terça-feira, 25 de julho de 2023

TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA: Em busca de nossas raízes (VI)

TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA: Em busca de nossas raízes (VI)


Alder Júlio Ferreira Calado


TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA: Em busca de nossas raízes (VI)


Alder Júlio Ferreira Calado


Do multifacetado terreno cultural africano, focalizamos, desta feita, alguns aspectos do seu universo literário, buscando compreender as condições da produção literária e dos seus artesãos e artesãs da pena. Estamos interessados em conhecer como, em terras africanas, se exercita a arte de escrever. Que áreas de conhecimento são mais trabalhadas na produção literária? Que gêneros literários predominam? Que temas são abordados? Quais as inquietações e os valores dominantes? Do vasto leque de seus representantes - mulheres e homens - quais os que hoje e aqui destacamos?

Nunca é demais insistir, junto aos leitores e leitoras, sobre os riscos de se pretender uma panorâmica satisfatória da produção literária nesse gigantesco e multissecular continente. Contentemo-nos com aflorar alguns elementos.

O que se segue corresponde, por conseguinte, apenas a um primeiro esforço de perfilar algumas das figuras africanas que se têm destacado como produtoras literárias (de romances, de contos, de novelas, etc), com o intuito de estimular a leitura desses autores e autoras, conforme as preferências do leitor, da leitora.

Comecemos por apontar uma inquietação. Em nossa breve incursão, um primeiro cuidado a tomar, diz respeito a superar a tendência a uma folclorização da Literatura produzida por escritores e escritoras da África. Ávidos de conhecimentos e detalhes sobre o assunto, poderíamos sucumbir a uma leitura reducionista da produção artístico-literária dos autores e autoras africanos, de tal sorte a pretender que tal produção se restrinja tão-somente ao universo africano. Há, sim, como em qualquer parte do mundo, contos, romances, novelas, a focalizar gentes e coisas específicas dÁfrica. Assim como há, também, temas literários abordando desafios da condição humana, dentro ou fora do continente africano.

Cometeremos uma leitura reducionista e preconceituosa caso esquecessemos desse “detalhe”... Dificilmente isto sucederia em relação à leitura que fazemos de ocidentais, cujos escritos, não raro, incorporamos como “universais”. Às vezes, com razão, mas nem sempre…

Que não poucos dentre europeus e norte-americanos atribuam caráter de universalidade à sua produção, até podemos entender. O problema é que, com espantosa frequência, são leitores e leitoras dos países periféricos que também introjetam, de modo acrítico, essa chave de leitura. Isso ocorre, aliás, não apenas no campo literário. No plano filosófico e científico, não se passa diferentemente, haja vista a hipertrofia de citações bibliográficas de autores europeus e norte-americanos, em relação não apenas a autores e autoras africanos, asiáticos, da Oceania, mas também em relação aos nossos próprios escritores latino-americanos e brasileiras. Do Nordeste, então, nem se fala…

Como em outras partes do mundo, os temas trabalhados na produção literária africana são de uma enorme variedade. Os autores africano da velha geração se firmaram em cima de temas tais como valorização da imagem dos Negros, recuperação da memória africana, o colonialismo e o processo de descolonização, o exílio, a migração….

Quanto aos da nova geração, referem-se a fatos, acontecimentos e situações do cotidiano, envolvendo relações ecológicas, afetivas, etárias, políticas, de gênero, de etnia, etc, etc.

Diversos igualmente são os gêneros artístico-literários praticados: contos, romances, peças teatrais, autobiografias, poesias…

Que nomes poderíamos destacar, sem a mínima promessa de cobrirmos um leque satisfatório de autores e autoras, mesmo como “amostragem”? Vejamos alguns, começando pelos escritores da velha geração, entre os quais cumpre lembrar Léon Gontran Damas, Aimé Césaire, Lépold Sedar Senhor, Birago Diop, Chinua Achebe, Camara Laye, Tchicaya U Tam’Si, ou Mongo Beti.

Dentre os escritores atuais, destacamos aqui:

Boniface Mongo-Mboussa (Congo), Jamal Mahjoub (Sudão), Kossi Efoui e Sami Tchak (Togo), Aminata Sow Fall, Boubacar Boris Diop e Ken Bugul (Senegal), Joseph Ki-Zarbo (Burkina-Faso), Odile Biyidi (Camarões), Tanella Boni (Costa do Marfim), Michêele Rakotoson (Madagascar), Nimrod (Tchad), Abdourahman Waberl (Djibouti), Virginie Mouanda Kibinde (Cabinda), Chenjerai Hove (Zimbabwe).

Como sugestões de leitura de obras de autoras africanas, a julgar pela síntese feita das mesmas no site www.arts.uwa.edu.au/AFLIT/FEMEChome.html (“Femmes écriveines”), vão os seguintes títulos: Henritee Dakota. Une esclave modern. Paris: Michel Lafon, 2000 (Autobiografia de uma jovem do Togo que, anganada por promessas sedutoras, vai viver em Paris, e cai vítima de cuel exploração; sem dinheiro, sem documento, jogada no olho da rua…); Regina Yaou. La revolte d’Affiba. Abidjan: Les Nouvelles Éditions Adricaines, 1985 (Romance);Angèle Ntyugwetondo Rawiri. Fureurs et cri de femmes. Paris: L’Harmattan, 1989; e Aoua Keita. Femme d’Afrique, Lavie de d’Aoua Keita racontée par elle-même. Paris: Présence Africaine, 1975.


Março de 2005


quarta-feira, 19 de julho de 2023

José Comblin como Educador Popular: notas em torno da II Jornada Comunitária da XIII Semana Teológica Pe.José Comblin,realizada no CEDHOR,em Santa Rita-PB.

José Comblin como Educador Popular: notas em torno da II Jornada Comunitária da XIII Semana Teológica Pe.José Comblin,realizada no CEDHOR,em Santa Rita-PB.


Neste sábado, dia 15/07, foi vivenciada a Segunda Jornada Comunitária da XIII STPJC. Com a fraterna acolhida da Comunidade Comboniana, mantenedora do Centro de Direitos Humanos Oscar Romero, bem como de vários projetos em defesa dos direitos dos pobres daquela comunidade, e com a participação de membros dos grupos organizadores da XIII STPJC.


Calorosamente acolhidas por Gabriela Brito, Coordenadora do CEDHOR, foram chegando diversas pessoas da comunidade local e de outros lugares:de Café do Vento (Pe.Hermínio Canova), Elenilson, ambos integrantes do grupo José Comblin, de João Pessoa:Tania,da CPT, Elinaide,do Coletivo Femenista; Irmã Rita,da Comunidade Comboniana; Odete, Fátima, Fábio, Lia, Elson da Comunidade local; Pe.Wanderlan (vigário paroquial da Conceição, em João Pessoa), Flávio , Marcelo, integrantes do CECAHE; Salene, Eraldo, Alder, membros do Kairós, além da presença de Vera Lucia.


De início,tivemos o acolhimento feito por Gabriela que, após dar as boas vindas aos participantes e desejando bom êxito nos trabalhos, cuidou de explicar a ação missionária dos Combonianos, em Santa Rita, em especial descrevem os principais projetos em curso, inclusive o CEDHOR .


Pe.Hermínio cuidou de contextualizar os trabalhos da XIII da STJPC, focando suas palavras  especialmente no tema geral da XIII STPJC - sublinhando o objetivo de homenagear José Comblin, profeta da liberdade em seu centenário. Coube,em seguida, a Elinaide,fazer uma apresentação de Alder Júlio, como convidado a provocar uma reflexão para o diálogo entre os presentes  sobre a dimensão de educador popular presente em todo o legado de Comblin.


Por sua vez, Alder destacou o sentido de sua fala como uma provocação aos presentes,acerca da Pedagogia combliniana, ao mesmo tempo em que advertiu sobre o caráter compósito do legado de José Comblin, que articula bem sua condição de Teólogo a outras tantas dimensões: a de profeta, a de missionário itinerante, a de historiador, a de antropólogo, a de sociólogo a de Educador.


Chamado a fazer uma exposição sobre o tema da segunda jornada

comunitária, Alder Júlio iniciou fazendo algumas observações antes da

abordagem do tema. Mostrou-se sensibilizado por estar de volta àquele espaço

do Centro dos Direitos Humanos Dom Oscar Romero, rememorando-o dia de

sua inauguração, há 20 anos. Neste dia, conduzida pelo Pe.Severino, com a participação do Pe.Vicente e de diversos grupos e lideranças comunitárias, seguiu-se  uma procissão  até a  sede  do CEDHOR, que também eu tive a alegria de acompanhar.


Desde então, seja pela coordenação do Padre Severino, seja pela coordenação de irmão Chico, e de outras pessoas, o CEDHOR segue desenvolvendo projetos comunitários em defesa dos direitos das crianças e adolescentes (projeto Legal), de defesa das mulheres vítimas de violência,ou ainda pela-atuação e atendimento jurídico à Comunidade.


Alder desenvolveu em três momentos sua fala. Começou por refletir o sentido da educação popular trabalhado por José Comblin. Trata-se do processo formativo, continuado e protagonizado por educadores e educandos, tendo como objetivo a leitura crítica da realidade e sua transformação. Sua concepção de educação se mostra próxima a de Paulo Freire.


Não por acaso, em meados dos anos 1980, José Comblin convida

Paulo Freire a dialogar com Jovens do Centro de Formação Missionária, em

Serra Redonda – PB, durante vários dias. Educação Popular, na perspectiva de José Comblin, consiste em fomentar de modo contínuo, um processo formativo baseado no compromisso de

educadores e-educandos, buscando aprimorar sua consciência crítico –

transformadora de realidades e das relações sociais e pessoais, a partir de uma busca de desenvolver de forma coerente 5

dimensões fundamentais do processo de humanização: a dimensão afetiva

(sentir), a dimensão cognitiva (pensar), a dimensão volitiva (querer), a

dimensão práxica (agir), a dimensão comunicativa,como também trabalha o Educador Ivandro da Costa Sales . 


Buscando contrapor-se a uma tendência esquizofrênica pessoal, social, observável sobretudo na

sociedade capitalista,e demais sociedades de classes, por meio de distintos

aparelhos ideológicos, uma tendência a dicotomizar essas dimensões, de

modo a levar as pessoas a sentirem uma coisa, a pensarem uma segunda, a

quererem uma terceira, a fazerem uma quarta, e  falarem uma quinta coisa.


Aí começa também a dimensão metodológica da pedagogia Combliniana: Trata-

se de tornar comunidades e pessoas, que busquem coerência de vida, tendo

como horizonte o Seguimento de Jesus, que se realiza tanto no plano

comunitário como no plano pessoal. Um exemplo ilustrativo dessa perspectiva metodológica podemos observar na formação que Comblin inspirou para o “Curso da Árvore”,

uma proposta formativa vivenciada em meados dos anos 1990, tanto nas

periferias urbanas (Santa Rita, Bayeux, João Pessoa), como junto às

comunidades rurais (Serra redonda,Mogeiro, entre outras), inclusive em

Campina Grande, essa experiência formativa se desenvolveu bastante.

 

O Primeiro ano deste curso (de duração de 5 anos), era chamado de curso básico.

Vale a pena destacar seus pontos principais. Tinha a duração de um ano, era

oferecido à jovens do meio popular do campo e da cidade, durante um ano em

um final de semana por mês. Os jovens chegavam na sexta feira e o curso

prosseguia até o domingo. Seguia-se uma proposta bem entrosada, tanto do

ponto de vista dos conteúdos propostos, quanto do ponto de vista

metodológico. Eram oferecidos, ao longo do ano, sete temas para estudos:

Igreja – comunidade, o mundo dos pobres, vocação, missão, oração,

ministérios, povo de Deus,cada um trabalhado em um final de semana por

mês, tendo a animação de um educador ou educadora que não agia como

“professor”, mas como animador, sempre insistindo no protagonismo de

todos.


 Outra novidade significativa deste curso residia no método de trabalho.

O objetivo era o de articular dinamicamente conteúdos e metodologia, razão

por que, em cada final de semana, para o desenvolvimento de cada tema, eram

vivenciados oito passos: Oração inicial, motivação, troca de-experiência, caixa

de retratos, vida de um santo, documento da igreja, nossa-ação, celebração

final. Importa rememorar que cada um destes passos, tinha como objetivo enfatizar

o tema especifico de cada mês: Por exemplo, no tema comunidade, buscava-

se, desde a motivação, rememorar a importância da comunidade no

seguimento de Jesus, seja do ponto de vista bíblico, seja do ponto de vista da

vida de um santo ou santa, seja ainda do ponto de vista de algum documento

importante da igreja, naquela conjuntura.

O terceiro tópico desenvolvido por Alder tratou de ilustrar os frutos dessa

experiência, a grande maioria das quais persiste nos dias de hoje. Cuidou,

então,de rememorar as experiências: Seminários Rural (no Avarzeado em Pilões 

– PB), que funcionou de 1981 a 1982, tendo sido fechado por Roma, no início

do papado de João Paulo II.


O centro de formação missionária, em Serra Redonda deu sequência, e com ganhos  significativos, em relação à experiência anterior,

na medida em que o CFM abriu suas portas a jovens de todo o Nordeste,

oferecendo-lhes a oportunidade e as condições de terem uma formação

missionária comprometida com a vida dos camponeses. Pouco depois, graças às demandas, foi fundada também a versão feminina do centro de formação

missionária, desta vez em Mogeiro-PB, em 1987.


Outra experiência relevante, inspirada na pedagogia combliniana, foi a da formação da associação dos missionários e missionárias do campo (AMC), que ainda hoje continua realizando suas assembleias anuais de avaliação e planejamento. Além da AMC, cumpre destacar a AMINE (associação dos missionários e missionárias do Nordeste), que atua principalmente nas periferias urbanas do Nordeste. A Pedagogia combliniana se mostra aberta ao Sopro do espírito, de modo a atender as aspirações mais diversas, inclusive a vocação contemplativa sentida pelos jovens, razão pela qual, em meados dos anos 1990, também se cria a fraternidade do Discípulo Amado, reunindo jovens e adultos (homens e mulheres, construindo um mosteiro de leigos e leigas) chamados a uma vida contemplativa, em uma experiência vivenciada no Sítio Catita, no município de Colônia Leopoldina em Alagoas.


O curso da árvore, como acima lembrado, constituiu mais uma iniciativa pedagógica inspirada por Comblin. Ainda em meados dos anos 1980, por iniciativa de algumas lideranças jovens, a exemplo de Artur Peregrino, foi criado-o movimento de peregrinos e Peregrinas do Nordeste, realizando peregrinações anuais com algumas dezenas de participantes, por diversas regiões do Nordeste, dando sequência-a uma tradição de peregrinos da região, como é o caso de jovens como Valdo e José, membros da fraternidade do Discípulo amado. 

Uma das mais fecundas dessas experiências pedagógicas também inspirada em José Comblin, se faz presente ainda hoje, nas Escolas de Formação Missionária, a primeira das quais foi fundada em Juazeiro – BA em 1989, sendo seguida, nos anos posteriores, pelas escolas de Formação Missionária em Santa Fé (Solânea – PB), em Esperantina – PI, em Floresta – PE, em Barra – BA e em São Felix do Araguaia – MT. 

Em 1998, hoje completando 25 anos, foi-iniciadoo grupo Kairós: Nós Também Somos Igreja, nascido no contexto de reuniões mensais, na residência do Padre José Comblin, com o objetivo de refletir sobre a conjuntura sócio eclesial. Mais recentemente, graças a iniciativa do Padre Hermínio Canova e outros, vem atuando o grupo José Comblin, com sede no Centro de Formação José Comblin, em Café do Vento, município de Sobrado – PB. 

Em sequência à exposição de Alder, abriram-se, sob a coordenação de Elinaide, algumas rodadas de intervenções. A primeira teve como foco a questão sobre a posição de Comblin em relação às mulheres. Concluiu-se que embora o tema feminismo não fosse abordado na obra de Comblin, todos reconhecem sua sensibilidade refinada as lutas das mulheres, de ontem e de hoje, haja vista, por exemplo, o espaço que ele concebe as mulheres do Medievo, (as místicas e sábias da Idade Média), em seu livro “Vocação para a liberdade” (Paulus, 1998), bem como suas profética carta aberta em defesa da presidente Dilma, quando alvo de críticas pela direita eclesiástica, acusando-a de defensora do aborto. 

Seguiram-se outras rodadas de questões: alguns enaltecendo a espiritualidade de José Comblin, inclusive observável em seu prefácio ao livro “Oração do Peregrino Russo”, tema de leitura semanal na livraria Paulus, por algumas das pessoas presentes. Outros sublinharam alguns elementos da pedagogia de José Comblin, a exemplo da ênfase que dava à presencialidade no processo formativo. Outros, por sua vez, destacaram a preocupação constante do educador José Comblin com o compromisso pela transformação social, em busca da construção processual de uma nova sociedade. 

Já por volta do meio-dia, encerrando os trabalhos, coube ao Padre Hermínio, propor um momento de oração final, após o que todos foram convidados a compartilhar uma merenda suculenta, na sala vizinha ao auditório. 


Grupos organizadores da XIII Semana Teológica Pe. José Comblin: Kairós, Grupo José Comblin, CPT, Coletivo Feminista, CECAHE, CEDHOR

João Pessoa, 19 de julho de 2023


 


quarta-feira, 12 de julho de 2023

TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA: Em busca de nossas raízes (V)

 TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA: Em busca de nossas raízes (V)


Alder Júlio Ferreira Calado


Dotadas, além de enorme beleza espiritual, cultural, também de tantas riquezas naturais, a terra e as Gentes d’África têm sido alvo e vítimas seculares de incessante cobiça por parte dos Ocidentais, sobretudo das principais potências europeias e Estados Unidos. A sede expansionista de ingleses, franceses, portugueses, holandeses, belgas, italianos, espanhóis, estadunidenses… parece não conhecer limites.


Primeiro, invadem-lhes as terras, sob o curioso pretexto de “descobri-las” e de “cristianizá-las”... De suas terras arrancam o que têm de melhor, a começar de sua Gente. Quantos milhões de africanos foram, durante séculos, arrancados à força, para serem convertidos em máquinas de fazer riquezas para os Ocidentais? A escravidão - que ainda está longe de acabar! - constituiu um negócio fortemente lucrativo para as ex(?)-metrópoles.


O regime de escravidão não se restringiu a escravizar pessoas africanas, apanhadas feito bicho, torturadas e embarcadas nos fétidos “Negreiros”, como mera carga de peças lucrativas. Sucedendo ou associando-se ao tráfico de Africanos e Africanas escravizados no “Novo” Mundo, os Ocidentais passaram a apropriar-se diretamente das terras e das demais riquezas da África, continuando a dizimar, sob múltiplas formas, suas populações e a devastar suas riquezas materiais.


Tantas vezes invadidas pelos ocidentais, não raro em nome do Cristianismo, desde o começo da Modernidade, sempre a serviço dos projetos colonialista e capitalista (hoje sob a roupagem dita neo-liberal), eis que no final do século XIX, os avanços da Geografia prestaram relevantes serviços aos invasores. O formato do mapa da África, elaborado pelos Ocidentais, não deixa de ser emblemático: respeita mais a Geometria do que os próprios acidentes geográficos.


A Geografia e outras ciências e invenções tecnológicas foram — e continuam sendo! — empregadas como instrumento de otimização do saque ocidental às terras e às Gentes d'África.


À semelhança do que, antes, fizeram — e continuam a fazer, com a cumplicidade dos respectivos governantes, inclusive dos nossos! -, em relação às terras e às Gentes pré-

colombianas (Que tal refrescar-nos a memória com o livro de Eduardo Galeano, As Veias Abertas da América Latina?), sua ambição desmedida e cada vez mais requintada se estende, voraz, ao continente africano. Em sua versão atual, os capitalistas (as transnacionais, o G-7, os organismos multilaterais, com a cumplicidade de quase todos os governos dos países periféricos) cometem o desplante de tentar mascarar esse massacre, por meio de requintes de retórica, tais como “democracia, “desenvolvimento”/”países em vias de desenvolvimento”, “ajuda ao desenvolvimento” e similares…


Na prática, porém, o que têm feito? Basta conferir alguns resultados básicos do

desempenho desses países. A ofensiva dos Ocidentais em terras africanas, com a grave cumplicidade dos governantes locais, tem resultado, a despeito da valentia dos que resistem bravamente ao avanço da barbárie, numa explosão de guerras, de massacres, de golpes de Estado e de ditaduras, incessantes e crescentes crises, aumento de doenças graves (quantos milhões de Africanos vêm sendo dizimados pela AIDS?).


Diante desse quadro dantesco, o quê fazem os senhores das ex(?)-metrópoles, através dos seus organismos multilaterais, a exemplo do FMI e do Banco Mundial? Para responder a essa indagação, vou citar uma pessoa insuspeita, Joseph Stiglitz, ex-vice presidente do Banco Mundial: “Aumentou o abismo entre pobres e ricos, aumentou o número de pessoas vivendo na pobreza absoluta com menos de um euro por dia. Se um país não atende a certos critérios mínimos, o FMI suspende sua ajuda, e, quando o faz, é costume que outros doadores o imitem.  Esta lógica do FMI apresenta um problema evidente: implica que, caso um país consiga ajuda para qualquer realização, um país africano não poderá nunca investir esse dinheiro. Se a Suécia, por exemplo, outorgar uma ajuda financeira à Etiópia para construir escolas, a lógica do FMI impõe ao governo desse país conservar esse fundo como reserva, sob o pretexto de que a construção dessas escolas vai acarretar despesas de funcionamento (salários, manutenção de equipamentos) não previstas no orçamento, e vai provocar desequilíbrios nocivos ao país.” (Citação extraída de Ignácio Ramonet. “Un continent em mutation”, Le Monde diplomatique, Février 2005 (http//:www.mondediplomatique.fr). Como se fosse possível o diálogo entre pescoço e guilhotina…


Fevereiro de 2005.



sexta-feira, 7 de julho de 2023

CONECTANDO FATOS DE UMA REALIDADE EM MOVIMENTO

 CONECTANDO FATOS DE UMA REALIDADE EM MOVIMENTO 


ALDER JÚLIO FERREIRA CALADO 


Na concepção Marx-Freireana de Educação Popular, o processo formativo da Classe Trabalhadora - mulheres e homens do campo e da cidade que vivem do seu trabalho -, e por ela protagonizado, tem que se dar de modo continuado, antes, durante e depois da educação escolar. São os próprios trabalhadores e trabalhadoras organizados em seus respectivos Movimentos Sociais (Movimentos Populares, lutas sindicais, partidárias, eclesiais e outras organizações de base de nossa sociedade) que são os protagonistas deste processo formativo, com os  quais sigo compartilhando, como alvo prioritário, meus textos.


O processo formativo continuado se dá de forma articulada ao processo organizativo e ao compromisso de lutas pela transformação do modo capitalista de produção e de  organização social, econômica, política e cultural. É, portanto, por meio deste processo formativo, de organização e de luta, que os trabalhadores e trabalhadoras vão se capacitando para fazerem uma leitura crítica de mundo, da realidade em movimento, o que requer que também elas e eles se ponham em movimento, sem o que não tem condições de perceber e superar os mecanismo de exploração, de dominação e de marginalização aos quais a classe dominante os  submete, graças aos seus aparelhos ideológicos (a família, as Igrejas, a própria escola, os meios de comunicação de massa, inclusive as redes sociais) sob o seu controle. 


Somente pondo-se em movimento é que as classes populares conseguem perceber as graves e crescentes contradições pelas quais operam o sistema, de modo a formar um espesso véu a encobrir uma variada gama de truques e táticas de exploração que as transnacionais, as grandes empresas capitalistas, operando nas mais distintas esferas da realidade,com a colaboração do Estado,  aufere lucros exorbitantes, multiplicando assim seu poder,seu patrimônios  suas riquezas à custa do suor, das lágrimas e do sangue dos verdadeiros produtores dessas riquezas - os trabalhadores e trabalhadoras.


Nas linhas que seguem, trataremos de apontar alguns fatos mais relevantes dos últimos dias que, não raramente, aparecem desligados, ou isolados. Trata-se de um procedimento usual a que recorre a mídia corporativa, buscando impedir que os trabalhadores e trabalhadoras percebam o nexo orgânico que os liga. Trazemos a seguir, alguns desses fatos, para em seguida, apontar os laços que os unem.


Entrevista concedida por Lula à rádio gaúcha no dia 29/06/2023, que se pode conferir no link https://www.youtube.com/watch?v=cB6BtQHC0FQ. Nela, o presidente é perguntado sobre como avalia a situação política da Venezuela, ao que o presidente lembra o caráter relativo da democracia, resposta que passa a ser veiculada como um grave equívoco do presidente.


Discurso do presidente Lula, na abertura do Foro de São Paulo no dia 30/06/2023, a conferir no link https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-pronunciamentos/2023/discurso-do-presidente-luiz-inacio-lula-da-silva-na-abertura-da-reuniao-do-foro-de-sao-paulo - O Foro de São Paulo foi criado em 1990, por iniciativa de Lula e de outras lideranças latino americanas, com o objetivo de reunir as principais forças de esquerda latino-americanas, em busca de construir uma unidade no enfrentamento democrático dos principais desafios de nossa america latina e do Caribe. Desde então, a Direita e a ultra Direita não cessam de acusar tal iniciativa como ameaçadora da democracia.


Diversos sinais macroeconômicos bem sucedidos, logrados pelo governo Lula, em seus primeiros seis meses: redução da inflação, alta da bolsa de valores, queda do dólar, redução do desemprego, superávit na balança comercial, promissor encaminhamento de votação pelo Congresso de relevantes pautas econômicas, entre outras.


Cuidamos agora de oferecer uma leitura crítica, a partir dos interesses dos “de baixo” destes fatos acima enunciados, empenhando-nos na costura dos mesmos.


Uma das armas ideológicas de toda classe dominante do mundo - no Brasil não é diferente -  se faz presente pela astúcia de descontextualizar as práticas e discursos do adversário. Trata-se, por exemplo, de pinçar uma frase da fala do adversário, que quase nunca traduz a ideia principal do próprio discurso, atribuindo-lhe a marca principal de sua fala. Eis o que, pela enésima vez, sucedeu recentemente, em relação à fala de Lula, em entrevista à Rádio Gaúcha, no dia 29 próximo findo.


Ao responder a uma pergunta sobre a democracia na Venezuela, Lula afirmou que é relativo o conceito de democracia, após tecer considerações a respeito do jogo democrático, ao qual deve sua vitória como presidente do Brasil pela 3ª vez. 


Constitui um exercício crítico de análise de nossa atual realidade brasileira, latino americana, mundial. O que incomoda tantos setores dominantes do Brasil é a capacidade do Presidente do Brasil, de apontar fatos e acontecimentos que se acham na raiz dos grandes problemas enfrentados pelos trabalhadores e trabalhadoras do Brasil e do mundo: as profundas desigualdades sociais, econômicas, políticas, culturais que prevalecem em nossa sociedade.


Desigualdade de gênero,desigualdades étnicas, desigualdades regionais, desigualdades de oportunidade por trás das quais está uma infame minoria de grupos que não cessam acumular riquezas, terras e rendas à custa da fome, do desemprego, da falta de moradia, de saúde, educação para a imensa maioria da população.

O que também incomoda a classe dominante brasileira é a extraordinária capacidade do Presidente Lula e seu governo, de, a despeito de todas as adversidades herdadas do desgoverno bolsonaro, conseguir avanços significativos, em apenas seis meses. Com efeito, mesmo tendo que governar com uma Frente Ampla bastante heterogênea, eis que já acumula ganhos relativos.


Outro exemplo ilustrativo deste quadro pode ser observado na recente aprovação, na Câmara, da Reforma Tributária, por ampla margem de votos. Também aí, destaca-se o alto desempenho do Lula, em sua capacidade de diálogo com o campo adversário, com exceção do bloco bolsonarista, o qual ontem amargou fragorosa derrota, inclusive ao interno do próprio bloco, com o distanciamento  do Governador de São Paulo Tarcisio de Freitas. Do ponto de vista da Classe Trabalhadora, houve algum ganho, principalmente na votação de tributação zero sobre a cesta básica, ainda que o grande objetivo da Reforma Tributária recaia sobre a questão específica da reforma do Imposto de renda e da taxação do patrimônio, das riquezas e da renda dos setores dominantes, algo que ainda não foi feito.               


Por outro lado, é fundamental que os trabalhadores e trabalhadoras, enquanto classe, tenham consciência dos limites impostos pelo estado capitalista e seus mantenedores. Por mais que reconheçamos alguns ganhos eventualmente conquistados no Governo Lula, bem sabemos que isto está bem longe de nossas aspirações mais profundas: a construção de uma nova sociedade economicamente justa, politicamente participativa e culturalmente diversa, o que é impossível conseguir na ordem capitalista.


Para tanto, cabe aos ”de baixo” seguirem lutando pelas atuais conquistas governamentais, priorizarem sua organização de base, zelando pelo seu processo organizativos autônomo, pelo seu compromisso de formação continuada e de sua incessante mobilização, enquanto classe trabalhadora.


João pessoa 07 de julho de 2023        

   

  




segunda-feira, 3 de julho de 2023

TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA: Em busca de nossas raízes (IV)

 TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA: Em busca de nossas raízes (IV)


Seguimos em busca de elementos identitários de nossa Brasil-Africanidade. Em artigos precedentes, estivemos percorrendo diferentes trilhas nessa busca, instigados por questões do tipo: Que terra é esta? Quais as principais marcas de sua geografia e de sua Gente? (I). Qua traços relevantes de sua história merecem ser aqui sublinhados? Onde e como vive sua população? (II). Como entender sua vasta diversidade cultural (étnica, linguistica, religiosa) (III)? Nem é preciso dizer que mal conseguimos aflorar aspectos superficiais dessas questões. Vamos ter que voltar muitas vezes e apreciá-las, inclusive sob outros ângulos.


Essas e tantas outras: Como se processou a tragédia da colonização, inclusive nos dias de hoje? Que valores foram por nós historicamente incorporados, e que têm a ver com nossa herança da Mãe-África? Como se situa, hoje, a África no cenário internacional, nesses tempos de globalização? O que pensam as principais lideranças africanas? Como andam nossas relações com os diferentes países africanos? Nossas curiosidades parecem não ter fim. Mas, vamos fazendo o que nos está ao alcance, claro.


Tomemos como alvo, por exemplo, a questão dos valores herdados. Primeiro o tipo de relação tecida com a Mãe-Natureza. O sentimento que se experimenta é de profunda comunhão, é de amorosa pertença. Nós somos parte da Mãe-Natureza. Dela vimos e a ela retornamos, pela força do Sagrado que também nela e por ela se manifesta. Não apenas em nós humanos. Vale, a esse propósito, observar que também aí nossas raízes africanas estão muito afinadas com as nossas raízes indígenas (Ver o depoimento do Cacique Chicão Xukuru, na Serra do Ororubá (Cimbres/Pesqueira -Pe), um ano antes de seu assassinato), no qual destacava bem essa amorosidade, essa relação de gratuidade com a Mãe-Natureza.


Relação que se manifesta de múltiplas formas. Numa situação de escassez de água ou de alimentos, não surpreende que os humanos, a despeito de sua sede ou de sua fome, se contentem com o absolutamente necessário à sobrevivência, assegurando aos demais animais a sua porção, sem precisar tomar tal atitude como virtude, mas como um dever alegremente cumprido. Uma relação de dominação não permitiria tal atitude. Nada na Natureza tem sentido ser tomado como objeto de propriedade ou de comércio. Observa-se o uso comum do que vem da Mãe-Natureza. Tudo é de todos. Todos se alimentam em condições de igualdade. Não faz sentido uns comerem e outros passarem fome. Ninguém pode ficar de fora. Nem os animais. 


Não é o mesmo sob a ótica ocidental, já que, neste caso, alguns poucos humanos se arrogam o privilégio de “dominadores” e “proprietários” da Natureza, achando-se no direito de dela usar e abusar, não importando o que suceda à maioria de seus semelhantes, menos ainda aos animais, aos vegetais, ao solo, ao subsolo, ao mar… Provas disso é que não nos faltam…


Outro traço identitário de nossa Africanidade tem a ver com o lugar privilegiado que ocupa o coletivo sobre o individual, sem prejuízo deste. Aqui família é tomada, antes de tudo, como o conjunto da comunidade tribal. Toda a comunidade se sente como pai e mãe do conjunto das crianças. Estas - diferentemente de nossa herança ocidental, centrada nos laços de sangue - não se sentem abandonadas, nem mesmo quando os pais partem. Há um forte senso de corresponsabilidade na repartição das tarefas do dia-a-dia, seja nas atividades de coleta e da produção do sustento, seja nos cuidados dos diferentes tipos de trabalho e de convivência, seja nos momentos de resistência aos ataques inimigos, seja em tempos de festa e celebração, seja nas relações com o Sagrado.


Enquanto isso, a tendência historiográfica dominante continua no seu empenho de “folclorizar” nossa herança cultural africana, à medida que se cultivam um olhar limitado e reducionista de práticas culturais afrobrasileiras: a capoeira, a culinária, vocábulos de origem africana, expressões religiosas, trajes… Não há como negar que tudo isso também faça parte  do legado afrobrasileiro. Isso também é motivo de orgulho d@s Afrodescendentes.  O problema reside na forma como tudo isso decodificado, reelaborado e propagado: quase sempre na perspectiva dos grupos dominantes. E esses, enquanto forças dominantes, não têm qualquer interesse em focar esse legado, sob a ótica dos africanos escravizados, de ontem e de hoje.


João Pessoa, janeiro de 2005