A EFICÁCIA DA AÇÃO PROFÉTICA COMO ANTÍDOTO À MENTIRA INSTITUCIONALIZADA
Alder Júlio Ferreira Calado
Multiplicam-se, nos
quatro cantos do mundo, os sinais de barbárie, ou mais precisamente, da
barbárie capitalista, em seus estertores. A besta apocalíptica volta a atacar,
em todo o mundo. Também no Brasil. Uma onda de extremismo protagonizado pela
extrema direita varre parte considerável do mundo atual: nos Estados Unidos, na
Itália, na Hungria, na Inglaterra... e no Brasil! Aqui tem lugar uma síndrome
rara de maldades, concentradas num só grupo/pessoa. O país, por força de um
processo eleitoral de legitimidade questionada, repleto de "fakes
news" resultou numa pavorosa coincidência: em um mesmo grupo/pessoa de
gestores, vem incidindo uma confluência de predicados perversos: rara
estupidez, compulsão à mentira, ecocídio, misoginia, homofobia, racismo,
beligerância gratuita,... Reinstala-se, no Brasil, o velho e pavoroso FEBEAPÁ:
Festival de besteiras que assolam o país... Um fenômeno surrealista de alto
poder deletério. Ações de resistência se tornam urgentes como nunca antes. Um
resistência criativa há de comportar, por certo, o exercício da profecia, a
atuação de forças comprometidas com um novo modo de produção, organicamente
articulado a um novo modo de consumo e a um novo modo de gestão societal.
Em âmbito nacional e mundial, vêm
multiplicando-se os sinais de barbárie: deliberadas políticas de agressão
socioambiental; crescimento dos índices de desigualdade social; aumento
inaudito dos índices de feminicídio; de crimes homofóbicos; implementação de
políticas ditatoriais
Em sua fase mais perversa, o Capitalismo refina
seus instrumentos necrófilos, dentre os quais a institucionalização da mentira,
tratada ora como pós-verdade, ora como "fake news" ou termos
similares. Como a mentira não tem a última palavra no processo de humanização, cedo
ou tarde acaba descosturada, desmascarada pela ação profética (adjetivo
este aqui assumido para além de uma categoria meramente teológica). Em
contextos passados da história, algo semelhante se produziu, ainda que em
intensidade bem menor. Nas últimas décadas, contudo, o Capitalismo tem priorizado cada
vez mais a institucionalização da mentira como estratégia de sobrevivência.
Mas, tal recurso também tem limites. As linhas que seguem têm como propósito
trazer a lume a eficácia da ação profética como instrumento demolidor de
máscaras, de que se tem servido abusivamente a ideologia capitalista, nas
diferentes esferas da realidade. Começamos por destacar alguns cenários, a
título de ilustração exemplificativa de como o modelo hegemônico usa e
abusa das mais torpes ferramentas da mentira, com o fim de manter sua
hegemonia, mundo a fora. Em seguida, cuidamos de situar brevemente a força demolidora
da ação profética ante as diversas formas de mentira, inclusive sob a
estratégia de sua institucionalização. Por último, centramos atenção em mostrar
como a ação profética, em nossos dias, pode (e deve) ter um lugar mais
destacado, desde que protagonizada pelas forças sociais historicamente
vocacionadas a superar o atual modo de produção (articuladamente ao modo de consumo
e ao modo de gestão societal).
O Capitalismo se nutre da mentira e da ocultação de seus instrumentos de
sustentação.
A despeito de todas as suas astúcias de
aparência, o Capitalismo não sobrevive sem máscaras e falsas justificativas. Esta
tem sido a moldura que o envolve, nas mais distintas esferas da realidade
em que atua. Sucede que tem sido justamente em sua fase última, em seus estertores,
que ele vem apelando para um recurso extremo: a crescente sofisticação da mentira,
agora sob a forma de "pós-verdade" e de "fake news", das
quais tem usado e abusado, em diversas partes do mundo onde prevalece.
Para tanto, recorre ao que há de mais avançado nas
ferramentas tecnológicas, em especial o uso e abuso dos algoritmos, através dos
quais consegue multiplicar exponencialmente o poder de divulgação de mensagens
sabidamente falsas, de factoides disparados em massa, de modo a fabricar
notícias mentirosas, servindo-se inclusive de dados relativos ao perfil dos
destinatários. Prática que evoca as artimanhas usadas pelo conhecido ideólogo
nazista, Goebbels, para quem uma mentira repetida mil vezes acabaria ganhando
ares de verdade. Assim aconteceu em várias partes do mundo; assim se deu nos
Estados Unidos, durante a campanha eleitoral que culminou na eleição de Trump;
assim desdeu no Brasil, por ocasião da campanha eleitoral de Bolsonaro. Não são
casuais as afinidades múltiplas do desgoverno Bolsonaro com o desgoverno
Trump.
E não se trata de pessoas isoladas - Trump,
Bolsonaro e seus auxiliares -, mas especialmente de forças poderosas que se
põem por trás deles, até porque são pessoas reconhecidamente estúpidas, sem
qualquer capacidade de formulação, mas de exímios cumpridores de
"scripts" elaborados pelas forças que representam: as grandes
transnacionais atuando nas mais distintas áreas econômicas, inclusive na
indústria de armamentos de guerra, na indústria de petróleo, das poderosas indústrias
de mineração, do agronegócio, etc, sem esquecer de sua forte atuação também no
campo da cultura, da educação e até das religiões (haja vista, por exemplo, o
poder da Bancada dita “evangélica”, com sua teologia da prosperidade...). A
atuação destas forças não se restringe as manipulações do Mercado capitalista,
mas se estende pelos aparelhos de Estado.
As transnacionais, as grandes empreiteiras, as
grandes empresas de mineração e do agronegócio, e sobretudo, do mundo
financista, todas sabem o quanto lucram por meio da divulgação das "fake
news" e da mentira institucionalizada. Basta conferir as taxas de
escandalosa lucratividade auferidas pelos principais bancos atuando no
Brasil... Na pior das crises vividas pelo povo mais pobre, o mundo financista arranca sucessivos
superávits, com taxas de lucro acima dos 20%...
O que aqui vem entendido por profetismo?
Mesmo tendo consciência da
diversidade conceitual concernente ao termo "Profecia" ou "Profeta",
importa explicitar o significado que lhe atribuímos, nas linhas que seguem.
Em primeiro lugar, sublinhamos que, a despeito de a abordagem hegemônica
comportar uma predominância teológica, buscamos tratar "Profecia",
"Profetismo" ou "Profeta"!, para além de sua semântica
estritamente teológica, situando-os também como conceitos interdisciplinares. Desde
sua etimologia, "Profeta" – de “phemi”=falar e “pro” = diante de, em
lugar de - significa aquele que fala em nome de uma divindade, ou seu
porta-voz, ou ainda o mensageiro ou intérprete de uma divindade. Prática
registrada em âmbito do mundo antigo, inclusive no antigo Oriente Médio (Egito,
Síria, Iraque, a região do médio Eufrates, a região Babilônica.) Neste caso, o
profeta comporta uma dimensão antes política que religiosa, no sentido de não
ser alguém ligado a uma prática religiosa, ligada ao culto, mas principalmente
um intérprete que cuida de externar ao rei os sinais que distingue, cumprindo
um papel de pessoa encarrega de oferecer ao rei um conselho sobretudo de
animação, de apoio. Sentido diferente recebe o profeta bíblico.
Vale a pena, a este respeito, ouvir/ver a
conferência da Profa. Dra. Elena Di Pede, no link: https://www.youtube.com/watch?v=N61fyJ1GSZg
Não se trata, portanto, de um
fenômeno apenas bíblico. O próprio profetismo bíblico comporta semelhanças e diferenças
com o exercido em outros povos. Quanto à semelhança, por ex. os profetas
egípcios intervinham por meio de oráculo, como porta-vozes de uma divindade.
Mas, há também diferenças consideráveis:
- enquanto os profetas do Oriente
Médio antigo exerci ciam seu ofício junto ao rei e ao povo, com um propósito de
apoio à política mantida pelo rei, em tempos de crise, e não tinham vínculo com
o culto, os profetas bíblicos, por sua vez, agiam como mensageiros e
intérpretes de Adonai, o Senhor, transmitindo suas mensagens ao rei e ao povo,
no mais das vezes, para apresentar denúncias tanto contra a ordem política
quanto em relação aos desvios do culto, isto é: agiam tanto no plano político
quanto no plano religioso.
A profecia se praticava tanto no
terreno pessoal como no âmbito coletivo.
Os profetas eram advertidos para
comunicarem, não sua posição, mas a de quem os enviava a profetizar. Eram
sempre recriminados, se fossem infiéis à fonte da mensagem.
As denúncias que os profetas são
enviados a fazer, não têm por objetivo a condenação, mas a conversão (do povo
ou do rei) de seus malfeitos. O anúncio desponta como o alvo maior.
A profecia não está vinculada
necessariamente a um a instituição. Deus chama a quem ele quer, onde, quando e
como quer.
A interpretação da profecia requer um
contínuo exercício de discernimento da parte de quem os escuta, pois não há garantia
absoluta de acerto de que aquela palavra vem mesmo de Deus, ou se pode ser
objeto de eventual manipulação de quem a comunica e de quem a escuta.
A missão do profeta é advertir dos
riscos e das consequências dos malfeitos, em especial por parte de reis ou
lideranças religiosas que abusam do seu poder.
Diferentemente dos profetas do antigo
Oriente Médio, tidos como "profissionais" e ligados aos interesses do
rei, os profetas bíblicos (por exemplo: Moisés, Josué, Samuel, Natan,
Isaías, Jeremias, Amós...) eram enviados por Adonai, para denunciarem os maus
feitos, e anunciarem a libertação dos oprimidos. Eles recebiam tarefas
específicas.
Uma delas é a de despertarem a
memória histórica de seus contemporâneos, incentivando-os a rememorarem testemunhos
e práticas (pessoais e coletivas) do passado menos recente e mais recente, transmitidos
por figuras históricas respeitáveis, cujo legado a todos convida a uma
revisitação, com o propósito menos de "matar" saudade, e mais de
reavivar compromissos, de rever metas e caminhos inconsequentes. Isto significa
não uma rendição ao passado, mas um convite a uma atitude coerente entre
passado-presente-futuro, razão por que é somente pela práxis assumida no
presente, que se revela o verdadeiro sentido de tal revisitação do passado. Em
semelhantes exercícios, tem-se mostrado fecunda a contribuição de bons
clássicos, a exemplo de Ernst Bloch, por meio de seu "Princípio
Esperança", a clamar pela renovação de compromissos com a causa libertadora,
acenando para o "Já" e o "Ainda não"., isto é: o horizonte
almejado há de ser sinalizado já no presente, graças ao testemunho que se pode
e que se deve oferecer, pessoal e coletivamente, com a consciência de que o que
se obtém no presente "ainda não" corresponde em plenitude ao que se
deseja.
Outra dimensão relevante do exercício
da profecia tem a ver, ao mesmo tempo, com a crítica e a autocrítica. De um
lado o profeta - homem ou mulher - não hesita em denunciar os malfeitos da
sociedade, começando a fazê-lo pelas autoridades e pelos segmentos
privilegiados da sociedade, o que lhes custa muito caro, por vezes a própria
vida; por outro lado, tem a coragem de, ao dirigir suas críticas, a quem quer que seja - também
aos setores populares -, cuida de também colocar-se, por primeiro, sob a linha de
tiro, isto é, examina sua própria consciência, inclusive acerca da denúncia que
dirige aos outros. Aí repousa sua credibilidade perante os destinatários e os
diversos segmentos da sociedade, esta faceta ressurge de uma atualidade a toda
prova.
Também ao interno das Igrejas
cristãs, inclusive da Igreja Católica, vimos assistindo a uma sucessão de
atentados ao direito e à justiça, ao ponto de se ouvir até de
autoridades, de bispos, declarações de que não apreciam um perfil profético,
nas ações eclesiais, preferindo as ações de assistencialismo...
Seja como for, a ação profética segue
sendo um componente essencial das lutas, nos mais diversos setores da sociedade
e também ao interno da(s) Igrejas.
Que tipo de ação profética se apresenta mais
fecunda, em nossos dias?
Nos impasses da atualidade, em que
contrastam fortemente, por um lado, as ações de barbárie e, por outro, a
escassez de profecia, resulta útil perguntar- nos: que tipo de ação profética se
perfila mais urgente, aos nossos dias? De modo despretensioso, ousamos pôr-nos
em busca de elementos de resposta. Sem ignorar nem subestimar a
relevância de uma ação profética exercitada por pessoas, entendemos que ainda
mais fecunda seria articular uma profecia exercida por pessoas - mulheres e
homens - a um outro tipo de ação profética protagonizada por sujeitos
coletivos. Tal consideração nos remete a um conhecido episódio bíblico, em que
pessoas próximas a Moisés o procuraram para se queixarem de haverem encontrado
pessoas fora do grupo a profetizarem. A resposta de Moisés lhes soaria
desconcertante: "Tens tu ciúmes por mim? Quem dera que todo o povo do
Senhor fosse profeta, e que o Senhor pusesse o seu espírito sobre ele!” (Números
11:29b).
Em décadas recentes, ao interno do
que se tem denominado "Igreja na Base", especialmente em circunstâncias
de marchas, procissões e romaria, costumava-se entoar um canto, uma de cujas estrofes assim
dizia: "No deserto, antigamente / O povo de Deus marchou/ Moisés andava na
frente/ Hoje, Moisés é a gente/ Quando enfrenta o opressor".
Sendo a ação profética um chamamento,
ao mesmo tempo, pessoal e coletivo, sua expressão comunitária parece lhe
conferir mais força e eficácia, sobretudo
Especialmente em contextos de
barbárie, a ação profética se revela mais eficaz, quando assumida coletivamente,
ainda que sem prejuízo da incidência pessoal, como sinalizada pelo profeta
Joel. Ação potencializada quando assumida comunitariamente. A propósito deste
tema, tivemos hoje, na reunião semanal do Grupo Kairós, mais um tópico do livro
"O Caminho", de autoria do Pe. José Comblin. Tomamos a liberdade de
citar um trecho, em que ele ressalta a força da ação profética, quando exercida
pela/na comunidade:
“Outra dificuldade é a de achar
lideranças, pessoas estejam dispostas a formar, assumir responsabilidades
coletiva, dirigir, manter unidas as comunidades. Todos sabem como é difícil
achar tais pessoas nos assentamentos, nos bairros, nas favelas. Muitos têm na
mente o modelo de liderança criado pelos políticos. O “Chefão” tem os seus
cabos eleitorais, os seus capangas, que lhe são devotamente dedicados – porque
ele lhes oferece, além da proteção de um homem forte, uma certa socialização. É
a prática do clientelismo. Há tendência muito forte para formar caciques – no
mau sentido da palavra -, e não dirigentes de comunidades, pessoas que buscam
na sua clientela uma força política, uma vantagem pessoal e não o bem e a
unidade de todos.
Quando aparecem lideranças
verdadeiras, é preciso multiplicar as ações de graças, porque são pérolas
preciosas. A estrutura da Igreja católica não favorece o surgimento de tais
lideranças. O sacerdote, pela sua posição social, pelo monopólio de todos os
poderes, impede a existência dessas lideranças – e o aparecimento de pessoas
que possam assumir responsabilidades. O padre busca auxiliares para aplicar os
planos e as decisões tomadas por ele. Por isso as comunidades eclesiais de base
prosperam, sobretudo lá onde não havia sacerdote ou onde ele somente aparecia
de vez em quando.”
(Comblin, J. O Caminho: ensaio sobre o seguimento de Jesus São Paulo: Paulus,
2004, p. 201-202)
Também forte se revela a ação
profética, quando exercitada pelas forças sociais historicamente vocacionadas a
protagonizar mudanças substantivas, em vista de uma sociedade alternativa ao
modelo hegemônico atual. Mas, de que ação profética se trata?
Trata-se de uma ação inserida no
cotidiano organizativo, formativo e de lutas dessas forças sociais. Trata-se de
uma ação profética que trabalhe bem a memória histórica dos oprimidos, de modo
a extrair lições das lutas sociais do passado recente e menos recente, sem a
pretensão de reeditar as mesmas lutas, mas de recolher inspiração para o
enfrentamento dos desafios presentes.
Trata-se de uma ação profética que
induza os sujeitos - mulheres e homens - dessas organizações de base a um
constante aprimoramento dos sentidos (do ver, do ouvir, do sentir...), de modo
a agudizar sua percepção dos sinais dos tempos, interpretá-los e levá-los a
sério, em seu dia-a-dia. Trata-se de uma ação profética capaz de comprometer
seus agentes a exercitar uma crítica consistente sobre o atual modelo societal,
que seja precedida da autocrítica: inócua é a crítica que não parta da
autocrítica - acaba levando ao descrédito dos que denunciam, sem anunciar pelo
seu testemunho.
Eis apenas algumas pistas que podem
ser úteis a nossas organizações de base, como forma de resistência propositiva
face aos gigantescos desafios que enfrentamos, nesses tempos de barbárie e
obscurantismo.
João Pessoa, 25 de julho de
2019
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