (aliança entre o trono e o altar ou parceria entre a Igreja e os reis), cujas conseqüências trágicas foram bem sentidas pelos povos indígenas e pelos africanos reduzidos à escravidão, e apesar do alerta evangélico de que a árvore se conhece pelo fruto (cf. Mt 17), a tendência dominante ainda hoje continua sendo a de apostar e investir em “parcerias” com o Estado, em suas diferentes esferas. Não bastassem as duras lições de um passado sombrio, não valeria ponderar essa prática, tomando em conta que os vícios dos espaços governamentais não cessam de se multiplicar, de um lado, e, por outro lado, que força ética e profética teríamos para denunciar tantos escândalos, se nos achamos financeiramente dependentes? Afinal, como diz a sabedoria popular, “Quem come do meu pirão, prova do meu cinturão”...
        É claro que uma decisão desse tipo requer toda uma caminhada (pessoal e coletiva), que passa por um incessante processo de formação (também pessoal e coletiva). Implica, por exemplo, fazer uma experiência alternativa junto a pessoas e grupos que propiciem uma visão alternativa de sociedade, bem como de nossas práticas habituais. E aqui já começa o enfrentamento de um primeiro obstáculo: em geral, temos a tendência a restringir nossos contatos apenas a espaços, pessoas e grupos que sentem, pensam, querem e agem de modo muito semelhante a nós mesmos. Privamo-nos, com freqüência, de necessárias e fecundas experiências do diferente, por comodismo, por insegurança, por medo, por omissão e, pior, às vezes até por nos acreditarmos melhores do que os outros... E assim deixamos de aprender “coisas velhas e novas”. O Espírito que sopra onde quer, não se deixa enjaular em nossas gaiolas privativas. Insufla seus conselhos para bem além de nós. Precisamos estar antenados e abertos também a esses influxos.
        É o chão do processo formativo contínuo (pessoal e coletivo) que nos vai propiciando essas aventuras ao novo, ao diferente, ao alternativo. Por meio de convivência, de conversas, de leituras, de aprendizado com os diferentes, vamos tendo acesso a outras possibilidades de organização social, de exercício político não=convencional, de vivência de outros valores.
        Aos poucos – e continuamente -, vamos percebendo que outro mundo é possível; que não existe apenas um único modo de se fazer política, de organizar a sociedade, de nos conduzir nas coisas miúdas do dia-a-dia, inclusive na esfera do Diaconado. Passamos, com a graça de Deus e com o nosso empenho, a ver coisas novas, a ouvir o que antes não alcançávamos, a sentir de um jeito novo, alternativo, a queerer e a dar passos nessa direção..
        Toda a grade de valores hegemônicos vai sendo sacudida e desmontada, cedendo terreno a outros valores. Contra a ideologia do individualismo  e competitividade acirrada, vamos aprender – não de boca para fora – a exercitar o altruísmo e a cooperação. Contra a mania de tirar vantagem em tudo, vamos aprendendo a ensaiar passos no universo da gratuidade, fazendo do bem, não uma tática de obter vantagens, cargos e prestígio, mas um fim em si mesmo - a alegria de dar sem esperar receber.
        Felizmente, isto já acontece, ainda que molecularmebte, inclusive em nosso meio. Quantas pessoas conhecemos por aí, que têm o bendito hábito de visitar, sem estardalhaço, outras pessoas, de preferência, pessoas mais sofredoras e esquecidas? Quantas pessoas já conhecemos que, diante da moda de se isentar das tarefas caseiras e outros trabalhos manuais, tratam de assumi-los, sem prejuízo de suas suas atividades outras? É nessa ação molecular, portadora de sementes de uma nova sociabilidade e de uma Igreja servidora e pobre, que vamos dando passos de conversão, também no cotidiano diaconal.

Obs. Por conta de minha limitação de vista e da disponibilidade de tempo, optei por desenvolver os pontos acima, por meio do seguinte itinerário:

A SERVIÇO DA CARIDADE:
incidência no dia-a-dia diaconal


- Assim como em 1Cor 13,  também na tríplice dimensão do Diaconado, a prevalência deve ser a do Amor alimentado pela Palavra de Deus.

- Nosso esforço de viver a Caridade deve impregnar todas as esferas da vida (econômica, política, cultural) e dimensões (relação subjetiva, intersubjetiva, cósmica, afetiva, de gênero, de etnia, de trabalho, de geração, relação com o Sagrado...)

- O contínuo exercício da escuta da Palavra, como se dá na leitura orante, torna-se visível por meio de gestos concretos, moleculares ou mais visíveis.

- O dia-a-dia diaconal nos interpela e apela à conversão incessante, diante dos enormes desafios enfrentados:
- com relação à grade de valores dominantes;
- sofisticadas formas de fuga da cruz
- dificuldade de nos relacionarmos com os pobres (tentação docente, atitudes assistencialistas, relação de dependência, relação pragmática, indisponibilidade de agenda, tratamento diferenciado...)
- tendência ao reducionismo dos pobres aos “de casa”

- Pouca confiança nas apostas de transformação, vistas como utópicas e algo distante...

- Tendência ao conformismo com as estruturas deste mundo.

- Tendência a reduzir o nosso trabalho aos “de casa”

- Indisposição de tomar como prioridade efetiva nosso processo de formação contínua (ou a reduzi-lo à dimensão intelectiva)

- Pouca sensibilidade aos trabalhos manuais


Parnamirim/Natal, 16 de janeiro de 2010

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

VIII SEMANA TEOLÓGICA Pe. JOSÉ COMBLIN Jornada Comunitáriaria animada pelo Grupo Kairós, realizada na Capela Ecumência da UFPB, no dia 05.08.2018


VIII SEMANA TEOLÓGICA Pe. JOSÉ COMBLIN
 Jornada Comunitáriaria animada pelo Grupo Kairós, realizada na Capela Ecumência da UFPB, no dia 05.08.2018,

Alder Júlio Ferreira Calado


Como prevista na Programação da VIII Semana Teológica Pe. José Comblin (STPJC) (cf. o “link” https://teologianordeste.net/viii-semana-teolo-gica-pe-jose-comblin.html), tivemos, na manhã deste domingo passado, a Jornada Comunitária (uma das quatro que precedem a Sessão de Enceramento da VIII STPJC, a Jornada Comunitária, na Capela Ecumênica da UFPB, em João Pessoa – PB, da qual segue um registro.

Das 08 horas às 11h30, tivemos a graça de compartilhar desse momento forte de vivência processual desta VIII STPJC, a partir do tema que vimos trabalhando: “Medellín, 50 anos: vocação e missão das Leigas e dos Leigos, à luz da tradição de Jesus”. Como havia sido combinado com os ouros grupos coorganizadores da VIII STPJC, cada Jornada comunitária refletiria sobre um dos cinco capítulos (dentro os dezesseis) componentes do Documento de Medellín. Dos 5 priorizados pelos grupos – Justiça, Paz, Pobreza, Juventude, Movimentos Leigos – foi proposto ao Kairós refletir sobre o capítulo relativo ao Laicado, até por buscar responder a convocação feita pela CNBB, que dedicou o ano de 2018 ao Laicado, e, antes disso, à convocação feita pelo Bispo de Roma, em sua proposta pastoral para os próximos anos na Exortação Apostólica “a Alegria do Evangelho”.

Como fruto de cuidadosa preparação conjunta, conduzida por uma Equipe de Leigas do Kariós (Aparecida, Glória e Lúcia), aberta a quem mais quisesse colaborar, foi elaborado um inspirado Roteiro para a celebração e estudos constantes da Jornada, além dos preparativos de arranjo do ambiente (Capela Ecumênica da UFPB).

Já antes das 08h30, eis que se põe a postos a Equipe de Recepção, a ultimar os últimos arranjos, instalar equipamentos de som e outros materiais. E as pessoas iam chegando a cumprimentar-se e a respirar a beleza daquele ambiente circundado pela mata, sentindo-se a brisa, ouvindo-se o canto dos pássaros, ao som da canção “tudo está interligado” (cf. https://www.youtube.com/watch?v=1do_VBZG9Ps .

Por volta das 8h30 seguindo o roteiro teve início a celebração com acolhida e as boas vindas (feitas por Aparecida em nome do Kairós) às pessoas presentes. Na mesma acolhida, foram anunciados os passos a serem vivenciados, começando pelo canto “eu vim para que todos tenham vida” (cf. https://www.youtube.com/watch?v=4t05u3nmoBc), que mereceu uma reflexão compartilhada, considerando-se o espírito da liturgia do dia, o tema da celebração e as circunstâncias históricas da canção, tema da campanha da fraternidade do ano de 1974, tempo de Chumbo, em plena ditadura civil-militar.
Passou-se, então, para o canto de proclamação do Evangelho, “toda palavra de vida” (cf. https://www.youtube.com/watch?v=HyDVFU12MbU), seguindo-se a leitura do Evangelho do dia João 6,24-35 (cf. confira integra da leitura no roteiro em anexo). Seguem-se um momento de silêncio e a partilha da Palavra, por várias pessoas participantes da jornada. Tratou-se também de recitar e meditar o salmo do dia.
O próximo momento foi dedicado a uma breve contextualização do tema “Medellín, 50 anos: vocação e missão da Leigas e dos Leigos, à luz da tradição de Jesus”, em que foram partilhadas algumas reflexões rememorativas e provocativas acerca do tema. Em seguida, foi feita, à várias vozes a leitura do capítulo do Documento de Medellín, concernente ao Laicado. A partir daí abriu-se um fraterno debate sobre o contexto histórico da realização daquela conferência de Medellín, em 1968, bem como sobre o legado, o potencial profético e os limites daquele acontecimento eclesial, que inspirou um profundo esforço de refundação da Igreja Latino-Americana e do Caribe, de modo a inspirar proféticas iniciativas no campo sócio eclesial, impulsionando as CEBs, a teologia da libertação, as pastorais sociais e todo uma rede de serviços em defesa e em promoção da “opção pelos pobres”. Também, reflexões foram partilhadas sobre os desafios sócio eclesiais da atualidade, buscando fazer a ponte entre o ontem e o hoje, com cuidado de bem distinguir os desafios de ontem e de hoje.
Feitas as reflexões em cima do texto, foram prestadas várias informações sobre as próximas jornadas comunitárias e a Sessão de encerramento da VIII STPJC, encerrando-se com o convite feito por Elias e Marinete, para saborearmos fraternalmente o bolo e o café que nos ofereceram, enquanto Andrea tratava de fazer vários registros fotográficos, durante toda a celebração.

Eis um breve resumo do que foi a Jornada Comunitária animada pelo Kairós.

João Pessoa, 10 de Agosto de 2018.