quinta-feira, 25 de julho de 2019

A EFICÁCIA DA AÇÃO PROFÉTICA COMO ANTÍDOTO À MENTIRA INSTITUCIONALIZADA


A EFICÁCIA DA AÇÃO PROFÉTICA COMO ANTÍDOTO À MENTIRA INSTITUCIONALIZADA

Alder Júlio Ferreira Calado

Multiplicam-se, nos quatro cantos do mundo, os sinais de barbárie, ou mais precisamente, da barbárie capitalista, em seus estertores. A besta apocalíptica volta a atacar, em todo o mundo. Também no Brasil. Uma onda de extremismo protagonizado pela extrema direita varre parte considerável do mundo atual: nos Estados Unidos, na Itália, na Hungria, na Inglaterra... e no Brasil! Aqui tem lugar uma síndrome rara de maldades, concentradas num só grupo/pessoa. O país, por força de um processo eleitoral de legitimidade questionada, repleto de "fakes news" resultou numa pavorosa coincidência: em um mesmo grupo/pessoa de gestores, vem incidindo uma confluência de predicados perversos: rara estupidez, compulsão à mentira, ecocídio, misoginia, homofobia, racismo, beligerância gratuita,... Reinstala-se, no Brasil, o velho e pavoroso FEBEAPÁ: Festival de besteiras que assolam o país... Um fenômeno surrealista de alto poder deletério. Ações de resistência se tornam urgentes como nunca antes. Um resistência criativa há de comportar, por certo, o exercício da profecia, a atuação de forças comprometidas com um novo modo de produção, organicamente articulado a um novo modo de consumo e a um novo modo de gestão societal. 

Em âmbito nacional e mundial, vêm multiplicando-se os sinais de barbárie: deliberadas políticas de agressão socioambiental; crescimento dos índices de desigualdade social; aumento inaudito dos índices de feminicídio; de crimes homofóbicos; implementação de políticas ditatoriais

Em sua fase mais perversa, o Capitalismo refina seus instrumentos necrófilos, dentre os quais a institucionalização da mentira, tratada ora como pós-verdade, ora como "fake news" ou termos similares. Como a mentira não tem a última palavra no processo de humanização, cedo ou tarde acaba descosturada, desmascarada pela ação profética (adjetivo este aqui assumido para além de uma categoria meramente teológica). Em contextos passados da história, algo semelhante se produziu, ainda que em intensidade bem menor. Nas últimas décadas, contudo, o Capitalismo tem priorizado cada vez mais a institucionalização da mentira como estratégia de sobrevivência. Mas, tal recurso também tem limites. As linhas que seguem têm como propósito trazer a lume a eficácia da ação profética como instrumento demolidor de máscaras, de que se tem servido abusivamente a ideologia capitalista, nas diferentes esferas da realidade. Começamos por destacar alguns cenários, a título de ilustração exemplificativa de como o modelo hegemônico usa e abusa das mais torpes ferramentas da mentira, com o fim de manter sua hegemonia, mundo a fora. Em seguida, cuidamos de situar brevemente a força demolidora da ação profética ante as diversas formas de mentira, inclusive sob a estratégia de sua institucionalização. Por último, centramos atenção em mostrar como a ação profética, em nossos dias, pode (e deve) ter um lugar mais destacado, desde que protagonizada pelas forças sociais historicamente vocacionadas a superar o atual modo de produção (articuladamente ao modo de consumo e ao modo de gestão societal).

O Capitalismo se nutre da mentira e da ocultação de seus instrumentos de sustentação.

A despeito de todas as suas astúcias de aparência, o Capitalismo não sobrevive sem máscaras e falsas justificativas. Esta tem sido a moldura que o envolve, nas mais distintas esferas da realidade em que atua. Sucede que tem sido justamente em sua fase última, em seus estertores, que ele vem apelando para um recurso extremo: a crescente sofisticação da mentira, agora sob a forma de "pós-verdade" e de "fake news", das quais tem usado e abusado, em diversas partes do mundo onde prevalece. 

Para tanto, recorre ao que há de mais avançado nas ferramentas tecnológicas, em especial o uso e abuso dos algoritmos, através dos quais consegue multiplicar exponencialmente o poder de divulgação de mensagens sabidamente falsas, de factoides disparados em massa, de modo a fabricar notícias mentirosas, servindo-se inclusive de dados relativos ao perfil dos destinatários. Prática que evoca as artimanhas usadas pelo conhecido ideólogo nazista, Goebbels, para quem uma mentira repetida mil vezes acabaria ganhando ares de verdade. Assim aconteceu em várias partes do mundo; assim se deu nos Estados Unidos, durante a campanha eleitoral que culminou na eleição de Trump; assim desdeu no Brasil, por ocasião da campanha eleitoral de Bolsonaro. Não são casuais as afinidades múltiplas do desgoverno Bolsonaro com o desgoverno Trump.

E não se trata de pessoas isoladas - Trump, Bolsonaro e seus auxiliares -, mas especialmente de forças poderosas que se põem por trás deles, até porque são pessoas reconhecidamente estúpidas, sem qualquer capacidade de formulação, mas de exímios cumpridores de "scripts" elaborados pelas forças que representam: as grandes transnacionais atuando nas mais distintas áreas econômicas, inclusive na indústria de armamentos de guerra, na indústria de petróleo, das poderosas indústrias de mineração, do agronegócio, etc, sem esquecer de sua forte atuação também no campo da cultura, da educação e até das religiões (haja vista, por exemplo, o poder da Bancada dita “evangélica”, com sua teologia da prosperidade...). A atuação destas forças não se restringe as manipulações do Mercado capitalista, mas se estende pelos aparelhos de Estado.

As transnacionais, as grandes empreiteiras, as grandes empresas de mineração e do agronegócio, e sobretudo, do mundo financista, todas sabem o quanto lucram por meio da divulgação das "fake news" e da mentira institucionalizada. Basta conferir as taxas de escandalosa lucratividade auferidas pelos principais bancos atuando no Brasil... Na pior das crises vividas pelo povo mais pobre, o mundo financista arranca sucessivos superávits, com taxas de lucro acima dos 20%...

O que aqui vem entendido por profetismo?

Mesmo tendo consciência da diversidade conceitual concernente ao termo "Profecia" ou "Profeta", importa explicitar o significado que lhe atribuímos, nas linhas que seguem. Em primeiro lugar, sublinhamos que, a despeito de a abordagem hegemônica comportar uma predominância teológica, buscamos tratar "Profecia", "Profetismo" ou "Profeta"!, para além de sua semântica estritamente teológica, situando-os também como conceitos interdisciplinares. Desde sua etimologia, "Profeta" – de “phemi”=falar e “pro” = diante de, em lugar de - significa aquele que fala em nome de uma divindade, ou seu porta-voz, ou ainda o mensageiro ou intérprete de uma divindade. Prática registrada em âmbito do mundo antigo, inclusive no antigo Oriente Médio (Egito, Síria, Iraque, a região do médio Eufrates, a região Babilônica.) Neste caso, o profeta comporta uma dimensão antes política que religiosa, no sentido de não ser alguém ligado a uma prática religiosa, ligada ao culto, mas principalmente um intérprete que cuida de externar ao rei os sinais que distingue, cumprindo um papel de pessoa encarrega de oferecer ao rei um conselho sobretudo de animação, de apoio. Sentido diferente recebe o profeta bíblico.

Vale a pena, a este respeito, ouvir/ver a conferência da Profa. Dra. Elena Di Pede, no link: https://www.youtube.com/watch?v=N61fyJ1GSZg  

Não se trata, portanto, de um fenômeno apenas bíblico. O próprio profetismo bíblico comporta semelhanças e diferenças com o exercido em outros povos. Quanto à semelhança, por ex. os profetas egípcios intervinham por meio de oráculo, como porta-vozes de uma divindade. Mas, há também diferenças consideráveis:
- enquanto os profetas do Oriente Médio antigo exerci ciam seu ofício junto ao rei e ao povo, com um propósito de apoio à política mantida pelo rei, em tempos de crise, e não tinham vínculo com o culto, os profetas bíblicos, por sua vez, agiam como mensageiros e intérpretes de Adonai, o Senhor, transmitindo suas mensagens ao rei e ao povo, no mais das vezes, para apresentar denúncias tanto contra a ordem política quanto em relação aos desvios do culto, isto é: agiam tanto no plano político quanto no plano religioso.

A profecia se praticava tanto no terreno pessoal como no âmbito coletivo.

Os profetas eram advertidos para comunicarem, não sua posição, mas a de quem os enviava a profetizar. Eram sempre recriminados, se fossem infiéis à fonte da mensagem.

As denúncias que os profetas são enviados a fazer, não têm por objetivo a condenação, mas a conversão (do povo ou do rei) de seus malfeitos. O anúncio desponta como o alvo maior.

A profecia não está vinculada necessariamente a um a instituição. Deus chama a quem ele quer, onde, quando e como quer.

A interpretação da profecia requer um contínuo exercício de discernimento da parte de quem os escuta, pois não há garantia absoluta de acerto de que aquela palavra vem mesmo de Deus, ou se pode ser objeto de eventual manipulação de quem a comunica e de quem a escuta.
A missão do profeta é advertir dos riscos e das consequências dos malfeitos, em especial por parte de reis ou lideranças religiosas que abusam do seu poder.

Diferentemente dos profetas do antigo Oriente Médio, tidos como "profissionais" e ligados aos interesses do rei, os profetas bíblicos (por exemplo: Moisés, Josué, Samuel, Natan, Isaías, Jeremias, Amós...) eram enviados por Adonai, para denunciarem os maus feitos, e anunciarem a libertação dos oprimidos. Eles recebiam tarefas específicas.

Uma delas é a de despertarem a memória histórica de seus contemporâneos, incentivando-os a rememorarem testemunhos e práticas (pessoais e coletivas) do passado menos recente e mais recente, transmitidos por figuras históricas respeitáveis, cujo legado a todos convida a uma revisitação, com o propósito menos de "matar" saudade, e mais de reavivar compromissos, de rever metas e caminhos inconsequentes. Isto significa não uma rendição ao passado, mas um convite a uma atitude coerente entre passado-presente-futuro, razão por que é somente pela práxis assumida no presente, que se revela o verdadeiro sentido de tal revisitação do passado. Em semelhantes exercícios, tem-se mostrado fecunda a contribuição de bons clássicos, a exemplo de Ernst Bloch, por meio de seu "Princípio Esperança", a clamar pela renovação de compromissos com a causa libertadora, acenando para o "Já" e o "Ainda não"., isto é: o horizonte almejado há de ser sinalizado já no presente, graças ao testemunho que se pode e que se deve oferecer, pessoal e coletivamente, com a consciência de que o que se obtém no presente "ainda não" corresponde em plenitude ao que se deseja.
Outra dimensão relevante do exercício da profecia tem a ver, ao mesmo tempo, com a crítica e a autocrítica. De um lado o profeta - homem ou mulher - não hesita em denunciar os malfeitos da sociedade, começando a fazê-lo pelas autoridades e pelos segmentos privilegiados da sociedade, o que lhes custa muito caro, por vezes a própria vida; por outro lado, tem a coragem de, ao dirigir  suas críticas, a quem quer que seja - também aos setores populares -, cuida de também colocar-se, por primeiro, sob a linha de tiro, isto é, examina sua própria consciência, inclusive acerca da denúncia que dirige aos outros. Aí repousa sua credibilidade perante os destinatários e os diversos segmentos da sociedade, esta faceta ressurge de uma atualidade a toda prova.

Também ao interno das Igrejas cristãs, inclusive da Igreja Católica, vimos assistindo a uma sucessão de atentados  ao direito e à justiça, ao ponto de se ouvir até de autoridades, de bispos, declarações de que não apreciam um perfil profético, nas ações eclesiais, preferindo as ações de assistencialismo...

Seja como for, a ação profética segue sendo um componente essencial das lutas, nos mais diversos setores da sociedade e também ao interno da(s) Igrejas.

Que tipo de ação profética se apresenta mais fecunda, em nossos dias?

Nos impasses da atualidade, em que contrastam fortemente, por um lado, as ações de barbárie e, por outro, a escassez de profecia, resulta útil perguntar- nos: que tipo de ação profética se perfila mais urgente, aos nossos dias? De modo despretensioso, ousamos pôr-nos em busca de elementos de resposta.  Sem ignorar nem subestimar a relevância de uma ação profética exercitada por pessoas, entendemos que ainda mais fecunda seria articular uma profecia exercida por pessoas - mulheres e homens - a um outro tipo de ação profética protagonizada por sujeitos coletivos. Tal consideração nos remete a um conhecido episódio bíblico, em que pessoas próximas a Moisés o procuraram para se queixarem de haverem encontrado pessoas fora do grupo a profetizarem. A resposta de Moisés lhes soaria desconcertante: "Tens tu ciúmes por mim? Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta, e que o Senhor pusesse o seu espírito sobre ele!” (Números 11:29b).

Em décadas recentes, ao interno do que se tem denominado "Igreja na Base", especialmente em circunstâncias de marchas, procissões e romaria, costumava-se entoar um canto, uma de cujas estrofes assim dizia: "No deserto, antigamente / O povo de Deus marchou/ Moisés andava na frente/ Hoje, Moisés é a gente/ Quando enfrenta o opressor".

Sendo a ação profética um chamamento, ao mesmo tempo, pessoal e coletivo, sua expressão comunitária parece lhe conferir mais força e eficácia, sobretudo 

Especialmente em contextos de barbárie, a ação profética se revela mais eficaz, quando assumida coletivamente, ainda que sem prejuízo da incidência pessoal, como sinalizada pelo profeta Joel. Ação potencializada quando assumida comunitariamente. A propósito deste tema, tivemos hoje, na reunião semanal do Grupo Kairós, mais um tópico do livro "O Caminho", de autoria do Pe. José Comblin. Tomamos a liberdade de citar um trecho, em que ele ressalta a força da ação profética, quando exercida pela/na comunidade:

“Outra dificuldade é a de achar lideranças, pessoas estejam dispostas a formar, assumir responsabilidades coletiva, dirigir, manter unidas as comunidades. Todos sabem como é difícil achar tais pessoas nos assentamentos, nos bairros, nas favelas. Muitos têm na mente o modelo de liderança criado pelos políticos. O “Chefão” tem os seus cabos eleitorais, os seus capangas, que lhe são devotamente dedicados – porque ele lhes oferece, além da proteção de um homem forte, uma certa socialização. É a prática do clientelismo. Há tendência muito forte para formar caciques – no mau sentido da palavra -, e não dirigentes de comunidades, pessoas que buscam na sua clientela uma força política, uma vantagem pessoal e não o bem e a unidade de todos.

Quando aparecem lideranças verdadeiras, é preciso multiplicar as ações de graças, porque são pérolas preciosas. A estrutura da Igreja católica não favorece o surgimento de tais lideranças. O sacerdote, pela sua posição social, pelo monopólio de todos os poderes, impede a existência dessas lideranças – e o aparecimento de pessoas que possam assumir responsabilidades. O padre busca auxiliares para aplicar os planos e as decisões tomadas por ele. Por isso as comunidades eclesiais de base prosperam, sobretudo lá onde não havia sacerdote ou onde ele somente aparecia de vez em quando.”

(Comblin, J. O Caminho: ensaio sobre o seguimento de Jesus São Paulo: Paulus, 2004, p. 201-202)

Também forte se revela a ação profética, quando exercitada pelas forças sociais historicamente vocacionadas a protagonizar mudanças substantivas, em vista de uma sociedade alternativa ao modelo hegemônico atual. Mas, de que ação profética se trata?

Trata-se de uma ação inserida no cotidiano organizativo, formativo e de lutas dessas forças sociais. Trata-se de uma ação profética que trabalhe bem a memória histórica dos oprimidos, de modo a extrair lições das lutas sociais do passado recente e menos recente, sem a pretensão de reeditar as mesmas lutas, mas de recolher inspiração para o enfrentamento dos desafios presentes.

Trata-se de uma ação profética que induza os sujeitos - mulheres e homens - dessas organizações de base a um constante aprimoramento dos sentidos (do ver, do ouvir, do sentir...), de modo a agudizar sua percepção dos sinais dos tempos, interpretá-los e levá-los a sério, em seu dia-a-dia. Trata-se de uma ação profética capaz de comprometer seus agentes a exercitar uma crítica consistente sobre o atual modelo societal, que seja precedida da autocrítica: inócua é a crítica que não parta da autocrítica - acaba levando ao descrédito dos que denunciam, sem anunciar pelo seu testemunho.

Eis apenas algumas pistas que podem ser úteis a nossas organizações de base, como forma de resistência propositiva face aos gigantescos desafios que enfrentamos, nesses tempos de barbárie e obscurantismo.

João Pessoa, 25 de julho de 2019

quinta-feira, 18 de julho de 2019

TESTEMUNHO CONVINCENTE DE UM HOMEM DE PALAVRA: notas sobre a Exortação Apostólica "Cristo vive!", do Papa Francisco


Alder Júlio Ferreira Calado

Em um mundo fascinado pela "pós-verdade", ressoa forte o testemunho de um jovial ancião de palavra, por meio de um documento, em forma de carta, dirigida aos jovens cristãos. E o que escreve este jovial ancião de oitenta e dois anos, com tal credibilidade que impacta não apenas os jovens? Encanta todos, todas quantos não sucumbem ao fascínio das "fake news" dos nossos tempos.

Mais uma vez, por suas práticas, seus escritos e pronunciamentos, o Bispo de Roma dá testemunho credível ao mundo, a crentes e não-crentes, de seu compromisso evangélico com a verdade, com a justiça, com a paz. Dá testemunho de seu fecundo empenho na construção de um outro mundo possível, necessário, e urgente. Construção na qual os jovens emergem como protagonistas especiais.

Já nos parágrafos 1 e 36, o autor manifesta a força convincente de suas palavras:

CRISTO VIVE: é Ele a nossa esperança e a mais bela juventude deste mundo! Tudo o que toca torna-se jovem, fica novo, enche-se de vida. Por isso as primeiras palavras, que quero dirigir a cada jovem cristão, são estas: Ele vive e quer-te vivo! (...) devemos ter a coragem de ser diferentes, mostrar outros sonhos que este mundo não oferece, testemunhar a beleza da generosidade, do serviço, da pureza, da fortaleza, do perdão, da fidelidade à própria vocação, da oração, da luta pela justiça e o bem comum, do amor aos pobres, da amizade social. (CV, nn.1e36, www.ihu.unisinos.br/images/ihu/2019/04/02-04-ExortacaoChristusVivit_PT.pdf)

Eis dois parágrafos que, além de tocarem pelas palavras-chave incisivas que empregam, também são capazes de sintetizar o fundamental do conteúdo de todo o seu escrito, assinalando as linhas-mestras sobre as quais se deterá com enorme sensibilidade, com amorosidade, com rica intuição e, sobretudo, fazendo uso de uma linguagem poética, de imagens preciosas, bem ao gosto de nossos jovens.

E qual foi a motivação desta carta? Como foi anunciado e realizado, aconteceu em Roma, em outubro passado, o Sínodo dos Bispos sobre os Jovens. Sínodo antecedido de relevantes iniciativas de preparação, em que os próprios jovens tiveram reconhecida participação, enviando aos organizadores do Sínodo relatórios elaborados por eles e elas acerca de um leque de situações e desafios enfrentados.

Alternando trechos de densa reflexão e outros feitos ao modo de uma carta dirigida aos seus interlocutores-alvo, A Exortação Apostólica “Christus vivit" começa por convidar os jovens a um passeio pela Sagrada Escritura, com o propósito de examinar o que diz a Palavra de Deus, fonte de nossa fé. O Papa Francisco empreende um percurso bíblico, pelo Antigo e pelo Novo Testamento, profundamente instigante, à medida que se mostra vivamente feliz nas escolhas das passagens bíblicas, com forte incidência na temática-alvo. O que diz a Palavra de Deus aos jovens? E assim, nos faz saborear passagens e trechos de densa sabedoria, que tocam profundamente o coração e a mente de que se dispõe a fazer tal percurso.

Do Antigo Testamento o Papa Francisco rememora emblemáticos episódios protagonizados por jovens, em distintas situações que indicam os surpreendentes critérios preferidos por Deus, para convocar jovens - mulheres e homens - a assumirem grandes responsabilidades. Personagens tais como José (do Egito), Gedeão, Ruth, Jeremias e tantos outras figuras constituem um atestado do lugar privilegiado que Deus reserva aos jovens: quando anciãos e adultos se arrogavam qualidades exclusivas, Deus vai contrariá-los, ao mostrar sua preferência pelos jovens, de modo a indicar que os caminhos do Reino de Deus, na perspectiva da construção de um mundo novo, alternativo aos interesses de uma gerontocracia, devem ser protagonizados pelos jovens.

Não seria diferente com Jesus de Nazaré! Ele próprio jovem vai cercar-se também de jovens e de mulheres, para anunciar e inaugurar na terra o Reino de Deus e Sua justiça. São, com efeito, numerosos os episódios que o Papa Francisco destaca na Exortação Apostólica "Christus vivit", nos quais o jovem Jesus e outros tantos se apresentam como figuras centrais, ao testemunharem os valores axiais do Reino de Deus: a prioridade dos pobres, dos últimos, dos desvalidos, das mulheres, dos enfermos, dos presos, dos marginalizados, ao mesmo tempo em que denunciam os malfeitos dos grandes e poderosos daquela sociedade e daquela religião.

A jovem Maria, mãe de Jesus, também se mostra protagonista especial do anúncio e da inauguração do Reino de Deus, à medida que se entrega à defesa e promoção da causa libertadora dos "de baixo", o que se percebe bem no s "Magnificat", trecho destacado por Lucas, indicando do lado de quem está o Reino de Deus: "Cumula de bens os famintos, despede os ricos sem nada"; "destrona os poderosos do seu trono e exulta os humildes"...
 Eis a Maria do serviço, da solidariedade, da compaixão, dos gestos corajosos, da ousadia, da criatividade...

Nesta mesma esteira, o Bispo de Roma destaca, no mesmo Documento, o protagonismo de muitos santos e santas JOVENS, sempre recorrendo a documentos e textos múltiplos que relatam esses fatos. Na lista de santos e santas jovens, certamente não poderia estar fora a veneranda figura de Francisco de Assis. Sua trajetória amorosa e de radicalidade pela vida dos humanos e de todos os viventes constitui um especial atrativo de horizonte e de caminho para os jovens de hoje.

À medida que a igreja segue esses passos, ela vai testemunhando sua fidelidade à sua vocação; à medida que ela se dispõe a renovar-se, com se dispõem os jovens, vai confirmando sua fidelidade à sua missão.

Como são descritos os jovens de hoje pelo Papa Francisco? 

Sempre se servindo de uma linguagem coloquial e direta, inclusive empregando a segunda pessoa do singular, Francisco também cuida de despertar em cada jovem a consciência de suas potencialidades criativas, transformadora. E, como de pai para filho/filha, segue incentivando cada jovem a descobrir sua vocação libertadora, as forças de sua inventividade, capazes de torná0lo/la um agente revolucionário de um novo mundo possível, necessário e urgente, seja na sociedade, seja ao interno da Igreja Católica.

E não o faz, no vazio, em abstrato. Convida cada uma, cada um a aprimorar sua capacidade perceptiva e, animado pela luz e pela força do Espírito do Espírito Santo, que que torna novas todas as coisas, passa a destacar um leque de gigantescos desafios do mundo contemporâneo, dentre os quais:
- as boas e más potencialidades tecnológicas, a depender do uso que delas faz o jovem: tanto podem torná-los robôs e cópias xerográficas de modismos alucinantes e alienantes, como podem constituir-se em preciosas ferramentas que potencializam o ritmo e a qualidade de seu empenho inventivo voltado para a criação de novas relações sociais e humanas, como alternativa às relações de barbárie que prevalecem, em nosso mundo atual;
- convida-os/as a tomarem consciência das desigualdades extremas e suas causas, como ponto de partida para seu exitoso enfrentamento;
- o drama da migração é apontado como um desses grandes desafios da atualidade, em relação aos quais os jovens são chamados a responderem com amizade social e com generosidade;
- os desafios socioambientais aí também pontificam como um ponto fundamental de atuação missionária dos jovens;
- chama a atenção para o cuidado com os pobres, a merecerem um cuidado prioritário, não como suje alvo de dó, mas como parceiros de libertação, como sujeitos e agentes na construção de um outro mundo.

Assim como em outros escritos seus, Francisco, Bispo de Roma, mostra-se tomado de uma profética iracúndia com relação aos malfeitos da própria Igreja Católica: manifesta indignação com relação aos abusos (sexuais e financeiros) cometidos por alguns bispos, sacerdotes e outras agentes eclesiásticos; combate com veemência, a chaga do clericalismo; defende o protagonismo dos jovens também no que toca às mudanças estruturais da Igreja.

Não se detém apenas na indicação de malfeitos. Empenha-se também na proposta de pistas de uma nova Pastoral juvenil, na qual os nada se faça sem a participação dos jovens nas decisões a serem tomadas. Recomenda que, sem prejuízo da pluralidade de ambientes e de tipos de juventude ("Juventudes"), seja da especial atenção a uma Pastoral de Juventude Popular, voltada ao atendimento de uma enorme quantidade de jovens distantes da Igreja, vivendo nas periferias do mundo, das igrejas e das paróquias.

Resulta igualmente impactante, no documento, sua coerência aos valores do evangelho. Do começo ao final, seu pronunciamento aos jovens, além de uma notável intimidade com o texto bíblico, em especial com o evangelho, revela-se de tal modo impregnado, que ainda quando não faz citações diretas, é possível observar sua proximidade com os ensinamentos do evangelho. Cuidou, o Papa Francisco, de reter o que é verdadeiramente essencial à palavra - o reino de Deus e sua justiça; em sua fidelidade à causa libertadora dos mais necessitados, dos presos, dos doentes, dos descartados, dos desvalidos; em seu modo de associar palavra e ato; em sua aposta de costurar a unidade na diversidade; em seu cuidado com a casa comum; em sua facilidade de estar atento aos sinais dos tempos, sempre pronto a acentuar as urgências mais prementes; seu incansável trabalho missionário pelos cinco continentes; sua abertura à interculturalidade dentro da qual deve ser anunciado o Evangelho mais pelo exemplo do que pela palavra; sua sistemática recusa em restringir o anúncio do Evangelho a algumas culturas ou a alguns povos, em detrimento de toda a humanidade, razão por que sempre corre o risco de ser interpretado como alguém menos preocupado com os interesses institucionais a serem pretensamente privilegiados...

Não bastasse esse leque de aspectos a s merecerem destaque especial, importa também sublinhar a forma como se comunica (no caso, aos jovens): faz uso de uma linguagem simples e direta, que brota da espontaneidade de seu coração amoroso; para tanto, e buscando colocar-se no lugar dos jovens, sendo ele um ancião, recorre a imagens, comparações, situações próprias do meio.

O documento também mostra os traços de sua pedagogia, inspirada no senhor da vida: uma pedagogia movida pela compaixão, por uma solidariedade visceral com os injustiçados de todo o mundo. Faz uso de uma linguagem poética de rara felicidade. Note-se, por exemplo, sua sensibilidade de se reportar a um jovem de Samoa, mencionando dele o exemplo da canoa dentro da qual jovens e anciãos devem andar juntos, uns aprendendo e compartilhando com os demais, em vista do mesmo horizonte.

Não se há de concordar necessariamente com cada linha do documento: aqui e ali, podem ser encontrados pontos ou afirmações em relação aos quais pode haver menos afinidade, não apenas pelas diferenças de pensamento

No denso escrito/testemunho do atual Bispo de Roma, ainda há que se ressaltar o íntimo nexo que confere entre o horizonte almejado - o de visibilizar já na terra os sinais efetivos do Reino de Deus e sua justiça, a necessidade e o compromisso de se empreenderem (pelos jovens, em especial) passos compatíveis com tal horizonte, e o exercício da esperança que a mística de Jesus vai fecundando, nos entrechoques da história. Não se trata de elementos indissociáveis. Pelo contrário, cada um guarda estreita relação com os demais. O primeiro elemento (o horizonte almejado) constitui a grande motivação dos protagonistas, como vem claro na feliz comparação que o jovem de Samoa fazia: jovens e anciãos têm em comum o mesmo horizonte, o mesmo rumo a perseguir. (CV.n.201) Rumo que lhes fornece força e luz de seu empenho na viagem, cada qual ocupando-se de sua parte, de sua tarefa. Enquanto os anciãos cuidam de atentar para o rumo da canoa, para o que perscrutam inclusive a posição dos astros, cabe aos jovens manter o ritmo da navegação, pela sua força, pelo seu empenho.

Outro traço desta mesma pedagogia se revela na feliz associação entre passado-presente-futuro. Quanto ao primeiro, o Bispo de Roma enfatiza a relevância da memória, recorrendo mais de uma vez à imagem das raízes. o desenraizamento cultural, por exemplo, custaria caro aos jovens desejosos de alcançar o horizonte almejado. Na prática, emerge o lugar imprescindível dos anciãos, graças à sabedoria acumulada graças à sua densa experiência de vida, por força da qual cuidam de alertar os jovens para lidarem adequadamente com as passagens perigosas da vida, com os tropeços da caminhada, sem que isto venha a descambar para falsos caminhos, distantes do horizonte perseguido. Há de se notar a eficácia pedagógica dessa troca de experiências, na qual jovens e anciãos só têm a aprender junto uns com os outros. 

Estamos diante de uma aposta aberta à aventura a ser assumida, tendo-se consciência dos riscos, mas sem abrir mão de ousar empreender os passos necessários. Aventura e ousadia de discernimento; de acúmulo de experiências e de incansável aprendizado, de autoconfiança combinada com a entrega confiante à vontade do Pai/Mãe de bondade e de amor.

O Documento vem elaborado no que se pode chamar de um texto por excelência, isto é, de um produto cujas peças ou cujos fios se acham muito bem articulado: uma verdadeira malha tecida fio a fio de modo orgânico, em função do todo. Marca, aliás, de seu autor: um mestre na tessitura de uma obra literária. Obra, a exemplo de um outro documento de sua lavra - "a Encíclica "Laudato sì" -. O texto do Papa Francisco traz outras marcas admiráveis. Do começo ao final, em seus nove capítulos e 299 parágrafos, se acha atravessado do espírito do Evangelho, comportando traços inapagáveis da Sagrada Escritura, do Antigo ao Novo Testamento. O Documento vem tecido de modo a jamais perder de vista seu horizonte - o do Reino de Deus e sua justiça. Impacta, também, por sua força poética, que ora aparece de modo implícito, ora de modo mais visível. Toca, ainda, pelo seu estilo, pela sua linguagem, em que o autor se coloca no lugar dos destinatários (os jovens e todo o Povo de Deus). Fala aos jovens como um pai ou um avô amoroso, como um sábio a interpelar profundamente cada leitor, cada leitora, desde sua alma. Ao compartilhar suas inquietações, suas esperanças, sua enorme confiança nos jovens, o faz com convicção, com enorme capacidade de convencimento, mas sempre de forma leve, com sua reconhecida ternura.

João Pessoa, 18 de Julho de 2019

terça-feira, 9 de julho de 2019

EXPERIÊNCIAS DE COMUNAS AUTOGESTIONÁRIAS: ANOTAÇÕES EM TORNO DOS "KIBUTZIM"



Múltiplas são as experiências ligadas ao cooperativismo/associativismo, em seus diversos formatos - em sua imensa maioria, adaptadas, direta ou indiretamente ao modelo capitalista; inclusive as que esboçam traços alternativos à este modelo. Dentre as múltiplas experiências de cooperativismo/associativismo, damo-nos ao trabalho de tecer algumas considerações sobre a experiência dos Kibutzim.

O objetivo maior das anotações que seguem, é o de revisitar a experiência dos “Kibutzim”, em especial até à fundação do Estado de Israel, na perspectiva de observar que princípios-chave inspiraram tais experiências, com a finalidade de examinar a pertinência e a atualidade destes princípios em iniciativas contemporâneas de alcance auto gestionário, como possível alternativa (ainda que molecular) ao modo de produção capitalista.

Inicialmente cuidamos de fornecer breves elementos históricos dos Kibutzim. Em seguida, centramos atenção no exame da adequação entre os princípios-chave orientadores destas experiências e sua efetividade. Por último, cuidamos de examinar a pertinência e atualidade desses princípios-chave aplicados a experiências agroecológicas, a tecnologias alternativas de convivência com o Semiárido e experiências espiradas pela filosofia do “Buen-vivier”.

Breves elementos históricos dos Kibutzim.

A experiência dos "Kibutzim", no início do século XX, está ligada  ao movimento sionista, de retorno a Israel dos judeus espalhados pelo mundo (diáspora), em especial pela Europa. Movimento que data ainda do final do século XIX, inclusive por meio de congresso realizado pelos judeus, em Viena, com o objetivo de promover o retorno à região da Palestina/Israel. Iniciativa que encontrará resistência por parte dos Palestinos  "Kibutzim" nasce, pois, em meio a um contexto complexo, um tanto polêmico. Não obstante tal pano de fundo, é certo que, entre 1909 e 1919, cerca de quatorze "kibutzim" já estavam instalados naquela região Palestina/Israel. Tratava-se de uma iniciativa destinada a uma conivência de vida e de trabalho agrícola em uma espécie de assentamentos rurais com características tais como: o trabalho agrícola como horizonte; a propriedade coletiva da terra; a repartição por todos das tarefas implicadas; a não admissão de trabalhadores contratados (assalariados); a distribuição equitativa dos produtos; as decisões tomadas pela base; opção laica quanto ao Sagrado, entre outras. Assim prosperaram os "Kibutzim", até à fundação do Estado de Israel, em 1948, após o que os "Kibutzim" passam a sofrer maior influência das instâncias do Estado, refletindo-se em sua organização. Entre 1920 e 1948, os "Kibutzim" tiveram uma feição organizativa semelhante  a uma experiência de cooperativa com marcas autogestionárias. Tal feito passou a sofrer influências significativas, no período posterior. Para fins destas anotações, vamos nos concentrar apenas neste período, dadas as afinidades mais significativas com uma experiência cooperativa autogestionária, como passaremos a analisar no tópico seguinte.


Traços analíticos de experiências dos Kibutzim, até à fundação do Estado de Israel.

Entre aproximadamente 1920 e 1947, os "Kibutzim" se aproximavam de uma experiência próxima de uma organização autogestionária, caracterizada pela predominância de valores tais como trabalho, equidade e cooperação.

Abrigando trabalhadores judeus emigrados, seja da Europa Ocidental (sobretudo da Alemanha), seja da Europa Central e da Rússia, estes trabalhadores traziam para os "Kibutzim" um projeto utópico de feição socialista/comunista, inspirado em figuras tais como Tolstói, Aaron David Górdom e outras.

Com relação à escolha deste período, cumpre assinalar que foi durante seu transcurso sobre o qual mais incidiram traços marcantes, tais como:
- circunscrever a experiência dos "Kibutzim" ao trabalho na agricultura ou agropecuária, por entender-se que se tratava de assegurar condições de auto-sustentação, não apenas da comunidade kibutziana, como a das populações do entorno urbano. Cuidado que, na atualidade, corresponderia ou se aproximaria mais do que se chama de soberania alimentar. No caso dos "Kibutzim", condição garantida pelo excedente da produção.

Outro princípio-chave característico deste período dizia respeito  ao caráter coletivo da propriedade e da gestão daqueles "Kibutzim". A propriedade coletiva da terra era a condição por meio da qual se poderia assegurar o princípio da equidade, da igualdade de direitos e deveres dos coprodutores.

E isto se dava pela distribuição das distintas tarefas apenas entre os protagonistas do referido "Kibutz", isto é, sem a admissão de contratação de trabalhadores assalariados.

Outra marca desta experiência autogestionária residia na organização co-gestionária, cujas deliberações eram tomadas pelas bases, pelo conjunto dos produtores. Medida que militava contra a tendência de burocratização, à medida que se confia a uns poucos a deliberação de relevantes decisões, tomadas "em nome" de todos...

Não se há de subestimar, igualmente, a observância do princípio de distribuição equitativa dos produtos colhidos entre os mesmos produtores.
Não menos importante, o critério laical de convivência, isto é, a busca de se evitar que as crenças religiosas viessem a tomar um ar de obrigatoriedade ou de interferência nas relações do dia-a-dia.

Que lições extrair da experiência autogestionária dos “Kibutzim”?

Quem se propõe ao trabalho de ajudar a responder aos gigantescos desafios contemporâneos, inclusive o mais complexo deles - o de ousar dar passos concretos em busca de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal -, há de estar alerta ao fato de que já não se parte da estaca zero, isto é, sem subestimar o contínuo exercício de inventividade, cumpre associá-lo dinamicamente ao que já está sendo experienciado, ainda que em dose molecular, bem como ao legado da memória histórica (recente e menos recente). Em breve, importa dar-se ao trabalho de tecedura de fatos e acontecimentos e situações do passado, do presente e projeções em relação ao futuro. 

No caso do passado, o exercício da memória histórica há de se fazer sobre experiências bem ou mal sucedidas (em parte ou por completo), comportando elementos e traços merecedores de atenção, não quanto a uma desaconselhável reedição mecanicista, mas com relação a lições que delas devem ser extraídas, seja como aspectos de inspiração, seja como aspectos a serem evitados, em vista do horizonte perseguido.

No caso específico da experiência analisada - a dos "Kibutzim" -, são dignos de especial exame aqueles "kibutzim" que melhor se aproximem dos princípios característicos de uma experiência de autogestão compatível com uma sociedade alternativa à barbárie capitalista. Eis por que cuidamos de nos cingir apenas ao período experiencial considerado mais compatível com os traços autogestionários perseguidos, isto é aquelas marcas tomadas como características mais fortes e mais próximas de uma sociedade economicamente justa, politicamente participativa e de matriz radicalmente democrática, e culturalmente diversa. 

A este legado somos historicamente chamados a associar uma quantidade considerável de experiências em curso, em sua rica diversidade, de modo a abranger práticas e concepções do "Buen Vivir", fecundas experiências em curso no campo agroecológico, no campo das tecnologias alternativas de convivência com o Semiárido, no campo da Permacultura e em outros ramos da Economia, da Política e da Cultura.

O contínuo esforço de associação não se exaure na interação passado-presente. Demanda o exercício (coletivo e pessoal) de ensaios de inventividade: ousar também o que ainda não se deu, mas pode dar-se, sobretudo quando fortalecido pelas aquisições de ontem e de hoje, na persecução do mesmo horizonte.

Neste sentido, que pistas podem estar ao nosso alcance:  Tratamos, em seguida, de compartilhar alguns questionamentos, em busca de passos, ousando ensaiar trilhas alternativas.

É possível adaptar os princípios-chave dos Kibutzim, à experiências autogestionárias contemporâneas?

Uma sociedade alternativa ao atual modelo hegemônico não caí do céu. É obra do esforço coletivo e pessoal de quem a busca. Será que é razoável persegui-la mediante as mesmas relações que caracterizam o atual modelo?

Como é possível perseguir um horizonte alternativo ao atual modelo, reproduzindo suas relações básicas (as do Mercado, as do Estado...)?

Não seria mais indicado, enquanto se luta pela superação das velhas relações, já irmos priorizando iniciativas que comportam o antídoto da velha sociedade?

Mesmo sabendo que as sementes de alternatividade ensaiadas desde já, são lançadas e cultivadas ainda sob a vigência da antiga sociedade, como assegurar passos concretos capazes de acelerar o combate efetivo de práticas e concepções compatíveis com o horizonte almejado, em vez de seguir alimentando práticas e concepções que objetivamente acabam estendendo a sobrevivência do modelo que se declara combater?

É possível alcançarmos traços do novo horizonte, seguindo, ao mesmo tempo, o receituário do antigo modelo?

Por que seguir priorizando trilhas já experimentadas, e cujo destino já se conhece fartamente?

João Pessoa, 09 de julho de 2019

segunda-feira, 1 de julho de 2019

ENTREVISTA CONCEDIDA AO JORNALISTA ALEXANDRE NUNES


É possível conceituar filosoficamente o que seja fé e ateísmo?
Em meio ao cipoal de polissemia reinante nos diversos campos de saberes, torna-se cada vez mais complicado definir-se alguma coisa. Mas, é, sim, possível ousar um conceito para os termos propostos, pelo menos para, dentro da Filosofia da práxis, por lidar especificamente com o agir humano e as concepções em que se apoia, situar o que, nesta entrevista, entendo por cada um dos conceitos mencionados. Entendo fé como a atitude de adesão de alguém a uma determinada divindade, em função do que ela ordena ao crente. Penso, por exemplo, no exemplo clássico da narrativa do episódio envolvendo a figura do patriarca Abraão, em resposta radical ao que lhe ordena Javé, de deixar sua terra e empreender caminhada com os seus, rumo a uma nova terra. Penso, também, na figura de Saulo/Paulo, outro judeu, cuja fé o levava a afirmar, convicto: "Eu sei Aquele a quem dei minha adesão.!" Trata-se, pois, de uma atitude de obediência às indicações recebidas, conforme suas convicções, pelo Deus em quem confia, incondicionalmente. Por sua vez, entendo por ateísmo a postura de quem declara não acreditar em qualquer divindade, de modo a cingir sua existência a valores estritamente do universo terreno. Sabe-se, também, de uma outra forma de ateísmo - o ateísmo militante -, segundo o qual não bastaria não professar qualquer credo religioso, mas também de empenhar-se no combate  a qualquer espécie de crença religiosa.


Ao longo da história, tais atitudes (de fé ou de ateísmo) têm convivido, ora em conflito, inclusive conflitos sanguinários, ora de modo pacífico, ora ainda de modo colaborativo.
Historicamente, como se deu a eclosão dessas formas de pensar e agir?
De que maneiras as pessoas podem vivenciar essas duas experiências de forma saudável?

Na prática, qual o espaço de ocupação e interferência de cada um desses conceitos na humanidade?

É possível uma convergência pacíficas entre as pessoas que vivenciam experiências tão antagônicas?

Se a inexistência de Deus carece de prova filosófica, então o que sustenta os postulados do ateísmo?

O conhecimento científico tem alguma coisa a ver com o ateísmo, ou isso é pura ficção?

O ateísmo poderia ser considerado uma espécie de rebeldia, um egocentrismo, uma revolta, uma falta de racionalidade, de uma certa forma dogmática, ou uma forma diferenciada de viver a vida?

E a fé é uma crença ou uma certeza na existência de Deus?

Existe pontos de convergência entre fé e racionalidade?

Como se proteger dos fanatismos e das verdades absolutas, sem afetar a fé?

É possível pensar a fé como força transformadora da sociedade e como fonte alimentadora, do amor, caridade, igualdade e que deixe o homem mais livre e mais humano?

É possível o senhor falar sobre as diferenças e semelhanças entre o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo?

Obs: O senhor pode acrescentar mais sobre o tema Fé e Ateísmo e as implicações que esses dos conceitos têm na contemporaneidade, ou outras visões e nuance que possa querer abordar sobre o assunto.

O senhor poderia me responder até o final da próxima terça-feira (25)?

Abraços

Historicamente, como se deu a eclosão dessas formas de pensar e agir?

Fé e Ateísmo constituem conceitos antiquíssimos, ao longo da história . Trata-se de expressões que antecedem significativamente a contribuição dos filósofos gregos. Suas origens remontam a vários povos, inclusive chineses, indus, povos do Oriente Médio, etc. Ambos os conceitos se associam, positiva ou negativamente, a crença religiosas, a valores atribuídos a uma determinada ou a determinadas divindades - para os que crêem, enquanto não são raros os registros históricos de povos comportando parcela de seus membros que não professam qualquer crença religiosa em alguma divindade.



De que maneiras as pessoas podem vivenciar essas duas experiências de forma saudável?

Como, então, lidar com tais posições, num contexto de diálogo entre crentes e não crentes? Ou, para rememorar iniciativas e experiências de reflexão sobre a temática, como passar do anátema ao diálogo? Eis um relevante desafio, também para os nossos dias, especialmente quando toma corpo uma aspiração geral a uma convivência ecumênica?

Neste sentido, importa buscar precisar melhor o)s) sentido(o)s atribuído(s) a cada uma dessas expressões - "Fé" e "Ateísmo", a despeito de inexistir qualquer pretensão a definições "precisas". Menos ainda, quando se sabe da polissemia existente entre conceitos, não apenas das ciências humanas, também nas ditas exatas.

"Fé" nos remete a uma atitude de crença numa força superior e exterior ao ser humano. Força capaz de orientar atitudes e escolhas humanas. Força em relação à qual os humanos devem obediência, não raramente submissão incondicional. A fé é, com frequência, interpretada como um valor a ser introjetado nos humanos, de modo incondicional, e à qual se deve obediência inquestionável. Tal interpretação encontra amparo na imensa maioria das religiões, inclusive nas religiões de matriz cristã. Impensável compreender-se alguém sem fé, alguém que não creia numa força superiora, bem acima dos mortais, e a quem estão submetidos os destinos dos seres humanos.  Aí tem lugar a existência de um deus a cujos desígnios todos devem submissão incondicional. Um sentido que parece amplamente majoritário. Mas, isto não quer dizer alcançar todo o conjunto dos crentes. Há, com efeito, entre estes, que expressam outra avaliação;



O exercício da fé e condição de ateu são expressões legítimas da condição humana. Integram o mesmo processo de humanização que, por ser histórico, comporta uma variada gama de escolhas, inclusive de caráter axiológico. Estamos diante da ampla diversidade de expressões da mesma condição humana. Diversidade que se dá tanto neste quesito, como em tantos outros. A diversidade faz parte definitivamente da condição humana. Não é problema, é ganho, quando trabalhada com um olhar de complementaridade. Se, ao longo da história, se tem registrado diferentes modos de se lidar com tal diversidade - ora com obcecada oposição, ora com certa tolerância, a depender da conjuntura -, a conjuntura atual vem emitindo sinais convincentes de que é chegado o momento de superar pela raiz o clima de confrontos.

Ainda que se trate de situações minoritárias, convém atentar para pistas bem-sucedidas, quanto às condições de uma boa convivência entre crentes e não crentes. Referimo-nos a diversos caminhos que se têm mostrado propícios a uma tal convivência. Todas essas vias passam, de alguma maneira, pela Filosofia - pelo menos, pela Filosofia da Práxis. Quando se elege a vida como valor supremo, as diferenças tendem a ser exercitadas positivamente. Crentes e não crentes têm em comum a vida, não importando - ou importando pouco - o nome ou os nomes pelo)s) qual/quais venha a ser experienciada. Se para muitos, importa chamá-la por um nome (Deus, Alá, Javé, etc. -, e se para outras pessoas, basta que a vida seja vivida plenamente, sem ligação com uma força sobrenatural, o importante é que a vida seja cuidada como a casa comum a todos, em todas as suas manifestações. O exercício comum desta biofilia a todos faz bem, isto é, a todos que têm na vida seu valor supremo. Neste caso, os condicionamentos doutrinários, legítimos para os crentes, já não são mais assumidos como algo obrigatório para todos. E isto, no caso dos crentes, com base em sua próprias crença. Por exemplo, a quem se dá ao trabalho de pesquisar a histórica do Cristianismo (e de outras confissões religiosas), não resulta estranho que, para certos grupos daquela sociedade judia do seu tempo, o próprio Jesus foi acusado de não ser um crente exemplar, à medida que estava seguidamente a desobedecer a normas da Antiga Lei. Quem se der ao trabalho de ler, por exemplo, do cap. 5 a 7 do Evangelho de Mateus, por exemplo, há de perceber que Jesus não acata todas as normas da Lei Antiga. E não o fazia apenas, de boca para fora, mas suas atitudes contrastavam, por vezes, várias as normas da Lei. Tal atitude constituiu um fator decisivo de sua condenação à morte de cruz. Entre seus acusadores, estiveram autoridades do Império Romano, ao qual a Palestina estava subordinada, que não hesitaram em condenar Jesus, acusando-o de ateu, por não adorar o único deus por eles pretendido: César. Isto acena para o fato de que, antes de acusar ou repelir alguém por declarar-se ateu, importa entender a relatividade desta condição. Será que Jesus, por exemplo, não se manifestava  como um ateu, em relação ao deus Mamon? E, ao mesmo tempo, será que Jesus de Nazaré, ao observar a opressão de sua gente por aqueles que, em nome de Deus, subjugavam parcelas expressivas do seu povo, também não considerava ateus aos opressores de seu povo?


... e especialmente em razão de seu foco específico estar centrado no agir humano, ligado às suas respectivas concepções e valores.

Buscando ainda explorar as pistas propícias pela  abordagem filosófica, desponta surpreendente a atitude de vários ateus, a exemplo de Karl Max, que, sem abdicar de suas convicções de alguém sem filiação religiosa, cuidava de retrucar e até de tirar as máscaras de não poucos que, em se confessando filiados  às suas respectivas crenças, manifestavam práticas que pouco ou nada tinha a ver com suas respectivas fontes e horizontes de crença. Assim o fez, por exemplo, em relação a figuras que se declaravam cristãs, ao tempo em que exigiam obediência incondicional ao Sacro Império da Prússia, cujo titular traía sua fonte cristã, para a qual "Não se pode servir a dois senhores." Como se o ateu estivesse a dizer ao crente: "Cuide de ser coerente com o que você prega e declara ser sua fonte de orientação..." Por que tal posição? Porque a vida se punha em primeiro lugar. No caso, a vida de largas parcelas daquela população, entre as quais pobres lenhadores, drasticamente punidos pela coleta de lenha, condição de sua sobrevivência - sua e de de sua família. Marx faria o mesmo em relação a representantes de outras religiões - na China, na Índia, no Oriente Médio... "Tratem de ser coerentes com as fontes e o horizonte de suas fontes declaradas"...

Há outras pistas capazes de propiciar uma convivência saudável também entre crentes e ateus. A própria Teologia pode erigir-se, em determinados casos, como uma via de saudável convivência enter crentes e não crentes. No caso da Teologia da Libertação, por exemplo, temos um campo fecundo de demonstrações de boa convivência entre cristãos e ateus; entre cristãos e gente de diversas outras religiões. Figuras de ateus que se notabilizaram em várias partes do mundo - uma delas, Michael Löwy - são autores de diversas reflexões e análises dando conta desta saudável e pacífica convivência. E aqui, não se trata desta ou daquela religião. Mesmo ao interno do Cristianismo, são notórias as divergências, já não entre atues e crentes, mas no interior do próprio mundo cristão, e ainda particularmente no interior do próprio mundo católico. 

Nesse sentido, resulta útil lembrar os contrastes notáveis observados, por exemplo, durante a recente campanha eleitoral - e para além dela! - entre pessoas e grupos internos ao próprio Catolicismo (e a outras denominações cristãs). E aqui, mais uma vez, pontificam critérios também teológicos. Muitos e muitos católicos perguntam-se como é possível assegurar-se apoio a candidatos que apologizam a tortura, o ódio ao inimigo, a aversão a povos indígenas, a comunidades quilombolas, às mulheres, a comunidade LGBTI e até à gente do Nordeste, e, ao mesmo tempo, fazê-lo em nome do Cristianismo... Não se trata de justificar tal posição, por não se aceitar outra candidatura, até porque diante de impasses ou de objeção de consciência, ninguém é obrigado a votar num ou noutro...


Na prática, qual o espaço de ocupação e interferência de cada um desses conceitos na humanidade?
Mais que uma mera interferência conceitual, as práticas correspondentes a amplas parcelas de crentes e ao seguimento declarado ateu demonstram significativas consequências, MUNDO A FORA. Tanto consequências negativas – em sua enorme maioria – quanto sinais de positividade. Talvez mais hoje do que em outras conjunturas, a dimensão do Sagrado vem t proporções extraordinárias, de modo a contrastar com previsões positivistas do fim das religiões. Ao contra´rio, o Sagrado se tem revelado como detentor de forças poderosas, tanto numa direção r conservadora/reacionária quanto, em menor grau, numa perspectiva de transformação social. Os exemplos se manifestam profusamente, por toda parte. Mesmo no Ocidente secularizado, segue sendo forte a influência do Sagrado, como fator de peso em processos eleitorais. Não é por acaso que candidatos norte-americanos  que não contem com apoio dos cristãos (em especial dos cristãos protestantes) reúnem bem menos chances de sucesso. E o quê dizer da força impactante que, por exemplo, o o Islamismo e o Judaísmo exercem na eleição e na condução das políticas dos respectivos crentes? Em menor grau, pode-se dizer também em relação à influência da fé, numa perspectiva progressista. É o caso dos cristãos próximos da Teologia da Libertação, especialmente na América Latina. Influência também considerável, ao ponto de um analista que se declara ateu – Michael Lowy – ter afirmado, nos anos 80, a propósito dos cristãos pela libertação, que, na América Latina, a revolução se fará com a participação dos cristãos, ou não se fará. Afirmação bem apropriada para aquela conjuntura, pois de lá para cá, no contexto da Igreja Católica, tem havido um duradouro recuo, especialmente durante o longo pontificado do Papa João Paulo II, seguido por mais uns sete anos de pontificado do Papa Bento XVI, com a perseguição feita às forças progressistas – a Teologia da Libertação, as CEBs, em breve, a “Igreja na Base”...




É possível uma convergência pacíficas entre as pessoas que vivenciam experiências tão antagônicas?
Mais do que possível, é fortemente desejável uma convivência pacífica entre crentes e não-crentes, especialmente no contexto histórico de um mundo tão polarizado. Curioso é que tal polarização não se dá apenas, nem principalmente, pelas diferenças entre crentes e ateus. Desafio talvez ainda maior se produz ao interno mesmo dos próprios crentes. Isto nos faz indagar se o “X” do problema reside mesmo entre crentes e ateus, de um lado, ou, antes, entre crentes e idólatras: Talvez o problema mais grave resida nas multiformes manifestações idolátricas dos nossos dias. Por exemplo, no interior mesmo do mundo cristão, observam-se, não raramente, situações em que é infinitamente a distância entre crentes e ateus do que entre crentes e crentes que, em nome de Deus, testemunham atitudes visivelmente contrárias à fonte da fé que declaram defender.
Se a inexistência de Deus carece de prova filosófica, então o que sustenta os postulados do ateísmo?

O conhecimento científico tem alguma coisa a ver com o ateísmo, ou isso é pura ficção?

O ateísmo poderia ser considerado uma espécie de rebeldia, um egocentrismo, uma revolta, uma falta de racionalidade, de uma certa forma dogmática, ou uma forma diferenciada de viver a vida?
As duas hipóteses merecem ser consideradas. A depender de como as pessoas lidam com relação com o Sagrado, negando-o, sua atitude poder orientar-se no sentido de adortarem um posição militante h de militância obsessiva como uma atitude de convivência serena, por meio de vivenciar sua condição de ateu como uma foram de encarar a existência humana. No primeiro caso, resultou traumática a dogmatização do ateísmo no período stalinista, na ex-URSSS, em que se pregava uma perseguição cega a quem ousasse manifestar em sua fé, suas crenças. Neste caso, o ateísmo acaba transformando-se numa religião às avessas. Na segunda hipótese, o ateísmo se revela uma legítima atitude humana, expressão de uma escolha frente a qualquer divindade, não se constituindo necessariamente um óbice a uma cooperação sadia com projetos de sociedade compartilhados com crentes, do que resulta um fecundo mutirão pelas boas causas da humanidade, inclusive pela paz e pelo respeitos à dignidade do Planeta e dos humanos.
E a fé é uma crença ou uma certeza na existência de Deus?
Embora a pergunta comporte uma gradação entre “crença” e “certeza”, ambas as atitudes (de crença e de certeza) orientam-se na mesma direção, para amplas parcelas de crentes. Por outro lado,, do ponto de vista do processo de humanização,  uma fé amadurecida não deveria estar isenta de dúvida. Quando se experimenta uma certeza absoluta, prospera a tendência a uma fé cega, desprovida de qualquer ajuda ou de incidência de racionalidade, assim produzindo um indesejável hiato entre fé e razão, já  quando se sabe que, já na Idade Média, os chamados “Padres da Igreja” entre os quais Tomás de Aquino, já propugnavam pela associação entre fé e razão – “Fides ac scientia”. Uma fé assumida sem qualquer participação da razão tende ao fundamentalismo, ao fanatismo, causa de não poucas ocorrências extremas de consequência\S TERRÍVEIS PARA A HUMANIDADE. Por trás de uma atitude cega e incondicional  gente à divindade, esconde-se certa avidez de poder, de projeto pessoal, que leva o crente a confundir a sua própria vontade com a vontade da Divindade: “Faça-se a minha vontade”, em vez de “Faça-se vossa vontade”... Quando a fé é vivenciada em meio a situações de questionamento, os crentes se revelam mais amadurecidos, em sua  fé, à medida que se vêem como pessoas no mesmo pé de igualdade das que agem diferentemente; mostram-se mais abertas à diversidade, buscando aí encontrara unidade com os seu Deus e com as demais pessoas, crentes e não crentes. Em suma, dispõem-se ao diálogo aberto com pessoas e grupos que pensam diferentemente, isto é, contribuem com os processos de paz para a humanidade.
Existem pontos de convergência entre fé e racionalidade.

Eis outra questão de relevância e  de grande oportunidade. Só por meio de interpretações extremadas, que desfiguram os próprios textos sagrados em que se pretendem embasar, resultam comportamentos fundamentalistas, quer da parte de crentes, quer da parte de não-crentes. Claro que seguem legítimas as diferenças de interpretações dos textos sagrados. A hermenêutica sozinha não resolve os enigmas contidos em trechos ou expressões de sus respectivas fontes codificadas. Mas, tais diferenças têm limite. Não podem, por exemplo, descampar para uma apologia da violência e crimes semelhantes. Isto se dá sempre que interesses de ordem política ou econômica se sobrepõem  às fontes sagradas. Ou, no caso, dos que não se confessam filiados a qualquer credo religioso, sucumbem igualmente a dogmatismos secularizados, erigidos em verdades pétreas e absolutas. É lastimável constatar , a este propósito, a onda de fanatismos que se registra, também na atualidade. Como enfrentar, de forma exitosa, tal desafio? Como se trata der um fenômeno complexo, comportando múltiplas implicações, nas mais diferentes esferas da realidade, aqui nos restringimos a destacar o que nos parece exercer maior capacidade de superação desse impasse: a priorização do processo formativo, inclusive no tocante ao Sagrado. Justamente pela falta ou insuficiência de tal processo processo formativo, é que observamos gigantescas contradições entre as indicações normativas dos textos sagrados, de um lado, e as atitudes de transgressão, frequentemente cometidas em nome da mesma fé, de sorte que, enquanto os textos sagrados acenam para a paz, segmentos de seus seguidores, por interesses inconfessos, leem indevidamente conselhos para a violência, para os preconceitos, para as discriminações de todo gênero. No caso da população brasileira, observa=-se que à medida que segmentos da “Igreja na Base”, por exemplo, foram tomando distância de seu enraizamento nas comunidades do campo e nas periferias urbanas, por meio das Comunidades de Base e de outras expressões do Sagrado, foram dando lugar à progressiva penetração e multiplicação d, nesses mesmo lugares, de experiências feitas em nome da religião, mas desprovidas de uma prática contextualizada, de observância de normas mínimas de uma hermenêutica em diálogo com a razão, a partir de uma leitura submissa à literalidade dos textos sagrados.  Sobretudo a partir de então, prospera nesses lugares a experiência de relação com o Sagrado,cujos frutos se mostram desprovidos não apenas de racionalidade, mas também de bom senso. O processo formativo surge como essencial a uma retomada, em novo estilo, do processo formativo, em suas mais diversas capilaridades, inclusive numa perspectiva de educação e reeducação da fé, em diálogo com a razão, com a ciência.

Como se proteger dos fanatismos e das verdades absolutas, sem afetar a fé?

É possível pensar a fé como força transformadora da sociedade e como fonte alimentadora, do amor, caridade, igualdade e que deixe o homem mais livre e mais humano?

É possível o senhor falar sobre as diferenças e semelhanças entre o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo?





Pergunta: Existem pontos comuns...

Há, sim, vários pontos comuns entre quem crê e quem não crê numa divindade, apenas se e quando, de parte a parte, se resguarda uma disposição ao diálogo sobre as grandes causas da humanidade e do Planeta, tais como justiça, solidariedade, paz, respeito à dignidade dos humanos e de toda a comunidade dos viventes. Em outras palavras, os pontos comuns se acham fundamentalmente no terreno da Ética, da Filosofia da Práxis, não no plano doutrinário. Tal experiência acontece, ainda que em escala bem menor do que a que se passa entre crentes e não crentes de posição extremada, fundamentalista, terreno em que malogram as iniciativas de diálogo e trabalho em comum.
É possível pensar a fé como força transformadora da sociedade e como fonte alimentadora, do amor, caridade, igualdade e que deixe o homem mais livre e mais humano?
Entendida a fé, em seu sentido amplo e generoso, isto é, de modo a incluir até quem se declara não confessional,  resulta não apenas possível, mas já presente em algumas experiências de convivência frutuosa, em diversas partes do mundo. Mais uma vez, isto se dá, quando se trabalha menos doutrina e mais os temas e desafios mais urgentes pra o Planeta e para os humanos. Neste caso, a fé desponta como um componente de enorme potencial de transformação social, exercitada e movida por valores essenciais ao processo de humanização, na perspectiva dos valores essenciais presentes nos respectivos textos sagrados: a horizontalidade entre os seres humanos, a fraternidade, a liberdade, a autonomia, a solidadriedade, a partilha, o cuidado com a Casa Comum.


PERGUNTA SOBRE AS DIFERENÇAS ENTRE Judaísmo...

Conquanto o reconhecimento de notáveis diferenças entre tais expressões do Sagrado, confessamo-nos mais propensos a acentuar suas afinidades. Entre, por exemplo, Judaísmo e Cristianismo, uma diferença marcante reside  no lugar em ambas ocupado pela figura de Jesus de Nazaré. Enquanto no Judaísmo, Jesus é apreciado como um profeta famoso, mas não como um Messias, no Cristianismo, com o se sabe,, seu lugar resulta central para os cristãos e cristãs. Ele marca a inauguração da Nova Aliança, à medida que, sendo um judeu, ousa centrar sua proposta no Amor, na compaixão, na solidariedade, na universalidade da Salvação. Universalidade que, de certa forma, contraria as convicções mais fortes dos líderes religiosos judeus que entendem Israel (isto é, seu povo) como detentor da Salvação, enquanto Jesus propõe o Novo Israel, estendendo a todos os humanos o acesso à Salvação, por meio do Mandamento do Amor a Deus e ao próximo. São, por outro lado, consideráveis os pontos comuns, principalmente na lugar por ambos atribuído aos profestas, de quem Jesus foi uma expressão privilegiada. Co relação ao Islamismo, este também comporta diferenças notáveis, seja em relação ao Judaísmo, seja em relação Cristianismo.Em relação a este, por exemplo, talvez sejam ainda mais acentuadas as diferenças que o Islamismo guarde com o Cristianismo, mas importa, não menos, sublinhar seus pontos comuns, por meio de valores axiais tais como a justiça, a compaixão, o perdão, a paz, a parrilha. A este respeito, vêm-me ao espírito dois exemplos. Um, que nos remete aos anos 5 0 e 60, em que judeus, muçulmanos e cristãos testemunhavam uma frutuosa convivência, trabalhando e vivendo juntos, na bela experiência testemunhada pelos “Kibutzim”, onde judeus, palestino e cristãos mostravam ao mundo como se contribui na prática por um mundo de irmãos. Outro exemplo diz respeito a um cristão, Roger Garaudy, que se converteu ao Islamismo, seguindo a dar igual testemunho de sua sede de justiça e de paz.