quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Traços da Mãe África: Em busca de nossas raízes XI

 Traços da Mãe África: Em busca de nossas raízes XI


Alder Júlio Ferreira Calado


A enorme lista de famosos escritores africanos inclui o nigeriano Wole Soyinka, agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura de 1986. Nascido em 1934, em Abiakuta, perto de Ibadan, no Noroeste da Nigéria, Wole Soyinka faz seus estudos até parte da Universidade, na própria Nigéria, rumando, em seguida, como tantos outros escritores africanos, para a Inglaterra, mais precisamente para Leeds, onde conclui seus estudos universitários e cursa a pós-graduação, tendo concluído o seu doutorado, em 1973. Sua vasta produção literária, que aparece em Inglês, é composta por uma vintena de obras, entre peças teatrais, romances, poesia, ensaios e escritos autobiográficos. 

Já nos anos 60, dedica-se à produção e à apresentação de peças dramáticas. São dessa época trabalhos como: The Swamp Dwellers e The Lion and the Jewel. Peças, antes mesmo de publicadas, levadas ao palco, sendo ele mesmo também ator. Ainda durante esse período, destaca-se como fundador do sugestivo Grupo de Teatro “Masks”, É também fundador da “Orisun Theatre Company”. Atuou como professor de várias universidades, dentro e fora de seu país: Ibadan, Lagos, Ife, Cambridge, Sheffield, Yale, ensinando Literatura Comparada.

Inspirando-se na mitologia de sua tribo “Ioruba-com-Ogun”, deus do aço e da guerra, em sua criação dramatúrgica, Soyinka costuma associar ação, música e dança. Outras peças de sua lavra são: A Dancing in the Forest (que as autoridades nigerianas interpretam como uma crítica contra a corrupção generalizada no país, ao mesmo tempo em que intelectuais lhe recrimina o apelo à técnica européia); a comédia The trial of Brother Jero, além de tragédias políticas The Road, The Strong Beer, Kongi’s Harvest.

Seu primeiro romance, The Interpreters, data de 1965. Nele, seis intelectuais nigerianos refletem sobre suas experiências africanas. Outro romance seu intitula-se Season of Anomy. Que data de 1973, e alude à suas experiências como preso político. À semelhança de outros notáveis escritores africanos, também Soyinka desenvolveu atividade de militância contra o governo autoritário de seu país, em razão da qual teve que amargar quase dois anos de prisão.

De sua produção poética, convém destacar seu longo poema intitulado Ogun Abibiman (1976) e Mandela’s Earth and Other Poems, além da coletânea intitulada Idanre and Other Poems. Merecem igualmente especial menção dois de seus livros: Madmen and specilist (1970) e Death and the king horseman (1975). Este último foi traduzido para o Francês. Como ensaísta, publicou, em 1976, Myth, Literatura and the African World. Publicou também sua obra autobiográfica, intitulada Aké: the year of Childhood.

Após cerrado combate, nas trincheiras literárias, contra a ditadura do seu país, que o condenaria à morte “por traição”, Soyinka sobrevive e, em 1986, recebe o Prêmio Nobel de Literatura, sendo o primeiro africano a ser contemplado por essa honraria. Não deixam de ser positivamente surpreendentes suas declarações a propósito do prêmio recebido, afirmando senti-lo como “mais um prêmio”, e alertando de que tal premiação não lhe confere imunidade às balas, como supõem não poucos.

Vê-se que se trata de um escritor polêmico, cujos escritos não deixam a ninguém indiferente, à medida que provocam e instigam o leitor, a leitora, quaisquer que sejam suas opções políticas e filosóficas. A quem interessar possa, seguem os endereços de duas páginas virtuais, em que também me baseei para o presente texto:



João Pessoa, agosto de 2005


terça-feira, 29 de agosto de 2023

Mongólia, destino da próxima viagem apostólica de Francisco

 Mongólia, destino da próxima viagem apostólica de Francisco


Alder Júlio Ferreira Calado 


Surpreendente e impactante a escolha da Mongólia como próximo País a ser visitado pelo Bispo de Roma, em sua 43º viagem apostólica pelos cinco continentes, sendo este o 54º país. O que terá movido Francisco, desta vez, a escolher visitar esta terra e essa Gente? O que há na Mongólia, que justifique a visita de um Papa?


As linhas que seguem, tem o propósito de trazer breves anotações sobre a Mongólia e sua gente, em busca de captar as razões evangélicas da escolha de Francisco. A Mongólia, da qual pouco se ouve falar, é um país situado na Ásia Centro-oriental, limitando-se com a Rússia e a China. Possui uma área de 1564 km² e uma população de 3.463.144 habitantes, ou seja, um País com uma área um pouco maior do que a do Estado de Mato Grosso, comportando uma população um pouco maior do que a do mesmo Estado brasileiro.  


A Mongólia tem uma longa história de relações de conflitos e de invasões sofridas por povos da vizinhança, tendo-se firmado nas primeiras décadas do século XX, quando recebeu forte influência política da então URSS, o que explicou sua organização política de corte socialista até o final do século XX. Com a dissolução da URSS, sua política passou por alterações, sendo hoje regida por um sistema parlamentarista semi-presidencialista.


Do ponto de vista econômico, suas bases repousam sobre uma produção agropastoril, produz e exporta carne (de cavalo, além de outros tipos de carne) e na mineração, em que se afirma como produtora e exportadora de minérios de grande valor de mercado, tais como ouro, prata, carvão, ferro, fluorspar, entre outros. Sua população, inclusive por conta do seu território acidentado, também se caracteriza por uma presença marcante de grupos nômades e pastoris, enquanto sua capital Ulaanbaatar abriga 45% da população.


No plano religioso, a Mongólia já teve, desde o século XIII marcas do Cristianismo, inclusive sob a influência do nestorianismo. No entanto, há muito tempo, o Budismo e o Islamismo são praticados por parte significativas da população, ao tempo em que o Agnosticismo atrai um percentual considerável da população enquanto o Cristianismo é professado por um percentual mínimo da população, formada por algumas denominações, especialmente Luteranos, Presbiterianos, Adventistas e outras denominações Protestante enquanto o Catolicismo, cuja única catedral se situa na capital (tendo mais outras 3 Igrejas no interior do País), compreende menos de 1500 católicos (em uma população de cerca de 3.500.000 habitantes).


A despeito das reconhecidas dificuldades econômicas, características do País, o IDH da Mongólia chega a 0,739, não tão distante de países latino-americanos, enquanto graças às conquistas do regime socialista, a Mongólia conta com uma estrutura de saúde pública, de transporte gratuito e de um invejável índice de alfabetização, correspondendo a cerca de 98% da população. No ensino superior, a Mongólia se destaca pelo seu lugar privilegiado no que diz respeito ao amplo acesso de parcela significativa de sua população.


Dado o reconhecido perfil missionário-profético do Bispo de Roma, podemos perceber a grande oportunidade que terá de iniciar/prosseguir um fecundo diálogo inter-religioso, como gesto de um discípulo de Jesus que veio anunciar a Boa Nova do Reino Deus a toda a humanidade. Neste sentido, sua atenção pastoral não se restringe a pequena comunidade de católicos - menos de 1.500 pessoas - nem a outras denominações cristãs, mas tem o propósito de exercitar um diálogo fraterno com representantes de diversos segmentos da população, adeptos de religiões como o Budismo, Islamismo, o Xamanismo, além de outras parcelas consideraveis da população Mongol que não professam qualquer religião.


A partir da próxima quinta-feira, 31/08, o Papa Francisco chegará à capital da Mongólia, e, como anuncia seu programa de visita apostólica - a 43ª -, terá até o dia 04/09, a oportunidade de semear a boa nova, mais uma vez, sinalizando a perspectiva de um crescente movimento de evangelização, à luz do Seguimento de Jesus em terras e gentes da Ásia, como o teólogo José Comblin já havia prenunciado em seu livro póstumo “O Espírito Santo e a Tradição de Jesus “.


João Pessoa 29/08/2023                


segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Traços da Mãe África: Em busca de nossas raízes X


Traços da Mãe África: Em busca de nossas raízes X


Alder Júlio Ferreira Calado


Estamos dando prosseguimento à materia tratada, no número precedente de ABIBIMAN, acerca de elementos relativos à produção literária de escritoras africanas. Reportamos-nos, de passagem, a um aspecto crucial do processo de produção literária - a incidência e o alcance dos condicionamentos politicos-ideológicos, enfrentados especialmente pelas escritoras africanas. Agostinho Neto, a seu tempo, já havia alertado para o mesmo desafio, em relação mais direta aos escritores.

A questão central é a seguinte: em meio às estratégias de ocidentalização dos stilo africano de produção literária - das mais sutis às mais evidentes - como manter e ser fiel aos traços identitários dos escritores e escritoras africanos e de sua respectiva produção literária?  no caso específicos das mulheres escritoras?

Vimos, em artigos precedentes, como a herança colonial (na África e alhures) implica uma multiplicidade de graves condicionamentos materiais e imateriais para os povos invadidos, expropriados, escravizados e re-educados conforme a frade de valores das metrópoles. Inclusive no campo da produção literária, salvo no caso de um processo de extrojeção do colonizador da alma dos povos invadidos, a tendência dominante é a de seguir-se a “cartilha!” do dominador.

As estratégias de produção e difusão da ideologia do dominador sobre os povos dominados são, não raro, carregadas de requintes de sedução. As táticas de domesticação são de uma astúcia, a toda prova. Inclusive aquelas que não hesitam em apelar para o discurso do respeito à “autonomia”, à “autodeterminação”, até à “recuperação da identidade” dos povos colonizados…

Situação multiplamente agravada, no caso das escritoras. As relações de gênero, nos países africanos como entre nós, estão longe de benegiciar as mulheres enquanto produtoras intelectuais. Para dizer o mínimo. O aprimoramento do seu ofício-alvo requer prosseguimento dos estudos. Nas (ex?) colônias, o ensino superior é jóia rara para poucos privilegiados. Ir estudar na metrópole - se e quando se consegue - tem seus encantos, mas tem seu preço… Conquistar aí condições favoráveis de sobrevivência digna já não é fácil, e o que dizer do sonho de afirmar-se como escritora? E, no caso de encontrar oportunidades propícias ao desenvolvimento de suas potencialidades, quais as condições que lhes são, direta ou indiretamente, impostas?

A despeito desses e de tantos outros entraves, alegra-nos saber de mulheres escritoras africanas honradas que, alcançando notoriedade internacional, pela qualidade de sua produção literária, se mantêm fiéis à causa libertária de sua Gente, resistindo, também lá, aos sedutores apelos dos “mensalões literários”...


Julho, 2005

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Traços Da Mãe África: Em Busca de Nossas Raízes (IX)

 Traços Da Mãe África: Em Busca de Nossas Raízes (IX)


Alder Júlio de Freitas Calado


No vasto e multifacetado universo lliterário africano, que, em artigos precedentes, mal começamos a florar, perguntamo-nos, agora, qual vem sendo o lugar ocupado pelas mulheres escritoras? O que para elas tem significado fazer literatura no feminino? Qual é o perfil dessas escritoras? Como vêm ascendendo a um universo tão marcado - não só na África, aliás - pela ampla hegemonia masculina? O que vêm tematizando em seus romances, em seus contos, em suas peças teatrais, em breve, em seus escritos? Mesmo sabendo dos limites - inclusive de espaço -, ousamos ensaiar alguns passos na direção dessas questões.

Partimos d euma constatação: também em solo africano, vem sendo cada vez maior a participação das mulheres como autoras de titulos literários. Basta que se recorra a alguns mecanismos de busca na internet, e logo aparece uma série de sites, em Inglês, em Francês, em Espanhol, em Italiano, em Português, contendo listas de nomes de escritoras dos mais distintos países da África. Sites que não se limitam a listar nomes. Também fornecem dados biográficos, seus principais livros, páginas antológicas, comentários e críticas sobre vários deles. Entre outros, consultamos, por exemplo: http://www.arts.uwa.edu.au/AFLIT/FEMEChomeEN.html Aparecem às dezenas, e por país.

Fato deveras auspicioso, em que pese ainda persistir o desequilíbrio de gênero. Parece um fenômeno cuja evolução vem se firmando, sobretudo, a partir das últimas décadas. Elementos do perfil dessas autoras o confirmam. Por exemplo, sua faiza etária. Embora encontremos autoras nascidas nos anos 30 e 40, uma parte significativa é formada por jovens escritoras, nascidas nos anos 60 e 70. São procedentes de diferentes países. Trazem em comum, em grande parte, o fato de terem tido que migrar para as ez(?)-metrópoles para assegurarem o prosseguimento de seus estudos universitários. Fato que tem consequências significativas, em sua trajetória existencial e de escritoras.

Se, por um lado, dificilmente obteriam êxito garantido, caso tivessem permanecido em seus respectivos países - embora isso posa ter acontecido a algumas -, por outro lado, não se deve desconsiderar o preço que têm de pagar por tal migração. Autores como Agostinho Neto já levantavam essa preocupação. O problema dos condicionamentos ideológiccos a que, não raro, terminam cedendo. O seu êxito também vai depender da forma como tais escritoras se inserem no universo de valores ocidentais. Vale, porém, lembrar, da parte de várias escritoras, sua capacidade de resistência à sedução metropolitana, e de se manterem fiés aos bons valores de sua Gente.

Ao focarmos aleatoriamente, por exemplo, trajetórias de escritoras como Mouna-Hodan AHMED, Mariam ABDOU, Gisèle HOUNTONDJI, podemos ter um recorte, ainda que simbólico, desses desafios, AHMED nasceu em Djibouti, em 1972. Concluídos o primário e o ensino médio, parte para a França, a fim de fazer curso superior. Seu principal romance Les Enfats du khat tematiza a situação das crianças envolvidas com a planta “khat”, um vegetal alucinógeno considerado referência de uma droga leve. Atualmente, leciona Francês num liceu de Djibouti, e dedica-se a escrever, pois afirma que “Eu escrevo para ser melhor com os outros.” ABDOU, por sua vez, nasceu em Madagascar, no final dos anos 70, aos sete anos, teve que migrar para a França, onde presta vestibular (o “Bac”, como lá se diz) para o Curso de Teatro, e, por meio de seus contatos com Benjamim Jelus-Rosette, fundador do “Teatro Negro”, vai se firmando nos recitais e em montagem de peças de dramaturgia tematizando o cotidiano dos Negros, em peças também apresentadas por atrizes e atores Negros.

De sua parte, Gisèle HOUNTONDJI, nascida no Benin, em 1954, apresenta um percurso semelhante. Após fazer curso primário e médio em sua terra natal, segue, também ela, para a França, para fazer um curso superior, enfrentando um leque de desafios, inclusive o racismo. Conseguiu viajar por vários países, na África (especialmente pelos países limitrofes ao Benin), na Europa e na América do Norte. Considera-se uma “cidadã do mundo”. Sua principal obra é o romandce intitulado Une Citronelle dans la neige. No site acima mencionado, encontra-se disponibilizado um breve e instigante conto seu, intitulado Daniel. De volta à terra natal, a autora atua como intérprete de conferência.

Ao buscarmos fazer uma leitura crítica desses e doutros escritos, um instrumental valioso a não se dispersas é o recurso a áreas como a Sociologia, a História, a Antropologia, além da Linguística, dadas as interfaces como cada autora constrói as tramas de suas obras literárias. Voltaremos ao assunto, na próxima edição de ABIBIMAN.


segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Traços da Mãe África: Em busca de nossas raízes VIII

 Traços da Mãe África: Em busca de nossas raízes VIII


Alder Júlio Ferreira Calado


Damos prosseguimento à nossa breve incursão pelo universo literário africano, destacando algumas figuras proeminentes, nesse campo. Cuidamos, desta feita, de pôr em relevo alguns elementos bibliográficos do poeta angolano Agostinho Neto. Nasceu em 1922, em Catete, Angola, onde cursou seus estudos elementares e de nivel médio. Em razão da ausência, nas colônias, de escolas de ensino superior, teve, como vários de seus conterrâneos, que prosseguir seus estudos em Lisboa, onde cursou medicina.

Ainda estudante, não tardaria a engajar-se no movimento pela emancipação de sua terra e de sua Gente, razão pela qual teve que amargar a prisão, da qual, movido pelo sonho de Liberdade, conseguiria fugir, para integrar, mais tarde, o Movimento Popular pela Libertação da Angola - MPLA, do qual seria eleito presidente. Como presidente também seria eleito da República Popular de Angola, após sua emancipação, em 1975. Bastem esses elementos biográficos para se ter uma idéia da natureza predominante de sua produção literária: o compromisso político de libertação de Angola e dos Angolanos, da África e dos Africanos.

Juntamente com personalidades como Lúcia Lara e Orlando de Albuquerque, viria a fundar a revista Movimento, em 1950. Nela e em tantos outros periódicos publicou sua vasta produção poética.

Agostinha Neto costumava externar sua inquietação quanto à função política exercida pela língua, na produção literária. Guardava, a propósito, uma posição crítica diante do que chamava de “literatura aculturada”, por entender que, mesmo quando aborda uma temática anticolonialista, “dependia de padrões europeus, sendo ela, de certo modo, um ramo da literatura portuguesa, tanto pela sua técnica como pela sua língua de composição” (cf. Hamilton, in África, Vol 7. Ano II Lisboa, Jan-Mar, Revista Trimestral, p. 211, 1980. Cit. por D. J. Cazombo, http://www.afropress.com/domingos02.htm).

Daí todo o seu empenho em valorizar e promover o uso das línguas nativas, como veículo adequado de comunicação do sentir, do pensar e do agir do escritor, visto que “por vezes, pega-se a ler ou a escutar um órgão da informação e eu fico, imediatamente, com a sensação de que não é pra mim que estão a falar. Não é para o povo de Angola. Está-se a falar para outra gente. Isso não pode ser”, chegando à conclusão de que “setor da cultura, o setor dos escritores, dos artistas plásticos, necessita de uma certa adaptação à realidade” (Ibidem).

De sua vasta produção poética, podemos mencionar: “Quitanda”, “Voz de Sangue”, “Mussanda Amigo”, “Contratados”, “Aspiração”, “Poesia Africana”, “Fogo e Ritmo”, “Kina-xixi”, “Noite”, “Consciencialização”, “Civilização Ocidental”, “Adeus à Hora da Largada”. Em “Quitandeira”, por exemplo, Agostinho Neto alude ao cotidiano de sofrimento e de sonho de uma vendedora de frutas, em sua luta pela sobrevivência, sendo por vezes forçada a também vender o corpo como meio de sobrevivência. O sonho de liberdade, porém, é uma constante em sua lida de quitandeira.

Este é o seu poema intitulado “Contratados”: “Longa fila de carregadores/ domina a estrada/ com os passos rápidos. / Sobre o dorso/ levam pesadas cargas./ Vão olhares longiquos/ corações medrosos/ braços fortes/ sorrisos profundos como águas profundas./ Largos meses os separam dos seus/ e vão cheios de saudades/ e de receio/ mas cantam./ Fatigados/ esgotados de trabalhos/ mas cantam./ Cheios de injustiças/ calados no imo das suas almas/ e cantam./ Com gritos de protestos/ mergulhados nas lágrimas do coração/ e cantam. /Lá vão/ perdem-se na/ distância/ na distância se perdem os seus cantos tristes, / Ah!/ eles cantam…”

Falecido em 1979, Agostinho Neto permanece vivo na memória do seu povo, tido como um dos intelectuais mais reverenciados, não apenas em Angola, nem somente na África. O mundo dos pobres lhe presta homenagem, sobretudo, pelo seu testemunho de poeta revolucionário comprometido com a causa dos oprimidos, e marcado por um admirável motivação ética, bem expressa em sua conhecida afirmação: “Não basta que seja pura e justa a nossa causa, é necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós”.


Abril, 2005


quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Traços da Mãe África: Em busca de nossas raízes VII

 Traços da Mãe África: Em busca de nossas raízes VII



No número precedente, ao tecer breves considerações sobre o universo literário africano, aludimos à sua diversidade de gêneros literários e de temas abordados, inclusive o tema da valorização da causa Negra e da luta anticolonialista, que hoje tomamos como alvo dessas linhas, focando elementos do legado de um dos mais reverenciados revolucionários africanos. Assim como Agostinho Neto, ele é mais conhecido ainda entre os povos africanos vitimas da colonização portuguesa. Estamos aludindo à figura de Amílcar Cabral, a cujas idéias político-educativas - seja-me permitida a analogia, para fins didáticos - muito se afeiçoar Paulo Freire (cf. deste as Cartas à Guiné-Bissau).


Nascido em Bafatá, em Guiné-Bissau, em 12 de setembro de 1924, Amilcar Cabral passaria parte de sua infância em Cabo Verde, em condições bastante favoráveis (graças a uma herança por parte da tia), tomando-se em conta a situação típica das crianças locais. Desde cedo, mostrou-se interessado em conhecer as condições sócio-históricas do processo de colonização, bem como as condições de vida do povo. Seus poemas de juventude Ilha (“os sonhos dos teus filhos/ a clamar aos ventos que passam, / e às aves que voam, livres, / as tuas ânsias!”) e Segue o teu rumo irmão refletem bem essas inquietações.


Concluído o ensino médio, muito se empenhou em dar prosseguimento aos seus estudos. Não havendo ensino superior nas colônias, seguiu para Portugal, onde cursou Agronomia. De volta às suas Gentes, e já como agrônomo, revelava uma rara sensibilidade em relação à realidade social, da qual demonstrava ter um olhar aguçado, graças à observação direta que exercitava das relações sociais entre dominadores e dominados. Esse olhar aguçado, Amilcar Cabral devia expressamente aos seus contatos diretos e frequentes com os camponeses de Guiné-Bissau e de Angolas, entendendo que toda concepção teórica de emancipação nacional deveria fincar raízes na própria realidade do país.


É justamente isto que vê consubstanciar as palavras de uma figura que o conheceu de perto: “Essas vivências - diria mais tarde a viúva Ana Cabral, em discurso comemorativo do 20º aniversário da independência de Cabo Verde - darão a Cabral os fundamentos culturais e políticos que lhe permitiram, no momento oportuno, mobilizar com lucidez e sucesso o povo para a luta de libertação nacional.” (cf. http://www.umassd.edu/programs/caboverde/acaddressp.html).


No plano político específicamente, quais as idéias-forç das atividades de líder revolucionárionário de Amilcar Cabral? Tomando como referência, por exemplo, algumas de suas palavras de ordem, é possível recolher preciosos fragmentos do seu pensamento. Contentemo-nos com esses dois fragmentos?

  • “Aprender na vida, aprender nos livros e aprender com a experiência dos outros. Aprender sempre!”

  • “Sermos cada vez mais capazes de pensar muitos os nossos problemas para podermos agir bem, e agir muito, muito, para podermos pensar melhor.”


Idéias-força que são reafirmadas pelo próprio Amilcar Cabral, de modo indireto, ou seja por de suas palavras em homenagem a Eduardo Mollane, primeiro presidente da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), assassinado em 1969 “O seu grande mérito não foi a sua decisão de lutar pelo seu povo, mas sim o ter sabido integrar-se na realidade do seu país. Identificar-se com seu povo”>


Mário de Andrade, intelectual angolano e profundo conhecer das obras de Amilcar Cabral, também reafirma “o seu permanente contacto com a realidade, a forma como se apoderava desta realidade, para voltar a ela, ajustá-la e imprimir-lhe novos contornos.”


Por essas breves notas, é possível entender a reverência cultivada por Amilcar Cabral, não apenas por parte das terras e das Gentes d’África, como também pelo mundo afora. Não é em vão o número de referências diretas e indiretas feitas a Cabral por Paulo Freire, especialmente em suas Cartas à Guiné-Bissau. E não se tratava de um mero recuso didático - por ser Amilcar Cabral venerado pelo seu povo. Também tinha a ver com outras razões, inclusive a de estar convencido do potencial epistemológico inspirado pela práxis de Cabral, que se empenhava em conhecer a realidade de seu povo, nã por ouvir dizer, mas pela imersão de vida, pelo seu compromisso com a causa do seu povo. Pela experiência do vivido!


Abril, 2044