quarta-feira, 23 de novembro de 2022

LIBERDADE IRROMPE DA REBELDIA ASSIM É O POVO AFROAMERICANO

LIBERDADE IRROMPE DA REBELDIA 

ASSIM É O POVO AFROAMERICANO 


Alder Júlio Ferreira Calado


Ser humano se faz no dia a dia

Ao romper os grilhões da escravidão


Viva o povo de Zumbi e suas lutas

De mulheres, pretos, pardos, periféricos

https://www.youtube.com/watch?v=FCYCwMzY3z8


Nos espaços mais curtos e imprevisíveis

É possível romper nossas algemas


Como o fez o britânico iconoclasta

Com seu grito rebelde que assim o ecoa

https://www.scmp.com/news/world/europe/article/3199193/uk-student-who-threw-eggs-king-charles-banned-carrying-eggs-public


O seu grito nos toca o coração

E nos move a fazer a nossa parte


Todo Banco Central “independente”

Só atua a favor do Capital


Infeliz do país que é controlado

Pelo humor idolátrico do "Mercado"


O "mercado" é a  gula financista

Que se nutre da fome dos “de baixo”

https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2022/11/5051104-nervosismo-do-mercado-com-politica-fiscal-de-lula-derruba-bolsa-e-eleva-dolar.html 


O “mercado”: porta-voz da Casa Grande

Combatê-lo é preciso, na raiz


O discurso de Lula é antológico

Nele, os pobres se sentem contemplados

https://g1.globo.com/meio-ambiente/cop-27/noticia/2022/11/16/veja-integra-do-discurso-de-lula-na-cop-27.ghtml


Europeus saquearam a rica Líbia

Africanos agora cobram a conta…

https://www.bol.uol.com.br/noticias/2022/11/11/migrantes-no-centro-de-nova-crise-entre-franca-e-italia.htm


Toda rede da mídia corporativa

Só divulga interesses dos patrões


O setor escravocrata nutre ódio

Ao Estado democrático de direito


Com regime que seja democrático 

Só o poder popular é soberano


Em seu nome se erguem três poderes:

Um legisla, outro gere e outro julga


Militares lhes devem obediência 

Do contrário, se tornam usurpadores 


Quem quiser integrar um dos poderes

Antes, deixa o quartel ou deixa a toga


Capital degenera o ser humano

E não menos destrói a natureza


Capital é uma espécie de Rei Midas:

O que toca, o perverte e degenera…


O espírito de empresa corrompe o artista

Futebol vira centro de escândalos


Cinco séculos de sangue e de suor

Índios, negros com veias ‘inda abertas


Quilombolas, indígenas dão-se a mão 

Pra vencerem de vez a Casa Grande


É chocante o alcance colonial:

Nos esportes também, é evidente


Que seria das equipes europeias

Se não fossem os craques africanos?


Por recursos escassos, em seu País

Craques servem interesses de metrópoles


Sempre resta um malfeito pros golpistas

O PL contesta as eleições: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/11/23/valdemar-presidente-pl-pronunciamento-eleicao.htm


Sem leitura de Classe, não se captam

Fortes traços de injustas relações


João Pessoa, 23 de novembro de 2022.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

OS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO POPULAR NO ATUAL CONTEXTO BRASILEIRO*

 OS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO POPULAR NO ATUAL CONTEXTO BRASILEIRO*



Alder Júlio Ferreira Calado


“A humanidade só levanta problemas que é capaz de resolver” Karl Marx


“Nenhuma realidade é assim mesmo. Toda realidade está submetida à possibilidade de nossa intervenção nela.” Paulo Freire


Cumprimento freireanamente a todos, a todas, que nos acompanham nesta sessão inicial da XVII Jornada Paulo Freire, organizada conjuntamente pela Cátedra Paulo Freire na Amazônia, no estado do Pará, organizada pela Profa. Dra. Ivanilde Apoluceno de Oliveira e Núcleo de Pesquisa em Educação Popular, coordenado pelo Prof. Dr. Sérgio Roberto Moraes Correa. Valho-me desta ocasião, também, para me congratular com o povo Paraense por haver-se irmanado desde as eleições de 2018, ao povo nordestino, no protagonismo-cidadão, em socorro do gemido da terra e do clamor dos pobres. Sintam-se todos e todas abraçados e abraçadas. 


O tema que nos foi proposto para esta Jornada é "OS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO POPULAR NO ATUAL CONTEXTO BRASILEIRO". Em busca de uma exposição didática sobre o tema, cuido de propor o itinerário:


Uma introdução contextualizando sobre o tema


Nº1: Nosso horizonte de Esperança/Esperançar

  • Qual modo de produção?

  • Qual modo de consumo?

  • Qual modo de gestão societal?

Nº2: Exercitando a memória história do oprimidos

  • As lutas coletivas de nossas gentes

  • Biografias que nos inspiram


O lugar da Mística revolucionária

Nº3: Práxis revolucionária em nosso cotidiano

  • No plano organizativo

  • No plano da formação contínua

  • No plano da luta permanente


Considerações sinópticas


TRAÇOS DA ATUAL CONJUNTURA BRASILEIRA À LUZ DA EDUCAÇÃO POPULAR


A despeito de avanços pontuais, aqui e ali, seguimos mergulhados em profunda e prolongada crise multifacetada, seja no Brasil, seja em escala mundial, substancialmente produzida pelo caráter que o Capitalismo hoje assume pela financeirização da economia, organicamente conectada com os demais setores do Capital e seu Estado.


Desde o golpe de 2016 preparado cerca de 3 anos antes, o Brasil vem enfrentando tempos tenebrosos, sucessivas crises de enorme alcance devastador. Crise multifacetadas. A pandemia da COVID-19, cuja gestão desastrada custou um número excessivo de vítimas fatais e sequeladas, acena fortemente para o caráter do golpe de 2016, cujo o alcance extremado o Brasil experimentou como desgoverno atual. Igualmente, no âmbito socioambiental, os estragos foram e continuam sendo profundos, cuja a recuperação impõe a resistência prolongada de gerações. No plano econômico a consequência mais amarga se pode medir pelos auto índices de desemprego estrutural, fruto das contra-reformas trabalhista e previdenciária, culminando com escandaloso índice de mais de 30 milhões de pessoas passando fome. No plano político,tivemos que enfrentar uma sucessão escandalosa de crimes de gestão. No terreno da cultura, reinou o negacionismo alimentado pelo fundamentalismo religioso a impulsionar atitudes de estupidez coletiva refletida em inúmeros exemplos cotidianos de racismo estrutural, de misoginia, de LGBTQIA+fobia, xenofobia, aporofobia, atitudes também de ecocidas…



NOSSO HORIZONTE DE ESPERANÇA/ESPERANÇAR

Passando para os três tópicos, cada um deles também compreendendo três subtópicos eu cuido de externar a sequência.


Primeiro a partir do horizonte de esperança que buscamos manter sempre aceso. Horizonte de esperança em relação ao processo de construção de uma nova sociedade. Este tópico primeiro compõe-se de três momentos. Um primeiro momento diz respeito a que antes de qualquer coisa, diante da complexa conjuntura que a gente tratou de esboçar no início, a gente trate primeiramente de ver qual é o tipo de sociedade que a gente deseja construir. Este é o horizonte de esperança que somos chamados historicamente a manter sempre aceso, como condição sem a qual a gente não consegue viabilizar os outros passos que aqui nos referilharmos mais abaixo. Então se trata, de entendermos que tipo de sociedade desejamos construir, qual é o tipo de modo de produção, modo de consumo, tipo de gestão societal que desejamos ir construir nesta direção de manter sempre acesso o horizonte de esperança. É assim que vamos buscar desenvolver este primeiro ítem, baseado no horizonte de esperança do qual nós partimos. 


Modo de produção - que modo de produção?


Nós sempre partimos desta constatação: quais são nossas motivações, de mulheres, de homens, de cidadãos, de cristãos para quem são, e do dia-a-dia, militantes do dia-a-dia saber qual é o tipo de sociedade que desejamos construir? Sem fazer isso, a gente não consegue os objetivos que a gente busca aqui colocar nos ítens seguintes. Neste sentido costumo lembrar de uma frase extraída de um filme que fez a geração de militantes da minha época, dos anos 70. Trata-se de um filme chamado “Queimadas”. O filme conta a história de libertação de uma ilha do Caribe, quem sabe se não pode ser o próprio Haiti, que buscou enfrentar o desafio da colonização primeiramente portuguesa, e depois inglesa. E um desses atores, uma dessas personagens, chamada “José Dolores”, costumava dizer esta frase que eu sempre retive em todos os momentos em que eu discuti este filme conjuntamente, a frase era “ é melhor saber para onde ir sem saber como, do que saber como e não saber pra onde ir”. José Dolores, a personagem protagonista desta frase e dos processos de libertação daquela ilha do Caribe, frente primeiramente a Portugal, depois a Inglaterra. Este filme marca esta geração, no sentido de estarmos sempre alerta para saber para onde nós queremos rumar, sem a gente ter essa perspectiva deste horizonte, a gente incorre em fracassos tremendos. Por isso que é importante neste primeiro momento a gente refrescar a cabeça e o compromisso em que tipo de sociedade nós queremos construir. Qual é o tipo de modo de produção? É este modo de produção que nos satisfaz? Claro que não. O modo de produção capitalista visa ao lucro. Ao lucro a custo da miséria de milhões e bilhões da humanidade, nos dias presentes. Haja vista, no caso do Brasil, o tanto de alimentos de que o Brasil é produtor em âmbito internacional, vivendo ao mesmo tempo sua população desnutrida e passando fome. Não são 2 ou 3 pessoas, mas 33 milhões de pessoas passando fome. Como se pode entender que este modelo de produção sirva para os interesse dos conjuntos de brasileiros e brasileiras. Ou seja, como o tipo de produção é importante… produzir o que? Para o agronegócio, por exemplo? Produzir alimentos da agricultura familiar, da qual nós retiramos 70% dos alimentos que vão à mesa ddo povo brasileiro? Ou a gente continuar do jeito que está? É saber portanto que quando falamos de modo de produção, que a gente busca superar para introduzir e ir construindo um modo de produção alternativo se trata da gente buscar examinar as múltiplas possibilidades que a gente tem aí, de saber o que a gente produz, é alimento de commodities, por exemplo? é alimento apenas para servir a engordar os porcos em outros países ou a gente prioriza a alimentação dos nossos? Ou a gente trata de priorizar a produção de alimentos orgânicos, de alimentos que não envenenem os nossos rios, o nosso subsolo, os solos, os nossos vegetais, os nossos animais e, também, os nossos humanos? Trata-se, portanto, de definir o modo de produção que a gente busca ir construindo, de maneira a ir superando o grande desafio que nos impõe o sistema capitalista em sua atual fase, que é a fase de financeirização da economia. A este respeito são muitas as contribuições, por exemplo - de tanta gente, aqui eu vou citar apenas uma pessoa que é o Ladislaw Dowber. Ele tem um site impressionante, em harmonia, em contato com outros países. É um grande pesquisador da PUC - SP e que disponibiliza seus textos, seus áudios para milhares de pessoas. É importante ver na contribuição de Ladislau Dowber, um grande economista, que se ocupa de saber quais são as alternativas que a gente tem para vencer a financeirização da economia. Esse é o primeiro desafio que a gente encontra, o de buscar superar o modo de produção capitalista, procurando definir de maneira conjunta, coletiva, pela base o que é que nós devemos produzir, para quem, como devemos produzir, quem ganha, quem perde com essa produção, definir portanto um novo modo de produção anticapitalista. Ao mesmo tempo outra pergunta nos interessa aqui. É saber se basta a gente se comprometer com um novo modo de produção sem tocarmos também na importância que tem o consumo também. Trata-se de aliarmos também a este novo modo de produção anticapitalista o nosso compromisso em produzir um novo modo de consumo. Todo mundo sabe que seria impossível para a Mãe Terra suportar um consumo elevadíssimo como acontece, por exemplo, nos Estados Unidos, se a gente entendesse que nós iríamos conduzir nessa direção, de um consumo exorbitante, a Mãe Terra deveria ter, sei lá, dez vezes mais o tamanho e a natureza que tem. De modo que a gente é chamado a construir um novo modo de consumo também, tanto do ponto de vista das políticas públicas quanto do ponto de vista individual, de darmos exemplo neste sentido. Nesta direção, por exemplo, o famoso paradigma Buen Vivir nos ajuda muito a avançar, a nos converter para uma convivência fraterna e harmoniosa com a Mãe Natureza e com seus viventes. De modo que, resumindo, não basta nos preocuparmos apenas com um novo modo de produção. Isso, por si, é muito importante, mas não basta. Temos que associar a esse novo de produção um novo modo de consumo, definindo que tipo de consumo nós vamos fazer para a sociedade e como a gente pode se controlar contra o consumismo, que é uma doença perversa do capitalismo que afeta e adoece a humanidade e adoece também o planeta. Um novo modo de consumo vem juntar-se à luta por um novo modo de produção, de maneira que os povos indígenas,os povos ribeirinhos, das florestas e das matas, os camponeses trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade tenham consciência que é preciso entender a sabedoria da mãe natureza, como ela faz para assegurar o bem da Terra. Nós somos chamados também a compartilhar desta missão de responsabilidade em relação aos destinos da Mãe Natureza e da Terra. Um novo modo de consumo nos ajuda certamente nessa direção. Então aqui fizemos em três ítens de componentes deste primeiro tópico. O primeiro tópico, como sabem, é a questão do novo modo de produção, do novo modo de consumo e de um novo modo de organização de gestão societal. Então, a gente vai observar que no terceiro ponto há necessidade de irmos encontrando um novo jeito de definir a gestão societal diferentemente dos marcos do capitalismo. Isto significa dizer para nós que a gente é chamado a repartir a gestão. Não deixar na mão dos grandes empresários, principalmente, dos grandes conglomerados estrangeiros tão bem estudados, entre outros, por Dowber. Eu gostaria que as pessoas conhecessem mais as propostas de Dowber sobre este ponto. Isto significa dizer que nós somos chamados a perseguir e a implantar um novo modo de gestão societal, não podemos nem devemos entregar todas as fichas sob responsabilidade do Estado. O Estado é uma entidade, como nós sabemos, desde a Idade Antiga - eu me refiro à Roma Antiga, me refiro as lutas sociais da Roma Antiga, da Idade Média, da Idade Moderna, da Idade contemporânea - o Estado sempre foi e continua sendo um pilar decisivo junto com o Mercado capitalista de definição de não somente de modo de produção, de modo de consumo como também da gestão societal. É muito importante a gente se abrir para esse novo modo de gestão societal, procurando não entregar as fichas da gente na responsabilidade do Estado, mas sim procurar exercer uma autonomia frente ao Estado e frente ao Mercado capitalista, haja vista os rumores indevidos do tal “Mercado” frente ao reto pronunciamento de Lula na COP27. Neste sentido, com tristeza que constato que nos anos 80 nós tínhamos essa consciência mais clara, de desconfiança do Estado. A medida que a gente foi optando pela linha eleitoral, a gente foi perdendo de vista os riscos enormes que o Estado nos proporciona ainda hoje, e o resultado disso é o abandono das bases; dos conselhos; dos centros; das organizações coletivas que tínhamos, que do ponto de vista estatístico foi um sucesso, isso é verdade, a gente passou a ter cada dia mais candidatos eleitos, no âmbito municipal, estadual, regional, nacional. Quanto a isso não podemos nos queixar. Mas qual é o saldo que a gente recolhe deste avanço estritamente eleitoral? Não é um saldo positivo, se a gente percebe bem o quanto deixou de contribuir com as bases, de contribuir enraizadamente nas comunidades rurais, nas comunidades urbanas, nas favelas, nas periferias urbanas. Quanto isso deixou de aprofundar essa relação orgânica dos militantes com essas bases sociais? Isso implicou numa sangria muito grande, do qual a gente hoje tem um balanço muito desfavorável. Não fosse isso, por exemplo, como a gente explica isso nos dias de hoje que seja a direita e não a esquerda que tenha a capacidade de mobilizar gente? Mesmo que a direita o faça com base no derrame de dinheiro que as grandes empresas utilizam, é verdade, mas se a gente, do ponto de vista dos trabalhadores e trabalhadoras, a gente tivesse minimamente organizado, quem tomaria a iniciativa seria a gente e não a direita. 


Então, eu volto a dizer que aqui nós contemplamos três dimensões neste tópico:


1 - Novo modo de produção, consumo e gestão societal.


A primeira dimensão é o nosso compromisso com a construção de um novo modo de produção, dinamicamente articulado com um novo modo de consumo, e também articulado, por sua vez, a um novo modo de gestão societal, que significa decidir pelas bases, decidir tendo aqueles que compõe os conselhos, as células, os ciclos culturais, os núcleos ou que outros nomes tenham, contribuir com eles as decisões tomadas pelas base, que sejam levadas também a outras instâncias, em âmbito estadual, regional, nacional ou internacional. 


Quando a gente perdeu esse ritmo, a gente certamente passou a acumular uma série de erros históricos lamentáveis. Este item acende qual horizonte apostamos, qual o horizonte que devemos apegar, que apostamos e que vai nos ajudar a transpor as amarras desta barbárie capitalista.


Isto me faz lembrar, entre outras coisas, de um filme dos anos 70, que caracterizou muito as gerações de militantes do meu tempo, que era chamado “Queimada!”, “Burn!” em inglês, onde conta a história do levante de um povo de uma ilha (fictícia, mas inspirada no Haiti), contra a invasão portuguesa e depois contra a invasão inglesa. Há uma tentativa de populares, que animados por essa figura chamada José Dolores, de enfrentar essa realidade. Tem uma frase que ele sempre repetia que era “É melhor saber para onde ir sem saber como do que saber como e não saber para onde ir”. Este filme eu tive a ocasião de trabalhar, de refletir com os estudantes, em muitas salas de aula na FAFICA e em Arcoverde. Ele teve um grande alcance didático na compreensão do processo de colonização, de dominação. Então gostaria de dizer esta parte: é preciso saber para onde estamos indo, isto significa dizer manter sempre vivo o horizonte de nossa luta, o horizonte de nosso plano, perspectivas, esperanças. 


O segundo tópico eu gostaria de desenvolver com vocês tem a ver com o exercício da memória histórica dos oprimidos. Este é o segundo tópico. 


2- O exercício da memória histórica do oprimidos

Então, este tópico se compõe de três subitens, aos quais me referirei adiante. Quando se trata de exercitar a memória histórica significa dizer que para os "debaixo", - os Trabalhadores, Trabalhadoras -oprimidos e oprimidas- , ao exercitar essa memória coletiva de suas lutas, internacionais, latinoamericanas, nacionais, regionais. Isto tem uma força relevante de animação para continuar forte na própria luta também. A memória histórica dos oprimidos, faz com que, uma vez exercitada adequadamente, essa memória história ajude a renovação dos compromissos de mudanças sociais, no sentido de fazer com que como é que nossas gentes europeias, africanas, asiáticas, da oceania, como é que essas bases conseguiram enfrentar essa barbárie do colonialismo e de outras manifestações impostas pelos setores dominantes do capitalismo. Então, nesse sentido, trata-se de ir refrescando a memória perigosa, essa memória subversiva. Não se trata, portanto, de nos limitarmos a um exercício de saudosismo, mas ao contrário, de trazermos de volta à conjuntura presente de volta os nossos compromissos com as mudanças efetivas com que nós somos chamadas a realizar. Esta memória histórica funciona como um animo, uma motivação a mais, uma força que ajuda a gente primeiro a compreender os desafios da realidade de hoje, segundo a enfrentar criticamente e de maneira corajosa esses desafios no presente também. É importante que a gente destaque esse lado de que o exercício da memória histórica ajude a gente nessa direção. Ao mesmo tempo, é importante frisar que a memória histórica não se dá estritamente no plano coletivo, de massas, por exemplo as grandes revoluções, grandes lutas, a Comuna de Paris, por exemplo. Mas também no âmbito pessoal, no âmbito da elaboração da cabeça, do coração, de revolucionários de vida exemplar. Então, estudar, por exemplo, suas biografias. Estudar suas biografias representa um passo importante para os jovens de hoje e de amanhã, a saberem como essas figuras, mulheres e homens, se comportaram diante dos desafios de seu tempo, e como foram capazes de enfrentá-los de algum modo. Nós então recolhemos deles, e delas, lições para os dias de hoje. Não no sentido de pretender reedita-los, porque elas são importantes para o contexto em que eles e elas viveram. Mas evidentemente que hoje estamos diante de velhos e novos desafios, e hoje nosso compromisso é de entender o caráter desses novos desafios e saber como proceder diante deles, colhendo indicações importantes dessas lutas do passado, mas sempre evitando reeditados mecanicamente, pois trata-se de entender hoje esses desafios. É importante cultivar a memória histórica dos oprimidos, associando sempre a questão da mística revolucionária. Os militantes e as militantes, ao recordarem esses grandes lances de enfrentamento da realidade passada, também se sentem tocados em renovarem seus compromisso no presente. Há aí atravessando suas lutas, seus compromissos, há uma mística revolucionária, que os anima, que nos dá força rumo nesta direção. Então é muito importante relacionar a mística revolucionária ao exercício da memória histórica dos oprimidos nesta perspectiva internacional, latinoamericana, e também brasileira. É muito importante a gente centrar força em relação a mística revolucionária com o exercício da memória histórica dos oprimidos. Outro tópico que eu gostaria de me ater, trata-se da práxis revolucionária no cotidiano.


3- práxis revolucionária no/do cotidiano.


Quando a gente fala em práxis revolucionária a gente está apontando a tarefa dos novos militantes, homens e mulheres, de hoje, no sentido de entenderem bem sua realidade, de maneira crítica e autocrítica compreenderem o passado, as lutas do presente, como condição para enfrentarem de maneira eficaz os desafios de hoje. Então, neste caso, exercitar a práxis revolucionária no cotidiano significa, entre outras coisas, unir o passado, recordar essas lutas históricas do passado, essas lutas populares em âmbito internacional, latinoamericano, brasileiro... associar essa luta com os desafios de hoje, não no sentido de recolher eventuais missões que sirvam para serem reproduzidas. Mas se trata de recolher elementos de encorajamento e de novo fôlego para o assumir sua tarefa no contexto presente. Não pretendendo, como dito, reeditar as lições do passado, até porque os desafios do presente são de outra ordem. Mas, para receber os influxos encorajadores que caracterizaram esses militantes e essas militantes lá atrás que hoje ressoam forte na nossa luta do cotidiano. Trata, sim, de recolher elementos dessas lutas históricas, de libertação como elementos que nos ajudem hoje a reforçar o nosso ânimo, a reforçar o nosso compromisso revolucionário frente aos desafios de hoje. Então é muito importante incentivar a memória histórica nessa direção.

  • Como fazer para a gente atualizar esse compromisso revolucionário?

Eu traria à tona a importância da gente fazer a leitura concreta da realidade objetiva de hoje. Disso, a gente não pode se afastar jamais. Exercitar junto às bases, aos movimentos sociais, às associações, às cooperativas, ao próprio mundo sindical, em seus núcleos, em suas células, em seus conselhos populares e outros círculos de cultura. Incentivar aí, que a gente procure alimentar sempre esse compromisso de fazer a ponte entre os acontecimentos de ontem e os acontecimentos de amanhã. Nós aqui tratamos de rememorar os acontecimentos sociais, as lutas passadas, as lutas políticas, as vitórias e derrotas das quais aprendemos a retirar lições. Então, o compromisso revolucionário hoje significa isso: fazer a ponte entre esse passado e o futuro que nós almejamos construir; significa que a gente trate de recolher dessas lições nos comprometer a ir transformando na perspectiva do horizonte que nós traçamos, do horizonte de realidade, societal, de um novo modo de consumo, de um novo modo de gestão societal. Trata-se, portanto, de fazer a ponte entre o passado e o futuro. 

  • Em que medida os compromissos revolucionários do presente nos ajudam nessa direção? 

Primeiro nos ajuda a partir do momento em que a gente não abre mão de fazer de maneira contínua a análise crítica da realidade objetiva, de fazer a leitura de mundo, como diz Paulo Freire e buscar compreender a complexidade que caracteriza essa realidade social, mas ao mesmo tempo sabendo que quem quiser chegar mais perto dessa objetividade complexa tem também de tomar a direção de ver o ritmo que ela impõe, que seria de acompanhá-la em seu movimento. A realidade complexa está sempre em movimento, está sempre se transformando.  Aqueles e aquelas que buscam acompanhar esse ritmo chegam mais perto do entendimento dessa realidade. Esse é um desafio para nós. Buscar acompanhar em movimento também  essa realidade social de maneira autocrítica e crítica como nos é devido. Então, a gente trata de fazer primeiro essa análise de conjuntura que, uma vez, realizada nos núcleos, nos conselhos populares, nos círculos de cultura, e outros, a gente vai captando diferentes ângulos dessa realidade complexa. Entendendo-a melhor a gente passa a se organizar melhor para enfrentá-la. A leitura da realidade é o primeiro passo que a gente aconselha nesta direção. É buscar exercitar a leitura crítica e autocrítica da realidade social de modo a saber como ela se comporta, e sabendo como ela se comporta, organizar nossa intervenção. 

 

  • Quais são nossas tarefas diante disso?


Uma primeira tarefa diz respeito ao processo organizativo, ou seja, da gente instalar e manter um novo modo de organização pela base e com a base. Esse novo modo por exemplo implica em retomarmos, em novo estilo, nossas lutas nas periferias urbanas, no meio rural, em toda parte, nos vários ciclos de cultura, nos núcleos, nas outras ocasiões retomarmos essa prática e a gente fazer essa leitura conjunta dessa realidade. Essa leitura conjunta implica, por exemplo, a gente ter clareza de como deve ser esse processo organizativo. Depois o processo formativo, depois o processo de luta, embora estejam sempre associados dinamicamente. 


Processo organizativo


Em relação ao processo organizativo, o novo que a gente é chamado para pôr em prática, é o retorno a essas bases rurais e urbanas, das quais a gente esteve bem mais próximo nos anos 80, por exemplo, mas não só, retomar essa aproximação com essas bases, tanto formar ciclos de cultura, de conselhos populares, ou de núcleos, células, etc. Retomar esse modo de organização significa, fazer com que as pessoas entendam que não basta fundar, criar uma célula, um núcleo, um conselho popular, é preciso manter, manter permanentemente. Para isso precisamos de reuniões periódicas, quinzenais ou mensais que ajudem as pessoas a irem crescendo no entendimento nesse processo organizativo. 

E como se faz essa organização? Essa organização se faz pela base. E de que modo? vencendo a tentação, ainda hoje muito presente, fazer com que meia dúzia de sabedores, de intelectuais se aproximem dessas comunidades, desses conselhos, para dizerem como elas devem fazer, como elas devem agir.  Então esse é um procedimento que a gente deve combater radicalmente porque não é assim que a gente organiza desde a base. A organização desde a base primeiro respeita o protagonismo de todos, primeiro parte de ouvir, da escuta das pessoas ali reunidas, cada qual dizendo sua história de vida, dizendo o modo como entende o mundo, fazendo o diálogo acontecer. Então, não se trata portanto de cumprir uma palavra de ordem do coordenador ou mesmo dos coordenadores, trata-se sim que os próprios militantes dos núcleos, dos conselhos, dos círculos de cultura vão trazendo sua própria contribuição. À medida que vão lendo a realidade, vão criticando a realidade, vão exercendo também a sua autocrítica, elas e eles vão compreendendo melhor o que se passa naquela realidade local, mas sempre fazendo a ligação do que se passa em âmbito internacional, em âmbito nacional. É preciso fazer esse nexo que é a análise de conjuntura é a leitura de realidade que as ajuda muito nessa direção.  Então, o processo organizativo tem que ser pelas bases, tem que ser protagonizado pelas bases. 

Na parte da coordenação, nunca deve ser uma coordenação monopolizada por alguém, nunca deve ser uma pessoa que se reúna com os grupos para ditar como deve o grupo se comportar, mas deve ser uma coordenação colegiada, com pessoas locais, com pessoas das bases também fazendo esse exercício de leitura da realidade. É muito importante fazer com que a coordenação do núcleo, do conselho e outras atividades sejam protagonizadas por todos da base. A tarefa de escuta é uma obrigação, sem a qual  a gente não vai além. Então esse é um jeito novo de organizar a base, a partir de uma coordenação colegiada. Nesse sentido, é importante a gente entender que uma vez cumprido o prazo de atuação dessa coordenação colegiada, quem sabe 2 anos, 3 anos, os coordenadores, as coordenadoras voltam para suas bases e quem é da base vem ajudar no processo de coordenação colegiada. Isso é muito importante exigir, sem o que a gente corre o risco da manipulação feita por coordenadores que têm oportunidade de formação política e depois passa seu ideário direto para a base no sentido mais interativo do que de consulta e de ouvir. É claro que isso não tem que se fazer de maneira repentina, pode até acontecer que para dar oportunidade a que o pessoal de base vai entendendo melhor o manejo  daquela atuação, alguns de base venham a ter um tempo por volta de um ano pro exemplo para aprenderem a gerir o negócio em relação à base.   Mas, evidentemente sendo garantido que os coordenadores voltem para a base e os que estão na base possa exercitar a coordenação colegiada. 

Outro fundamento que eu friso muito nas minhas falas, nas minhas discussões, nos meus escritos, é o que eu entendo pelo caráter revolucionário de alternância de cargo ou função. Em que consiste esse mecanismo de alternância de cargo ou função? Consiste na prática de que a ninguém seja permitido ocupar cargo ou função de maneira longa, de maneira prolongada, mas findo o seu prazo seja outro que venha ocupar. É um mecanismo revolucionário porque faz com que se combata a tendência de viciamento por parte dos coordenadores que se eternizam nas coordenações, e dão lugar a que novos coordenadores provenientes da base assumam esse novo protagonismo. Portanto, eu considero fundamental a prática desse mecanismo de alternância de cargos e funções. Isso quanto ao lado dos deveres e das tarefas organizativas.


Processo formativo


Primeiro, de que formação se trata? Trata-se de uma formação permanente. Isso significa quer dizer que não pode e não deve confundir-se com uma formação escolar, desde a creche até a pós-graduação. É preciso ser uma formação continuada. Como sabem, nós passamos relativamente pouco tempo na escola, 10 anos, 12 anos… Mas, a escola termina seu período, então é preciso que essa formação continue para além da escola. Não se trata de a gente desprestigiar a formação escolar, pelo contrário, eu não tenho o que me queixar de ter nela vivido em torno de 25 anos.  No entanto, é importante ter em mente que não se trata da formação escolar. Isso porque, a formação escolar, tanto a formação das escolas públicas, quanto das escolas particulares, a organização da educação, ela é controlada diretamente pelo Estado, e a gente sabe quem é o Estado. E um braço forte, o esteio, uma pilastra mestra do sistema capitalista, ao lado do Mercado burguês. De modo que, sendo o Estado que organiza toda a educação escolar, evidentemente os movimentos sociais que fiquem atrelados a essa forma de organização vão ter problemas mais cedo ou mais tarde como já tiveram. Foi com tristeza, por exemplo, que eu recebi o distanciamento de algumas lideranças dos movimentos sociais populares de suas respectivas bases e ascenderem aos espaços governamentais. Acho que isso não ajuda ao processo de autonomia, do exercício de autonomia dos movimentos sociais. Não se trata de ser alguém isolado. Não: conversa com todo mundo.  Uma coisa é conversar com todo mundo, outra é aceitar cargos do aparato estatal. Aí é uma diferença grande e perigosa. Primeiro ponto que gostaria de destacar é esse: a educação popular tem que ter esse alcance formativo permanente, invés de ficar contente apenas com a formação ministrada pelo Estado, pela escola, a gente trata de estar todo dia em processo de formação até o final da vida. Essa é a educação popular que os movimentos populares são chamados a exercitarem e a transmitirem também. E a educação popular na perspectiva freiriana, de não se conterem com a formação escolar. Nessa direção é interessante saber que essa educação protagonizada pelos movimentos sociais populares, do campo e da cidade têm uma necessidade de uma continuidade permanente, de não ser oferecido algum elemento aqui e depois descontinuado acolá. Tem que ser uma programação permanente de formação dessa educação popular e também desse processo organizativo. É preciso que a educação popular tenha esse compromisso de fazer acontecer as reivindicações tomadas pela base, pelos núcleos, pelos conselhos populares, pelos círculos de cultura, e assim por diante, no sentido de fazer com que o que seja aí estudado de maneira permanente a partir de elementos que vão sendo oferecidos por forças sociais importantes, por exemplo, com a entrega de revistas, como teoria e debate, jornais como Companheiro, Em tempo, e outros. A gente deve ter isso presente continuamente para ser o mecanismo de formação permanente desses grupos. A formação política se dá pelo acompanhamento do que anda se passando em âmbito Latino Americano, em âmbito mundial, em âmbito brasileiro e em âmbito também de nossa região Norte, Nordeste e assim por diante. Então é preciso levar a sério esse desafio que é buscar formar a consciência crítica daqueles participantes no sentido deles terem presentes quais são os desafios reais diante dos quais estamos e como se organizar para enfrentá-los de maneira exitosa. 


Processo de mobilização


A mobilização não pode ser algo que aconteça de maneira periódica, quase inexistente, tem que estar presente também. A mobilização constitui um ponto dessa formação dessa educação popular que faz com que aqueles e aquelas que participam tanto do processo organizativo, quanto do processo formativo assumam o compromisso de lutarem, de se viabilizarem, de mostrarem atentos e militantes nas ruas. Essa história de achar que a direita tem o monopólio das ruas, chega a ser um escândalo para nós. A direita nunca foi um setor que motivasse as movimentações de rua, ainda que haja derrame de dinheiro venha a ser feito. No entanto, isso é tarefa só das lutas populares. Daí a importância da gente ligar tanto o processo organizativo, quanto o processo formativo ao processo de luta, de luta permanente no dia-a-dia enfrentando os desafios que estão ao nosso alcance. 


* Texto-base, gravado em áudio, que inspirou a exposição compartilhada - junto com a Professora Georgina Cordeiro, a Professora Ivanilde Apoluceno de Oliveira, da Cátedra Paulo Freire da Amazônia, do Estado do Pará, e o Professor Reinaldo Fleuri, da UFSC, mediado pelo Professor Sulivan de Souza, quando da Sessão de abertura da XVII Jornada Paulo Freire, promovida pela Universidade Estadual do Pará (UEPA). O presente texto reflete seus traços de oralidade, comportando, inclusive, repetições, pelas quais me escuso perante os leitores e leitoras. O autor agradece a Luciana Calado Deplagne, a Heloíse Calado, a Gabriel Calado e a Eliana Calado pela cuidadosa transcrição.




João Pessoa, 16 de novembro de 2022.


quinta-feira, 10 de novembro de 2022

FRANCISCO EM BAREIN: artífice da inter-culturalidade

FRANCISCO EM BAREIN: artífice da inter-culturalidade

Alder Júlio Ferreira Calado


Em breve, o Papa Francisco estará completando 10 anos de pontificado, o que se dará em 13 de fevereiro de 2023. Enquanto preparo, entusiasmado, algumas linhas para celebrar este acontecimento, focando o que considero os pontos axiais de seu trabalho pastoral-profético, cuido de compartilhar o que retenho de sua mais recente viagem apostólica - a 39º - desta vez visitando o Barein, pequeno país da península arábica, no qual se concentram numerosos migrantes procedentes de vários países, de maioria muçulmana, também comportando considerável percentual de cristãos, especialmente de católicos.


Dos escritos sobre um balanço dos dez anos de pontificado do Papa Francisco, deverão constar palavras-chave do seu universo vocabular, presente em seus escritos, pronunciamentos, entrevistas, etc, tais como: Evangelho, Amor, Reino de Deus, Povo de Deus, Esperança, Testemunho, Fraternidade, Serviço, "Igreja Em Saída", Escuta, Diálogo, Proximidade/Aproximação,Toque, Ecumenismo, Prioridade aos Pobres e necessitados, Alegria, Ternura, Misericórdia, Cuidado, Terra/Criação, Migrações forçadas, diálogo inter-religioso, entre tantos outros. Os próprios exemplos ilustrativos que acabamos de mencionar já são suficientes para configurar um traço fundamental de sua ação pastoral-profética: o de um artífice da interculturalidade.


Em quase dez anos de pontificado, suas viagens apostólicas (uma média de quatro por ano) atestam profusamente o sentido axial de seu programa pastoral profético: o de peregrino da paz, sempre empenhado em testemunhar e anunciar a Boa Nova da Justiça e da Paz para toda a humanidade, para muito além das fronteiras eclesiais, cristãs, ou religiosas. Neste sentido um exame mais detido de suas 39 viagens apostólicas, pelos cinco continentes, - várias das quais já tivemos oportunidade de tomar como alvo de reflexão -, sinaliza abertamente seu empenho em promover, em escala mundial, os valores evangélicos fundamentais de misericórdia, justiça, de paz, de fraternidade, de solidariedade, de partilha, e de serviço à causa libertadora dos pobres e sofredores.


Sem negar semelhantes características a alguns de seus predecessores, dificilmente outros terão tido, durante seu pontificado, um traço tão eloquente quanto Francisco, no que diz respeito ao sentido mais pleno de Catolicidade (do grego “Kata”: em relação a, mais “holos”: todo, universo), traduzindo a destinação universal da mensagem evangélica, dirigida, por tanto, a toda a humanidade. A realização de tal mensagem, com efeito, supõe, entre outras condições, o exercício contínuo da interculturalidade, que brota da convicção da horizontalidade fundamental que deve caracterizar todas as culturas, de modo a combater qualquer veleidade de hegemonia ou supremacia de umas culturas sobre as demais. Neste sentido, um exame detido de sua experiência junto a diversos grupos étnicos diferenciados, convivendo no Barein atesta o compromisso de Francisco, ao longo do seu pontificado, com o lugar que o exercício da interculturalidade ocupa em sua grade de valores. 


Particularidades do Barein


Por que a realidade do Barein atraiu a atenção do Bispo de Roma? À parte características políticas - o Barein é uma monarquia constitucional, sendo também a Igreja uma monarquia -, o Barein é um pequeno país, com uma área inferior a 800 km² onde vive uma população em torno de 1,5 milhão de habitantes cerca da metade dos quais composta por imigrantes vindos de diversas partes da Ásia, da África e do Ocidente. Trata-se de uma população caracterizada pela interação de diversas culturas, correspondentes a países como a Índia, o Paquistão, o Egito e outros países africanos, além do segmento europeu. 


O Barein situa-se no Golfo Pérsico ladeado de países tais como o Irã, Arábia Saudita, Iraque, Omã, Kuwait e Qatar, constituindo o Bairein um arquipélago composto de 33 ilhotas, das quais apenas 3 habitadas. Eis um um complexo mosaico de culturas convivendo pacificamente inclusive no plano religioso: sendo a religião islâmica predominante, uma parcela de sua população se confessa cristã, razão do convite feito ao Papa pelo rei Hamad bin Isa al-Khalifa.


Em um dos seus discursos iniciais, Papa Francisco enfatizou a presença em pleno deserto, de uma portentosa acácia, da qual se serve o Papa para ressaltar a relevância das raízes do povo do Barein, sua longeva história de pluralismo cultural e de convivência com numerosas gentes. Ao sublinhar a rica história do Barein, o Papa Francisco destaca a importância desta marca como exemplo inspirador para o mundo atual, profundamente conflagrado por interesses geopolíticos geradores de Guerra, de divisionismo, de fortes ameaças à humanidade.   


Francisco cuida de chamar a atenção para a importância do diálogo como critério de convivência justa e pacífica, como via de promoção da interculturalidade.


Cultura do cuidado, fraternidade, sabedoria nas escolhas


Dentre os diferentes encontros que o Papa teve, durante esses dias de visita ao Barein, tratamos de salientar pelo menos dois destes encontros. Um deles, voltado mais diretamente aos jovens. Nesta ocasião, após ouvir atentamente vários pronunciamentos feitos por jovens representantes de vários setores daquela sociedade, especialmente em instâncias cristãs, momentos intercalados com belas apresentações artístico-culturais, o Bispo de Roma, em resposta ao sentira e ouvira limitou-se a fazer 3 convites aos jovens, refletindo sobre cada um deles. 


O primeiro convite, disse o Papa, tem a ver com a “cultura do cuidado” .  Em um mundo tantas vezes seduzido pelo consumismo e pelo egoísmo e insensibilidade frente aos outros e ao Planeta urge a cultura do cuidado. Cuidar significa promover a vida especialmente lá onde ela se acha ameaçada: em grandes parcelas da humanidade sofrendo a fome e o desamparo, enquanto enormes recursos financeiros são gastos na produção de armas; em um Planeta constantemente atacado, em seus mares e oceanos, em seus rios, em seu solo e subsolo, urge que se assuma a cultura do cuidado.


Semear a fraternidade se apresenta como um compromisso de continuidade do convite anterior. Semear a fraternidade significa exercitar relações de igualdade e de respeito com todos os povos do mundo, superando os vícios da supremacia cultural de um povo sobre os demais; significa denunciar as profundas desigualdades que separam os seres humanos, em função da inaceitável concentração de riqueza e de bens por uns poucos, à custa da fome, da miséria de centena de milhões de seres humanos.

O Papa Francisco, ao expressar seu último convite, convoca os jovens a aprenderem dia por dia, a exercitar o discernimento na tomada de decisões, de modo a fazerem uma leitura crítica do mundo em que vivem, a partir mesmo das escolhas que tomam em relação ao seu cotidiano, instando-os, ao mesmo tempo, à aventura de transformarem o mundo, com base na verdade, na justiça e na paz.  


Alegria, Unidade e Profecia.


Ao acompanharmos os pronunciamentos escutados e feitos pelo Papa Francisco, durante seus quatro dias de peregrinação pela paz no Mundo, impacta-nos constatar a postura pastoral-profética testemunhada pelo Bispo de Roma, ante seus interlocutores e ouvintes, reunidos neste fórum de diálogo inter-religioso, marcada também pelo tom didático, a exemplo do que desenvolveu seus pronunciamentos distribuídos, quase todos, em 3 partes, como se percebeu em seu Encontro com Jovens, no qual lhe fez 3 convites: assumir a cultura do cuidado, semear a fraternidade e exercitar o discernimento  nas escolhas, bem como em seu discurso de despedida, que também resumiu em 3 propostas de reflexão: alegria, unidade e profecia.


Não foi a primeira, nem será a última vez em que o Papa Francisco acentua a Alegria como uma das características essenciais dos discípulos e discípulas de Jesus. Alegria vivida, primeiramente, como um dom recebido do Deus da vida, e, ao mesmo tempo, como uma motivação fundamental da ação cristã, no mundo: alegria de fazer o bem, alegria em servir principalmente os mais necessitados, alegria na partilha dos bens materiais e espirituais, que não se confunde com a busca do ter, do poder, do prestígio, do consumismo..


É esta mesma alegria que anima os seres humanos, independentemente de sua religião e de sua cultura, a semearem a fraternidade entre os povos, combatendo toda expressão de privilégio de supremacia, de hegemonia, de uma Cultura sob as demais. Fraternidade que se põe em prática, por meio da interculturalidade, do diálogo entre as culturas e os povos, que se revela na busca de um mundo em que todos caibam, com respeito e dignidade, na convivência amorosa com a Mãe-Natureza.


A Profecia constitui um outro traço dos que se põe a construir um novo mundo possível e necessário a partir tanto da denúncia das injustiças clamorosas e das desigualdades inaceitáveis, impostas pelo modo de produção capitalista, bem como pelo anúncio de uma nova ordem social, fundada na Verdade, na Justiça e na Paz.


João Pessoa, 10 de novembro de 2022.

sábado, 5 de novembro de 2022

UM PERCUCIENTE PANORAMA DO LEGADO MARXIANO: considerações esparsas sobre o livro de José Paulo Netto “Karl Marx, uma biografia"

 UM PERCUCIENTE PANORAMA DO LEGADO MARXIANO: considerações esparsas sobre o livro de José Paulo Netto “Karl Marx, uma biografia". São Paulo: Boitempo, 2020” *


Alder Júlio Ferreira Calado



José Paulo Netto compõe um seleto grupo de pesquisadores de excelência, no complexo e vasto universo do Marxismo. Já há algumas décadas, ele vem contribuindo, com sucessivas pesquisas, neste campo ao qual tem aportado reconhecida contribuição científica. Mais recentemente, ele nos brinda com uma densa biografia sobre Karl Marx, sempre empenhado em rigorosa investigação biobibliográfica do filósofo da Práxis.

 

Duzentos e quatro anos após seu nascimento e cento e trinta e nove anos após seu encantamento, Karl Marx (1818 - 1883) continua amado e seguido pelos “de baixo”, ao mesmo tempo em que execrado pelos “de cima”...

 

Por incontáveis razões, chama a atenção o atribulado percurso existencial de Marx. Uma delas tem a ver com a crescente fúria que despertou - e ainda desperta! - nos setores dominantes e dirigentes de ontem quanto de hoje. Tratam-no como um profeta proscrito, ainda que pouco lido, até hoje. Com efeito, a despeito do trabalho hercúleo de seus escritos, o certo é que, quase um século passado desde a concepção e início do grande movimento pela publicação completa de seus escritos (e de Engels) - cadernos, manuscritos, livros, notas, artigos e vasta correspondência - iniciativa que se conhece pela sigla MEGA (Marx-Engels-Gesamtausgabe): Edições completas de Marx e Engels. O Projeto comporta 114 volumes, dos quais até aqui publicados 65, menos de 2/3... Ainda há, por certo, muito a se conhecer do legado de Marx.

 

A propósito ainda de MEGA, cumpre lembrar que este grande projeto se vem cumprindo em duas fases: o MEGA I, que se cumpriu entre 1924 e 1938, do qual foram publicados 39 volumes, e o MEGA II iniciado em 1954, estendendo-se ao presente. Importa igualmente assinalar que, no período entre o MEGA I  e o MEGA II, foi realizado o MEW (Marx-Engels Werke) por meio de uma parceria entre organismos marxistas, russo e alemão, projeto do qual resultaram publicadas algumas dezenas de volumes, em alemão.

 

Há que se reconhecer, por outro lado, que mesmo sem se haver lido esta parte, do que de Marx já se deveria conhecer, da outra parte que dele se sabe, ainda resta amplamente ignorado, seja por seus inimigos, seja por parte expressiva dos militantes da Classe Trabalhadora.

 

Também neste sentido, revela-se de grande importância e atualidade, a iniciativa do Prof. José Paulo Netto. Com efeito, desde a biografia preciosa por Franz Mehring, sobre Marx, em 1918, (cuja tradução no Brasil se fez somente em 2013), seguida por vários outros biógrafos e biógrafos, podemos constatar tratar-se de um trabalho investigativo de excelência, inclusive por oferecer relevantes esclarecimentos acerca dos últimos anos vividos por Karl Marx. 

 

Aspectos da biografia que reputo mais tocantes

 

Começamos por ressaltar a qualidade investigativa e estética do trabalho. As fontes de que se valeu, destacam-se pela sua eminente qualidade, bem como respeitável quantidade dos títulos consultados, trazendo ainda uma notável diversidade temática e de posições políticas. Agrega-se a tais marcas a qualidade estética de sua exposição.

 

Ao largo de mais de oitocentas páginas, bem distribuídas em densos oito capítulos, José Paulo Netto, nos traz à tona uma extensa e complexa gama de elementos significativos do curso existencial de Marx, de modo a enfatizar - como se costuma esperar de um autor de excelência - o percurso intelectual do biografado.

 

Marx nasceu em Trier (Alemanha), em 5 de maio de 1818, de uma família judia, cujo pai, para exercer a profissão de advogado, precisou converter-se - com a família - ao cristianismo de confissão luterana. Desde cedo, o jovem Karl se mostrou um estudante aplicado, ainda antes de ingressar na Universidade, onde cursou os primeiros anos de Direito, logo migrando para o curso de filosofia, aí também se associando ao grupo de jovens hegelianos de esquerda. Hegel, a quem Marx não conheceu em vida (Hegel falece em 1831, quando Marx tinha apenas 13 anos), constituía  a referência maior no campo das ideias, na Alemanha, razão por que exerceu poderosa influência também sobre os jovens universitários daquela época.

 

Foi igualmente em Filosofia que Marx obteve seu Doutorado, em 1841, tendo elaborado sua tese acerca da diferença entre os sistemas filosóficos de Demócrito e Epicuro. Pouco tempo depois, enamora-se e casa com a jovem Jenny Von Westphalen, de ascendência aristocrática. União da qual resultaram suas filhas e seus filhos: Jenny Caroline, Jenny Laura, Edgar, Henry Edward Guy ("Guido"), Jenny Eveline Frances ("Franziska"), Jenny Julia Eleanor, enquanto o sétimo faleceu em 1857, tendo vivido condições precárias, em razão da opção política de Marx, de entregar-se avidamente à tarefa de desvendar os labirintos do Capital. Também, atribui-se a Marx a paternidade de Frederick, fruto de uma relação com Helena Demuth.


Ainda sob a influência Hegeliana, mas dela já tomando certa distância, Marx empenha-se, por volta de 1843, em esboçar uma primeira crítica à Filosofia do Direito de Hegel, partindo de sua perspectiva religiosa de mundo. Desenvolve sua famosa “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, na qual cuida de argumentar que é o ser humano, e não a Religião, que deve assumir a centralidade do processo de emancipação humana. Isto implica a defesa de que é o ser humano que cria a religião, e não o contrário, como propugna Hegel. Para Marx, a religião expressa, para os oprimidos, “o coração de um mundo sem coração”, o protesto contra este mundo, à medida que os oprimidos recorrem a religião como um alívio, como um suspiro, como um ópio, diante das cruéis desventuras de um mundo sem coração.


Mais adiante, ainda de meados de 1840, datam seus famosos manuscritos dos quais ganham especial relevo os “manuscritos econômico-filosóficos”, de 1844, nos quais Marx esboça, com precose acuidade (era um jovem de 26 anos), uma percuciente análise da condição humana, tal como vivenciada sob o sistema burguês. Entre tantos pontos a merecerem destaque, limitamo-nos a sublinhar seu sentimento de indignação diante da crueldade capitalista, que impede os trabalhadores, de desenvolverem suas potencialidades, de se desenvolverem como seres humanos em sua plenitude, sendo tantas vezes impedidos de fruirem a contemplação estética de um quadro ou de desenvolverem seus talentos artísticos.


A partir de 1844, firma-se uma sólida parceria com seu amigo Engels - “parceiro de vida” - com quem passa a produzir relevantes textos, a exemplo de “a ideologia alemã”, “a sagrada família” e o próprio “manifesto comunista”, de 1847/1848, entre outros.


Trata-se, como se percebe, de um jovem profundamente inquieto e comprometido com o trabalho ininterrupto de investigação. No livro “A ideologia Alemã” Marx e Engels empenham-se em analisar criticamente a filosofia alemã, a partir de um exame judicioso dos elementos ideológicos contidos na filosofia Hegeliana. Importa, por outro lado, observar o constante aprimoramento que Marx vai desenvolver, em seus escritos posteriores, acerca de Ideologia, inclusive em “O Capital”. Este “detalhe” é, inclusive, percebido e levado em conta por Marxistas contemporâneos, a exemplo de Ludovico Silva, filósofo Venezuelano que, ao examinar a obra de Marx, em especial seu conceito de “mais-valia”, descobre nela existente uma nova dimensão: a “mais-valia ideológica"; e de István Mészáros, especialmente em sua obra “O Poder da Ideologia” (São Paulo, Boitempo, 2004, ainda que o livro tenha aparecido em 1995) em que Mészáros, com base em Marx, assume o conceito de Ideologia, para além de sua componente de falsa consciência, como uma manifestação específica de consciência social, completamente a serviço dos valores do Capital. 


Importa, igualmente, observar que foi também neste mesmo período da publicação de elaboração de “A Ideologia Alemã” que Marx dirige a Feuerbach as famosas Onze Teses, das quais nos permitimos destacar três:. a Tese 2 defende que a verdade não se demonstra por discurso, mas pela prática; a tese 3 sustenta que os seres humanos não são meros produtos das circunstâncias, mas também eles são capazes de mudar as circunstâncias, para o que os educadores também devem ser (re)educados; e quanto a Tese 11, sublinha um traço fundamental da filosofia da Práxis: não basta entender o mundo, de formas diferentes: urge transformá-lo.



A tese 11, também implícita na metáfora da Coruja de Minerva, exposta por Hegel como símbolo da sabedoria, que alça voo a tarde, emblema do poder de interpretação da realidade por um lado, e por outro Marx exalta o galo gaulês por anunciar, o seu canto na madrugada, despertando os viventes para a construção de um novo amanhecer para a humanidade.


Exercitando uma de suas marcas de analista de excelência, José Paulo Netto nos brinda com largos trechos de análises rigorosas do contexto histórico, característica da produção de Marx. Ele o faz, com talento e rigor, sempre que apresenta uma nova obra de Marx, tendo sempre o cuidado de apontar os fatores determinantes que influenciaram a análise de Marx através de sua vasta obra. Não apenas no que diz respeito ao chamado “jovem Marx” - cujas obras principais foram acima mencionadas -, mas igualmente no tocante às suas obras posteriores, as do Marx maduro,  distinção, aliás, que ele reconhece, contrapondo-se, porém, a qualquer tentativa de separação entre o jovem Marx e o Marx maduro.


Após meados de 1840, a produção de Marx vai alcançando notáveis traços de amadurecimento crítico. Já na elaboração, em parceria com Engels, do “Manifesto Comunista” de 1847/48, podemos observar uma densa leitura de natureza histórica de modo, a obter uma síntese genial do espectro amplo e profundo, sublinhando sua compreensão fundamental de como a História se apresenta, em sua essência, como uma sucessão de antagonismos de classes sociais.


É também nas páginas deste Manifesto, no qual Marx e Engels, em nome do principais representantes dos relevantes coletivos de Trabalhadores, em âmbito internacional, propunham seu Programa de lutas, do qual se destacam 10 pontos, dos quais a abolição da propriedade privada dos meios de produção.


Não obstante o respeito que Marx tinha pela figura de Proudhon, principal representante do Socialismo Utópico, que gozava de grande prestígio de vários Segmentos de Trabalhadores. Marx fazia questão de externar suas críticas contundentes as teses de Proudhon. Isto se deu, por exemplo, em resposta ao livro “Filosofia da Miséria”, ao qual Marx retrucar com o livro “Miséria da filosofia”.


Foi, contudo, nos anos de 1850, que a produção marxiana começa a apresentar um grau mais apurado em suas pesquisas, demonstrando novo estado de apuração e amadurecimento crítico. Tal apuração se dá, em grau maior, à medida que ele retoma em novo estilo, o conceito de “Economia Política” que herdara de Engels, havia mais de uma Década, quando do seu encontro com Engels, em Paris, ocasião em que passam a firmar uma “parceira” de vida. 


Enquanto isso, na França, agravavam-se cada vez mais os fatores de explosão social, em razão das condições e crescentes desigualdades impostas pela classe dominante ao conjunto dos trabalhadores, de modo a eclodir o crescente confronto de classes - situação que Marx analisa cuidadosamente, em vários textos posteriormente publicados do livro “As Lutas de Classes na França de 1848 a 1850”. 


Já não mais contando com a “A Gazeta Renana”, onde publicara relevantes textos analíticos e críticos, tal como também o fizera nos “Anais Franco-Alemães”, Marx doravante cuida de rastrear mais sistematicamente, os fundamentos da Economia Política, recorrendo aos economistas clássicos ingleses, em especial a Adam Smith e David Ricardo, onde vai encontrar uma preciosa fonte para sua compreensão objetiva do metabolismo do Capital, a partir do profundo desmascaramento que vai realizar dos mecanismos mais sórdidos de exploração da Classe Trabalhadora, hipocritamente escondidos pelos teóricos burgueses.


Cumpre, ainda neste período, ressaltar a qualidade científica da produção marxiana, atestada, por exemplo, na elaboração, em 1852, do seu famoso “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”, do qual, entre outros elementos, vale sublinhar a passagem em que sustenta que “Os homens fazem sua própria história mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”.


Dando sequência ao seu frenético ritmo de pesquisa, enfrentando as mais duras adversidades de sobrevivência, sua e de sua família, Marx segue apurando a qualidade de suas análises, dedicando-se especialmente a questão do método, sobretudo a partir de meados de 1850, como se verifica, por exemplo, em seu célebre prefácio de 1859, prefácio ao seu livro “contribuição à crítica da Economia Política”.


De todo este intenso labor grávido de “inventividade revolucionária” (expressão cara a Adolfo Sanchez-Vasquez, em seu “Filosofia da Práxis”), culminando em sua obra-prima “O Capital”, em quatro livros, dos quais o 4º não veio a público, tendo sido o Livro 1 publicado em 1867. O "Grundrisse" (esboços) constituem um volumoso conjunto de escritos, registros, análises, estudos, resumos, observações, não obstante sua publicação, se tenha verificado décadas após a morte de Marx, compõem um conjunto de cadernos elaborados em 3 períodos: os primeiros registros correspondem ao período de 1857 a 1859; o segundo período corresponde aos escritos elaborados entre 1861 a 1863; enquanto o último conjunto de escritos relativos aos Grundrisse se refere ao período de 1865 a 1867.


Os "Grundrisse" representam para Marx um verdadeiro laboratório, abrigando, em detalhes, extratos de livros, jornais e documentos, anotações críticas e até breves textos analíticos feitos por Marx, ainda que sem caráter conclusivo. Ou seja: dos Grundrisse Marx fez seu laboratório investigativo, espécie de longos rascunhos não destinados à publicação, uma vez que representam apenas seu método de investigação, algo bem distinto do seu método de exposição, este sim, destinado a publicação, uma vez que seus textos publicados assumiam uma forma mais elaborada, inclusive esteticamente exposta, mais sistematizada e devidamente aprimorado, como se observa no Livro I de “O Capital”.


Outro aspecto que Marx contrapunha às teses hegelianas de sua filosofia do direito, tinha a ver com a defesa idealista que Hegel faz do Estado, por ele considerá-lo uma espécie de tutor da sociedade civil, apto a dirimir os conflitos e antagonismos presentes na sociedade civil e apto a iluminar os caminhos de justiça e prosperidade. Ao contrário dessa posição Hegeliana, Marx sustentava que ao espelhar as contradições e antagonismos da sociedade, fazia prevalecer os interesses dos setores dominantes. Neste texto, Marx, com seus 26 anos, ainda não falava nas classes sociais antagônicas aí predominantes, limitando-se a tratá-las como “estamentos”. Ainda quanto aos manuscritos econômicos filosóficos, devemos salientar a presença já então de um texto de economia política, embora ainda vazado predominantemente de uma abordagem filosófica.


Nos “Grundrisse”, por conseguinte, se acha ainda que menos desenvolvido, conceitos chaves que vão aparecer de modo mais preciso e mais completo em O Capital. Assim se dá em relação a conceitos, tais como "mercadoria", "dinheiro", "valor", "Mais-Valia", "fetiche", entre outros. Um outro traço digno de nota no percurso existencial de Marx, tem a ver com sua postura de revolucionário,  ao mesmo tempo em que se sentia profundamente empenhado do relevante labor investigativo, se sentia constantemente a acompanhar todo aquele cenário de ebulição crescente das lutas sociais, tendo inclusive que intervir em debates e encontros com vários segmentos de dirigentes e operários, tal como despendeu enorme tempo e energia para acompanhar de perto os fatos e acontecimentos protagonizados pela inspiradora e rica experiência revolucionária da Comuna de Paris em seus feitos épicos de 1871, sobre a qual dedicou uma percuciente análise - “A Guerra Civil na França”. 


Mais adiante, já após a publicação do Livro I de “O Capital”, que teve uma progressiva divulgação, para além da Alemanha, é curioso notar-se que até em uma Itália grandemente influenciada pelas ideias de Bakunin, Marx também passaria a suscitar grande interesse, haja vista a iniciativa proposta por Carlo Cafiero, e aceita por Marx, de elaborar um resumo do Capital, intitulando-o “O Compêndio de ‘O Capital”. 


A Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) fundada em 1864, por um conjunto de diferentes correntes políticas, dentre os quais militantes marxistas, militantes anarquistas, constitui uma fecunda experiência de cooperação entre revolucionários marxistas e revolucionários anarquistas, cujo ápice se deu por ocasião da primeira revolução proletária, a Comuna de Paris. Em seu livro “Afinidades revolucionárias: nossas estrelas vermelhas e negras. Por uma solidariedade entre marxistas e libertários”, Michel Lovy apresenta uma série de episódios marcantes, de modo a salientar de forma convincente diversos exemplos concretos da cooperação efetiva entre revolucionários anarquistas e marxistas. Tanto neste livro, quanto em sua conferência proferida, no Rio de Janeiro, a propósito das comemorações dos 150 anos da fundação da AIT (cf. https://www.youtube.com/watch?v=ILzsOctQt9s&t=2559s), ele faz questão de mencionar vários episódios, inclusive na primeira metade do século passado, a exemplo da Guerra Espanhola e da resistência ao Nazismo na França.  Ainda a propósito deste fecundo período de parceria entre Marx e Engels, se tem a gerar um impacto positivo sobre Marx, além da leitura do texto intitulado "Esboço da crítica da economia política" Engels tinha então seus 24 anos. O texto que Engels repassara a Marx "A situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra". Importa com efeito salientar o extraordinário aprendizado de Marx, a partir desta leitura, o que nos permite reconhecer, que ele, não tendo nascido marxista nem comunista, aprendeu a tornar-se assim com Engels. Nessa toada de tantos episódios de dissensos e entrechoques, mas também de convergências e cooperação entre marxistas e anarquistas, nunca é demais lembrar da Associação Internacional dos Trabalhadores, da qual também faziam parte revolucionários marxistas e anarquistas. 


Em 1864, Marx foi convidado a redigir as teses básicas defendidas pela AIT, relevante documento em que se pode ler: “a emancipação da classe trabalhadora deve ser obra dos próprios trabalhadores”. 


Por outro lado, como já prenunciado no Manifesto do Partido Comunista (1847-1848) o sucesso do movimento operário só seria assegurado contando com o protagonismo de um Partido operário capaz de encarnar e assumir processo organizativo e formativo, e de lutas da classe trabalhadora, tanto no âmbito nacional, quanto em escala internacional. Daí a decisão de se fundar o Partido Operário Alemão, que teve como principal liderança a figura polêmica de Ferdinand Lassalle, que defendia a bizarra tese de um "Volkstaat" (Estado Popular).


Dada a conhecida rivalidade entre revolucionários marxistas e anarquistas, aquele episódio de fazer constar em um programa de um Partido Comunista a defesa do Estado (Estado Popular) foi bastante explorado por Bakunin atribuindo a Marx a suposta paternidade daquela expressão. Diante disto, tanto Marx quanto Engels se mostraram  profundamente queixosos contra Lassalle por receberem tal acusação de Bakunin, até porque é conhecida a posição crítica de Marx frente ao Estado. Em consequência dessa polêmica, o Partido Operário Alemão foi obrigado a corrigir seu equívoco programado.  


Em consequência deste mal entendido de que foram vítimas Marx e Engels importa lembrar a sua posição autêntica constante da retificação redigida por Marx na famosa “Crítica ao Programa de Gotha”, que dentre outros pontos sustenta a necessidade história do fenecimento do Estado, como condição da perspectiva comunista de abolição das classes sociais.


Parte significativa da elaboração bio-bliográfica de Marx feita por José Paulo Netto, se acha voltada para os últimos anos de Marx, mais precisamente de 1880 a 1883. Em seu trabalho, José Paulo Netto, com base em diversos autores, destaca diferentes atividades intelectuais protagonizadas por Marx, ainda que já experimentando precárias condições de saúde. A este respeito, a par de uma intensa correspondência travada com tantas figuras espalhadas pelo mundo, Marx desenvolve uma admirável curiosidade epistemológica de amplo espectro: da antropologia (aqui se destacando seu profundo interesse pelos escritos de Morgan), pela Matemática, pela Química (em função da Agricultura), pela biologia… foi também, na segunda metade dos anos 1880 (1884), igualmente influenciado pelos estudos antropológicos, que Engels escreve  “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, depois que publicou, em 1877 o polêmico “Anti-Dühring”, do qual consta o texto “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico”.


Descontado compreensivelmente o arrefecimento do seu ritmo de trabalho durante seus últimos anos de vida. Marx seguiu trabalhando até a véspera de seu passamento (março de 1883). Além de sua valiosa incursão por novos campos de conhecimentos dedicou um tempo considerável a atender e a conversar com numerosas pessoas que o visitavam, visitas das mais diversas partes do mundo.


Digno ainda de notar durante esse período é seu especial interesse em empreender e interpretar as condições econômico-políticas vigentes na Rússia. Para o que não hesitou em estudar o Russo. Igualmente prova deste interesse é a correspondência mantida, em Francês, com uma figura de referência russa - Vera Zasulitch, sem deixar de lembrar ainda seu empenho em compreender como se dava a formação social de países como a Índia. Isto também representa seu compromisso internacionalista, para além do Ocidente.


Considerações Sinópticas

Uma das motivações fortes que experimentei ao rabiscar estas linhas foi a de estimular os leitores e leitoras a lerem o livro do Professor José Paulo Netto (a quem também sou grato por haver traduzido o livro de Enrique Dussel A produção teórica de Marx: um comentário aos Grundrisse, da Editora Expressão Popular, do qual tive a honra de receber um exemplar autografado quando da sua vinda à UFPB, em João Pessoa, em 2013. Em consequência, a fortiori, também me move o objetivo de incentivar os leitores e leitoras a beberem na fonte.


Enfatizamos a título de arremate a qualidade crítica e estética da bibliografia produzida pelo Prof. José Paulo Netto. lega-nos uma densa contribuição historiográfica de grande alcance para os nossos dias.


Quanto a Karl Marx, mais de duzentos anos após seu nascimento, seu legado segue se mostrando de enorme atualidade para o exitoso tratamento da barbárie capitalista; e, ao mesmo tempo, segue a interpelar a mulheres e homens de hoje, em especial, os jovens, a fazermos nossa parte, nesta gigantesca e processual empreitada de irmos construindo na perspectiva de Ernst Blöch (entre o “já” e o “ainda não”) um novo modo de produção, de consumo e de gestão societal, em harmonia com a Mãe-Terra e os Viventes.



João Pessoa, 05 de novembro de 2022.




*Texto resultante de gravação em áudio, degravado por Heloíse Calado Bandeira, Gabriel Luar Calado Bandeira, e Eliana Alda de Freitas Calado, a qual revisou o texto. Elizabeth de Pontes Santos leu em voz alta, para o autor destas linhas, o livro integral de José Paulo Netto. A todas, meu agradecimento.