FRANCISCO EM BAREIN: artífice da inter-culturalidade
Alder Júlio Ferreira Calado
Em breve, o Papa Francisco estará completando 10 anos de pontificado, o que se dará em 13 de fevereiro de 2023. Enquanto preparo, entusiasmado, algumas linhas para celebrar este acontecimento, focando o que considero os pontos axiais de seu trabalho pastoral-profético, cuido de compartilhar o que retenho de sua mais recente viagem apostólica - a 39º - desta vez visitando o Barein, pequeno país da península arábica, no qual se concentram numerosos migrantes procedentes de vários países, de maioria muçulmana, também comportando considerável percentual de cristãos, especialmente de católicos.
Dos escritos sobre um balanço dos dez anos de pontificado do Papa Francisco, deverão constar palavras-chave do seu universo vocabular, presente em seus escritos, pronunciamentos, entrevistas, etc, tais como: Evangelho, Amor, Reino de Deus, Povo de Deus, Esperança, Testemunho, Fraternidade, Serviço, "Igreja Em Saída", Escuta, Diálogo, Proximidade/Aproximação,Toque, Ecumenismo, Prioridade aos Pobres e necessitados, Alegria, Ternura, Misericórdia, Cuidado, Terra/Criação, Migrações forçadas, diálogo inter-religioso, entre tantos outros. Os próprios exemplos ilustrativos que acabamos de mencionar já são suficientes para configurar um traço fundamental de sua ação pastoral-profética: o de um artífice da interculturalidade.
Em quase dez anos de pontificado, suas viagens apostólicas (uma média de quatro por ano) atestam profusamente o sentido axial de seu programa pastoral profético: o de peregrino da paz, sempre empenhado em testemunhar e anunciar a Boa Nova da Justiça e da Paz para toda a humanidade, para muito além das fronteiras eclesiais, cristãs, ou religiosas. Neste sentido um exame mais detido de suas 39 viagens apostólicas, pelos cinco continentes, - várias das quais já tivemos oportunidade de tomar como alvo de reflexão -, sinaliza abertamente seu empenho em promover, em escala mundial, os valores evangélicos fundamentais de misericórdia, justiça, de paz, de fraternidade, de solidariedade, de partilha, e de serviço à causa libertadora dos pobres e sofredores.
Sem negar semelhantes características a alguns de seus predecessores, dificilmente outros terão tido, durante seu pontificado, um traço tão eloquente quanto Francisco, no que diz respeito ao sentido mais pleno de Catolicidade (do grego “Kata”: em relação a, mais “holos”: todo, universo), traduzindo a destinação universal da mensagem evangélica, dirigida, por tanto, a toda a humanidade. A realização de tal mensagem, com efeito, supõe, entre outras condições, o exercício contínuo da interculturalidade, que brota da convicção da horizontalidade fundamental que deve caracterizar todas as culturas, de modo a combater qualquer veleidade de hegemonia ou supremacia de umas culturas sobre as demais. Neste sentido, um exame detido de sua experiência junto a diversos grupos étnicos diferenciados, convivendo no Barein atesta o compromisso de Francisco, ao longo do seu pontificado, com o lugar que o exercício da interculturalidade ocupa em sua grade de valores.
Particularidades do Barein
Por que a realidade do Barein atraiu a atenção do Bispo de Roma? À parte características políticas - o Barein é uma monarquia constitucional, sendo também a Igreja uma monarquia -, o Barein é um pequeno país, com uma área inferior a 800 km² onde vive uma população em torno de 1,5 milhão de habitantes cerca da metade dos quais composta por imigrantes vindos de diversas partes da Ásia, da África e do Ocidente. Trata-se de uma população caracterizada pela interação de diversas culturas, correspondentes a países como a Índia, o Paquistão, o Egito e outros países africanos, além do segmento europeu.
O Barein situa-se no Golfo Pérsico ladeado de países tais como o Irã, Arábia Saudita, Iraque, Omã, Kuwait e Qatar, constituindo o Bairein um arquipélago composto de 33 ilhotas, das quais apenas 3 habitadas. Eis um um complexo mosaico de culturas convivendo pacificamente inclusive no plano religioso: sendo a religião islâmica predominante, uma parcela de sua população se confessa cristã, razão do convite feito ao Papa pelo rei Hamad bin Isa al-Khalifa.
Em um dos seus discursos iniciais, Papa Francisco enfatizou a presença em pleno deserto, de uma portentosa acácia, da qual se serve o Papa para ressaltar a relevância das raízes do povo do Barein, sua longeva história de pluralismo cultural e de convivência com numerosas gentes. Ao sublinhar a rica história do Barein, o Papa Francisco destaca a importância desta marca como exemplo inspirador para o mundo atual, profundamente conflagrado por interesses geopolíticos geradores de Guerra, de divisionismo, de fortes ameaças à humanidade.
Francisco cuida de chamar a atenção para a importância do diálogo como critério de convivência justa e pacífica, como via de promoção da interculturalidade.
Cultura do cuidado, fraternidade, sabedoria nas escolhas
Dentre os diferentes encontros que o Papa teve, durante esses dias de visita ao Barein, tratamos de salientar pelo menos dois destes encontros. Um deles, voltado mais diretamente aos jovens. Nesta ocasião, após ouvir atentamente vários pronunciamentos feitos por jovens representantes de vários setores daquela sociedade, especialmente em instâncias cristãs, momentos intercalados com belas apresentações artístico-culturais, o Bispo de Roma, em resposta ao sentira e ouvira limitou-se a fazer 3 convites aos jovens, refletindo sobre cada um deles.
O primeiro convite, disse o Papa, tem a ver com a “cultura do cuidado” . Em um mundo tantas vezes seduzido pelo consumismo e pelo egoísmo e insensibilidade frente aos outros e ao Planeta urge a cultura do cuidado. Cuidar significa promover a vida especialmente lá onde ela se acha ameaçada: em grandes parcelas da humanidade sofrendo a fome e o desamparo, enquanto enormes recursos financeiros são gastos na produção de armas; em um Planeta constantemente atacado, em seus mares e oceanos, em seus rios, em seu solo e subsolo, urge que se assuma a cultura do cuidado.
Semear a fraternidade se apresenta como um compromisso de continuidade do convite anterior. Semear a fraternidade significa exercitar relações de igualdade e de respeito com todos os povos do mundo, superando os vícios da supremacia cultural de um povo sobre os demais; significa denunciar as profundas desigualdades que separam os seres humanos, em função da inaceitável concentração de riqueza e de bens por uns poucos, à custa da fome, da miséria de centena de milhões de seres humanos.
O Papa Francisco, ao expressar seu último convite, convoca os jovens a aprenderem dia por dia, a exercitar o discernimento na tomada de decisões, de modo a fazerem uma leitura crítica do mundo em que vivem, a partir mesmo das escolhas que tomam em relação ao seu cotidiano, instando-os, ao mesmo tempo, à aventura de transformarem o mundo, com base na verdade, na justiça e na paz.
Alegria, Unidade e Profecia.
Ao acompanharmos os pronunciamentos escutados e feitos pelo Papa Francisco, durante seus quatro dias de peregrinação pela paz no Mundo, impacta-nos constatar a postura pastoral-profética testemunhada pelo Bispo de Roma, ante seus interlocutores e ouvintes, reunidos neste fórum de diálogo inter-religioso, marcada também pelo tom didático, a exemplo do que desenvolveu seus pronunciamentos distribuídos, quase todos, em 3 partes, como se percebeu em seu Encontro com Jovens, no qual lhe fez 3 convites: assumir a cultura do cuidado, semear a fraternidade e exercitar o discernimento nas escolhas, bem como em seu discurso de despedida, que também resumiu em 3 propostas de reflexão: alegria, unidade e profecia.
Não foi a primeira, nem será a última vez em que o Papa Francisco acentua a Alegria como uma das características essenciais dos discípulos e discípulas de Jesus. Alegria vivida, primeiramente, como um dom recebido do Deus da vida, e, ao mesmo tempo, como uma motivação fundamental da ação cristã, no mundo: alegria de fazer o bem, alegria em servir principalmente os mais necessitados, alegria na partilha dos bens materiais e espirituais, que não se confunde com a busca do ter, do poder, do prestígio, do consumismo..
É esta mesma alegria que anima os seres humanos, independentemente de sua religião e de sua cultura, a semearem a fraternidade entre os povos, combatendo toda expressão de privilégio de supremacia, de hegemonia, de uma Cultura sob as demais. Fraternidade que se põe em prática, por meio da interculturalidade, do diálogo entre as culturas e os povos, que se revela na busca de um mundo em que todos caibam, com respeito e dignidade, na convivência amorosa com a Mãe-Natureza.
A Profecia constitui um outro traço dos que se põe a construir um novo mundo possível e necessário a partir tanto da denúncia das injustiças clamorosas e das desigualdades inaceitáveis, impostas pelo modo de produção capitalista, bem como pelo anúncio de uma nova ordem social, fundada na Verdade, na Justiça e na Paz.
João Pessoa, 10 de novembro de 2022.
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