segunda-feira, 3 de julho de 2023

TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA: Em busca de nossas raízes (IV)

 TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA: Em busca de nossas raízes (IV)


Seguimos em busca de elementos identitários de nossa Brasil-Africanidade. Em artigos precedentes, estivemos percorrendo diferentes trilhas nessa busca, instigados por questões do tipo: Que terra é esta? Quais as principais marcas de sua geografia e de sua Gente? (I). Qua traços relevantes de sua história merecem ser aqui sublinhados? Onde e como vive sua população? (II). Como entender sua vasta diversidade cultural (étnica, linguistica, religiosa) (III)? Nem é preciso dizer que mal conseguimos aflorar aspectos superficiais dessas questões. Vamos ter que voltar muitas vezes e apreciá-las, inclusive sob outros ângulos.


Essas e tantas outras: Como se processou a tragédia da colonização, inclusive nos dias de hoje? Que valores foram por nós historicamente incorporados, e que têm a ver com nossa herança da Mãe-África? Como se situa, hoje, a África no cenário internacional, nesses tempos de globalização? O que pensam as principais lideranças africanas? Como andam nossas relações com os diferentes países africanos? Nossas curiosidades parecem não ter fim. Mas, vamos fazendo o que nos está ao alcance, claro.


Tomemos como alvo, por exemplo, a questão dos valores herdados. Primeiro o tipo de relação tecida com a Mãe-Natureza. O sentimento que se experimenta é de profunda comunhão, é de amorosa pertença. Nós somos parte da Mãe-Natureza. Dela vimos e a ela retornamos, pela força do Sagrado que também nela e por ela se manifesta. Não apenas em nós humanos. Vale, a esse propósito, observar que também aí nossas raízes africanas estão muito afinadas com as nossas raízes indígenas (Ver o depoimento do Cacique Chicão Xukuru, na Serra do Ororubá (Cimbres/Pesqueira -Pe), um ano antes de seu assassinato), no qual destacava bem essa amorosidade, essa relação de gratuidade com a Mãe-Natureza.


Relação que se manifesta de múltiplas formas. Numa situação de escassez de água ou de alimentos, não surpreende que os humanos, a despeito de sua sede ou de sua fome, se contentem com o absolutamente necessário à sobrevivência, assegurando aos demais animais a sua porção, sem precisar tomar tal atitude como virtude, mas como um dever alegremente cumprido. Uma relação de dominação não permitiria tal atitude. Nada na Natureza tem sentido ser tomado como objeto de propriedade ou de comércio. Observa-se o uso comum do que vem da Mãe-Natureza. Tudo é de todos. Todos se alimentam em condições de igualdade. Não faz sentido uns comerem e outros passarem fome. Ninguém pode ficar de fora. Nem os animais. 


Não é o mesmo sob a ótica ocidental, já que, neste caso, alguns poucos humanos se arrogam o privilégio de “dominadores” e “proprietários” da Natureza, achando-se no direito de dela usar e abusar, não importando o que suceda à maioria de seus semelhantes, menos ainda aos animais, aos vegetais, ao solo, ao subsolo, ao mar… Provas disso é que não nos faltam…


Outro traço identitário de nossa Africanidade tem a ver com o lugar privilegiado que ocupa o coletivo sobre o individual, sem prejuízo deste. Aqui família é tomada, antes de tudo, como o conjunto da comunidade tribal. Toda a comunidade se sente como pai e mãe do conjunto das crianças. Estas - diferentemente de nossa herança ocidental, centrada nos laços de sangue - não se sentem abandonadas, nem mesmo quando os pais partem. Há um forte senso de corresponsabilidade na repartição das tarefas do dia-a-dia, seja nas atividades de coleta e da produção do sustento, seja nos cuidados dos diferentes tipos de trabalho e de convivência, seja nos momentos de resistência aos ataques inimigos, seja em tempos de festa e celebração, seja nas relações com o Sagrado.


Enquanto isso, a tendência historiográfica dominante continua no seu empenho de “folclorizar” nossa herança cultural africana, à medida que se cultivam um olhar limitado e reducionista de práticas culturais afrobrasileiras: a capoeira, a culinária, vocábulos de origem africana, expressões religiosas, trajes… Não há como negar que tudo isso também faça parte  do legado afrobrasileiro. Isso também é motivo de orgulho d@s Afrodescendentes.  O problema reside na forma como tudo isso decodificado, reelaborado e propagado: quase sempre na perspectiva dos grupos dominantes. E esses, enquanto forças dominantes, não têm qualquer interesse em focar esse legado, sob a ótica dos africanos escravizados, de ontem e de hoje.


João Pessoa, janeiro de 2005


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