quarta-feira, 20 de março de 2019

PAULO FREIRE EM DIÁLOGO COM A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO: anotações sobre um ensaio cinquentenário da lavra freireana


PAULO FREIRE EM DIÁLOGO COM A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO:  anotações sobre um ensaio cinquentenário da lavra freireana
Alder Júlio Ferreira Calado

A saga do Bolsonarismo não desponta repentinamente, nem precisamos recorrer aos seus quase trinta anos de vida parlamentar estéreo, à parte seu famigerado currículo profissional e político de posições extremadas de incondicional adesismo a posições de extrema-direita, inclusive as de apologia a tortura e a ditadura militar. Restrinjamo-nos à sua desventurada iniciativa de carreirismo político, em direção à presidência da República. Sabe-se que, desde 2015 tratou de semear e de cultivar tal ambição que, não tivesse acolhida pela cegueira anti-petista, não teria obtido qualquer êxito eleitoral. Mas, o que tem a ver a figura do atual Presidente da República com a veneranda figura de Paulo Freire e seu legado? Desde principalmente as manifestações de rua de 2013, nas quais as forças de ultra-direita também acabaram pegando carona, trataram de tirar partido, pode-se observar um crescente movimento contra o legado de Paulo Freire, do qual fazem parte diversos recursos, como as Fake News, a produção de vídeos difamadores sobre Paulo Freire, e até de faixas e cartazes reivindicando a destituição de seu nome como patrono da educação brasileira.    
Em nítido contraste com os (mal)feitos em profusão, de autoria de figuras necrofílicas, emergem produções luminosas de figuras amantes da vida, a exemplo de Paulo Freire, a quem muito bem se pode aplicar um dito da cultura judeu-cristã, sobre os seres humanos justos: “Tudo o que fazem prospera”(sl. 1, 3), ao contrário do destino da estupidez dos necrófilos: o desprezo e o esquecimento. Enquanto a estupidez e o obscurantismo não cessam de atormentar o povo dos pobres, no Brasil e no mundo, consola-nos saborear preciosidades produzidas por figuras como Paulo Freire e outras, cujos escritos seguem alimentando, como fagulhas de esperança, as pessoas e comunidades e movimentos que ousam ensaiar passos de resistência propositiva a esses descaminhos de barbárie. Nas linhas que seguem, alegra-nos revisitar um ensaio escrito por Paulo Freire, intitulado: “O papel educativo das Igrejas na América Latina”, texto que integra seu conhecido livro Ação Cultural para a Liberdade. O referido ensaio, alvo de nossas considerações, foi escrito em 1971, em Genebra, publicado em inglês sob o título “Education, Liberation and the Church”.  Nele, Freire dialoga criativamente com a então nascente Teologia da Libertação, com tal competência que um dos autores de referência da TdL, Clodovis Boff, em seu livro “Comunidade Eclesial – Comunidade Política” (Vozes, 1978), não hesita em incluí-lo no rol dos teólogos da libertação.
No referido ensaio, Paulo Freire começa por desmascarar uma suposta neutralidade, tanto no que fazer educativo, quanto no posicionamento da Igrejas cristãs. Qualquer tentativa de neutralidade é vã, além de acabar por revelar-se a favor da dominação. Em seguida, valendo-se da figura emblemática da páscoa, entendida como travessia na Práxis trata de percorrer criticamente os caminhos da Tradição de Jesus, que conduzem da morte à vida, da escravidão à libertação. E o faz centrando atenção em seus protagonistas, caracterizando suas ações no mundo, bem como no processo educativo vivenciado pelas Igrejas cristãs, tendo como pano de fundo o contexto latino-americano.
Cuida de analisar criticamente o papel educativo, desenvolvido pelas Igrejas cristãs, em seu cotidiano conflitivo. Estas, por sua vez, se vêem desafiadas por um contexto de exploração, de dominação e de marginalização, ao qual está sujeita a enorme maioria da população latino-americana, sobretudo o povo dos pobres. Diante de tal desafio, as cidadãs e cidadãos cristãos se acham interpelados a definirem sua posição – ou de subserviência e cumplicidade com as classes dominantes, ou de compromisso libertador com a causa dos oprimidos, não havendo lugar para meio termo, nem neutralidade, o que objetivamente representaria favorecimento aos “de cima”. A esta altura, empreende uma crítica pertinente aos que teimam aderir a uma postura neutra, impossível. Analisa o comportamento contrastante, de um lado dos “inocentes ou ingênuos”, e, de outro lado, dos espertos. Em relação aos primeiros, trata de problematizar sua postura, buscando desmontar pretextos baseados em sua suposta “pureza”, superioridade, santidade, enfim, imunidade em relação às coisas do mundo, com a vã pretensão de apego exclusivo às coisas celestes, enquanto se atrevem a pensar o povo como inferior, impuro... Dada a força dos argumentos contrapostos aos “ingênuos”, estes se sentem forçados a escolherem – agora, conscientemente – sua verdadeira posição: ou de teimarem enganar a si próprios, e assim passando a defender a causa dos opressores, traindo assim a causa evangélica, ou a de aceitarem correr o risco de aderirem à causa dos “debaixo”.
Pedindo escusas pela extensão da citação, mas ousando fazê-lo pela força dos argumentos utilizados por Freire, permitimo-nos reproduzir suas próprias palavras:
Os “inocentes”, por sua vez, através de sua própria prática histórica, ao desvelar a realidade e sendo nela desvelados, tanto podem assumir a ideologia da dominação, transformando, assim, sua “inocência” em “esperteza”, quanto podem renunciar a suas ilusões idealistas. Neste caso, então, retiram sua adesão acrítica às classes dominantes e, comprometendo-se com as classes oprimidas, iniciam uma nova aprendizagem com elas.

Isto implica na renúncia de seus mitos, tão caros a eles. O mito de sua “superioridade”, o mito de sua pureza de alma, o mito de suas virtudes, o mito de seu saber, o mito de que sua tarefa é salvar os pobres. O mito da inferioridade do povo, o mito de sua impureza, não só espiritual, mas física, o mito de sua ignorância absoluta.

Cedo percebem que a indispensável Páscoa, de que resulta a mudança de sua consciência, tem realmente de ser existenciada. A Páscoa verdadeira não é verbalização comemorativa, mas práxis, compromisso histórico. A Páscoa na verbalização é “morte” sem ressurreição. Só na autenticidade da práxis histórica, a Páscoa é morrer para viver. Mas uma tal forma de experimentar-se na Páscoa, eminentemente biofílica, não pode ser aceita pela visão burguesa do mundo, essencialmente necrofílica, por isso mesmo estática.

A mentalidade burguesa tenta matar o dinamismo histórico e profundo que tem a Passagem. Faz dela uma simples data na folhinha. A ânsia da posse, que é uma das conotações da forma necrofílica de ligação com o mundo, recusa a significação mais profunda da Travessia. Na verdade, porém, não posso fazer a Travessia se carrego em minhas mãos, como objetos de minha posse, o corpo e alma destroçados dos oprimidos. Só posso empreender a Travessia com eles, para que possamos juntos renascer como homens e mulheres libertando-nos. Não posso fazer da Travessia um meio de possuir o mundo, porque ela é, irredutivelmente, um meio de transformá-lo.
Da mesma maneira, aprendem que a consciência não se transforma através de cursos e discursos ou de pregações eloquentes, mas na prática sobre a realidade. (https://www.academia.edu/38319336/Paulo_Freire_-_A%C3%A7%C3%A3o_cultural_Para_a_liberdade_e_outros_escritos.pdf)


Trata-se, como se percebe, de um exercício de diálogo freireano com a abordagem característica da então nascente Teologia da Libertação, a esta altura protagonizada por figuras tais como Gustavo Gutierrez, Hugo Assmann, James Cone, entre outros. Uma abordagem que se tem revelado inovadora, diante de séculos de subserviência das principais forças eclesiásticas à ideologia do sistema dominante. Uma abordagem que, fundada no conhecido método ver-julgar-agir, e inspirada no Movimento de Jesus, se empenha, em recuperar a memória histórica das práticas e dos ensinamentos do Evangelho, do Reino de Deus, que Jesus veio anunciar e inaugurar, de modo profundamente enraizado na vocação libertária dos oprimidos.  
Tentando atualizar tal abordagem, diante da realidade presente, cuidamos de observar que saltam aos olhos pontos de coincidência do que hoje experimentamos com o ensaio Freireano. Durante a última campanha eleitoral, no Brasil, tal situação volta à cena, sob vários aspectos. Dentre os “inocentes”, se acham vários extratos da população, inclusive parcelas expressivas de cristãos e cristãs – católicos e evangélicos. Também estes, ao descobrirem a vã tentativa de neutralidade diante do espectro político-eleitoral, e fortemente atraídos pelas redes sociais comandadas pelos massivos disparos de “Fake News” (fenômeno idêntico ao que se produziu durante a campanha que resultou na eleição de Trump), por parte do pior dos candidatos – o mais despreparado, o que já havia dado provas evidentes de adesismo à Ditadura Militar, após ter feito clara apologia à tortura, ao idolatrar a figura do Coronel Ustra, ao divulgar vídeos de racismo expresso contra Negros, contra povos originários, após dar provas de posturas claramente homofóbicas, misóginas, de idolatria à figura de Trump, ainda assim passam a uma adesão cega e incondicional, mesmo tendo certeza das estúpidas distâncias entre o comportamento do candidato e a fonte principal de sua fé, os evangelhos...
Retomando nosso emblemático ensaio freireano, damo-nos conta de que tal é a força transformadora da memória histórica, que, seja de modo expresso, seja de modo implícito, situações, fatos e acontecimentos do dia-a-dia resultam prenhes de sua presença vivificante. Isto também se dá com escritos emblemáticos, de autoria de figuras de referência, como a de Paulo Freire. Um deles, trazemos ao debate, num contexto sombrio, no qual o texto da lavra de Paulo Freire se revela emblemático e oportuno.
Oportuno, também, do ponto de vista de consideráveis parcelas de nossa população, as que que se confessam cristãs. Referimo-nos ao atual tempo litúrgico celebrado pelo mundo cristão – o tempo da Quaresma, ante-sala da Páscoa, sobre o qual o referido texto finca algumas de suas bases de argumentação, fazendo aí transparecer um de seus trações existenciais: o de sua inserção existencial também como um cristão, aí exercitando argumentos teológicos notáveis, como o da categoria “Páscoa”, “Travessia”.
Em uma tentativa sinótica, que aspectos mais fortes ousaríamos salientar do cinquentenário ensaio da lavra de Paulo Freire, meio século depois de ser escrito? Resumidamente, destaquemos os seguintes:
- a memória histórica, desde que exercitada, não como uma inicitava de saudosismo – de quem interpreta o passado como coisa morta -, segue sendo uma fonte poderosa de reabastecimento e reenergização de nossas forças transformadoras da realidade hegemônica, em busca de permanente alternatividade, isto é, de superação da ordem vigente, em busca de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo, de um novo modo de gestão societal, que se vá processando, ainda que molecularmente, a partir de nossas organizações de base, especialmente dos movimentos populares;
- o ensaio freireano se nos revela de rara oportunidade, nesses tempos de obscurantismo, marcados por uma gestão governamental fundada na mentira, na traição mais perversa dos interesses nacionais, colocados a serviço da barbárie representada pelas sucessivas trapalhadas de uma figura tenebrosa, como a de Trump, feito presidente pela força de “fake News”, de modo muito similar ao que se passou no Brasil;
- o ensaio freireano nos interpela, pessoal e coletivamente – em especial, a nossas organizações de base -, no sentido de que em vão esperamos que a libertação dos “de baixo” venha como presente ou dádiva dos “grandes deste mundo”, mas como protagonismo, como práxis cotidiano de reinvenção da Política, cujos sujeitos , rememorando tempos frutuosos de suas ações, se empenhem incansavelmente em ensaiar passos alternativos à barbárie, seja na esfera organizativa, seja no campo formativo, seja no plano da mobilização, a partir da retomada, em novo estilo, de nosso enraizamento no povo do campo e das periferias urbanas, sem cujo protagonismo falecem nossos ideais de uma nova sociedade.

João Pessoa, 20 de março de 2019

P.S. Hoje, comemoramos 39 anos do assassinato, em El Salvador de Dom Oscar Romero, cuja trajetória de pastor profeta foi também marcada por esta Travessia de que fala Freire, isto é, de uma posição antes ingênua, passa à condição de verdadeiro discípulo de Jesus de Nazaré, alimentado por um profundo aprendizado de compromisso com a causa libertadora de seu povo. Tornou-se uma grande referência para as cristãs e cristãos de hoje.

terça-feira, 12 de março de 2019

A OUSADIA DE ENSAIAR POLÍTICAS PÚBLICAS, EM CONTEXTO DE OBSCURANTISMO: CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CAMPANHA DA FRATERNIDADE 2019



Alder Júlio Ferreira Calado

Pelo 56º ano consecutivo, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) realiza a Campanha da Fraternidade (CF), e, há vários anos em periódica parceria com o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), tem-se empenhado em despertar a consciência-cidadã de cristãos e cristãs a partir de temas e lemas atinentes a urgências conjunturais. Neste ano, a CF chama a atenção de seu público para o desafio das Políticas Públicas. A exemplo de outras precedentes, costuma realizá-las recorrendo a um conjunto de materiais didáticos, dentre os quais o texto-base, sempre utilizando-se do método Ver-Julgar-Agir.
A despeito dos limites inerentes a uma campanha (inclusive de duração insuficiente), a CF tem contribuído para um exercício crítico dos cidadãos e cidadãs, em vista de suas responsabilidades políticas. Não bastassem, porém, os limites de toda campanha, acresce o desafio de estarmos experimentando uma conjuntura de adversidades mais graves, em especial, a que diz respeito à ofensiva de um capitalismo extremamente ávido de sangue de humanos e de crescentes agressões ao Planeta e à comunidade dos viventes. É, também, o caso do Brasil de hoje. Nas linhas que seguem, cuidamos de situar brevemente alguns aspectos deste desafio de monta ao tempo em que compartilhamos nossas inquietações e esperanças.
A avidez do Mercado capitalista e seus aliados
Desde suas origens, mas mais recentemente, por exemplo, nos inícios desse século, o capitalismo vem ampliando sua voracidade pelo mundo afora. Também, no Brasil. Que nos seja suficiente um rápido olhar sobre as políticas econômicas impostas aos Estados Nacionais, por estas grandes corporações transnacionais, atingindo todo o espectro dos mais distintos setores da economia – do Agronegócio às Empresas de Mineração, dos mais diversos ramos industriais à voracidade financista, representada principalmente por seus paraísos fiscais, e alcançando atividades outras, seja no campo da cultura, da educação e até das religiões...
Trata-se, com efeito, de um gigantesco desafio, não apenas pela grosseira ofensiva e avidez de lucro destas transnacionais, mas também por uma conjuntura histórica bastante vulnerável enfrentada por nossas organizações de base, em especial os movimentos sociais populares. Tal fragilidade acirra ainda mais a cobiça destas grandes empresas capitalistas, bem como do seu setor parasitário – o financista. Lembremo-nos de passagem, dos recentes crimes socioambientais praticados pela Vale e suas parceiras. São apenas 2 exemplos, mais visíveis de tragédias humanas e ambientais que, além de agredirem mortalmente nosso ambiente, ceifam inúmeras vidas humanas, além de ameaçarem gravemente as condições de vida de grandes setores de nossa população – povos indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhos, pescadores, etc. Eis apenas uma ilustração de tragédias socioambientais relativas a um único ramo da economia, devendo nós estar lembrados de que, em nossa sociedade, a presença dessas transnacionais se estende a tantos outros ramos de nossa economia.

Outro aspecto complementar deste cenário de impasses, enfrentado pela CF 2019 prende-se aos graves limites da atual conjuntura brasileira, no âmbito governamental. As forças sociais eleitoralmente vitoriosas mostram-se bem afinadas aos apelos privatistas mais escancarados, sob o argumento de que, para se reduzir os impactos deletérios da atual crise, que o Brasil vive, já há cerca de quatro anos, não há outra saída senão a de abrir mão de grande número de empresas estatais, a serem tocadas pela iniciativa privada, nacional ou internacional. Outra estratégia acenada é a de modificar a legislação socioambiental, de modo a desobstruir óbices à ampliação de terras a serem utilizadas pelo agronegócio e à mineração, ainda que contrariando frontalmente os interesses dos povos indígenas, das comunidades quilombolas e da população ribeirinha e outros grupos tradicionais. Nesse sentido, as forças governamentais fazem coro com as grandes organizações transnacionais que já se manifestam contrárias ao Sínodo Pan-Amazônico, previsto para realizar-se, em outubro vindouro.  A atual conjuntura governamental ainda apresenta gigantescos desafios às políticas públicas preconizadas pela CF 2019, em diversas outras áreas: na dramática situação trabalhista, agravada com a recente aprovação da “Reforma” Trabalhista, que ataca gravemente direitos fundamentais do mundo do trabalho, sob vários aspectos; a naturalidade com que se acomoda à dívida pública estratosférica, a omissão ou recusa em cobrar altíssimas dívidas de gigantescas empresas (Itaú, Bradesco, Santander...), grandes devedoras da Previdência Social; graves ameaças e perseguições aos movimentos sociais populares (indígenas, quilombolas, camponeses, operários, mulheres, população LGBTI), perseguição aos valores da Cultura Popular, em razão da agressividade fundamentalista das religiões dominantes...

O que resulta possível fazer-se em cenários tão desafiantes?

Ainda que se trate de uma campanha – e, portanto, de uma iniciativa passageira -, e ainda que se tenha clara a natureza complexa e ampla dos desafios presentes, sempre é possível e necessário fazer-se alguma coisa, e para bem além do tempo quaresmal. A seguir, tratamos de pontuar alguns aspectos que podem merecer especial atenção, sobretudo se enfrentados com base em alguns critérios tais como:
- os problemas existem para serem enfrentados e resolvidos, ainda que saibamos que dificilmente conseguimos resolver alguns deles, a contento: sempre há o que neles aprimorar;
- mesmo necessitando enfrentá-los, alguns a curto prazo; outros, a médio e outros a longo prazos, até estes últimos para serem resolvidos, necessitam ser enfrentados, desde já, passo a passo;
- tal é a relação de profunda interação que envolve todos esses problemas, que dificilmente serão resolvidos de modo isolado, um dos outros: há um nexo orgânico entre todos eles, razão por que devem ser enfrentados igualmente de modo interconectado, com a devida dosagem;
- isto não impede que, por exemplo, durante uma campanha como a CF 2019, não possamos priorizar os que nos pareçam mais urgentes.

Quais, então, priorizar? Aqueles que se mostram de natureza mais diretamente econômica - a questão da dívida pública, a política trabalhista, a política tributária, as grandes políticas econômicas, etc.? Ou partimos do enfrentamento das políticas públicas voltadas a questões de gênero, etnia, geração, moradia, transporte público, etc.?

Sem esquecermos nenhuma delas, e sem que nunca deixemos de ter presentes sua interconexão orgânica, parece mais razoável a concentração de esforços naquelas que mais diretamente incidem sobre o cotidiano de nossas comunidades, isto é, cabe a cada comunidade definir quais as que devem ser enfrentadas, com mais ênfase, durante a CF. Comunidades há que enfrentam mais diretamente o drama hídrico (sem que se descuidem de outras); outras há, em que as doenças provenientes do envenenamento do solo, do subsolo, das águas e dos rios entendam dever priorizar; outras se sentem mais duramente impactadas pelas ameaças de rompimento de barragens, enquanto outras priorizam o aprofundamento de técnicas alternativas de convivência com o Semiárido, havendo outras sentindo-se aflitas com a incidência insuportável dos índices de feminicídio e de assassinatos e violações aos direitos da Comunidade LGBTI. E assim por diante.
Salvo alguns desses casos, que supõem um assumir mais explícito do Estado, boa parte desses e de outros desafios é possível enfrentar – como, aliás, já se fez, em passado recente ou menos recente – por meio de iniciativas autônomas da sociedade civil, onde se colhem resultados excelentes, sob vários aspectos: mais empoderamento de nossas organizações de base; mais autonomia quanto às decisões tomadas, nos mais distintos momentos do processo; resultados mais duradouros; fortes marcas de democracia direta, favorecendo um protagonismo mais sólido dos sujeitos participantes, entre outros.
Se a CF 2019 conseguir ajudar a despertar a consciência crítica de parcelas consideráveis de nossa sociedade, já terá alcançado pelo menos parte expressiva de seus objetivos. E o que significa isto, na prática? Significa, por exemplo, valer-se dos seus materiais didáticos para promover reuniões, encontros em pequenas comunidades, no mundo rural e nas periferias urbanas, com o objetivo de interpelar o mundo cristão, de sua responsabilidade de cidadãos e de cidadãs, a serviço da causa libertadora do Reino de Deus e Sua justiça. A partir das características sócio-eclesiais dessas comunidades, buscar desvelar o que o sistema oculta de sua vista. Significa dotar os cidadãos e cidadãs de instrumentos capazes de ajudá-los a desvendar e desmontar os esquemas ideológicos utilizados pelo Estado e seus agentes, fazendo crer à população de uma suposta impossibilidade ou falta de recursos para enfrentar os grandes dramas de nossa população. Significa ajudar os cidadãos e cidadãs a desmascararem tantas reformas perversas votadas contra o povo brasileiro, a exemplo da “Reforma” Trabalhista, um verdadeiro desmonte das leis de proteção dos direitos dos Trabalhadores e Trabalhadores, com o completo esvaziamento da CLT, sob o pretexto de “modernizá-la”, prometendo a abertura de milhões de empregos, enquanto a realidade, um ano após tal desventura, segue atormentando a vida de mais de 12 milhões de desempregados, sem contar o enorme número de sub-empregados e mal-empregados. Significa, ainda, ajudar os cidadãos e cidadãs a resistirem à perversidade que se arma com a suposta reforma da Previdência Social, quando se sabe que o grande interesse de seus defensores é escancarar mais ainda as portas para a privatização da Previdência, entregando-a a cargo dos bancos e organizações financistas, o lado mais podre do sistema capitalista. Significa ajudar os cidadãos e cidadãs a se integrarem nos movimentos populares comprometidos com políticas agroecológicas, em várias frentes, incluindo até as feiras agroecológicas. Significa incentivar iniciativas de novas tecnologias de convivência com o Semiárido. Significa promover iniciativas de apoio a políticas públicas voltadas para as mulheres, os jovens, as crianças, os adolescentes, às pessoas idosas, política carcerária, política sanitária, bem como os sujeitos da questão de gênero, de etnia, a questão agrária e agrícola, a demarcação de terras indígenas e quilombolas, entre outras iniciativas.

João Pessoa, 12 de março de 2019

quarta-feira, 6 de março de 2019

URGÊNCIAS MISSIONÁRIAS CONTEMPORÂNEAS: o caso da vocação teológica das mulheres


Alder Júlio Ferreira Calado

São plurais os caminhos inspirados pelo Espírito do Ressuscitado aos e às que buscam ser solícitos ao Seu seguimento. Assim tem sido, em todos os tempos e lugares. Também hoje. Há, com efeito, uma diversidade considerável de formas de atendimento aos apelos do Sopro Fontal, do Espírito Santo, em sua atuação no mundo e ao interno das Igrejas cristãs. Uma ilustração didática do que estamos a evocar faz-se presente, por exemplo, na diversidade de formas de aturarem como missionárias e missionários os diferentes grupos e comunidades ligados à Teologia da Enxada. Aqui se observa um leque de opções missionárias em curso: peregrinos e peregrinas, missionários e missionárias do campo, contemplativos e contemplativas, formadores e formadoras missionários e missionárias atuando nas periferias urbanas, etc. São, todas, formas distintas de atendimento ao chamado do Ressuscitado: "Não foram vocês que Me escolheram, mas fui Eu quem os escolhi, e os enviei, para que vocês vão e produzam frutos, e estes frutos permaneçam." (Jo 15, 16). E assim se faz pelo mundo a fora. Tais formas de atuação missionária, por estarem vinculadas ao chamamento do Espírito Santo, também têm a ver com situações concretas, tais como: conjunturas sócio-eclesiais específicas, escolhas pessoais em função de vocação pessoal, urgências históricas, no âmbito sócio-eclesial, etc. Nas linhas que seguem, propomo-nos a considerar alguns elementos atinentes a uma dessas urgências missionárias contemporâneas, a saber, a produção teológica pelas mulheres.

É gratificante constatar o crescente número de mulheres - religiosas, leigas (consagradas ou não), a assumirem, em distintas partes do mundo, e em diferentes igrejas e mesmo ao interno de confissões não-cristãs, o desafio de produzirem teologia. Tal tendência é algo a ser saudado, com entusiasmo. De fato, quando comparamos, em passado recente, ou menos recente, o número de mulheres dedicadas às pesquisas teológicas em relação ao número de homens, as distâncias pareciam astronômicas. Que bom que isto esteja mudando! Por outro lado, também convém termos presentes as desigualdades ainda persistentes. E isto tem feito uma diferença significativa, sobretudo num mundo afetado gravemente por tendências androcêntricas e fundamentalistas. E aqui, também, o âmbito teológico tem um papel decisivo.

Nos mais distintos domínios de saberes - do campo filosófico à esfera das religiões; da área científica à literatura e as artes, etc., pesquisas recentes têm revelado aspectos impactantes em seus resultados, ou melhor, em todo o seu processo, quando conduzidos por mulheres, sob a perspectiva feminista. No caso da história do Medievo, por exemplo, as pesquisas de perfil feminista vêm trazendo revelações emblemáticas, à medida que aprofundam a compreensão do lugar privilegiado das sábias medievais, relegadas, durante séculos, à invisibilidade autoral. Acerca destas descobertas há uma literatura acadêmica significativa (ver, por ex., indicações biobibliográficas constantes no livro de Georges Deuby e Michelle Perrote. História das mulheres, vol. II, Porto: Afrontamento, 1990).

Nosso propósito, nas linhas que seguem, restringe-se a breves notas sobre o campo específico da produção teológica por mulheres, inclusive no campo da exegese.

À semelhança do que sucede nos campos filosófico, histórico e literário, atinentes à Idade Média, cumpre observar os avanços notáveis também em curso na área da Teologia, como podem ser atestados por autoras tais como Fiorenza, Gebara, Marinella Perroni, Teresa Forcades, entre outras. Que aspectos podem ser sublinhadas da excelência de tais pesquisas? Tal como já vinha acontecendo, desde algumas décadas, em relação às pesquisas bíblicas voltadas para uma releitura dos textos sagrados, sob a perspectiva dos pobres na América Latina (ver, a este respeito, por ex., a expressiva obra sobre a história da Igreja na América Latina, do ponto de vista do povo, conduzidas pela Comisión de la Historia de la Iglesia Latinoamericana y Caribe, também se passa com relação ao olhar feminista. A condição de gênero implica, com efeito, modos distintos e, por vezes, antagônicos, de se apreciar o mesmo texto sagrado. Como as traduções das Sagradas Escrituras, durante séculos, foram obra de homens, tem resulto uma tendência à cristalização das interpretações da Bíblia (e de qualquer outro texto sagrado) feitas por homens, sob os mais diferentes aspectos. Narrativas vétero e neotestamentárias que o olhar masculino interpreta de um modo, comportam notáveis diferenças, quando lidas por mulheres, numa perspectiva feminista, como alertam várias teólogas, dentre as quais Teresa Forcades (cf., por ex., seu livro "A Teoloia Feminista na História; ver ainda Dr. Elizabeth Schussler Fiorenza: https://www.youtube.com/watch?v=dUDlV8B1aHw ; Marinella: https://www.youtube.com/watch?v=ym7gRUM2zXc )

Que desafios concretos da atualidade católica demandam um enfático apelo ao empenho as leigas e das religiosas, no sentido de se dedicarem cada vez mais aos estudos teológicos, em suas diversas áreas, inclusive da exegese bíblica e da história do cristianismo? Ora, no campo missionário e outros, tais como o terreno pastoral, deparamo-nos com desafios desta natureza. Em várias ocasiões do agir missionário, situações embaraçosas vêm a lume. E, não raro, acabam prevalecendo posições tipicamente masculinas, quando não mesmo machistas, com a agravante de se apoiar em textos bíblicos sob interpretação exclusivamente masculina, não raramente descampando para interpretações androcêntricas, que acaba prevalecendo.

No cotidiano missionário, bem como em outros cenários da vida eclesial são constantes e frequentes, as situações concretas, nas quais prevalecem interpretações androcêntricas, em grande parte por conta da desvantagem que as mulheres católicas (e também de outras expressões religiosas) se veem diante de interpretações bíblicas (do antigo e do novo testamento), sem que tenham condições de reagir à altura. E aí se trata de questões fundamentais, no que diz respeito a uma compreensão mais próxima da tradição de Jesus. Neste sentido cumpre reforçar a importância do protagonismo das mulheres também no campo da pesquisa teológica, do que podem ser tomadas como referência iniciativas tais como:

- Há cerca de quatro décadas, o Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI) nos tem brindado com uma produção de profundo e vasto alcance, no campo dos estudos bíblicos, inclusive no que concerne a condição feminina;

-O excelente trabalho de pesquisa protagonizado pelas autoras Luise Schottroff, Silvia Schroer e Marie Theres Wacker, com seu livro intitulado “Exegese Feminista – Resultado de pesquisas bíblicas, a partir da perspectiva de mulheres” (cf. http://books.google.com.br/books?id=SbBIR27O59oC&pg=PA51&lpg=PA51&dq=quiriarcado&source=bl&ots=IWP4vr6Wko&sig=finMW_0CPZ36cisC0x8RgRRfIq4&hl=pt-PT&sa=X&ei=lA4uU7rsAafV0QHSmIGgDA&ved=0CDQQ6AEwAQ#v=onepage&q=quiriarcado&f=false );

- Os trabalhos reconhecidos, realizados por diversas Religiosas, ligadas à conhecida Conferência das Religiosas dos Estados Unidos (https://lcwr.org/ );

- A intensa atuação de pesquisadora e palestrante da Teóloga Ecofeminista Ivone Gebara;

- A fecunda iniciativa de Católicas pelo direito de decidir, inclusive por meio de sua instigante série de pequenos vídeo, intitulada “Catolicadas” (cf. https://www.youtube.com/watch?v=HcX0Iv2zLm4 );

- Há de se lembrar a atuação criativa de mulheres de diferentes confissões religiosas, espalhadas pelo mundo, que também se valem da produção literária como meio de expressarem suas convicções religiosas;

Ao longo da história do Povo de Deus, inclusive da trajetória do Cristianismo, as mulheres mesmo em profunda desvantagem em relação aos homens sempre protagonizaram momentos marcantes, dos quais o Movimento das Beguinas e mais recentemente, as Pequenas Comunidades de Religiosas inseridas no meio popular (PCIs), bem como várias organizações feministas atuando nos Estados Unidos, no Canadá, na América Latina e na Europa constituem exemplos ilustrativos inspiradores. Que as energias subversivas também ao feminino, nos inspirem a todas, a todos, neste 8 de março, tanto no âmbito do Sagrado, quanto nas lutas sociais libertárias.

João Pessoa, 6 de março de 2019.