Múltiplas são as experiências ligadas
ao cooperativismo/associativismo, em seus diversos formatos - em sua imensa
maioria, adaptadas, direta ou indiretamente ao modelo capitalista; inclusive as
que esboçam traços alternativos à este modelo. Dentre as múltiplas experiências
de cooperativismo/associativismo, damo-nos ao trabalho de tecer algumas
considerações sobre a experiência dos Kibutzim.
O objetivo maior das anotações que
seguem, é o de revisitar a experiência dos “Kibutzim”, em especial até à fundação
do Estado de Israel, na perspectiva de observar que princípios-chave inspiraram
tais experiências, com a finalidade de examinar a pertinência e a atualidade
destes princípios em iniciativas contemporâneas de alcance auto gestionário,
como possível alternativa (ainda que molecular) ao modo de produção
capitalista.
Inicialmente cuidamos de fornecer
breves elementos históricos dos Kibutzim. Em seguida, centramos atenção no
exame da adequação entre os princípios-chave orientadores destas experiências e
sua efetividade. Por último, cuidamos de examinar a pertinência e atualidade
desses princípios-chave aplicados a experiências agroecológicas, a tecnologias
alternativas de convivência com o Semiárido e experiências espiradas pela
filosofia do “Buen-vivier”.
Breves elementos históricos dos Kibutzim.
A experiência dos
"Kibutzim", no início do século XX, está ligada ao movimento
sionista, de retorno a Israel dos judeus espalhados pelo mundo (diáspora), em
especial pela Europa. Movimento que data ainda do final do século XIX, inclusive
por meio de congresso realizado pelos judeus, em Viena, com o objetivo de
promover o retorno à região da Palestina/Israel. Iniciativa que encontrará
resistência por parte dos Palestinos "Kibutzim" nasce, pois, em
meio a um contexto complexo, um tanto polêmico. Não obstante tal pano de fundo,
é certo que, entre 1909 e 1919, cerca de quatorze "kibutzim" já estavam
instalados naquela região Palestina/Israel. Tratava-se de uma iniciativa
destinada a uma conivência de vida e de trabalho agrícola em uma espécie de
assentamentos rurais com características tais como: o trabalho agrícola como
horizonte; a propriedade coletiva da terra; a repartição por todos das tarefas
implicadas; a não admissão de trabalhadores contratados (assalariados); a distribuição
equitativa dos produtos; as decisões tomadas pela base; opção laica quanto ao
Sagrado, entre outras. Assim prosperaram os "Kibutzim", até à
fundação do Estado de Israel, em 1948, após o que os "Kibutzim"
passam a sofrer maior influência das instâncias do Estado, refletindo-se em sua
organização. Entre 1920 e 1948, os "Kibutzim" tiveram uma feição
organizativa semelhante a uma experiência de cooperativa com marcas
autogestionárias. Tal feito passou a sofrer influências significativas, no
período posterior. Para fins destas anotações, vamos nos concentrar apenas
neste período, dadas as afinidades mais significativas com uma experiência
cooperativa autogestionária, como passaremos a analisar no tópico seguinte.
Traços analíticos de experiências dos Kibutzim, até à fundação do Estado
de Israel.
Entre aproximadamente 1920 e 1947, os
"Kibutzim" se aproximavam de uma experiência próxima de uma
organização autogestionária, caracterizada pela predominância de valores tais
como trabalho, equidade e cooperação.
Abrigando trabalhadores judeus emigrados,
seja da Europa Ocidental (sobretudo da Alemanha), seja da Europa Central e da
Rússia, estes trabalhadores traziam para os "Kibutzim" um projeto utópico
de feição socialista/comunista, inspirado em figuras tais como Tolstói, Aaron
David Górdom e outras.
Com relação à escolha deste período,
cumpre assinalar que foi durante seu transcurso sobre o qual mais
incidiram traços marcantes, tais como:
- circunscrever a experiência dos
"Kibutzim" ao trabalho na agricultura ou agropecuária, por entender-se
que se tratava de assegurar condições de auto-sustentação, não apenas da comunidade
kibutziana, como a das populações do entorno urbano. Cuidado que, na
atualidade, corresponderia ou se aproximaria mais do que se chama de soberania
alimentar. No caso dos "Kibutzim", condição garantida pelo excedente
da produção.
Outro princípio-chave característico
deste período dizia respeito ao caráter coletivo da propriedade e da
gestão daqueles "Kibutzim". A propriedade coletiva da terra era a
condição por meio da qual se poderia assegurar o princípio da equidade, da
igualdade de direitos e deveres dos coprodutores.
E isto se dava pela distribuição das
distintas tarefas apenas entre os protagonistas do referido "Kibutz",
isto é, sem a admissão de contratação de trabalhadores assalariados.
Outra marca desta experiência
autogestionária residia na organização co-gestionária, cujas deliberações eram
tomadas pelas bases, pelo conjunto dos produtores. Medida que militava contra a
tendência de burocratização, à medida que se confia a uns poucos a deliberação
de relevantes decisões, tomadas "em nome" de todos...
Não se há de subestimar, igualmente,
a observância do princípio de distribuição equitativa dos produtos colhidos
entre os mesmos produtores.
Não menos importante, o critério laical
de convivência, isto é, a busca de se evitar que as crenças religiosas viessem
a tomar um ar de obrigatoriedade ou de interferência nas relações do dia-a-dia.
Que lições extrair da experiência autogestionária dos “Kibutzim”?
Quem se propõe ao trabalho
de ajudar a responder aos gigantescos desafios contemporâneos, inclusive o mais
complexo deles - o de ousar dar passos concretos em busca de um novo modo de
produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal -, há
de estar alerta ao fato de que já não se parte da estaca zero, isto é, sem
subestimar o contínuo exercício de inventividade, cumpre associá-lo dinamicamente
ao que já está sendo experienciado, ainda que em dose molecular, bem como ao
legado da memória histórica (recente e menos recente). Em breve, importa dar-se
ao trabalho de tecedura de fatos e acontecimentos e situações do passado, do
presente e projeções em relação ao futuro.
No caso do passado, o exercício da
memória histórica há de se fazer sobre experiências bem ou mal sucedidas (em
parte ou por completo), comportando elementos e traços merecedores de atenção,
não quanto a uma desaconselhável reedição mecanicista, mas com relação a lições
que delas devem ser extraídas, seja como aspectos de inspiração, seja como
aspectos a serem evitados, em vista do horizonte perseguido.
No caso específico da experiência
analisada - a dos "Kibutzim" -, são dignos de especial exame
aqueles "kibutzim" que melhor se aproximem dos princípios
característicos de uma experiência de autogestão compatível com uma sociedade
alternativa à barbárie capitalista. Eis por que cuidamos de nos cingir apenas
ao período experiencial considerado mais compatível com os traços
autogestionários perseguidos, isto é aquelas marcas tomadas como
características mais fortes e mais próximas de uma sociedade economicamente
justa, politicamente participativa e de matriz radicalmente democrática, e culturalmente
diversa.
A este legado somos historicamente
chamados a associar uma quantidade considerável de experiências em curso, em
sua rica diversidade, de modo a abranger práticas e concepções do "Buen
Vivir", fecundas experiências em curso no campo agroecológico, no campo das
tecnologias alternativas de convivência com o Semiárido, no campo da
Permacultura e em outros ramos da Economia, da Política e da Cultura.
O contínuo esforço de associação não
se exaure na interação passado-presente. Demanda o exercício (coletivo e
pessoal) de ensaios de inventividade: ousar também o que ainda não se deu, mas
pode dar-se, sobretudo quando fortalecido pelas aquisições de ontem e de hoje,
na persecução do mesmo horizonte.
Neste sentido, que pistas podem estar
ao nosso alcance: Tratamos, em seguida, de compartilhar alguns
questionamentos, em busca de passos, ousando ensaiar trilhas alternativas.
É possível adaptar os princípios-chave dos Kibutzim, à experiências
autogestionárias contemporâneas?
Uma sociedade alternativa ao atual
modelo hegemônico não caí do céu. É obra do esforço coletivo e pessoal de quem
a busca. Será que é razoável persegui-la mediante as mesmas relações que
caracterizam o atual modelo?
Como é possível perseguir um
horizonte alternativo ao atual modelo, reproduzindo suas relações básicas (as
do Mercado, as do Estado...)?
Não seria mais indicado, enquanto se
luta pela superação das velhas relações, já irmos priorizando iniciativas que
comportam o antídoto da velha sociedade?
Mesmo sabendo que as sementes de
alternatividade ensaiadas desde já, são lançadas e cultivadas ainda sob a
vigência da antiga sociedade, como assegurar passos concretos capazes de
acelerar o combate efetivo de práticas e concepções compatíveis com o horizonte
almejado, em vez de seguir alimentando práticas e concepções que objetivamente
acabam estendendo a sobrevivência do modelo que se declara combater?
É possível alcançarmos traços do novo
horizonte, seguindo, ao mesmo tempo, o receituário do antigo modelo?
Por que seguir priorizando trilhas já
experimentadas, e cujo destino já se conhece fartamente?
João Pessoa, 09 de julho de 2019
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