quinta-feira, 29 de junho de 2023

TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA: Em busca de nossas raízes (III)

 TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA: Em busca de nossas raízes (III)


Alder Júlio Ferreira Calado


As terras e as Gentes da África constituem, como vimos assinalando, um precioso mosaico cultural. Centenas de línguas, diversidade de religiões, variedade de paisagens e olhares humanos, multiplicidade de estilos de vida. Um cenário fascinante, a infundir alegria em seus protagonistas e em seus espectadores, ao mesmo tempo em que atormenta a imperial obsessão dos Ocidentais - como, de resto, de todo projeto totalitário - pela uniformidade, pela rígida padronização, enquanto projeção/prolongamento de si mesmos. O “outro” é assumido como imagem de mim, no pensar, no sentir, no querer, no agir... De fato, o que é o projeto colonialista (e neocolonialista) senão uma manifestação emblemática da imposição da ideologia do pensamento único?


O que importa mesmo, no caso das terras e das Gentes da África,  é destacar afirmativamente a prevalência dessa diversidade como uma riqueza incomensurável. As sociedades imperialistas é que primam pela inculcação, manutenção e expansão da uniformidade, da unilinearidade, da ideologia do pensamento único. Até porque, enquanto (quase) todos pensarem igual ao “rei” e seus asseclas, a manutenção do trono está assegurada. Sob o ponto de vista dessa lógica, é vital para as forças dominantes que se faça passar o pensamento do “rei” como se fora o pensamento de (quase) todos. De “quase”, sim, porque, afinal, “Nem toda Maria (ou nem todo José)...”


A complexa variedade de cenários demográfico-econômicos, oscilando entre populações com forte urbanização e povos e etnias organizados em tribos, em parte considerável do continente, é desafiante. No sistema tribal existente em boa parte do território africano, pode-se registrar a presença desde tribos com cerca de mil pessoas, falando uma só língua, a tribos como os Ibos, a integrar alguns milhões de pessoas. Com relação especificamente à diversidade étnica, no entender de Victor C. Ferkiss (África: um continente à procura do seu destino. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1965, ., 24), “é possível distinguir na África quatro tipos raciais indígenas inteiramente diferentes: os bosquímanos, os Pigmeus, os negros e os caucasianos.” — A diversidade linguística, por exemplo, pode favorecer um saudável e horizontal intercâmbio, principalmente para aquelas “Nações” cujos protagonistas se disponham a entrar em sintonia com o “Outro ”, a partir do aprendizado do seu respectivo código de comunicação, o que, por seu turno; pode suscitar a disposição do “Outro” a um gesto espontâneo de reciprocidade. Intercâmbio do qual resultam ganhos para as duas partes dialogantes, uma vez que não se trata de abdicar de sua língua materna nem de se pretender impor uma língua alienígena como “a” referência.


Algo semelhante vai se passar no âmbito das expressões do Sagrado. É considerável o leque de manifestações e de experiências com o Sagrado, qualquer que seja o número de seus adeptos. Difícil, a quem não tem sensibilidade macro-ecumênica, compreender a fundo o que se passa no continente africano.


Do enorme mosaico cultural dos Povos da África, é possível recolher traços unitários de afinidade? Em caso afirmativo, que traços seriam esses? Num continente tão antigo, tão complexo e tão extenso, habitado por povos com uma tal diversidade de culturas, de línguas, de religiões, será também razoável o esforço de identificação de pontos confluentes?:


Com efeito, o mosaico cultural das terras e das Gentes africanas é revelador de seu amor à Liberdade, de seu zelo identitário, de seu esforço de autonomia, de respeito ao “Outro” enquanto diferente para tanto contribui uma notável diversidade de situações sócio-culturais. A vida tribal de diferentes povos africanos constitui um dos pontos a sublinhar. Grupos tribais que se constituem tendo por base um leque de condicionamentos: relação de comunhão com a Mãe Natureza, experiência de panenteísmo (o cosmo, as pessoas, os diferentes espaços sociais como expressão de teofania), profundos laços de parentesco (toda a tribo sentindo-se uma só família), o estilo nômade de vida a dissuadi-los ou a desencorajá-los de empresas possessivas ou expansionistas.


João Pessoa, 30 de Dezembro de 2004


segunda-feira, 26 de junho de 2023

TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA: Em busca de nossas raízes (II)

 TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA: Em busca de nossas raízes (II)



Ao ousar propor uma série de breves matérias sobre a África, estou consciente de que qualquer incursão por uma realidade tão extensa quanto complexa como a empreendida por quem deseje conhecer o Continente Africano, sua terra, suas Gentes, vai implicar imprecisões de vária ordem.

A título de ilustração didática, limito-me a um só exemplo: o da população. Por razões distintas, os dados demográficos disponíveis sobre o continente africano têm variado consideravelmente. Se, de um lado, fontes menos recentes (Le petit Robert 2, 1990) falavam em 513.000.000 hab., fontes mais recentes, por sua vez, estimam a população africana em “quase 800 milhões de habitante, nesse limiar do século XXI”: geomundo.fre.home.sapo.pt/geo.pt/paises_populacao.africana.htm. Outras ainda estimam para além de 800 milhões de habitantes. Assumo, portanto, os riscos de imprecisão, até porque o propósito maior é de fornecer informações aproximativas.

No caso dos dados demográficos, o que importa mesmo sublinhar é o vertiginoso crescimento da população africana, que a cada vinte e cinco anos consegue dobrar o número de seus habitantes, espalhados pelos seus mais de cinquenta países, entre os quais figuram: Nigéria (130 milhões de hab.), Egito (71 milhões), Etiópia (68), Congo (55), África do Sul (44), Tanzânia (37), Sudão (37), Argélia (32), Marrocos (31), Quênia (31), Uganda (25), Gana (20), Moçambique (20), Costa do Marfim (17),  Madagascar (16), Camarões (16), Burkina Faso (13), Zimbábue (11), Mali (11), Malawi (11), Níger (11), Angola (11), Senegal (11), Zâmbia (10), Tunísia (10), além de outros com população abaixo de 10 milhões  de habitantes (entre os quais Guiné, Somália, Benin, Líbia, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Principe, estes últimos com apenas algo em torno de 400 mil e 170 mil habitantes, respectivamente). Quem se interessar em localizar um mapa didático, disponibilizado via Internet, que permite focar dados estatísticos de cada país africano, pode acessar o site catolicanet.com.br/africa/

Um população dessa magnitude, a despeito das riquezas de seu território, não conta, porém, com uma qualidade de vida que faça justiça à enorme maioria de seus habitantes. Por razões históricas (o colonialismo, o capitalismo…) e por outras também histórico-geográficas, mas de caráter interno, um enorme contingente da população africana vive em condições extremamente precárias, do que é indicativo sua expectativa média de vida - em torno de 45 anos!, enquanto, neste item, a média da população mundial alcança algo superior aos 60 anos.

A dimensão de um complexo mosaico que se observa na terra e nas Gentes da África não se restringe aos aspectos demográficos. Panorama semelhante também se observa no plano cultural, incluindo religiões e línguas. Acostumados que estamos à realidade brasileira, tendo o Português como língua comum (ainda que imposta: não escolhemos livremente, enquanto Povo, falar Português…), em quase todo o território nacional (não esqueçamos de que, entre nós, nem todos os povos indígenas se comunicam em Portugês), não deixa de ser uma surpresa impactante saber que, na áfrica, estima-se que se falem em torno de oitocentas diferentes línguas. Segundo um estudioso da África, “Salvo algumas línguas faladas por alguns milhões de pessoas, (...) a maioria dos idiomas africanos são falados por grupos relativamente pequenos”. E acrescenta: “A única língua indígena usada como idioma oficial em qualquer estado africano independente é o suaili, uma língua franca de influência árabe adotada pela Tanzânia e falada em grande parte da África Oriental” (Victor C. Ferkiss. África. Um Continente à procura de seu destino. Rio: a.g.r. Dória, 1966, p.15).

Esse traço nos ajuda a relativizar a carga do legado colonialista, do qual também nós somos herdeiros, e em razão do qual, por exemplo, somos propensos a acreditar que pelo fato de uma língua imposta ser tomada como oficial, seja ela também o instrumento de comunicação dos povos invadidos. Não é bem assim. Diante de qualquer opressão, sempre podemos esboçar um gesto de recuperação de nossa identidade.


20 de fevereiro de 2004


sábado, 24 de junho de 2023

A descontinuidade como elemento corrosivo do processo de formação

 A descontinuidade como elemento corrosivo do processo de formação


Alder Júlio Ferreira Calado


Da reflexão que se segue sobre a descontinuidade como elemento nocivo ao processo formativo, devem ser abstraídas do exercício de (auto)avaliação ético-pedagógica as situações-limite, que independem da vontade de formandos e formadores (doença, circunstâncias atípicas justificáveis).


A Educação Popular, desde que assumida em uma perspectiva libertária, comporta diversos requerimentos - convivência, leitura crítica da realidade, planejamento, metodologia, avaliação, entre outros, inclusive a dimensão dos conteúdos, sempre a partir das necessidades, dos interesses e dos sonhos dos “de baixo”. Este processo só se faz a contento, quando devidamente observado seu ritmo, sua continuidade. 


As linhas que seguem se restringem apenas a considerações críticas acerca de um elemento relevante frequentemente subestimado: a descontinuidade. Não raramente, em distintas experiências formativas de pessoas, de grupos, de comunidades, de movimentos populares, sindicais, partidários, eclesiais, o processo formativo, ainda quando formalmente consistente, se tem mostrado com frequência vulnerável por conta também da descontinuidade apresentada por seus membros, dado o volume de faltas aos procedimentos rotineiros. Isto implica perdas consideráveis ao aprendizado, resultando lacunas preocupantes não apenas do ponto de vista individual. Mas também, do ponto de vista coletivo. 


Uma própria educação escolar para o sucesso formativo passa pelo efervescência da continuidade - o registro da frequência atesta. Muito mais a continuidade se mostra indispensável ao processo formativo aos movimentos populares e nessas organizações de base. E no caso da educação escolar o aprendizado dos conteúdos por exemplo se faz necessário ou sem ele a qualidade do aprendizado resulta afetada, tanto mais isso se dá no processo formativo preconizado pelos movimentos populares e demais organizações de base.  



O alcance negativo da descontinuidade não se limita apenas a sua dimensão coletiva, mas igualmente sem efeito sobre as pessoas. No primeiro caso, quando grupos, comunidade, movimentos não conseguem imprimir em suas atividades o ritmo adequado, resulta uma perda quanto ao processo, e, uma vez interrompido, provoca distorção dos seus membros. No segundo caso, os membros também se ressentem de perdas, quando da descontinuidade. Cada membro, se incide em descontinuidade, acaba prejudicando seu próprio ritmo formativo, à medida que já não consegue manter o foco nos conteúdos e das circunstâncias em que vivia envolvido. Todos saem perdendo. Um exemplo ilustrativo dessa perda pode ser o de uma atividade de leitura e reflexão, em que, uma vez interrompidas provocam distorção e alheamento do processo. Ainda quando os membros retomem o processo, já não é a mesma a qualidade, uma vez que, o tempo faltoso, não conseguem ter completamente recuperado, do que resulta, no caso da leitura interrompida, uma interpretação lacunosa, com a apreensão de trechos esparsos, sem visão de conjunto. 

Vista no conjunto de tantos outros fatores formativos, a descontinuidade parece pouco significativa, no entanto, quando passamos a avaliar o processo como um todo, verificamos quão importante é a manutenção do ritmo ou da continuidade, não suporta os avanços e achados do processo formativo. A descontinuidade se apresenta, portanto, como um elemento ruinoso para as três dimensões fundamentais do processo formativo protagonizado pelos movimentos populares e pelas demais organizações de base, a saber: o processo organizativo, o processo formativo e o processo de lutas. Quanto a dimensão organizativa, aquele movimento popular, se coletiva ou pessoalmente não dá sequência sistemática aos seus empreendimentos, acaba fragilizado, uma vez que a organização se protagoniza, sem que se efetiva, contínua, progressiva, sem o que seus membros correm o risco de desânimo, da desorganização, tornando-se ainda mais vulneráveis aos setores dominantes, em suas distintas manifestações. Também no processo de lutas, a descontinuidade provoca consideráveis estragos, uma vez que os grupos e pessoas, não tendo assegurado a continuidade do processo, acabam desmotivadas e entendendo menos a importância e urgência de suas lutas. 

No enfrentamento dos desafio da descontinuidade, importa rememorar a força da mística revolucionária, tanto do ponto de vista coletivo, quanto do ponto de vista pessoal. Sem esta energia continuamente exercitada, os militantes se tornam mais vulneráveis aos apelos do imediatismo, razão pela qual não se tornam capazes de distinguir entre fatos de urgência e situações contornáveis, facilmente sucumbem à tentação das auto justificativas. 

O desafio da descontinuidade, como de resto dos demais componentes do processo formativo, só se enfrenta exitosamente, a partir do exercício da autocrítica, pessoal e coletiva. Em verdade, o exercício da autocrítica, deve preceder o da crítica: nós nos tornamos o primeiro alvo da crítica que fazemos aos outros. 

Por fim, lembramos o contexto assinalado no início deste texto: as críticas que tecemos ao caráter ruinoso da descontinuidade não devem estender-se a situações limites, pois sabemos que todos estamos sujeitos ao imponderável, aos imprevistos que a vida comporta 



João Pessoa, 24/06/2003.


P.S. texto produzido em áudio ou ditado para digitação, feita por Gabriel Luar, Eliana Calado e Eraldo Batista, a quem registro meus agradecimentos.




quarta-feira, 21 de junho de 2023

TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA: Em busca de nossas raízes (I)

 TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA: Em busca de nossas raízes (I)


Alder Júlio Ferreira Calado


Nos próximos números de ABIBIMAN, estamos propondo uma incursão histórica pelos caminhos da África, em busca de nossas raízes de Afro-descendentes, mais precisamente de Afrobrasileir@s. 


Não raro, lemos que é em terras africanas que reside o berço mais remoto da Humanidade. Traço que não nos passa despercebido. O que isso significa para nós? Que terra é esta? Quais as principais marcas de sua geografia e de sua Gente? Que traços relevantes de sua história merecem ser aqui sublinhados? Onde e como vive sua população? Como entender sua vasta diversidade cultural (étnica, linguística, religiosa)? Como se processou a tragédia da colonização; inclusive nos dias de hoje? Que valores foram por nós historicamente incorporados, e que têm a ver com nossa herança da Mãe-África? Como se situa, hoje, a África no cenário internacional, nesses tempos de globocolonização?


Perguntas como essas vão servir de pistas a serem por nós exploradas, nesses próximos meses. Bem mais do que um exercício de mera curiosidade intelectual, o nosso propósito é, sobretudo, de (caráter didático, com o intuito de contribuir com o fortalecimento da nosso esforço de construção identitária, de avivar os traços do nosso rosto de Afrodescendentes, de Afrobrasileir@s. Comecemos por alguns elementos de sua geografia.


Com seus cerca de 30.300.000 Km2 - correspondendo a perto de quatro vezes a área do Brasil -, a África se apresenta como o segundo maior continente, apenas superado em área pela Ásia. Está cercado de grandes oceanos (o Atlântico, o Índico) e célebres mares (o Mediterraneo, o Mar Vermelho). O continente africano está dividido quase ao meio pela linha do Equador. Continente de diversificada vegetação. também possui cimas bastante variados, oscilando de áreas equatoriais úmidas a áreas desérticas (o Saara chega a ocupar uma área correspondente à do território brasileiro), passando por regiões tropicais, Comporta densas florestas como montanhas de grande porte. 


Sua população está em torno dos 700 milhões de habitantes, também cerca de quatro vezes maior do que a do Brasil. Compõe-se de umas. quatro dezenas de países, entre os quais podemos citar: 130 Norte, a Argélia, a Libia, o Egito; ao Sul, a África do Sul, Zimbábue, Moçambique, a Namíbia; ao Leste, a Etiópia, o Quénia, a Tanzânia; ao Oeste, o Senegal, a Guiné-Bissau, Costa do Marfim; ao Centro, a Nigéria, o Chade, o Zaire, o Sudão, entre outros.


Igualmente diversificados (e muito ricos e cobiçados pelas grandes potências capitalistas são seus recursos naturais, variando do petróleo (Argélia, Líbia, Egito) ao ouro, diamante, carvão (África do Sul e outros).


Profundo é o contraste existente entre a variada riqueza de seu território e o crescente empobrecimento de sua população. Em torno da metade da população vive em situação considerada abaixo da linha da pobreza. A principal raiz desse empobrecimento reside nas relações colonialistas (até os anos 70 praticadas abertamente, e atualmente de forma velada) pelas principais potências capitalistas, a exemplo da Inglaterra, da França, dos Estados Unidos... Portugal não fica de fora.


Não é à-toa, por sinal, que em grande dos países africanos (muitos dos quais demarcados com fronteiras artificiais, conforme a ambição, possessiva dos invasores), são faladas línguas como o Inglês, o Francês, o Português... Pelo manos por uma parte da população. já que fala mais alto seu zelo identitário, Em virtude do qual não abdicam de comunicar-se em suas próprias linguas, nas relações, do cotidiano. (Continua nos próximos números).


João Pessoa, Outubro de 2004.


quarta-feira, 14 de junho de 2023

TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA: em busca de nossas raízes (XXXVII)

 TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA: em busca de nossas raízes (XXXVII)


Alder Júlio Ferreira Calado


E da Música africana, o quê dizer? Desafio enorme até para quem é especialista. Imagine-se para um analfabeto em música. Basta tomar em consideração que se trata de um imenso continente, com quase cinquenta países, formados por distintas nações, tribos, etnias, línguas, religiões... Fala, porém, mais alto meu atrevimento de dizer algo sobre complexo e multifacetado universo musical africano. Com a preciosa ajuda de diversos "sites", vão aparecer, quando nada, sugestões de visita a essa ou àquela página, conforme o interesse eventualmente suscitado.


Influenciados por um universo enredado numa extensa variedade de tipos (músicas tradicionais ou "folclóricas", músicas religiosas, músicas de massa com forte controle do mercado, etc.), gêneros, sub-gêneros e de estilos musicais - , desponta toda uma constelação de excelentes cantores e cantoras, em distintos países da África. Só na África do Sul, fala-se na existência de cerca de sessenta artistas e grupos musicais, dentre os quais se destacam nomes como o de Miriam Makeba (a celebrada "Mama África") e o de Jabu Khanyile of Bayete, o Grupo Soul Brothers, entre outros. 


Em geral, as letras de suas músicas aludem às questões do cotidiano, às suas lutas e esperanças na construção de uma nova África do Sul, além de suas significativas conquistas. São tantos os bons nomes de artistas da música africana, espalhados por vários países, dos quais aqui lembramos, por exemplo: Lourdes Van-Dunem, a grande dama da música angolana; Angélique Kidjo (Benin), com sua “música afro-americana de Burkirna Faso, podemos citar o artista engajado Zêdess (Zongo Seydou); Makossa, Makassi e Tchamassi (Camarões); em Cabo Verde, é famosa Cesária Évora, que costuma apresentar-se descalça, em "shows" de solidariedade aos sem-teto e às mulheres pobres.


Na Costa do Marfim, pontificam figuras como Alpha Blondy (Seydou Koné), considerada a estrela internacional mais popular do Afro-Reggae, desde a partida do jamaicano Bob Marley, bem como Tiken Jah Fakoly. Ao primeiro perguntaram por que havia escolhido cantar o Reggae, ao que respondeu: "Porque os jamaicanos são mais africanos do que os negros americanos." Tiken Jah Fakoly também é conhecido pelo seu engajamento, enquanto artista, ajudando, como ele próprio diz, a "despertar as consciências”.


Situada numa região fronteiriça entre a África, o Oriente e o Ocidente, a Etiópia apresenta-se como uma das mais diversificadas, do ponto de vista artistico-cultural, inclusive em suas expressões musicais: conta com cerca de cem línguas, além de um significado mosaico religioso. Isso contribui também para sua diversidade no terreno da música tanto sacra quanto profana. AÍ são muito apreciados os bardos com os seus mais variados instrumentos de corda, a executarem canções de amor e a recitarem contos populares.


No Quênia - tão conhecido também entre nós pelos seus campeões de corridas -, pontificam grupos de hip hop, a exemplo do Nairobi Yetu, um grupo formado por jovens da periferia de Nairobi. Vale observar o título de um dos álbuns desse grupo "Grito por justiça"... Se a África do Sul tinha suscitado admiração pela quantidade de artistas e grupos musicais, o quê dizer do Mali, onde se estima atuarem cerca de oitenta? Já foi chamado de "Superpotência musical”, inclusive pelo brilhantismo de artistas seus como Salif Keita, Toumani Diabaté, Djelimady Tounkara e Kader Keita.


Como se observa, é um mosaico musical considerável. Mesmo prometendo dar continuidade, no próximo número, há de se convir que conseguimos apenas fornecer um breve "aperitivo" para os que eventualmente se disponham a prosseguir as buscas. Concluo lembrando que, nos distintos povos da África (não somente, aliás), a música constitui um dos bens culturais mais acessíveis (pelo menos do ponto de vista do consumo) ao conjunto da população. A ela têm acesso alfabetizados ou não, bem como os mais diversos segmentos sociais, independentemente de classe, de gênero, de etnia, de idade/geração, religião, etc. Como, de resto, se dá em tantos outros países. Se isto, por um lado, há de ser louvado, por conta do seu caráter estético e pelo seu alcance lúdico-pedagógico, por outro lado, não se deve esquecer que, como outros bens culturais, a música tem uma relevante função social- tanto para a formação da consciência crítica de um povo, como para sua alienação. E isso é um desafio, não apenas para os povos africanos, Ou, por acaso, nós estamos isentos disso?... 


“Sites”visitados:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Salif Keita

http://www.ufmg.br/online/arquivos/002118.shtml

http://www.afriquespoir.com/ae4i/index fichiers/africaine.htm

http:/fen.wikipedia.org/wiki/Category:South_African_male_singers

http://africanmusic.org/alpha.html


João Pessoa, Março de 2008.


sexta-feira, 9 de junho de 2023

TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA: em busca de nossas raízes (XXXVI)

 TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA: em busca de nossas raízes (XXXVI)


Alder Júlio Ferreira Calado


Dando prosseguimento ao tema anteriormente aqui tratado, propomos mais uma página dedicada aos provérbios africanos. No seu vasto universo cultural, os aforismos, os provérbios constituem mais uma expressão de como os povos africanos vêem a vida, as relações humanas, a natureza, suas relações com o Sagrado… Cuidamos, desta vez, de pôr entre parênteses, o país africano de referência do citado provérbio. Sempre que possível. 

Pelo que podemos perceber, os provérbios alcançam as mais distintas dimensões do viver. Mostram-se portadores de uma inquietação pedagógica de caráter omnilateral. Muito disso decorre de sua condição de peregrinos, dispostos a observarem as mais diversas paisagens, diferentemente de quem se fecha no seu mundinho, qual “Criança que nunca sai de casa, pensa que só sua mãe sabe preparar bem o suco! (Benin).

Entre tantos fatores de ordem cultural subjacentes a essa afro-sabedoria, um tem a ver com o modo de lidar com o tempo, pois, como reza um de seus provérbios, “Os Europeus têm o relógio, nós temos o tempo.” Modo de se lidar com o tempo que nos torna mais humildes, inclusive na moderação do falar, à medida que vamos entendendo que “Abundância de palavras não significa poder.” (Libéria).

Há os provérbios atiçando a esperança, que nos ajudam a perseguir com garra e perseverança nossos objetivos, convencidos de que “Aquilo que o coração deseja com ardor, põe as pernas em movimento”. (Burundi) Nesse mesmo sentido, importa sempre o alerta de que “Quem quer mesmo uma coisa, encontra um caminho: quem não quer, encontra uma desculpa” Afinal, “Não é longo o caminho da floresta, se se ama a pessoa que se vai encontrar.”

Embora difíceis, os caminhos da generosidade e da partilha sempre compensam eventuais sacrifícios, pois “As mãos abertas vão mais longe do que as pernas.” (Camarões).

Sempre lembrados dos ritmos da vida - diferentes do nosso imediatismo -, os irmãos africanos nos ensinam, a partir de sua experiência, que vale a pena manter-nos esperançosos e persistentes, uma vez que “Nem tudo acontece num só dia. Amanhã também o Sol vai brilhar.” (Angola). Principalmente se não sucumbirmos à pretensão de saber ou de tudo poder, esquecendo que somos aprendizes e que “Todo rio tem sua fonte”. (África do Sul).

Estaremos tanto mais maduros para uma convivência mais humanizada, quanto mais capazes nos tornarmos de lidar com os diferentes, em busca de nossa intercomplementaridade, seja no âmbito das relações de gênero, de etnia ou geracionais, como acena um outro provérbio segundo o qual “Os jovens caminham mais rápido do que os velhos, mas os velhos conhecem a estrada.”

Por outro lado, a sabedoria dos povos africanos nos ajudam a repensar nossas práticas pedagógicas, inclusive no terreno da família, hoje mais do que nunca, bombardeada pela grade de valores dominantes, em que não raro, se cultua a “vida boa”, o hedonismo mais libertino, fazendo vistas grossas aos desafios (presentes e futuros) que a vida nos interpõe, e adiante dos quais os nossos filhos correm o risco de sucumbir também por conta de nossa educação permissiva, em nada atenta ao fato de que “Mar calmo não torna bravo o marinheiro” E quando os filhos põem em prática o que de nós próprios aprenderam, esboçamos o ar de estranheza, esquecidos de que “Não se deve pedir ao sol que seja doce” e que “Pode-se curar uma doença, mas não se cura um hábito tornado cativo”.

Diante de fatos e relatos tão frequentes, em que parece inverterem-se valores como sabedoria, discernimento, autodisciplina, persistência, busca incessante de aprimoramento, entre outros, talvez nos valha a pena encarar o conselho africano de que “Às vezes cai bem que um sábio seja aconselhado por um louco.” Na próxima edição de ABIBIMAN, vamos ainda oferecer mais alguns provérbios-africanos. Desta vez, apoiamo-nos nas páginas virtuais: https://www.inafrica.it/


João Pessoa, 26 de fevereiro de 2008


quarta-feira, 7 de junho de 2023

A AÇÃO DO ESPÍRITO SANTO NA OBRA DE JOSÉ COMBLIN

 A AÇÃO DO ESPÍRITO SANTO NA OBRA DE JOSÉ COMBLIN 


Alder Júlio Ferreira Calado


Também conhecido como “Profeta da Liberdade" (inscrição, aliás, feita sobre sua lápide), José Comblin (1923-2011) se tem destacado como um teólogo de excelência, especialmente na Teologia  Latino Americano, pela sua vasta obra multi-temática, sendo ele próprio um dos fundadores da  Teologia da Libertação. Por maior que seja o reconhecimento internacional de sua contribuição teológica, importa sobretudo ter presente o conjunto de seu legado  - espiritualidade, estilo de vida, missão itinerante, testemunho, que se completam também por seus vastos escritos (cerca de 70 livros além de  mais de 400 artigos, dezenas de entrevistas, vasto acervo de cartas) ...


Com efeito, em se tratando de uma figura prolífica, não apenas em virtude de seus escritos, mas também pelo seu denso legado existencial, importa ter presentes estes traços, como condição a uma leitura aproximativa mais objetiva do teólogo. A este respeito, há quem, como Eduardo Hoornaert, dele fale comparando-o a um  “um oceano”.


Uma marca forte que se observa na emblemática trajetória de Comblin nos remete ao missionário itinerante que percorreu, durante décadas, na maioria dos Países do continente americano, em especial América Latina, tendo convivido estreitamente com uma notável diversidade de comunidades populares - povos originários, comunidades camponesas e tradicionais, além de vários movimentos populares urbanos.


Isto também se explica pela sua história pessoal, antes mesmo de vir para América Latina ( Campinas - SP; Santiago-Chile; Recife - PE; Talca - Chile; Riobamba - Equador); Paraíba ( Pilões, Serra Redonda Bayeux), Bahia. De fato, ao chegar ao Brasil, 1958, Comblin já contava 35 anos de idade, já formado Doutor em Teologia tendo acumulado um percurso de longa e profunda formação teológica, tendo sido beneficiado por uma sólida formação familiar.


Filho de Firmino e Alice, que tiveram 3 filhos (José,André e Jacques ) e 2 filhas ( Colette e Monique ), sendo José o mais velho, teve com os irmãos e irmãs uma consistente educação cristã, semelhante a de outras tantas famílias de tradição católica de Bruxelas. Junto com o irmão André (que mais tarde  também se tornaria padre), desde a infância frequentaram assiduamente a Igreja de sua Paróquia, tendo ambos se tornado acólitos, circunstância que favoreceu seu precoce aprendizado do Latim).


Aos 17 anos, após confessar aos seus pais seu desejo de ser sacerdote / notícia  que não surpreende, de modo algum, seus pais / e em tratativas com seu tio padre ( irmão de sua mãe), entrou para o seminário, cursando Ciências Naturais, em seguida, estudando Filosofia e Teologia. É relevante destacar a excelência de sua formação teológica para qual contribuíram, além de sua especial dedicação e entusiasmo, professores de reconhecida competência, alguns dos quais tiveram participação na elaboração de vários documentos do Concílio Vaticano II.


Nunca é demais insistir na excelência de sua formação teológica, tanto na Graduação quanto em seu Doutorado. Destaca-se também o ambiente de estudos, no qual ampla liberdade de pesquisa era assegurada aos estudantes. De fato,a Universidade de Lovaina tem toda uma história de profundo reconhecimento diante das mais respeitadas Universidades  teológicas do mundo ocidental. A quantidade e a qualidade das fontes de pesquisa, assegurado o clima de liberdade, propiciavam aos seus estudantes, especialmente aqueles que, como José Comblin, contavam com orientadores e professores de excelência gozando de tal ambiência, José Comblin deu o melhor de si, ao mesmo tempo  em que cultivava uma profunda espiritualidade Evangélica.


Além de ser seu orientador, Lucien Cerfaux, a quem muito admirava, inclusive por sua postura de simplicidade (ia de bicicleta para o trabalho), era um respeitado exegeta do novo Testamento e exerceu notável influência sobre Comblin e destacado papel na elaboração de alguns documentos do Concílio Vaticano II, notadamente no trato do tema “Povo de Deus”. José Comblin nutria, não por acaso, especial apreço pelos seus professores de História  e de Exegese, cuja contribuição se fez sentir até nos documentos principais do Concílio Vaticano II, graças ao trato de temas inovadores, a exemplo do conceito de “Realidades terrestres “, trabalhado pelo seu professor Gustave Thils.


A tese de Doutorado de José Comblin, sob a orientação de Lucien Cerfaux, versou sobre a dimensão litúrgica do Livro do Apocalipse, por meio da qual evolui para o tema da Ressurreição de Jesus. Importa, ainda, ressaltar, inclusive por conta da influência de seu Orientador, o profundo interesse de Comblin sobre todo o novo Testamento, não apenas os evangelhos, como também as cartas paulinas sobre as quais desenvolveu, ao longo de décadas, primorosos estudos posteriormente publicados em livros.


Ele cursou o seu Doutorado, já tendo sido ordenado presbítero, em 1947. Após concluir o seu curso, foi designado cooperador Paroquial, que já contava com vários sacerdotes. Não se encanta com o novo trabalho: a cultura eclesiástica dominante na Bélgica e na Europa, em geral, lhe parecia distante dos apelos mais fundos do Evangelho. Cresce nele a disposição de exercer sua missão junto aos pobres, na América Latina, tendo aproveitado muito bem o convite formulado por Pio XII, por meio da Bula” Fidei Donum”, convidando os Bispos Europeus a enviarem Padres para a América Latina, o Brasil inclusive, com o objetivo de combater o Comunismo Ateu e o Protestantismo, objetivo pelo  qual Comblin não estava fascinado…


Com sua chegada a Campinas, junto com dois outros colegas, em 1958, tem início uma longa caminhada missionária itinerante pela América Latina. Na Diocese de Campinas, onde destaca sua atuação como assistente da JOC (Juventude Operária Católica), trabalha até 1962, quando parte para Santiago (Chile, a convite da autoridade local, para ser professor de Teologia na Universidade Católica local). Cumpre notar que seu tempo em Santiago corresponde ao período em que se realizava o Concílio Ecumênico Vaticano II, que ele acompanhou atentamente, inclusive tendo contribuído na assessoria do Cardeal Dom Manuel Larraín, Bispo de Talca, muito amigo de Dom Helder Câmara. 1965, desta vez a convite de Dom Helder, vem trabalhar na Arquidiocese Olinda E Recife, como um dos principais assessores de Dom Helder, que também o designaria Diretor de Estudos do Seminário Regional do Nordeste II e, posteriormente,do iter (Instituto de Teologia de Recife).


Em seu trabalho de assessoria a Dom Helder, cumpre destacar, dentre as tarefas de assessorias recebidas, a de haver elaborado, a convite de Dom Helder, a título de subsídio para a Conferência Latino Americana de Medellín (Colômbia, 1968), um denso texto que, em plena Ditadura empresarial-militar, acabou vazando e caindo nas mãos do Vereador Wandenkolk Wanderley, que fez publicar a íntegra do texto, no Diário de Pernambuco, ocupando duas páginas inteiras, estratégia para acusá-lo de subversivo, inaugurando uma ofensiva que culminou com sua expulsão do Brasil em 1972.


Após alguns meses na Bélgica, sua terra natal, em que teve a visita solidária de Dom Helder, exila-se no Chile, desta vez em Talca, onde dá sequência ao seu trabalho missionário, voltado para os trabalhadores do campo, dos quais é emblemática a criação do Seminário Campesino, ao mesmo tempo em que dá prosseguimento a sua densa produção teológica.


Somente em 1980, quando a Ditadura Empresarial-Militar chegava ao começo do seu fim graças a resistência crescente da sociedade civil organizada, é que Comblin retorna ao Brasil - desta vez, para Paraìba -, ainda que como turista, tendo que sair do País, a cada três meses, para renovar a documentação exigida. É na Paraíba (Pilões, Serra Redonda, Mogeiro, Bayeux), onde Comblin passa o período mais longo de sua ação missionária: De 1980 a 2009, seguindo finalmente para Barra - BA.


Seu longo período de ação missionária na Paraíba foi marcado por um conjunto - cerca de uma dezena - de iniciativas comunitárias, de reconhecido alcance missionário-profético: Desde a reanimação da AMINE (Associação dos Missionários e Missionárias do Nordeste), à fundação do Seminário Rural (Em 1981, em sua versão brasileira, já que em Talca, havia fundado o Seminário Campesino), experiência que durou apenas dois anos, desautorizada que foi por Roma; o Centro de Formação  Missionário (versão masculina), em Serra Redonda, em 1983; o Centro de Formação de Missionárias Populares, em Mogeiro, 1986/87; a AMC (Associação dos Missionários e Missionárias do Campo); a Fraternidade do Discípulo Amado, 1995, instalada na Serra do Catita, no Município de Colônia Leopoldina; a Associação Árvore, destinada à formação de evangelizadores leigos; as Escolas de Formação Missionárias (Juazeiro - BA, 1989); Santa fé (Solânea - PB); (Esperantina - PI); (Floresta - PE); (Barra - BA); (Prelazia de São Félix do Araguaia - MT); o Movimento De Peregrinos e Peregrinas do nordeste; o grupo Kairós, que se originou ,em 1998, dos encontros mensais realizados na casa do Pe. José, e que hoje continua atuando semanalmente, há 25 anos estudando a obra de Comblin e de outros teólogos e teólogas; o grupo José Comblin, em Café do Vento, animado pelo Pe. Hermínio Canova, que juntamente com o Kairós, a CPT, o CEBI e outros coletivos organizam, desde 2011, a Semana Teológica Pe. José Comblin, este ano em sua 13ª edição, celebrativa do centenário do Pe. José.


Fazemos questão de destacar estes traços bibliográficos de  Comblin convencido de que qualquer tipo de iniciativa por ele protagonizado - seja na dimensão de sua espiritualidade profética,seja no campo de sua atuação missionária,seja no campo de sua vasta produção teológica, seja ainda em sua reconhecida produção interdisciplinar (nos campo da História, da Antropologia, da Sociologia,  Política, entre outros) -, uma compreensão mais densa desta figura, ainda que aproximativa, só se dá, situando-o, de modo profundamente interconectado em seu contexto integral. Eis por que, também ao refletirmos sobre o lugar da ação do Espírito Santo em sua obra, importa fazê-lo, sob esta perspectiva.


José comblin cofundador da Teologia da Libertação   


Uma leitura da Teologia da Libertação, quando feita do ponto de vista estritamente acadêmico, não logra uma compreensão menos imprecisa de que, em seu processo, a Teologia da Libertação constitui ato segundo, eis que, em suas origens, estão as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), as Pastorais Sociais e  movimentos e organizações congêneres. A omissão destes sujeitos eclesiais, especialmente na América Latina, implica um grave equívoco de avaliação. Com efeito, a Teologia da Libertação constitui ato II, à medida que corresponde a uma reflexão melhor sistematizada das ações desenvolvidas por aquele conjunto de forças eclesiais.


Não raramente, a impressão de não poucos é de que a Teologia da Libertação nasce, de forma abrupta, com a publicação, em 1971, do livro “Teología de la Liberación”, de autoria de Gustavo Gutiérrez. No entanto, a Teologia da Libertação, tem profundas raízes históricas, de modo recente e menos recente, em diversas experiências históricas protagonizadas por várias organizações eclesiais, frequentemente reconhecidas como a “Igreja na Base”.


Para não recuarmos a séculos passados - inclusive desde os Movimentos Pauperistas da baixa Idade Média, que aqui nos basta partirmos de experiências eclesiais protagonizadas pelo povo dos pobres, a partir dos anos 60, na América Latina e no Brasil.


Com efeito, o Concílio Vaticano II, convocado em 1959, pelo bom Papa João XXIII, e tendo-se realizado de 1962 a 1965, representou um relevante marco na caminhada da Igreja, especialmente com sua “recepção” na América Latina, inaugurada com a Conferência Episcopal Latino-Americana de Medellín, realizada na Colômbia em 1968, ela própria tendo sido resultado de uma confluência de experiências Latino-americanas pós conciliares, das quais merecem destaque especial: 

  • o Pacto das Catacumbas, relevante experiência profética, vivenciada por 40 Bispos, além de Paul Gauthier, Therese e Pe. Luís Gonzaga Fernandes, em seguida nomeado Bispo de Vitória - ES. Acontecimento realizado a poucos dias do encerramento da última sessão conciliar (mais precisamente, em 16 de Novembro de 1965), da qual resultou o compromisso com a causa libertadora dos pobres; 

  • a criação das CEBs ( Comunidades Eclesiais de Base), a partir dos anos 60, no Brasil e na América Latina, constituindo a experiência do nascimento da Igreja Latina Americana, com rosto próprio, entendidas como ”um novo jeito de ser Igreja” ou, na feliz expressão cunhada por D. Pedro Casaldáliga, ”um novo jeito de toda Igreja ser”, a medida que de uma CEB participam Leigas, Leigos, Religiosas, Religiosos, Padres, e Bispos, verdadeira “Igreja na Base”;  

  • o Movimiento Sacerdotes para el Tercer Mundo, densa experiência protagonizada por Padres Latino Americanos, especialmente da Argentina, buscando despertar na Igreja a presença e o compromisso com a causa libertadora dos empobrecidos, inspirando a “Opção pelos Pobres”, marca fundamental da Conferência Episcopal Latino Americana de Medellín, em 1968.   


Estas experiências eclesiais é que inspiraram a reflexão teológica assumida pela Teologia da Libertação. Isto se deu, não automaticamente, mas como um processo. Já em 1965, no Brasil, teve início um empreendimento que se revelaria seminal, na construção da Teologia da Libertação. Tratou-se de uma série de encontros anuais de teólogos Latino-Americanos. A partir do primeiro encontro realizado no Brasil, do qual participaram figuras tais como Juan Luis Segundo, José Comblin, Frei Gilberto Gorgulho, Gustavo Gutierrez, Ana Flora Anderson, Segundo Galilea, Ivan Illich, entre outros, a cada ano, este encontro passou a ser realizado, em vários países: México, Chile, Uruguai, Brasil, onde se realizaria o IV Congresso Ecumênico Mundial de Comunidades Cristãs. Como se percebe, tais encontros lograram significativos resultados, de alcance não apenas Latino-Americano, mas estendendo-se pela África e pela Ásia. É neste contexto que nasce e evolui a Teologia da Libertação, cuja marca principal foi impressa pela publicação da "Teologia de la Liberación”, de autoria de Gustavo Gutiérrez, 1971.


A contribuição específica de José Comblin:a Ação do Espírito Santo.


A despeito de que, de algum modo, o tema do Espírito Santo perpassa todo o legado Pe. José Comblin - até o título de sua principal biografia, escrita por Mônica Muggle, remete a este ponto: "José Comblin, uma vida guiada pelo Espírito" - ,sobretudo a partir de 1978, José Comblin se dedica mais diretamente a pesquisa sobre a Ação do Espírito Santo (no mundo e na Igreja) , com a elaboração do livro “O Espírito no Mundo”, editado pela Vozes, 1978. 


Neste livro, Comblin avança cinco marcas fundamentais da ação do Espírito Santo: “Ação“, “Palavra”, ”Liberdade”, ”Povo de Deus” e “Vida”. A partir de então, Comblin vai dedicar décadas de pesquisa sobre cada uma. Dois anos após a publicação deste livro, eis que ele elabora o primeiro livro deste projeto. Em 1982, a Editora Vozes traz a público o “O tempo da Ação: Ensaio Sobre o Espírito e a História”. Nele, o autor, ao percorrer relevantes períodos históricos do Cristianismo, cuida de analisar, sempre de maneira bem documentada, a presença da Ação do Espírito Santo no mundo e na história. Em nosso grupo “Kairós”, tivemos a oportunidade de fazer a leitura completa deste seu ensaio sobre o Espírito Santo e a História. Que aqui nos baste fazer uma breve referência do último capítulo e da conclusão deste Livro de 400 páginas. Em seguida, tomo a liberdade de citar alguns trechos do resumo do último capítulo e da conclusão deste livro, que elaborei em 2010. (cf. textosaldercalado.blogspot.com):


“O autor distribui o capítulo IX em duas partes: na primeira trata de explicitar o tipo de abordagem que orienta o sentido do discernimento (pp. 353-370), enquanto dedica a segunda parte a tratar da libertação dos pobres e suas mediações (370-379). O discernimento é a ação do Espírito de Jesus, iluminando as escolhas e as decisões individuais e coletivas do Povo de Deus, ao longo da história. É o Espírito quem conduz a história por meio do discernimento e da ação dos pobres, dos humildes, dos fracos em quem Sua força se revela. O Espírito conduz a história, sem nada nos impor. O discernimento ocorre nas ações humildes, modestas e sobretudo escondidas, protagonizadas pelos pobres. O discernimento, também na perspectiva de O. Cullmann, é o coração da moral cristã, no plano da ação na história. (pp. 352-353)

Três tópicos compõem a primeira parte, onde explicita que abordagem o guiará em sua reflexão sobre o discernimento: a abordagem paulina, o discernimento na história e a prática do discernimento.”


Investigador incansável, prossegue em suas pesquisas desta vez em torno de outro conceito-chave característico da ação do espírito santo: A palavra.  Trata-se de mais um alentado estudo - diríamos mesmo um tratado de 400 páginas -, que foi publicado pela editora Vozes, em 1986, sob o título “A Força da Palavra” (COMBLIN, José. A força da Palavra. No princípio havia a palavra. Petrópolis: Vozes, 1986.).


“O primeiro capítulo aborda o sentido da Palavra, por meio da qual Deus age. Palavra encarnada, feita pobreza, no meio do povo dos pobres. Donde sua força e sua fraqueza. Palavra do Pai que o Espírito vai infundir em Jesus e em seus discípulos. Palavra que provoca divisões entre ricos e pobres, e entre verdadeiros e falsos pastores. Palavra cuja recepção se dá de diferentes modos, através dos tempos. Palavra que comporta força, mas também fraqueza.

No capítulo II, o autor mergulha na história do Cristianismo, a perscrutar a ação da Palavra diante da realidade da civilização greco-romana, apontando seus principais desafios”.

“Vocação para Liberdade” vem dar prosseguimento ao projeto combliniano de buscar entender a ação do Espírito Santo na História. A Liberdade constitui um chamamento fundamental a todos os discípulos e discípulas de Jesus, como nos lembra Paulo, na Carta aos Gálatas, cap.5. Eis a vocação a que os seguidores e seguidoras da Tradição de Jesus são chamados a responder ao longo da História. Inspirados e focados neste ensinamento, José Comblin nos convida, em seu livro, a examinar, pelos caminhos da história, como e em que medida fomos e temos sido capazes de testemunhar esta vocação.

Em 2002, fiel ao seu projeto de buscar entender melhor a ação do Espírito Santo no mundo e na Igreja, ele traz a público, pela Editora Paulus, o livro intitulado “Povo de Deus“, sobre o qual tivemos oportunidade de refletir, no livro elaborado coletivamente, para homenagear José Comblin, pelo transcurso de seus 80 anos, em 2003. (cf.”A Esperança dos Pobres Viver “.São Paulo:Paulus, 2003).

Em seguida ele escreve o livro intitulado “A vida: Em Busca da Liberdade”. São Paulo: Paulus, 2007, assim concluindo o prometido em seu projeto de 1978. Cumpre notar que este livro também constitui uma trilogia, ao lado de “O Caminho: Ensaio sobre o Seguimento de Jesus” (São Paulo: Paulus, 2006) “O que é a Verdade?“ ( São Paulo: Paulus, 2005).

Como acima lembrado, a investigação pneumatológica Combliniana antecede e vai além do seu projeto apresentado em 1978. Antes e após a publicação destes 5 livros, ele prosseguirá nesta toada, de que são prova direta, ou indiretamente, por exemplo:

  • “ O Espírito Santo e a Libertação”. Petrópolis: Vozes, 1987, no qual, mais uma vez, o autor rememora a ação libertadora do Espírito Santo, na História, especialmente na presença e animação do povo dos pobres, nas comunidades de base, nos marginalizados; 

  • “O Espírito Santo e a Tradição de Jesus”. São Bernardo do Campo: Nhanduti, 2013. Com o propósito de tornar mais acessível esta obra póstuma de José Comblin, o “site” teologianordeste.net propôs  a  Editora Paulus a edição do mesmo livro, em sua terceira versão, com o mesmo título;


A propósito desta última obra, Comblin, pressentindo a proximidade de seu retorno a Casa do Pai, empenha-se ardorosamente em nos brindar com uma última palavra  sobre Ação do Espírito Santo na história, em seu livro “O Espírito Santo e a Tradição de Jesus, publicado postumamente, em 2012. Chama a atenção também o caminho que escolheu para a elaboração desta sua última mensagem: já aos seus 86 anos decide brindar-mos com  nada menos do que cinco versões diferentes do mesmo livro, sendo que a quarta foi irreparavelmente apagado de seu computador, em razão de um comando equivocado na tecla do mesmo, o que o fez simplesmente iniciar um quinta versão, que resultou incompleta, por conta de sua páscoa definitiva, em 27 de março de 2011, cinco dias após haver completado 88 anos.

Destas quatro versões restantes, apenas duas restaram completas, principalmente a terceira versão, contendo 13 capítulos, recém publicada pela Editora Paulus, em coedição com o site teologianordeste.net, por meio de seu responsável, Pe. Hermínio Canova. Os amigos e amigas mais próximos do Pe. José, têm recepcionado este livro como um testamento teológico definitivo, tais a densidade e a contundência  proféticas nele observadas.

João Pessoa, 30 de maio de 2023

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Brasil:Movimentos Sociais desafiados a protagonizarem mudanças.

Brasil:Movimentos Sociais desafiados a protagonizarem mudanças


Alder Júlio Ferreira Calado


Grave retrocesso, a decisão majoritária dos Deputados contra nossos povos originários, ao imporem o iníquo “ Marco Temporal”, que a ministra  Sonia Guajajara chama, a justo título, de “Genocidio legislado“. Não bastassem as barbáries bolsonaristas, cometidas no seu Desgoverno, eis que a maioria dos membros da Câmara Federal, ignorando que o Brasil elegeu um novo Presidente, teima em proceder como se continuássemos na barbárie bolsonarista. Estamos diante de um grave risco para a nossa Democracia: os herdeiros da Casa Grande continuam insistindo no retorno à escravidão, aliados que seguem ao Agronegócio, aos interesses rentista, aos grileiros de terras indígenas e quilombolas, às grandes empresas de mineração, aos garimpos ilegais, aos madeireiros, entre outras forças plutocráticas.     


Ao contemplar os empasses  da atual conjuntura, sinto-me remetido à figura de José Honório Rodrigues - para mencionar apenas uma de nossas referências historiográficas - , para quem não têm sido nada  frutíferas as reiteradas frentes amplas, a exemplo da que vem caracterizando o Governo Lula. Nelas, a classe dominante quase sempre impõe reveses contra as aspirações e os projetos populares.


Após cinco meses de governança, a tal Frente ampla, ainda que costurada pela experiente liderança do Presidente Lula, segue sendo hegemonizada pelos setores mais perversos da classe dominante, de modo a infringirem graves derrotas aos interesses populares / povos originários, comunidades quilombolas,  camponeses, operários e, principalmente, contra a Mãe Natureza.      


Desde os preparativos do golpe contra Dilma, iniciados já em sua segunda disputa eleitoral e aprofundados no primeiro ano do seu segundo mandato, culminando no Golpe de 2016, a Direita bolsonarista, à qual se alinham os  segmentos da classe dominante (os rentistas, o agronegócio, as igrejas neopentecostais, inclusive no segmento Católico), diversas forças Militares, entre outras, todas direta ou indiretamente apoiadas pelo Governo dos Estados Unidos), sem esquecermos a ação nefanda da mídia corporativa e das redes bolsonaristas. Em um ritmo crescente, temos observado a fúria ideologizante da mídia corporativa, seja em seus principais jornais (ver a contundência dos editoriais de jornais como O Globo, O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, entre outros), seja em seus canais de televisão ( abertos e pagos ), seja pela sua extensa rede de rádios, seja ainda por meio de podcast e outras redes sociais. 

      

Esta mesma classe dominante segue investindo, de múltiplas formas, contra os direitos mais elementares da Classe Trabalhadora, seja no Governo Temer, seja no Governo Bolsonaro.


Desde então, todo um conjunto de políticas econômicas e sociais vêm sendo implementadas: desmonte dos direitos trabalhistas e sindicais, ante reforma da Previdência, crescentes ataques aos povos originários, as comunidades quilombolas, aos direitos das Mulheres, dos camponeses, dos operários, da Comunidade LGBTQIA+, ataques aos quais se deve acrescentar as agressões constantes contra a Mãe Natureza. 


Nas últimas semanas, novas derrotas, ainda que mitigadas por alguma vitória nas votaçoes,  vêm sendo acrescentadas, especialmente graças à ampla hegemonia, nas duas Casas legislativas do Congresso Nacional, das forças mais retrógradas da sociedade brasileira, ao representarem os interesses do Agronegócio, dos setores rentistas, dos segmentos Militares e religiosos mais atrasados, herança do Bolsonarismo, constituindo o que há de pior do legado escravista.


Diante deste cenário pavoroso, cabe aos Movimentos Populares assumirem sua tarefa histórica de resistência e de ações propositivas, na perspectiva de profundas mudanças, que correspondam aos mais legítimos direitos dos “ de baixos”. 


Por outro lado, não desconhecemos certa retração destas forças populares, mesmo reconhecendo significativas ações de resistência e de enfrentamento por algumas delas, a exemplo do MST, alvo preferido de ataques dos setores dominante,tal como sucede na escandalosa ação  na CPMI sob a direção de figuras como a do Deputado Ricardo Salles, ex -Ministro de Bolsonaro cujo legado foi a devastação socioambiental.


Os fatos de alta tensão que marcaram a agenda congressual desta semana - com votações alternando derrotas e alguma vitória nas votações  - assinalam enfaticamente a fragilidade das lutas institucionais descoladas do protagonismo de nossas organizações de base. Ontem como hoje, somos instados a priorizar nosso compromisso organizativo, formativo e de lutas sociais, no campo e na cidade, sem o que nos tornaremos omissos ou cúmplices ante os retrocessos que as forças nazifacistas, irmanadas com as forças do capital, tentam impor ao nosso País.    


João pessoa 02 de junho de 2023