quarta-feira, 30 de setembro de 2020

FORMAÇÃO POLÍTICA EM PAULO FREIRE: LEITURA/RELEITURA E ESCRITA/REESCRITA DE MUNDO



FORMAÇÃO POLÍTICA EM PAULO FREIRE: LEITURA/RELEITURA E ESCRITA/REESCRITA DE MUNDO


 Alder Júlio Ferreira Calado



Comemorações e homenagens ao Educador Paulo Freire têm tido lugar em diversas partes do Brasil e alhures, antes durante e depois da data celebrativa dos 99 anos do seu natalício, em 19 de setembro. Elas se dão como expressão popular de reconhecimento à importância e vigência do seu legado, razão por que vão continuar acontecendo a título de comemoração do seu Centenário, em 2021. Também em Pernambuco, têm sido organizadas sessões, seminários e outras iniciativas. Estas linhas foram escritas, a título de resumo da exposição feita. Naquela ocasião, o tema proposto foi ”Diálogos com Paulo Freire: formação política”. A partir deste mote, tratamos de desenvolver sucintamente algumas ideias focando a formação política em Paulo Freire, como leitura e reescrita do mundo


Tomamos em consideração, para além da densa produção escrita por este Tecelão da Utopia, outras dimensões de seu percurso existencial, tais como entrevistas, conferências, cartas, pronunciamentos feitos por pessoas de um convívio mais íntimo com este educador, em breve, tomando em consideração seu vasto legado. Neste sentido, partimos de algumas considerações em torno do entendimento por Paulo Freire da categoria “Política”; em seguida, cuidamos de destacar dois aspectos fundantes de sua compreensão da política: leitura e releitura de mundo, bem como a escrita e reescrita do mundo. Por último, houvemos por bem propor, em forma de questões, uma sinopse destas linhas. 


Quanto à compreensão política de Paulo Freire ou por Paulo Freire, sublinhamos seu entendimento de política para além da relação sociedade - estado. Para além significa também passar pelo exame das relações sociedade - estado, não as reduzindo, contudo, a esta dimensão. Tratamos de, sem negar a importância da política enquanto expressão das relações sociedade - estado, sublinhar as relações desta dimensão com outra dimensão não menos importante, especialmente na atual encruzilhada histórica. Compreensão da política como expressão também de uma malha de microrrelações no chão do cotidiano. Microrrelações que atravessam as diferentes dimensões da vida social: do âmbito da família às relações de trabalho; do âmbito econômico à esfera cultural; dos compromissos socioambientais às relações do Sagrado.


Do ponto de vista e dos interesses dos “de baixo”, bem como na perspectiva de formação política segundo o legado de Paulo Freire, como lidar com a leitura do mundo? Vários aspectos, a este respeito, temos a destacar. A leitura de mundo pode ser tomada como uma busca incessante de conhecimento da realidade social, em seus mais diferentes aspectos. Trata-se de uma leitura ou análise da realidade que se funda no incessante exercício da criticidade. Neste sentido, exercitar uma leitura de mundo, do ponto de vista e dos interesses das classes populares, implica, por exemplo, o entendimento de que a realidade social se mostra em um contínuo movimento, e não como em uma simples fotografia. Para melhor compreendê-la, não basta que tenhamos consciência de seu caráter de movimento. também implica que nós, sujeitos cognoscentes, nos ponhamos também em movimento, como uma condição para compreender aspectos desta mesma realidade social, que, de outro modo, se tornariam inacessíveis, inalcançáveis ou insuficientemente apreendidos pelo nosso olhar crítico. Exercitar este olhar crítico resulta, então, em tarefa fundamental a ser cumprida pelos “de baixo”, pelos movimentos sociais populares e uma ampla rede de aliados, correspondentes às organizações de base de nossa sociedade.


Esta tarefa constitui-se em um desafio de monta, à medida que os movimentos e as forças sociais comprometidos com a transformação desta mesma realidade se ponham e se disponham a investigá-la, de modo conectivos e dinâmico, sob os mais variados aspectos por ela manifestos. Tal tarefa requer um verdadeiro protagonismo por parte dos que compõem as classes populares e seus parceiros e aliados, como condição para lidar com as urgentes transformações desta mesma realidade. Implica, entre outras condições subjetivas, o constante despertar e desenvolvimento das potencialidades e perspectivas dos “de baixo”, isto é, uma busca incessante de enxergar coisas que, sem um adequado e contínuo processo de formação da consciência crítica, passariam invisibilizados ou insuficientemente apreciados por parte dos que aceitam o desafio da transformação desta realidade. Implica um contínuo aprimoramento da capacidade perceptiva, em seus diversos aspectos: a agudização do Olhar, do enxergar, da audição, do sentir, do intuir, de modo que aquilo que a tantos e tantas aparece invisibilizado, se torne perceptível como sinais a serem compreendidos, interpretados e sobretudo levados a sério. 


Nesta linha de compreensão e interpretação da realidade social, impõe-se aos sujeitos cognoscentes a tarefa de exercitarem, em um movimento contínuo, acompanhando de perto os dados da realidade, como cidadão, os diferentes fios que compõem esta mesma realidade. isto implica, por sua vez, assumir alguns compromissos inafastáveis. Requer, por exemplo, manter sempre aceso o horizonte de uma nova sociedade, em permanente construção. Implica a cotidiana mística revolucionária que consiste, fundamentalmente, no exercício da crítica e da autocrítica, de modo a permitir uma ininterrupta renovação de compromissos com as classes populares. Implica o compromisso, pelos mesmos sujeitos cognoscentes, de se comportarem segundo o sentido dos sinais emitidos pela mesma realidade, e por eles lidos, interpretados e levados a sério. Ademais, fazê-lo, seja do ponto de vista individual, seja do ponto de vista coletivo, nos espaços cotidianos de participação do horizonte almejado, o que deve ocorrer ao interno dos diversos núcleos, círculos de cultura, pequenas comunidades, células ou que outros nomes venham a ter.


Na perspectiva política freiriana, uma análise objetiva do mundo e das relações sociais deve implicar, ainda, a busca de uma consciência da “Totalidade” com que se manifesta tal realidade.  Um desses aspectos em que implica a consciência de “Totalidade” com que se manifestam as relações sociais, no cotidiano, tem a ver com o aprendizado ininterrupto, individual e coletivo, por parte dos sujeitos cognoscentes, da consciência de que, estando a realidade sempre em movimento, para ser lida e relida, de modo mais objetivo, isto requer tomar na devida consideração a relação íntima que se estabelece entre as micro relações e as macro relações, ou seja, as macro relações sociais, políticas, econômicas, culturais e outras não são adequadamente compreendidas se não estiverem marcadas pela sua íntima conexão com as micro relações sociais, econômicas, políticas e culturais e outras. Com efeito, tais microrrelações se mostram portadoras de sementes das próprias macro relações e vice-versa. Na prática, isto requer de seus leitores e leitoras um constante exercício de, partindo das relações sociais localmente manifestas, verificarem também o que estas comportam de macroelementos, razão pela qual é fundamental não se contentar com o que se passa apenas nas micro relações, mas assumir o compromisso de entender as conexões que estas microrrelações guardam com os acontecimentos entendidos como de caráter relacional, nas diferentes esferas da realidade social. Significa, também, entender que resta impossível uma boa compreensão do que se passa no âmbito local, sem compreender igualmente o que se passa em âmbito regional, nacional, continental, mundial. Todo bom leitor, toda boa leitora de mundo tem necessidade, portanto, de estender o exercício de sua análise ao que se passa, em âmbito internacional, sem se descuidar do que se passa localmente.


Outro aspecto decorrente desta leitura/releitura de mundo implica a necessidade, por parte dos analistas, de não se confiarem a uma única fonte de análise, mas de percorrerem atentamente o que se passa e o que se diz em uma diversidade de fontes analíticas, com elas dialogando frutuosamente, de modo a obter uma compreensão, sempre em movimento, do que se passa objetivamente na realidade analisada. Portanto, não obtêm êxito aqueles e aquelas que costumam exercitar sua análise, ancorados apenas em um tipo de fonte de análise, em apenas uma ou algumas correntes de pensamento, sobre o risco de viciar em suas análises críticas e autocríticas. Resulta, portanto, fundamental percorrer vários tipos de análise da realidade, com o objetivo de fazer resultar deste diálogo uma visão mais objetiva da realidade analisada.


Convém, ainda, ter presente, em cada análise, o modo como analistas se comportaram, fazendo semelhantes análises, dez, vinte anos atrás, buscando entender a maior ou menor coerência logada, em suas respectivas análises. Mais um aspecto: resta sempre bem mais eficaz uma leitura/releitura de mundo citada, não apenas por uma pessoa ou por um pequeno grupo de especialistas - por mais importantes que estes sejam, de reconhecida eficiência e competência -, mas que a leitura e releitura de mundo seja sempre exercitado pelo conjunto dos protagonistas, chamados a também exercitarem continuamente a leitura de mundo, sem prejuízo de ouvir especialistas mais reconhecidos, nesta área.


Não basta ler o mundo, é preciso também reescrevê-lo


Sempre lembrando da importância do contexto em que se dão as relações sociais, importa, de modo conjugado, entender tal exercício em dinâmica interconexão na perspectiva de irmos construindo um mundo alternativo à atual barbárie capitalista. Que passos, então, somos chamados a usar, nesta direção? Um primeiro passo pode ser o de não dissociarmos o exercício crítico da leitura de mundo com o do compromisso de reescrevê-lo. A reescrita das relações sociais atualmente hegemônicas só se torna possível por meio de um constante exercício de compreensão e adequada interpretação das macro relações, atualmente dominantes. Neste sentido, tratamos de prosseguir usando passos que nos permitam ir construindo este horizonte de alternatividade ao modo de produção, de consumo e de gestão societal dominantes. De modo resumido, tratamos de trabalhar sucintamente estes espaços, restringindo-os, por enquanto, a três momentos dinamicamente inter-relacionados. Um primeiro momento diz respeito às nossas tarefas organizativas, isto é, ao nosso compromisso coletivo e individual de investirmos tempo e trabalho contínuos na tarefa de criarmos espaços fecundos desta alternatividade, ou seja, na tarefa de criar e manter, de forma contínua e articulada, núcleos autônomos, coletivos, círculos de cultura, células ou espaços do gênero, de modo a que correspondam a células vivas de grandes potencialidades transformadoras das relações do cotidiano, e para além delas não se trata de nos limitarmos - estamos nos referindo aos sujeitos protagonistas de um novo horizonte alternativo às relações hegemônicas -, de apenas criar associações, de qualquer modo, apenas como instrumentos de estatísticas, ainda que sob a roupagem de espaços transformadores, mas de mantê-los em interação por meio dos seus participantes, mulheres e homens, comprometidos com ousar testemunhar novas relações sociais - econômicas, políticas, culturais, o que significa a continuidade de um compromisso, no âmbito dos núcleos fundados, de trazer à tona, com o protagonismo de todos os seus participantes, dos desafios mais urgentes, que vão das extremas desigualdades sociais e regionais, enfrentando a barbárie da fome, do desemprego, das profundas e crescentes desigualdades sociais de gênero, de etnia, de espacialidade, de caráter geracional, entre outros. Trazer tais desafios para as discussões e deliberações, nestes núcleos, importa uma preciosa atenção ao modo alternativo de organização destes espaços. Não se trata de coletivos ou núcleos em um funcionamento isolado, mas, ao contrário, sempre alimentando outros núcleos e outras instâncias das discussões e deliberações pela base, ali tomadas. São núcleos interconectivos, o que indica também a necessidade de se eleger delegados e delegadas, por algum tempo, com a tarefa de fazer chegar e retornar aos mesmos núcleos, as deliberações ali tomadas, de modo a somar forças com outros núcleos e instâncias, comprometidos com o mesmo projeto social alternativo ao modo de produção, de consumo e de gestão societal dominante.


Outros aspectos pertinentes, com efeito, ao exercício de autonomia frente ao mercado capitalista e ao seu estado, também implica a necessidade de que estes núcleos se organizem a partir de suas próprias iniciativas e automanutenção, lançando mão de arrecadação feita ao conjunto de seus membros, de tal modo que as tarefas organizativa do núcleo sejam financiadas pelos tostões recolhidos pelos seus próprios membros.


Outra tarefa organizativa relevante tem a ver com o compromisso da formação contínua do conjunto de seus membros. A tarefa formativa se conecta dinamicamente com a tarefa organizativa e com os processos de luta no que diz respeito particularmente à tarefa formativa. Cumpre ressaltar alguns de seus pontos mais relevantes, dentre os quais o do exercício ininterrupto da memória histórica dos oprimidos do mundo, do continente, do país, da região, dos locais em que estes núcleos estão inseridos. Trabalhar a memória histórica dos oprimidos significa tomar consciência crítica dos grandes embates e seus respectivos desfechos, conquistas e revezes, a serem coletiva e individualmente trabalhados desde o núcleo. Trata-se de revisitar relevantes acontecimentos protagonizados pelas classes populares, mundo afora, na América Latina, no Brasil, no Nordeste, etc. Ao mesmo tempo, também por meio do recurso a biografias de mulheres e homens que deram seu testemunho revolucionário em sua época, e muito têm a ensinar as novas gerações de militantes aqui, não se trata de pretender fazer uma cópia ou medição mecanicista do que tais militantes de referência - mulheres e homens - tenham realizado, em seu tempo, pois assim o fizeram tomando em conta as condições concretas, o contexto real em que tais embates se produziram. Trata-se, sim de recolher aspectos destas lutas e enfrentamentos que podem e devem inspirar positivamente os militantes, mulheres e homens, de hoje, quanto a sua capacidade de luta, a sua resistência e ao modo valente como enfrentaram aquelas situações. Trata-se, em suma, de recolher os preciosos exemplos de lucidez, de coragem, e solidariedade que tais figuras nos podem passar, hoje, em relação aos desafios de hoje, que não são exatamente os mesmos daquela época.


Com base na tarefa organizativa e na tarefa formativa acima esboçadas levemente, é que assume também importância a capacidade destes protagonistas, mulheres e homens, de ousarem lutar, nas praças e nas ruas, no campo e na cidade, levantando suas bandeiras, sempre priorizando a bandeira principal da busca incessante de construção de uma nova sociedade alternativa à barbárie atual, em busca contínua de superação deste modelo, buscando um novo modo de produção, um novo modo de consumo e um novo modo de gestão societal.


A modo de uma sinopse problematizadora ao cabo destas linhas, cuidamos de levantar algumas questões, a título de uma sinopse provocativa. Sabendo-se que em toda sociedade de classes, sobretudo a de caráter capitalista, as classes dominantes e dirigentes nada fazem para alterar (a não ser em seu próprio proveito) os eixos de organização societal. No Brasil, não é diferente. Então, se não é tarefa das classes dominantes e vigentes, se moverem em relação a mudanças substantivas, a quem - senão as classes populares - cabe a tarefa de lutar por mudanças substantivas da ordem dominante?


Aprendendo com a história e com a memória dos oprimidos de todos os tempos e lugares, o que é tarefa comum dos de baixo, como eles se têm organizado para enfrentar exitosamente este desafio?


Que papel aí joga a tomada de consciência crítica, por parte destes protagonistas? Tem recolhido lições relevantes das lutas passadas, de suas conquistas e revezes, no sentido de aplicá-las como instrumento das mudanças urgentes, no atual contexto histórico?


Que lugar específico e fundamental aí tem ocupado nossas organizações de base, notadamente os movimentos sociais (populares, sindicais, partidários e de outros segmentos)?


No transcurso destas lutas, que tipo de organização se vem demonstrando mais eficaz como base transformadora das relações sociais hegemônicas?


Sem deixarmos de considerar o papel dos grandes acontecimentos históricos, em especial daqueles que indicam o confronto entre a sociedade e o estado, que papel se tem reservado às forças transformadoras? Têm sabido articular adequadamente os confrontos macrossociais - entre sociedade e Estado - com seu protagonismo, no que diz respeito às lutas do cotidiano, em meio às microrrelações?


Que papel tem jogado os núcleos, as pequenas comunidades, os círculos de cultura, as células, quanto as suas potencialidades e eficácia no enfrentamento em defesa e promoção dos interesses dos debaixo e contra os interesses das classes dominantes e dirigentes?


No modo interno de organização desses núcleos, que papel tem sido reservado, mais do que as coordenações e direções, ao conjunto dos membros de base, principalmente no tocante às decisões tomadas?


De que modo a habitual alternância de cargos e funções, desempenhados pelas equipes dirigentes ou de coordenação, têm apontado diferenças qualitativas, quanto ao exercício da autonomia destes núcleos?


De que modos se tem comportado estes núcleos, em sua relação seja com mercado (transnacionais, grandes empresas, etc.), o Estado e seus respectivos aparelhos (executivo, legislativo judiciário, forças de ordem, mídia monopolista)?


Como os protagonistas destas mudanças almejadas se têm conduzido, no exercício da leitura e releitura da realidade social, em suas distintas esferas?


Em que fontes de análise tais núcleos se têm inspirado, no exercício da análise contínua da realidade social?


No transcurso destas frequentes análises da realidade social, quem tem protagonizado normalmente esta leitura: apenas alguns bons especialistas ou o conjunto dos membros da base, chamados, eles também, a protagonizarem a análise objetiva ou menos incompleta da realidade circundante?


Articulada de modo orgânico e dinâmico, como se tem dado a formação - especialmente, a formação política - do conjunto destes protagonistas?Que papel tem sido reservado, no processo formativo, tanto dos dirigentes e coordenadores quanto dos membros de base, que lugar se tem assegurado ao exercício da memória histórica dos oprimidos, seja quanto à contínua revisitação dos grandes feitos históricos, coletivamente protagonizados por estes sujeitos, seja no tocante à leitura atenta a biografias de figuras de referência?


Como se tem assegurado o desempenho e a continuidade dos setores em que os membros se distribuem, para darem conta dos desafios cotidianos?


De que modo o caráter de classe tem sido trabalhado, pelo conjunto dos protagonistas de uma nova sociedade, alternativa à barbárie capitalista, como fio condutor do conjunto de relações econômicas, políticas, culturais e outras, como forma de enfrentamento dos desafios postos?


Nos vários espaços organizativos, formativos, de luta, que lugar se tem assegurado ao exercício de uma mística revolucionária, como fio condutor dos vários elementos componentes deste processo?


De que modo os conselhos populares, as pequenas comunidades, os círculos de cultura, as células, os coletivos têm lidado com a necessidade coletiva e individual de se lidar com as artes seja no plano de sua produção, seja no plano da fruição?


No processo formativo, de modo especial, como se vem lidando com a comunicação de base, por meio de jornais, de boletins, de revistas, de confiança das classes populares?


Ainda no plano da comunicação exercitada no Trabalho de Base, como se tem lidado com os espaços virtuais alternativos?


No campo organizativo, tendo em vista uma constante busca do exercício coletivo e individual da autonomia, que providências têm sido tomadas, no sentido de assegurar o auto financiamento das atividades agendadas?



De que maneira as lutas mais diretas têm sido organicamente alimentadas tanto pelo processo organizativo quanto pelo processo formativo destes protagonistas?




 João Pessoa, 29 de setembro de 2020

domingo, 27 de setembro de 2020

O MOVIMENTO DAS BEGUINAS: Interfaces e ressonâncias em experiências sócio-religiosas femininas do presente

 

O MOVIMENTO DAS BEGUINAS: Interfaces e ressonâncias em experiências sócio-religiosas femininas do presente

RESUMO

O Movimento das Beguinas situa-se num período denso de inventividade cultural protagonizada por figuras e organizações femininas. A partir da Bélgica, e estendendo-se por outros países europeus, o Movimento das Beguinas pontificou durante os últimos séculos da Idade Média, numa Europa marcada pela presença insubmissa e contestatária de mulheres – santas, sábias, guerreiras -, cuja influência se estende para além da Idade Média. Desse movimento é possível, ainda na contemporaneidade, encontrar-se alguns traços de interfaces e ressonâncias? É o que pretende o presente trabalho. São recuperados elementos históricos e características do Movimento das Beguinas, e, em seguida, descritas experiências e práticas de mulheres religiosas, no Nordeste do Brasil, nos anos 70 e 80, e nos Estados Unidos (ainda em curso), apresentando traços que evocam, guardadas os respectivos contextos históricos, elementos presentes em algumas experiências das Beguinas.

Palavras-chave: Beguinas, Idade Média, Experiências religiosas femininas

Introdução

Como em outras incursões precedentes, também nesta, tratamos de revisitar o passado, a partir dos desafios do presente, e de olho no que o passado tem a dizer também ao futuro, como também costuma lembrar Eduardo Galeano. Nosso propósito de reavivar traços do Movimento das Beguinas surge da observação de impetuosas experiências sócio-religiosas protagonizadas, em distintas partes do mundo atual, por mulheres que se organizam em comunidades, em grupos, em movimentos, movidas pela sua fé cristã e pela sua vocação cidadã, numa perspectiva libertária. Referimo-nos a, por exemplo, desde experiências de religiosas inseridas no meio popular, no Nordeste brasileiro, sobretudo nos anos 70 e 80 , ao não menos impetuoso movimento protagonizado pelas Religiosas dos Estados Unidos, organizadas sob a sigla LCWR (Leadership Conference of Women Religious).

Nesse movimento relacional entre passado, presente e futuro, importa assinalar, pelo menos, um aspecto que só reforçou em nós o propósito de ensaiar uma analogia entre o Movimento das Beguinas e algumas experiências sócio-religiosas contemporâneas de missionárias, espalhadas pelo mundo. É bem o que nos ocorre a partir de um ponto extraído de um resumo cronológico feito por Katharina Wieacker, relativo a uma influente Beguina do século XIII, Mechthild von Magdeburg (1207-1282), onde se lê:

1260/1261 En un Sínodo diocesano el clero de Magdeburgo retiró el derecho de autoadministración y autodeterminación en cuestiones eclesiásticas a las beguinas en Magdeburgo y por lo tanto impedió la influencia de los dominicos y las subordinaron al clero parroquial. Era un intento de separar espiritualmente a las beguinas del movimiento de pobreza.

Quem vem acompanhando experiências sócio-religiosas femininas contemporâneas, individuais (as investidas de silenciamento pelo Vaticano em relação, por ex., à religiosa e teóloga ecofeminista Ivone Gebara) e coletivas (sendo a mais recente e impactante a tentativa de enquadramento pelo mesmo Vaticano das atividades missionárias da principal organização das Religiosas dos Estados Unidos, afiliadas à Leadership Conference of Women Religious). há de perceber semelhanças significativas, guardadas as circunstâncias histórico-contextuais, entre tais experiências da atualidade e aquelas protagonizadas pelas Beguinas da Idade Média.
Neste e noutros casos de experiências contemporâneas similares, observam-se, com efeito, traços comuns, tais como: a busca de pronunciar sua palavra, seja diante de uma Igreja controlada exclusivamente por uma pequena cúpula de homens (a hierarquia eclesiástica, a começar pelo Vaticano), seja frente aos poderes civis; traços comuns em relação ao empenho em buscar caminhos de autonomia; sua luta pela construção de outro mundo, possível e necessário, a partir do protagonismo dos “de baixo”, isto é, a partir dos excluídos, seja nas relações de espacialidade, de gênero, de etnia, de geração, etc., seja ao interno dos espaços eclesiásticos, seja no âmbito macro-social, em oposição ao controle das instâncias oficiais, civis ou eclesiásticas.

A observação desses e de outros traços nessas e noutras iniciativas protagonizadas pelas mulheres de hoje, é que nos fez evocar traços vivenciados no e pelo Movimento das Beguinas. Haveria, mesmo, aí algum tipo de afinidade? Que outros traços comuns entre esses movimentos atuais e o das Beguinas é possível assinalar? Eis o que buscamos desenvolver, a seguir, começando por reavivar aspectos históricos do período em foco (séc. XII a séc. XV). Em seguida, cuidamos de recuperar ou de reavivar alguns elementos característicos do Movimento das Beguinas, alguns elementos históricos, principais características, suas figuras proeminentes, sua contribuição, também no âmbito macro-social, para além da esfera estritamente eclesiástica. No tópico seguinte, tratamos de, em meio a uma pluralidade de experiências femininas contemporâneas, animadas pela fé cristã, descrever aspectos emblemáticos de duas experiências densas na contemporaneidade: a das Pequenas Comunidades de Religiosas Inseridas no Meio Popular (PCIs), no Nordeste do Brasil, sobretudo nos anos 70 e 80, e a experiência corrente vivida pelas Religiosas nos Estados Unidos, organizadas na LCWR. Por último, tecemos algumas considerações sobre eventuais afinidades entre as experiências de hoje e as do Movimento das Beguinas, não sem deixar de também reconhecer suas descontinuidades.

1. Baixa Idade Média: uma era grávida de alternatividade

Ainda hoje ressoam, embora em menor grau, traços do injusto rótulo por vezes atribuído à Idade Média como uma era estritamente obscurantista – a famigerada“noite de mil anos”… Pesquisas históricas mais recentes vêm ajudando a desconstruir e a reparar esse viés reducionista. Com efeito, notadamente os últimos séculos da Idade Média – a chamada baixa Idade Média – se apresentam, antes, como um tempo “novidoso”, grávido de alternatividade; comportam traços surpreendentes, no que diz respeito ao multiforme protagonismo e inventividade então testemunhados por diferentes sujeitos (coletivos e individuais), dentre os quais aqui sublinhamos o protagonismo das mulheres orientadas por sua fé libertária.

Um olhar crítico sobre os últimos séculos da Idade Média haverá, por conseguinte, de ensejar impactantes achados, inclusive a experimentados pesquisadores e pesquisadoras. Aqui evocamos aquela imagem bíblica do velho baú, do qual, a cada visita, se recolhem coisas velhas e novas. Isto para quem tem olhos para ver…
Diante de um cenário hegemonizado, durante séculos, pela instituição eclesiástica e seus aterrorizantes aparelhos de opressão e repressão sobre os excluídos desse sistema – os pobres, as mulheres, os grupos, organizações, movimentos e figuras individuais que aspiram à liberdade, que não aceitam um sistema de subordinação nas relações humanas e sociais, no seu empenho em resistirem à bitola ou à régua evocando a imagem do aterrador leito do Procusto eclesiástico, por não corresponderem às medidas de sua régua, tornando-se assim alvo sistemático de suspeição, de perseguições, de condenações sumárias, como sucedeu durante o tenebroso período da Inquisição.
A baixa Idade Média apresenta-se, pois, como um período de grande impulso renovador. Nele podemos perceber a presença de elementos que se antecipam a períodos posteriores. Séculos de reconhecida inventividade, fazendo aparecer fatos e situações que precedem, em séculos, a irrupção da Reforma e de outros traços caracaterísticos da Modernidade.

Assim aconteceu em relação, por exemplo, a diversos movimentos pauperísticos – os Cátaros, os Valdenses, os Franciscanos radicais, os Fraticelli, os Goliardos (alvo predileto de um notável pesquisador da UFPB, o saudoso Prof. Maurice Van Woensel, bem como um tema de a ser abordado, neste evento, pelo historiador Eduardo Hoornaert, que coordena esta Mesa), etc.. Movimentos pauperísticos protagonizados, portanto, por vastas massas do povo dos pobres, animadas por lideranças proféticas a buscarem afirmar sua fé cristã por horizonte e caminhos opostos aos seguidos e impostos pela religião eclesiástica, tão distante do espírito do Evangelho.

À riqueza e ao luxo da alta hierarquia eclesiástica e da nobreza, os movimentos pauperísticos opunham sua vida de simplicidade e de pobreza; aos complicados códigos canônicos, preferiam a transparência do Evangelho; à voracidade e avidez pelo acúmulo de bens materiais, preferiam a partilha fraterna dos bens e de sua própria vida em mutirão; aos lugares de honra e aos privilégios do poder, empenhavam-se no serviço fraterno das pessoas e grupos socialmente marginalizados; em vez de uma organização imperial de feição piramidal, como o Império Romano e outros impérios, lutavam por uma organização horizontal de sua vida social, econômica, política, cultural e religiosa. Sobre tais movimentos há uma relativamente vasta literatura.

Os séculos característicos da baixa Idade Média constituem, com efeito, uma era de precursores e precursoras relevantes, especialmente do ponto de vista de sua criatividade cultural-religiosa, do que pode ser mencionado como um exemplo as interpretações formuladas por Joaquim de Fiore, quanto à idade do Espírito, e que tiveram ampla e duradoura influência entre os movimentos reformadores da época.

No que tange à grade de valores, por exemplo, esses séculos comportam traços marcantes de inovação e de antecipação à Idade Moderna. Como ignorar sua ânsia de liberdade, de autonomia, de protagonismo, de autogestão, de valorização do vernáculo, e sobretudo de afirmação das mulheres como sujeitos históricos? Muito lhe tem a dever a Modernidade, sob distintos aspectos. Muito lhe deve o Movimento de Reforma cujas raízes estão fortemente fincadas nesse período.

2. Que traços mais fortes marcavam o perfil das Beguinas?

Conforme o acima prometido desde o título, aqui tomamos como alvo de nossa reflexão apenas o Movimentos das Beguinas, também desse mesmo período. As Beguinas se apresentam, ao mesmo tempo, como resultado, expressão e protagonistas desse período histórico. Trata-se de um movimento impetuoso que se dá justamente numa atmosfera de adversidades aparentemente intransponíveis para os excluídos de então, ao ponto de se produzir em meio a uma sociedade que tinha ares de misoginia aí reinante. Impacta-nos, com efeito, a extrema capacidade de resistência das mulheres a um contexto tão adverso. Resistência por elas exercitada por diferentes vias, seja pelas veredas de sua inventividade cultural (as sábias), seja pela sua espiritualidade leiga (as místicas), seja pela sua capacidade de resistência material (por seu trabalho manual de auto-manutenção (as militantes, as guerreiras).

Dessas formas de resistência, aqui nos limitamos à que combina o exercício de uma espiritualidade leiga com a sua capacidade de organização autogestionária a serviço dos excluídos daquela época (os pobres, os doentes, as mulheres abandonadas).

As Beguinas constituem uma página relevante da história das experiências religiosas marcadas por uma espiritualidade vivida no feminino, em pequenas comunidades chamadas “Begijnhof”, “Béguinages”, conforme a região de sua atuação (Flandres, Liège, Bruges, Antuérpia, etc.), animadas por mulheres jovens e adultas, celibatárias, viúvas, algumas casadas, que, organizadas sobretudo em meio urbano, combinavam uma vida de oração, de trabalho autogestionário com o serviço aos pobres, doentes e pessoas marginalizadas da época, alimentadas por uma espiritualidade singular, de caráter leigo.
Há referências associando as origens das Beguinas a Lambert le Bègue, figura a quem também se atribui a fundação do Movimento dos Begardos, uma versão masculina de semelhante experiência, formada por pregadores errantes, no século XII, na Bélgica, a denunciarem profeticamente os desmandos do clero, e pregando uma conversão ao Evangelho e ao estilo de vida das comunidades cristãs primitivas. Há, contudo, quem entenda diversamente as origens das Beguinas, a exemplo de Alain de Libera, que situa o início do Movimento das Beguinas, nos arredores de Liège (Bélgica), por volta de 1210.

Segundo este mesmo autor, o Movimento das Beguinas tinha suas singularidades, tais como: não tinha um santo fundador, não buscava autorização da hierarquia eclesiástica, não tinha uma constituição ou regulamento, não fazia votos públicos, “seus votos eram uma declaração de intenção, não um comprometimento irreversível a uma disciplina imposta pela autoridade, e seus membros podiam continuar suas atividades normais no mundo” .

O Movimento das Beguinas respondia a um forte anseio de seus membros: tendo em vista as relações então dominantes, nas esfera sócio-política, no terreno das relações de gênero, nas relações de vida religiosa, em todas sentindo-se sufocada pela dominação masculina, as Beguinas procuravam, explicitamente ou não, um estilo de vida que lhes permitisse uma múltipla autonomia: em relação a um marido, em relação ao patrão, em relação à autoridade oficial, em relação à autoridade eclesiástica, em todas essas esferas, reinando a figura masculina…

Tendo origem na Bélgica, as Beguinas foram expandindo-se pelos Países Baixos, por áreas da Alemanha e da França, preferindo atuar no meio urbano, onde respiravam um ar de relativa liberdade (em comparação com o meio rural daquela época). José Comblin assim a elas assim se refere:

As “beguinas” eram moças que não queriam entrar no mosteiro, queriam dedicar sua vida ao serviço de Deus e do próximo. Até os 30 anos de idade viviam na casa de uma “beguina” mais velha. Ao completarem 30 anos, passavam a viver sozinhas numa casinha. Dedicavam a vida ao trabalho e ao serviço dos pobres, doentes ou anciãos. Realizavam exercícios de piedade em conjunto, mas cada uma tinha sua vida independente. Formavam às vezes ruas inteiras de casinhas semelhantes. Em certas cidades formavam como que uma cidade dentro da cidade (“Begijnhof”, “Béguinage”).

Este mesmo autor aí faz também referência a estimativas quanto ao número de beguinas. Por essa região elas foram espalhando-se, aos milhares, havendo quem estime terem alcançado uma população de 200.000 beguinas, num universo estimado à época em torno de 20 milhões de habitantes.

Eram mulheres que, não preferindo contrair laços institucionais orgânicos com a Igreja institucional, nem professar votos formais e definitivos – algumas o faziam a título particular, sem torná-los públicos – desenvolviam atividades sócio-religiosas, formavam uma espécie de leigas consagradas, como se diz hoje. Combinavam atividades devocionais com trabalhos manuais e sobretudo o cuidado com os pobres e os doentes, os rejeitados daquela sociedade.
Chama a atenção o fato de que, nos primeiros tempos, as Beguinas ressoavam para as forças dominantes apenas como uma experiência beneficente e útil, ao alcance de seus olhos inquisitoriais. À medida, porém, que as Beguinas vão se consolidando organicamente, trabalhando sua identidade de mulheres livres – em relação ao machismo familiar, ao machismo clerical e ao machismo de outras instâncias oficiais -, passaram a sofrer leituras pejorativas até começarem a ser perseguidas pela instituição eclesiástica, ao ponto de, em 1311, terem sido condenadas como hereges, no Concílio de Viena (1311).

Aí tiveram lugar as famosas “Clementinas”, como ficaram conhecidas as condenações feitas pelo Papa Clemente V contra as Beguinas e contra os Begardos, em cima de elementos aludidos em seus dois Decretos “Ad nostrum” e “Cum de quibusdam mulieribus”. Em ambos, o Papa Clemente V buscava lançar suspeitas em relação às Beguinas (donde a expressão “de quibusdam mulieribus” – “sobre certas mulheres”…) e aos Begardos, olhos fitos no conjunto dos movimentos pauperísticos. O Papa Clemente V temia tais movimentos precursores da Reforma, inspirados que eram em figuras proféticas como Joaquim de Fiore, que, em sua teologia, sustentava a famosa interpretação das três idades, na história do Povo de Deus, ao deduzir da sucessão das 42 gerações citadas no relato bíblico da genealogia de Jesus (cf. Mt. 1) três épocas distintas: a idade do Pai, a idade do Filho e a idade do Espírito Santo, correspondendo esta a um tempo de liberdade. Justamente um valor a ser reprimido, ante os olhos dos hierarcas. Não é por acaso que, numa carta enviada ao bispo de Cremona, o Papa Clemente V expunha sua veemente oposição contra “os que desejam introduzir na Igreja um tipo de vida abominável que eles chamam de liberdade do espírito”…

Daí para a oficialização de uma caça às bruxas foi um passo, culminando nos processos mais aviltantes da condição humana, protagonizados pela tenebrosa Inquisição. Inclusive várias figuras beguinas, entre as quais Marguerite de Porète. Além desta, são várias as figuras de Beguinas: desde a precursora Hildegard de Bingen, passando por Matilde de Magdeburgo, por Gertrude de Hefta, Marie d´Oignie, Matilde de Hackeborn, Beatriz de Nazareth, até Hadewijch de Antuérpia e a própria Marguéritte de Porète, de algumas das quais nos ocuparemos, a seguir, de modo a destacar aspectos de seu respectivo legado. (cf. COMBLIN, José. Vocação para a Liberdade. São Paulo: Paulus, 1998: p. 125-129).

Começamos pela figura de Hildegard de Bingen (Alemanha) uma beneditina que viveu entre 1098 e 1179, considerada uma precursora das Beguinas, ao menos no que toca ao reconhecido potencial intelectual, como escritora, como compositora, como filósofa e como mística. Como abadessa beneditina, Hildegard de Bingen foi também fundadora de alguns mosteiros. Como compositora, é de sua autoria um dos mais antigos drama litúrgico, “Ordo Virtutum”, além de mais de 70 poemas e cantos litúrgicos Escritora prolífica, escreveu obras teológicas e textos de temas medicinais e de Botânica. A ela é atribuída um número expressivo de cartas. Fala-se em três centenas! Fato curioso e atual é o anúncio pelo Papa Bento XVI de que, ainda este ano, Santa Hildegard de Bingen será proclamada Doutora da Igreja… (cf. http://en.wikipedia.org/wiki/Hildegard_of_Bingen ).
Notícia que reforça suas multifacetadas potencialidades, que atraíam, em seu tempo, a admiração de papas, de bispos, de príncipes…

Uma segunda figura de beguina – esta já não uma precursora, mas, antes, uma beguina propriamente dita – diz respeito ao nome de Matilde de Magdesburgo. Também alemã, nascida em Magdesburg, que viveu entre 1207 e 1282. Sua biografia resultou fundamentalmente de seu famoso livro A Luz Resplandecente da Divindade , (em alemão, “Das flissende Licht des Gottheit”), cujo manuscrito foi encontrado no século XIV, escrito num Alemão popular da época, e não em Latim, como era o hábito das escritas eclesiásticas. Um escrito que ela vai compondo, a partir de suas visões, que ela começa a registrar, já à altura dos seus 43 anos, por recomendação de seu confessor. Diferentemente do estilo convencional, o seu se acha bastante inspirado no que caracteriza o Cântico dos Cânticos, o que provoca escândalo ao clero e à alta hierarquia de então, não bastasse o fato de tratar-se de uma mulher. (cf. http://www.europsy.org/marc-alain)

Nascida quase meio século depois, merece igualmente destaque a beguina Marguerite de Porète (1260-1310), por seu precioso legado de mística, de perfil profético e de mártir. Sua prematura condenação à fogueira – aos cinquenta anos! – não é algo casual. Um testemunho eloquente de seu perfil místico e profético pode ser encontrado por meio de sua obra Le miroir des âmes simples et annéanties. Um exemplar desta obra secretamente guardado por séculos, foi recentemente (1945), num mosteiro de Monte Cassino.

Hadewijch de Antuérpia, outra beguina que se tornou célebre, sobretudo graças à sua capacidade intelectual. Foi desbravadora no uso vernáculo em que produziu textos de reconhecido valor, tendo sido, não por acaso, considerada uma das fundadoras da língua flamenga, uma das primeiras referência no cultivo da língua. Característica que cultivou conscientemente, ao empreender vários textos no vernáculo, diferentemente da tendência da época, sempre mais aberta ao Latim enquanto língua oficial. Não correspondia ao propósito de Hadewjich, que preferia comunicar-se na língua de sua gente, por meio da qual socializava sua produção.

Não menos importante foi a contribuição – talvez a que mais devamos destacar, dentre todas, ainda que todas devam ser entendidas de modo entrelaçad0 – das Beguinas no campo da experiência mística. Área em que também foram profundamente emblemáticas, sobretudo graças à vivência de uma nova espiritualidade, profundamente marcada por um estilo leigo. Não por acaso, foi no campo dos leigos e das leigas, que mais influência exerceram as Beguinas. Assim a elas se refere uma analista:

Dans la spiritualité féminine, une évolution bien plus étonnante au cours de la seconde moitié du XIIe. siècle permet aux femmes d’échapper à la négation et au silence.Des groupes de béguines se constituent aux Pays-Bas,se consacrant au travail et à la prière ; le phénomène alla de Rhénanie en Italie, avec des formes diverses. La prédication franciscaine s’adressait délibérément aux laïcs,et les femmes font nombre,dans un climat d’exaltation qui va parfois jusqu’au paroxysme. C’est dans ce domain, très largement, que la parole des femmes va désormais se situer.

Forte, também, durante longo período, a influência recíproca entre a mística vivida pelas Beguinas e a exercida pelo dominicano Mestre Eckhart (1269-13), dominicano que ensinou na Universidade de Paris, por dois períodos. Isto se deu seja em razão do perfil de pregador de Mestre Eckhart que se dirigia aos leigos, seja também pelo fato de um enorme contingente de mulheres, em razão das massivas mortes dos homens envolvidos em guerras, em cruzadas, etc.

Este e outros detalhes e circunstâncias é que ajudam a melhor compreender o perfil da proposta do Movimento das Beguinas, em especial seu propósito alternativo, razão por que, como lembra Régine Pernoud, “Le mouvement des béguines séduit parce qu´il propose aux femmes d´exister n´étant ni épouse, ni moniales, affranchie de toute domination masculine”.
Com efeito, há quem sustente que as Beguinas não tinham propriamente uma “Madre Superiora”, preferindo uma “Grande Dame”, eleita para alguns anos. Cada comunidade de Beguina define seu próprio estilo de vida. Cultivavam um especial apreço ao trabalho como um meio de sua emancipação econômica. Cultivam os saberes médicos bem como as artes.
De um número considerável de beguinas que se tornaram mais conhecidas, aqui nos limitamos a apenas esses nomes, com o propósito de destacar-lhes as principais contribuições, tanto as de caráter mais diretamente eclesial, quanto as de um alcance social mais pronunciado.

Comecemos por estas últimas – as de caráter sócio-histórico. O Movimento das Beguinas constitui um marco relevante histórico-social, podendo ser destacados, de passagens, os seguintes pontos, neste âmbito:
– seu aporte inventivo como sujeitos históricos (individuais e coletivos) numa época marcadamente recheada de prevenções de caráter machista;
– seu lugar de protagonistas relevantes nos processos de mudança, no que se refere a sua contribuição no mundo das letras;
– seu respeitável aporte no que tange a suscitação de valores alternativos á grade de valores então hegemônica, seja na esfera social, seja no âmbito econômico, seja na esfera político-cultural: compromisso com a causa libertária dos excluídos, autonomia, liberdade, autogestão, alternatividade quanto ao uso do vernáculo, entre outros valores. No caso específico do âmbito econômico, importa tomar em consideração elementos relevantes ligados à sua automanutenção. Trabalhavam em atividades diversas, tendo suas próprias oficinas de tecelagem; cerâmica, copistas (num tempo em que, não havendo imprensa, tinha-se que copiar os livros)

Não menos relevante foi seu papel instituinte no tocante às suas atividades, do ponto de vista cristão, razão por que aqui destacamos algumas de suas contribuições:
– no questionamento profético (explícito e implícito) em relação ao monopólio teológico-pastoral da alta hierarquia eclesiástica MASCULINA;
– sua escolha estratégica de inserção religiosa fora do controle institucional eclesiástico;
– sua postura de priorização do espírito do Evangelho e do Seguimento de Jesus, à luz de um Francisco de Assis, de uma Clara, etc.;
– sua dedicação à causa libertadora dos excluídos do seu tempo;
– seu estilo “novidoso” de articular espaços de individualidade e espaços comunitários, como sendo ambos fundamentais à formação humana e cristã;
– seu empenho formativo, numa perspectiva de alternatividade, implicando no exercício de uma espiritualidade leiga.
Não é por acaso que a hierarquia eclesiástica vê com desconfiança e desconforto o Movimento das Beguinas, pelo fato de esse movimento aprsentar claros traços de autonomia, seja do ponto de vista social (organização em pequenas comunidades fora do cotrole eclesiástico), seja do ponto de vista econômico (organização pelo trabalho autogestionário), seja do ponto religioso (não pertencer a conventos nem a congregações)

Apesar de, e para além das perseguições, as Beguinas sobrevivem, até hoje, não sem fazerem concessões, passando a serem aceitas como pessoas que cuidavam de asilos de moças pobres. Donde ainda hoje a presença de várias experiências de “Béguinage”, na Bélgica, por exemplo.

3. Experiências sócio-religiosas contemporâneas, protagonizadas por Mulheres

Em todas as épocas, sempre é possível observar-se comportamentos individuais e coletivos de transgressão ao establishment, por mais ocultos e invisibilizados que se pretenda mantê-los. Onde há regras estabelecidas, há também transgressão a essas regras. Onde há dominação, sob diferentes formas, também há resistência, também sob diferentes formas. “Pensamento único” absoluto desponta como algo impossível. Sempre há quem, de algum modo, a ele escape. Assim, no caso da dominação reinante na baixa Idade Média, assim também no caso das formas de resitência opostas pelos movimentos pauperísticos e pelo Movimento das Beguinas. De modo semelhante, nos dias de hoje. Ao “pensamento único” civil-eclesiástico escapam iniciativas libertárias, seja no campo macro-social, seja ao interno dos espaços eclesiásticos.

Na contemporaneidade, há um leque de casos ilustrativos de tal resistência. Também no caso das Mulheres organizadas em grupos e associações de caráter religioso. Incontáveis são as formas de resistência ao monopólio clerical ainda reinante na Igreja Católica. Há relatos de experiências múltiplas, tanto no plano individual quanto na esfera mais coletiva. Desde as formas moleculares de resistência – inclusive aquelas tendo lugar ao interno mesmo de mosteiros e conventos femininos, até as formas de resistência mais visíveis e coletivamente assumidas.

Durante os anos que se seguiram ao Concílio Vaticano II (1962-1965), em especial na América Latina, sob a influência das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e da Teologia da Libertação – duas experiências fortemente latino-americanas -, tiveram lugar relevante experiências significativas de alternatividade ao modelo eclesiológico dominante.

O processo de construção e de acompanhamento da Conferências Episcopais Latino-Americanas de Medellín (1968) e de Puebla (1979) propiciaram uma importante reviravolta de expressivas forças eclesiais, conhecidas ora como “Igreja dos Pobres”, ora como “Igreja na Base”, entre outras. Tratava-se, então, de buscar vivenciar o espírito do Concílio Vaticano II, bem expresso por pontos tais como o esforço de renovação das estruturas eclesiásticas, o protagonismo do Povo de Deus (ao qual deve estar suboridanada a hierarquia – é esse o sentido da Colegialidade!), a abertura da Igreja ao mundo moderno, a outros sujeitos históricos – o diálogo fraterno com os demais cristãos de outras denominações, com os não cristãos (Ecumenismo e diálogo inter-religioso). Abertura da Igreja ao diálogo com as ciências humanas e sociais, a renovação litúrgica, inclusive da adoção do vernáculo, o retorno às fontes de nossa Fé, donde a importância da Sagrada Escritura, bem como outros pontos.

Ocorre que, mesmo ao interno de respeitáveis referêncais da Teologia da Libertação, a percepção das mulheres (na Igreja e na sociedade) era pouco ou nada existente. Nelas até se falava, mas não se trata propriamente de uma palavra de Mulher, sem contar o enorme risco de outros sujeitos pretenderem falar pelas Mulheres, tornando algo dispensável sua própria palavra.

No caso das CEBs e das PCIs (Pequenas Comunidades de Religiosas Inseridas no Meio Popular, isto representou – e segue representando! – um enorme desafio, por diversas razões:

– Se o Concílio Vaticano II apresentava, antes da hierarquia, o Povo de Deus como principal protagonista da caminhada da Igreja, como entender que tão pouca ou nenhuma mudança concreta se tenha passado, a não ser como exceções, em função da boa vontade e do compromisso de algumas figuras de bispos e de padres mais próximos do povo dos pobres?
– Em especial na América Latina, quase todas as experiências pastorais mais representativas do espírito do Vaticano II, de Medellín e de Puebla eram protagonizadas, em grande maioria, pelas mulheres (estas, nas CEBs, chegavam constituir, em diversos casos, em torno de 80% de seus membros), por que então dos processos de decisão elas estão fora?
– Se os novos tempos apontavam para uma presença mais concreta entre os pobres, por força inclusive da evangélica opção pelos pobres, quem eram esses fundamentalmente, senão as mulheres, em sua maioria?
– No n. 30 do Documento de Puebla, estão elencados os traços mais tocantes do rosto dos excluídos da América Latina, dentre os quais: os pobres, os índios, os negros, os camponeses, os operários, os jovens… Aguçando o nosso olhar sobre esse quadro, percebemos que, nesses e noutros segmentos, as mulheres formam a maioria. O compromisso com a causa libertadora dos pobres passa, sobretudo, pelo assumir das lutas libertadoras das mulheres, dentro e fora dos espaços eclesiais.

À medida que uma parte das religiosas e de leigas iam participando dessas trincheiras, ligadas à “Igreja na Base” – nas Comunidades Eclesiais de Base, nas Pequenas Comunidades de Religiosas Inseridas no Meio Popular, no Conselho Indigenista Missionário, na Pastoral da Terra, na Pastoral Operária, na Ação dos Cristãos no Meio Rural, na Ação Católica Operária, na Pastoral de Juventude do Meio Popular, na Pastoral dos Migrantes, na Pastoral da Mulher Marginalizada, na Pastoral dos Pescadores, nos Centros de Defesa dos Direitos Humanos, na Comissão de Justiça e Paz, no Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, e em outras atividades semelhantes, referenciadas pela Teologia da Libertação -, passavam a compreender, a partir de sua prática, que não podiam silenciar as injustiças, sob pena de cumplicidade, partissem elas das autoridades do mundo civil ou da hierarquia eclesiástica.

Não se tratava apenas de denunciar tais injustiças de que cotidianamente eram – e seguem sendo – as mulheres, dentro e fora da Igreja. Urgia avançar para ousar dar passos concretos na direção de sua superação.

Sempre a partir do denso aprendizado experimentado em sua prática pastoral junto com o povo dos pobres, em especial as mulheres, passaram a entender a necessidade de irem construindo alternativas moleculares a esse modelo. Nesse sentido, passaram a investir mais e melhor em sua formação permanente, assumindo um olhar crítico em relação às instâncias e métodos de formação propostos pela instituição eclesiástica, em seu atual modelo. Ao mesmo tempo, cuidaram de assegurar tal investimento formativo quanto às instâncias civis oficiais.

Outro passo relevante nesse processo de formação contínua foi o de investirem fortemente em sua organização em rede. Já não se querem pessoas conscientes, mas isoladas, nem grupos bem preparados atuando às soltas. Percebem que é de seu esforço organizativo em rede que resultam a força de sua união e de sua capacidade transformadora, tanto dentro quanto fora dos espaços eclesiais.

É assim que passaram a agir, ainda que de forma bem incipiente, nos anos 70 e 80, as religiosas participantes das Pequenas Comunidades de Religiosas Inseridas no Meio Popular. Estas eram formadas por religiosas de diferentes congregações que, ousando romper os muros de suas respectivas instituições, tiveram a coragem de passar a morar na zona rural ou nas periferias urbanas, em meio ao povo dos pobres, passando a assumir um estilo de vida simples, buscando manter-se pelo próprio trabalho. Algumas seguiram aceitando ajuda de suas congregações. Outras ousaram dispensá-la.

Outra característica importante das PCIs era o fato de priorizarem as atividades diretas junto com o povo dos pobres, inclusive aquelas e aqueles que não costumavam frequentar os templos. Embora prestando eventuais serviços à Paróquia, esta não constituía sua prioridade, o que lhes permitia mais liberdade de ação, e menos controle clerical.

Se já era forte a resistência ao espírito do Concílio Vaticano II, por parte das forças conservadoras, tal resistência se fortaleceu de modo crescente, a partir do pontificado do Papa João Paulo II. Com a contribuição efetiva da Cúria Romana, em especial da contribuição do então Cardeal Ratzinger, arquitetou-se um verdadeiro desmonte das forças progressistas da Igreja Católica, do que se chama “Igreja dos Pobres” ou “Igreja na Base”, recorrendo-se a uma série de medidas punitivas, restritivas e de evidente controle de caráter conservador, tais como:

– silenciamento e outras medidas punitivas contra os teólogos da libertação;
– inibição das atribuições das conferências nacionais e continentais de bispos;
– intervenção em organizações autônomas da vida religiosa;
– advertência aos bispos simpáticos da Teologia da Libertação;
– monitoramento, fiscalização, enquadramento ou fechamento de institutos de formação na linha da Teologia da Libertação (o fechamento do ITER, em Recife, foi um caso emblemático);
– política ultra-seletiva de nomeação e transferência de bispos;
– apoio aberto a movimentos reacionários e conservadores (Opus Dei, Legionários de Cristo, etc.);
– reforma do Código de Direito Canônico e superdimensionamento do Catecismo da Igreja Católica.

A despeito de toda essa estratégia de desmonte, cumpre reconhecer, de um lado, os limites daí resultantes para as forças eclesiais identificadas com a “Igreja na Base”, inclusive as PCIs e grupos similares, e, por outro, da capacidade de resistência de outras forças, a exemplo de parte considerável das Religiosas dos Estados Unidos, afiliadas à Conferência da Liderança das Religiosas (LCWR), que reúne milhares de religiosas, atualmente sendo alvo de perseguição pelo Vaticano.

3. Interfaces e ressonâncias do Movimento das Beguinas em experiências sócio-religiosas femininas do presente

Não se poderia esperar – e não o prometemos – a verificação apenas de meras afinidades entre organizações atuando em espaços e tempos remontando a séculos. Cada época comporta características singulares. Ao mesmo tempo, também pode comportar um certo grau de afinidades, de interfaces e de ressonâncias, sob alguma perspectiva.

Quanto às dissemelhanças, além dos respectivos contextos históricos, convém destacar, o perfil mais agressivo das forças hostis de então, sua abrangência aterradora. Mais: não dá para minimizar o poder tenebroso da forte carga de misoginia com a qual as mulheres, em especial o Movimento das Beguinas, tinham que lidar.

Com relação a semelhanças, a interfaces e possíveis ressonâncias de uns sobre os outros sujeitos históricos aqui cotejados, teríamos a destacar os seguintes traços agrupáveis em três eixos: um referente às suas formas de organização; outro mais ligado ao lugar que, em todos, é assegurado ao processo formativo; e um terceiro, mais atinente às suas atividades de visibilização e enfrentamento ante as forças hegemônicas, em cada uma das épocas contempladas.

Com relação ao eixo organizativo, podemos destacar os seguintes pontos comuns tanto ao Movimento das Beguinas quanto a experiências sócio-religiosas femininas do presente;
– opção por critérios próprios de iniciativa relativamente autônoma de organização, de modo a livrar-se das amarras institucionais dominantes;
– preferência por organizar-se em pequenas comunidades no meio popular;
– adoção de um estilo simples de vida, mais próximo do modo de vida dos pobres;
– investimento em sua automanutenção (sempre que possível), por meio de trabalhos manuais e artísticos, evitando assim laços de dependência econômica.
– vivência de critérios horizontais de tomada de decisões, pela via de deliberações colegiadas, em vez de decisões verticalizadas;
– atuação em rede, em vez de limitar-se cada grupo apenas a si mesmo.

Quanto ao eixo formativo, há claros sinais de alternatividade em relação à formação convencional assegurada pelas instâncias eclesiásticas oficiais. Deste eixo vale destacar, por exemplo:
– empreender um processo formativo que parta das experiências concretas da vida cotidiana, em suas mais diferentes dimensões, em vez de superestimar-se ou limitar-se aos conhecimentos acabados, vindos de cima para baixo ou de fora para dentro;
– exercitar uma formação que se aplique a conectar constantemente a Palavra de Deus e a realidade concreta do dia-a-dia;
– superar o hiato formativo convencional entre pensar e agir, buscando conectar, na experiência da vida, as dimensões afetivas, a cognição, a dimensão da vontade e a dimensão da prática;
– priorização do esforço criativo, de mudança contínua, em vez de mera acomodação ao já estabelecido, para o que vão encontrar nas artes um elemento impulsionador extraordinário;
– aplicação ao conhecimento dos instrumentos de dominação das forças adversas: a familiarização tática com estatutos, códigos, linguagens, idiomas, como ferramenta de contraposição e de superação do establishment.

No tocante ao eixo de sua visibilização e mobilização frente às forças adversas, vale destacar, por exemplo:
– profunda inserção no meio dos pobres, não apenas como tática, mas como convicção de que eles constituem seus verdadeiros aliados, inclusive em momentos de tensão;
– notável discernimento quanto aos momentos de avançar e de recuar, a depender da correlação de forças do momento;
– potencialização de suas estratégias por meio de encontros periódicos de avaliação e de planejamento.

João Pessoa, junho de 2012

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

DAS CONDIÇÕES DESUMANIZANTES À (A)VENTURA HUMANIZADORA: qual o lugar da Escola? (Um olhar a partir da realidade nordestina)


Alder Júlio Ferreira Calado*


Ao cumprimentar os participantes desse Simpósio, a começar por seus organizadores e organizadoras, docentes e discentes da UEPB, em Guarabira, pelo instigante quanto complexo tema que propõem ao debate – “Um olhar sobre a Escola” -, trato, de minha parte, de compartilhar alguns pontos dessa problemática, atendo-me, em particular, ao desafio da construção de uma Escola que corresponda aos sonhos mais generosos de humanização dos Humanos, em harmonia com o Planeta.

O tema geral deste Simpósio comporta, como se pode perceber, um amplo leque de possibilidades subtemáticas e de abordagens: desde uma abordagem histórica, passando por diferentes concepções teóricas subjacentes às múltiplas experiências de educação escolar, em diversos tempos e espaços, podendo ainda suscitar inquietações voltadas ao planejamento, ao financiamento, aos diferentes sujeitos/protagonistas do processo, à metodologia, aos conteúdos, à avaliação, e assim por diante. Nesse sentido, estimo que, nos distintos espaços de interlocução deste Simpósio, hão de ser alvo de debate aspectos como política educacional, formação docente, gestão escolar, didática e metodologia do ensino, avaliação, relação Escola-Comunidade, etc.

Buscando delimitar o alvo de minha reflexão, e atento ao fato de que o processo de humanização comporta múltiplas relações e espaços sociais, nas diferentes esferas da realidade (econômica, política, cultural), convém sublinhar que aqui me atenho especificamente a um deles: o espaço escolar. O propósito desta reflexão restringe-se, por conseguinte, ao desafio da construção de um espaço escolar tomado como uma das muitas facetas, dinamicamente relacionadas, do processo de humanização dos Humanos em harmonia com o Planeta. Restrinjo-me, portanto, a esboçar uma leve reflexão, tomando como referência as seguintes questões:

- Que tipo de Gente desejamos formar, especialmente a partir do espaço escolar?

- Qual é o perfil básico dos nossos alunos e alunas e suas famílias e comunidades?

- É possível assegurar-se uma formação escolar desejável nas condições características de nossa sociedade atual?

- Que sociabilidade permite assegurar as condições desejáveis de uma Formação efetivamente humanizadora?

- Qual o lugar da Escola, nesse processo?


1. Que tipo de Gente desejamos formar, especialmente a partir do espaço escolar?


Não nos inserimos num processo de formação  - inclusive por meio da escola - por motivações inconsistentes do tipo: para passar o tempo, para aprender por aprender, para nos prepararmos para o mercado, etc. Bem outra deve ser nossa motivação central. A maior de todas é a de nos formarmos como Gente, como pessoas dignas, conscientes, livres, sujeitos de todos os direitos e conscientes de todas as nossas responsabilidades, solidários, comprometidos com a nossa vocação para a Liberdade, capazes de desenvolver nossas potencialidades subjetivas e de realização familiar, comunitária, nos mais distintos espaços de que participamos (nas relações de gênero, de etnia, de geração, nas relações com a Mãe-Natureza, com o Sagrado), de modo a nos realizarmos como pessoas, como cidadã(o)s, como trabalhadores, como trabalhadoras, protagonistas de uma sociabilidade que faça justiça aos sonhos mais generosos da Humanidade, em harmonia com o Planeta.

Almejar e alcançar tal condição requer o atendimento de um conjunto de condições concretas, a impregnar todas as nossas macro e micro-relações. Requer uma sociabilidade que assegure, não a uma pequena parte, mas ao conjunto completo de seus membros, o atendimento de suas necessidades fundamentais e de suas mais justas aspirações.

Pleitear a construção de uma nova sociedade capaz de assegurar a todos o atendimento de necessidades fundamentais, não apenas as de caráter material (trabalho, saneamento, moradia, vestimenta, serviços de saúde, seguridade social, previdência...), como também as de caráter espiritual (cultura, educação, ludicidade, lazer...). E, em todos esses casos, não apenas como meros alvos de atendimento, mas como efetivos protagonistas desse processo de humanização.

Há de se lembrar que se trata de necessidades de caráter também universal, ou seja, não basta que se atenda às necessidades e legítimas aspirações de uns ou mesmo da maioria. Todos têm igual direito à sua realização enquanto pessoas, enquanto seres humanos.

Considerando apenas uma dessas necessidades e aspirações de caráter que pretendemos universal, contentemo-nos aqui com a dimensão educacional, ou mais precisamente, em nosso caso, a escola, que é o centro de nossa reflexão. E, já aqui, algumas perguntas emergem: o sistema escolar, tal como o que está organizado no Brasil e na maioria dos países do mundo, é capaz de dar conta do que se espera de uma escola, nesse contexto? O princípio da isonomia, por exemplo (que consiste, como se sabe, em dispensar o mesmo tratamento no que toca a assegurar igualdade de direitos para o conjunto dos sujeitos concernidos terá realmente efetivas chances de ser respeitado, ao oferecermos tantos padrões de escola, a depender das condições econômicas dos alunos e seus pais? Assegurar para uns poucos um padrão de escola de qualidade, enquanto para a grande maioria, um padrão visivelmente precário consegue realizar na prática o sonho de formação anteriormente enunciado? Ao aceitarmos a existência de padrões tão díspares de escola (e de tantos outros serviços, igualmente) não estamos coonestando, na prática, a consolidação da desigualdade social? O que foi feito da conquista revolucionária de uma escola pública de qualidade socialmente referenciada para todos?


2. Qual é o perfil básico dos nossos Alunos e Alunas e suas famílias e comunidades?


A exemplo de toda instituição social, a Escola não constitui – ou, pelo menos, não deveria constituir – um fim em si mesma. Existe enquanto um espaço-meio de contribuir na busca de realização dos seus protagonistas (alunos, professores, gestores, funcionários, famílias, comunidades...). Partimos do princípio de que devemos tratar a todos como protagonistas, como seres humanos em busca de sua realização, por meio do desenvolvimento de suas potencialidades, em harmonia com todos os viventes do Planeta.

Por isso, já daqui, passamos à pergunta: as crianças e os adolescentes que circulam pelas nossas escolas se sentem realizados? E como se sentem os demais sujeitos envolvidos na faina do quotidiano escolar?

Talvez nem seja necessário recorrer aqui a dados de recentes pesquisas – inclusive teses e dissertações também recentes - dando conta de diferentes facetas dos desafios enfrentados no cotidiano escolar, especialmente em nossa região. Basta que nós, professores e professoras do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, nos atenhamos às condições concretas dos nossos alunos e alunas, bem como à situação geral vivida pelos demais sujeitos integrantes do processo escolar: professores, funcionários, gestores, famílias dos alunos e respectivas comunidades. Afinal, é pelo fruto que se conhece a qualidade da árvore.

Nesse sentido, à parte certos casos de excelentes experiências que ouvimos, vemos, eventualmente protagonizados e relatamos, temos que reconhecer que tais experiências exitosas constituem exceção. Infelizmente, a regra é outra. Desafortunadamente, as experiências mais freqüentes apontam para outra realidade: muitas crianças, adolescentes e pessoas adultas fora da Escola; outras com freqüência irregular, por vezes garantida apenas por conta da merenda escolar; rendimento insuficiente; alunos que não contam com o indispensável acompanhamento pedagógico familiar; apatia ou desinteresse pelas atividades escolares, reiterados sinais de indisciplina, altos índices de “fracasso” e de “abandono”... Condições semelhantes também rondam o trabalho e o dia-a-dia dos demais protagonistas: infraestrutura deficitária, política salarial insatisfatória, precárias condições de trabalho, enfrentamento de novos desafios aterradores, tais como: expansão das drogas, da violência – também conseqüência, em parte considerável, do desemprego estrutural e da ausência de outras políticas públicas essenciais que afligem famílias e comunidades inteiras...

Quando temos, sob os nossos olhos, tão sombrio quadro, e voltamos à pergunta inicial - “Que tipo de Gente desejamos formar, especialmente a partir do espaço escolar?” -, percebemo-nos invadidos por um sentimento de impotência. Por outro lado, sabemos que de nós é que também depende a superação desse quadro. Como afirma Paulo Freire, em seu livro Educação e Mudança,


A mudança não é trabalho exclusivo de alguns homens, mas dos homens que a escolhem. O trabalhador social tem que lembrar a estes homens que são tão sujeitos como ele do processo da transformação. E se nas circunstâncias – determinadas – já mencionadas neste estudo, em que a estrutura social vem dificultando a transformação dos homens em sujeitos, seu papel não é o de reforçar o estado de objeto em que se encontram, achando que podem assim ser sujeitos, mas problematizar-lhes este estado. (FREIRE, 1999, p. 52).


É verdade que, por vezes, ao nos depararmos com relatos tenebrosos do nosso contexto sócio-histórico e educacional, pode-se instalar em nós uma tendência muito comum, que é a de nos lançarmos imediatamente a enfrentar os problemas em varejo. Tendemos a diagnosticar problemas pontuais e a também buscar respostas igualmente pontuais ou isoladas, crentes de que fazendo isso progressivamente, conseguiremos resolver todos, de forma gradual. Ledo equívoco! Por não exercitarmos um olhar crítico de nossa realidade, que nos permita perceber a raiz dos problemas, e, sim, suas manifestações superficiais, como num “Iceberg”, fracassamos, não raro, como se nos flagrássemos a tentar ensacar fumaça. Ainda que tardiamente, descobrimos que a forma de atacar os problemas com eficácia e com reais chances de êxito é percebê-los e enfrentá-los, não isoladamente, mas em rede, percebendo suas vastas e complexas conexões.

Outra grave conseqüência desse equívoco de enfrentamento pontual e gradativo é o descompromisso – em parte, por falta de uma adequada compreensão – de traçarmos minimamente um horizonte de nossa luta, sem o que sucumbimos ao enfrentamento pontual dos problemas, sem perceber que, ao resolvermos um aspecto, ressurge o mesmo problema, sob outros aspectos, fazendo assim ouvidos moucos ao alerta de José Dolores, personagem do filme “Queimada”: “É melhor saber para onde ir, sem saber como, do que saber como e não saber pra onde ir.”

Sabemos que não basta apenas ter claro para onde estamos indo. Os caminhos são igualmente valiosos, como já lembrava o Poeta espanhol Antonio Machado, em seus “Proverbios y Cantares XXIX”: “Caminante, no hay camino / el camino se hace al andar.”. Os caminhos são reconhecidamente indispensáveis, desde que demandem a direção almejada. O problema irrompe, quando a ordem hegemônica, por meio de seus mais diferentes aparelhos admnistrativos, ideológicos e repressivos, visando a despistar a atenção dos protagonistas, do núcleo dos problemas, trata de seduzi-los, desviando-os do cerne da questão. E, para tanto, uma forma eficaz a que tem recorrido é a de superdimensionar o papel das técnicas, das “dinâmicas”, de tal modo a transformar o que é instrumental em fim próprio, no essencial a ser perseguido, tornando desfocado o horizonte, e até esquecido pelos protagonistas. Quando se tem razoavelmente claro o horizonte, os caminhos vão sendo construídos, na perspectiva apontada por Antonio Machado.

Reanimados, pois, por tal ponderação, e certos de que o esforço de superação dessas contradições deve passar pela consciência do horizonte que almejamos alcançar, pelo menos em seus traços fundamentais, vale, sim, a pena esboçar um desenho comportando suas grandes linhas, sem qualquer pretensão exaustiva, como se devesse tratar de algo acabado, mas assumindo-o como algo em construção permanente, em incessante processo.

Qual seria, então, esse horizonte, em suas grandes linhas? Que tipo de Gente desejamos formar, nesse sentido?

Queremos, pois, formar Gente. Aqui estamos tocando o processo de humanização. Em que consiste tal processo? Quais os seus traços básicos? Partimos da consciência do inacabamento. O ser humano, sabendo-se inconcluso, perfectível, sente-se historicamente instado a se fazer e refazer, constantemente. Fiel a tal propósito, ele vai descobrindo-se, cada vez melhor, como um ser relacional, como um ser cuja realização o induz a fazer parcerias com os demais seres: os humanos e o amplo e diversificado universo dos viventes no Planeta. Tecer, no chão do dia-a-dia, essa malha de fios relacionais passa a ser um desafio de envergadura, que nos acompanha ao longo da vida. Impossível vencer, sozinhos, esse desafio. Somos chamados a fazê-lo em parceria com os demais: na família, nas comunidades de que vamos participando, nas mais diversas instituições em que nos vemos envolvidos, no curso de nossa existência.

A vivência passa a ser fundamentalmente uma con-vivência. Com todas as suas potencialidades (“A união faz a força”...), mas também com os limites dessa relação. A começar pelo fato de não se tratar apenas, nem principalmente, de relações intrafamiliares ou interfamiliares. Nem apenas de relações entre pequenas comunidades ou instituições. Mas, também de relações societais, isto é, de um tipo macro-social de relação (com o Estado e outras grandes instiuições), que, embora não nos determine propriamente, nos condiciona enormemente. Dependendo do tipo de sociabilidade que traçamos, teremos esse ou aquele tipo de formação humana.

Por exemplo, numa sociedade de classes, marcada por gigantescos conflitos e desigualdades sociais – como a sociedade capitalista em que vivemos – ficam seriamente comprometidos ou mesmo inviabilizados nossos sonhos de formar pessoas e grupos, numa perspectiva de formação que a todos assegure o desenvolvimento de suas mais diferentes potencialidades, seja no plano estritamente das relações de produção, seja no campo das macro e micro-relações de poder, seja ainda no âmbito da esfera cultural (dos valores, das idéias, dos símbolos). 

Para uma compreensão mais clara disso, vamos recorrer a alguns casos e situações nada hipotéticos, mas antes característicos do nosso dia-a-dia. Comecemos por nos perguntar da sorte daqueles nossos alunos e alunas cujos pais se achem desempregados ou sobrevivendo em situação de extrema penúria. Como é possível assegurar que essas crianças e adolescentes sejam formados, numa perspectiva omnilateral? Que condições efetivas eles têm, de compreender a importância da escola, do estudo, do aprendizado, da realização das tarefas de casa? Vendo aflitos os pais em casa, sem trabalho, sem salário, a fome a rondar todos os dias seu lar, passando a ver a Escola como único meio para matar a fome, ao menos com uma única refeição por dia, como então vão ter estímulo para ver diferentemente a Escola, por mais esforçados que sejam seus professores? Todos conhecemos casos excepcionais de alunos e alunas em situação de extrema pobreza a apresentarem rendimento positivo surpreendente. Isso existe, de fato. Não é isto, porém, o que aqui está em jogo. Nossa questão é saber se esses casos são os mais freqüentes ou se não passam de exceções... 

Bem outra é a situação mais comum da enorme maioria de nossos alunos e alunas, quer seja no meio rural, quer seja no meio urbano. A regra tem sido encontrarmos alunos e alunas, filhos de pais desempregados ou vivendo de biscates, famílias desestruturadas, vivendo em profunda e prolongada penúria, sem moradia digna, a vegetarem em ruas não saneadas ou mal saneadas, desnutridos ou mal alimentados, doentes ou extremamente vulneráveis a endemias ou epidemias, assediados e, não raro, seduzidos por grupos envolvidos com o tráfico de drogas, vítimas desde cedo da prostituição infantil e de diferentes formas de violência. Num contexto desses, o que se pode esperar dessas crianças e desses adolescentes, não apenas no que diz respeito à escola, mas à vida, em geral? Basta que nos coloquemos no lugar delas. Será que conosco seria diferente?

Insisto: pode haver e há situações excepcionais de crianças e adolescentes que, a despeito de todas essas condições precárias de vida, conseguem resistir e alcançar um desempenho escolar positivo. Há, sim, professoras e professores que se entregam com tal ardor ao bom desempenho de suas funções, que conseguem proporcionar a uma parte desses alunos um caminho alternativo. Alegra-nos constatar isso. O que se passa, no entanto - e que deve ser destacado com mais força - é que isso constitui exceção. Em verdade, as condições acima assinaladas, longe de propiciarem uma educação de qualidade, limitam enormemente o desempenho escolar da grande maioria dos alunos e alunas. 

Diante, por conseguinte, da pergunta inicial - “Que tipo de Gente estamos formando, a partir do espaço escolar?” -, é doloroso constatar que ainda estamos muito longe de responder positivamente a uma questão dessas, a não ser em situações excepcionais. Mas, nós queremos saber a regra. E aqui, a situação se apresenta profundamente sombria. Não temos grandes razões para apostarmos em que dessa situação saiam crianças e adolescentes formadas como verdadeiros protagonistas de um processo alternativo de sociedade e de escola.


3. É possível assegurar uma formação escolar desejável nas condições características de nossa sociedade atual?


Não se desconhecem avanços, por vezes espetaculares, que aqui e ali se registram, no cenário escolar, no atual contexto sócio-histórico brasileiro. De fato, quem já não tomou conhecimento de experiências escolares bem sucedidas, que se realizam em alguns lugares, inclusive no Nordeste? É claro que, vistas pelo seu alcance positivo, elas nos motivam a perseguir um horizonte semelhante. O problema reside justamente no fato de que, em se tratando de experiências particulares, pontuais e bem localizadas, somos, por outro lado, compelidos a reconhecer que elas se restringem a um pequeníssimo número de casos, tendo em vista o universo de nossas escolas. Mais: ao situarmos comparativamente o número dos beneficiários desses bem sucedidos resultados no universo dos alunos e alunas, bem como dos respectivos docentes, gestores, pessoal técnico-administrativo, famílias e comunidades concernentes, verificamos que tal sucesso é ainda bastante incipiente.

Ao nos colocarmos, com efeito, diante do enorme percentual de crianças e adolescentes, de professores e professoras, de gestores, de gestoras, de membros do corpo técnico-administrativo, de famílias e de comunidades ainda destituídos das condições necessárias à conquista da qualidade desejável do ensino, somos induzidos pelos fatos a reconhecer a impossibilidade histórica de alcançar, dentro da atual ordem dominante, tais condições extensivas ao conjunto dos protagonistas da escola.

Conclusão a merecer atenção, tanto mais quanto parece prevalecer, entre nós, a tendência que, recorrendo a casos isolados, busca generalizar o que é absolutamente excepcional. Explico-me melhor, recorrendo, por exemplo, a um caso bem sucedido, amplamente divulgado pela mídia, de um jovem estudante de escola pública, filho de uma família nordestina, com remuneração em torno de R$ 180,00, que logrou a façanha de obter o primeiro lugar no concurso vestibular para Medicina, numa universidade pública. A moral da história que se recolhe do caso é algo como: “Se ele logrou tal façanha, os outros jovens também podem. É só querer.” Prática ideológica, aliás, muito comum, em nossa sociedade. Basta lembrar histórias bem sucedidas de figuras como Sílvio Santos – de um mero camelô vai transformar-se, pelo seu esforço, em abastado empresário... Por mais que tal expediente ideológico ofenda a inteligência, o fato é que termina convencendo a um sem-número de incautos. E não se trata de negar que, enquanto fato individual, isso se tenha produzido efetivamente. O problema reside na sua sedutora generalização e em suas múltiplas implicações. Uma delas: um grande número de telespectadores e ouvintes passam a atribuir seu fracasso (inclusive escolar) à sorte ou à sua incapacidade pessoal.

Um olhar mais atento à natureza sociológica de tais casos suscitaria várias interrogações, tais como:

- Qual o percentual de nossos alunos e alunas da Educação Básica, matriculados em escolas públicas?

- Qual o perfil amplamente majoritário dos alunos e alunas das escolas públicas, em termos de situação sócio-econômica de suas famílias, bem como de suas características étnicas?

- Que parcela do orçamento público é aplicada em favor das escolas públicas da Educação Básica, em relação ao montante de recursos privado e público direcionados às escolas da rede particular?

- No tocante à Educação Básica da rede pública, qual a distribuição orçamentária pertinente a cada modalidade de ensino? O que sobra para modalidades como EJA, Educação Infantil e Educação Especial?

- E com relação aos alunos e alunas das escolas particulares, qual o seu perfil?

- Fazendo-se um paralelo entre escolas públicas e privadas, qual a infra-estrutura e quais os recursos financeiros aplicados, em média, por cada aluno?

- Em matéria de efetivo rendimento médio entre ambas as redes escolares, que avaliação se pode fazer?

- Que rendimento desejável se pode esperar, em geral (à parte, portanto, os casos excepcionais) de alunos e alunas com, e outros sem o necessário acompanhamento pedagógico das respectivas famílias?

- Por que há famílias que acompanham as tarefas de casa de seus filhos, enquanto outras – a maioria – não conseguem assegurar-lhes tal suporte pedagógico?

- Quais as condições do dia-a-dia das famílias da maioria dos nossos alunos e alunas das escolas públicas?

- Por que o acesso às universidades tem sido amplamente favorável aos alunos e alunas procedentes das escolas particulares?

- Que tipo de formação escolar é assegurado em ambos os casos?

- Além dos valores ditados pelo Mercado, que outros valores são mais efetivamente trabalhados, em ambas as redes?

- É razoável esperar-se, como prática dominante, formação escolar, numa perspectiva libertadora, dentro de uma sociedade organizada fundamentalmente a serviço do Capital e seus aliados?

Eis por que com a mesma pergunta inicial concluo este tópico: é possível assegurar-se uma formação escolar desejável, nas condições características de nossa sociedade atual?


4. Que sociabilidade permite assegurar as condições desejáveis de uma Formação efetivamente humanizadora?


Já de entrada, é possível que se levantem algumas objeções a essa pergunta: “Nossa realidade é essa, e há muito tempo. E não apenas no Brasil. Adianta continuar a dar murro em ponta de faca? Continuar insistindo nisto não parece uma atitude pouco inteligente, além de inútil?” 

Objeções feitas, aliás, não apenas por quem tem essa questão resolvida para si e para os seus filhos e sua família, mas também, não raro, manifestas por pessoas das camadas populares. Aquelas, por razões compreensíveis. Quanto às pessoas das camadas populares, nas mais das vezes, mais por uma introjeção ideológica do que por uma opção consciente, muito embora também esta ocorra, já que elitismo não é apanágio dos ricos: há pobres com cabeça de patrão, seja graças a uma inculcação ideológica, seja em virtude de uma ruptura com sua classe de origem.

Se fôssemos tomar a sério tais objeções, só teríamos uma posição a assumir: a de nos conformarmos com a situação dominante. Até podemos transformar-nos numa fábrica de autojustificativas, mas o essencial de nossa posição implicaria assumir a impossibilidade de mudança substantiva dessa realidade. Restaria conformar-nos com a situação dominante ou, no máximo, esforçar-nos por modificações epidérmicas: “melhorias” de índices X, Y e Z, sem que isso altere substancialmente o quadro em vigor.

Quem, no entanto, reconhecendo o caráter histórico – e portanto mutável – de toda sociedade humana, alimenta o sonho freireano (e de tantos e de tantas) de uma sociedade economicamente justa, politicamente participativa, culturalmente plural, vai preferir certamente comprometer-se com o esforço coletivo e contínuo de construção de uma sociabilidade alternativa a esse modelo excludente, economicamente injusto, politicamente privilegiador de minorias, culturalmente monolítico.

Então, se não é esse o modelo desejável, qual seria a alternativa? Que traços gerais ele comportaria? Nossa preocupação não é, por certo, a de pretender um modelo previamente “definido”. Como seres históricos, em constante processo de mudança e de aprimoramento, o que nos cabe é esboçar um projeto de sociabilidade que vamos lutando para desenvolver, passo a passo. Para tanto, precisamos, sim, esboçar suas linhas gerais, uma espécie de horizonte, de meta ou de bússola que nos ajude em nossas buscas. Que traços teria, então, um projeto desses? Vejamos alguns.

Uma sociedade estruturada em bases econômicas socialmente justas – Tendo em vista que as condições econômicas devem tomar em conta as necessidades e aspirações do conjunto da sociedade, com base em seus limites e possibilidades, e considerando que todos os seus componentes são portadores de igual dignidade, há de se cuidar criteriosamente das condições de produção, circulação e fruição do conjunto de bens e serviços assegurados pela mesma sociedade. Impossível de se garantir tal critério, entregando-se ao Mercado ou aos seus prepostos (Estado, organismos multilaterais, etc.) o encargo de regular tal organização. Simplesmente porque só o efetivo controle e eqüitativa gestão públicos respeitam os interesses de todos. O Mercado, especialmente nas sociedades capitalistas, mesmo quando regulado pelo Estado, serve fundamentalmente aos interesses dos grandes conglomerados transnacionais e dos grandes setores empresariais nacionais. Fiar-se numa suposta competência pública do Mercado capitalista soaria como confiar a raposas o cuidado do galinheiro.

E não precisamos de muito esforço para constatar a consistência e a veracidade de nossa afirmação. Pelos frutos é que se conhece a qualidade da árvore, como já foi acima assinalado. Basta ver a suposta competência pública das democracias formais cujos Estados se acham fundamentalmente submetidos aos ditames do Mercado: o fosso crescente entre uma pequena minoria que detém a propriedade e o controle dos meios de produção, inclusive das fontes de vida (água, rios...), em detrimento da crescente marginalização de crescentes maiorias, em todo o mundo, inclusive nos países centrais. Situação que se vem cada vez mais agravando, a partir do abandono de clássicas teses social-democratas (emprego pleno, previdência pública, serviços públicos essenciais...), em proveito da voracidade do Neoliberalismo, sobretudo a partir dos governos Margareth Thatcher e Ronald Reagan. Desde então, o que se tem visto, com os avanços científico-tecnológicos, a reestruturação produtiva e a reorganização dos processos de trabalho, é a brutal expansão dos índices de desigualdade social: desemprego estrutural, concentração de renda, crescente endividamento de nações inteiras em favor do enriquecimento sobretudo do setor financeiro, explosão da violência social e dos índices gerais da pobreza (precarização das condições de trabalho, da saúde, da previdência, da violência social, entre outros sinais de barbárie).

Outra objeção, a esse propósito, pode ser feita: “A despeito de todas as críticas assacadas contra o atual modelo, não se pode negar que, no Governo Lula, por exemplo, os mais pobres vêm tendo ganhos: estão comendo mais, estão podendo aumentar o seu consumo.” Ouvimos semelhantes declarações, com espantosa freqüência. Procedem, em parte, no que toca à situação dos setores sociais mais explorados, em situação de quase indigência, que, graças às políticas compensatórias do atual Governo, conseguem ter acesso à comida, de que antes estavam impedidos. Dois pontos emergem, porém, como cruciais: se os lucros dos mega-setores financeiros não cessam de crescer, de onde se retirou essa migalha orçamentária para bancar as políticas assistencialistas? Dos próprios assalariados, dos setores médios da sociedade. Outra pergunta: é ético cantar vitória com uma política assistencialista por trás da qual está a suposição de que aos seres humanos basta assegurar comida?

Uma sociedade politicamente participativa – Participação aqui é tomada como sinônimo de efetivo protagonismo do conjunto da sociedade, organizada em seus respectivos conselhos de base, de caráter deliberativo, nas decisões fundamentais. Aqui não se trata, como nas sociedades de democracia formal, como a nossa, de delegar a uns poucos (parlamentares) a tarefa de decidir por todos, desaguando, quase sempre, numa abdicação coletiva do exercício da Cidadania, à medida que esta fica restrita ao processo eleitoral, visceralmente viciado antes, durante e depois das eleições. Nem sequer se admite o princípio da revogabilidade, como excepcionalmente no caso da Venezuela, cuja Constituição prevê a realização de consulta oficial à sociedade sobre sua avaliação do desempenho dos seus governantes, por força da qual os dirigentes com desempenho majoritariamente avaliado como insatisfatório perdem seu cargo, ao que se segue novo processo eleitoral. De todos os modos, ainda estamos aqui numa democracia representativa.

Como alternativa a esse modelo, a aposta incide na organização da sociedade em conselhos (ou que outros nomes tenham). Uma vasta e complexa rede de conselhos, atuando e deliberando nas mais distintas áreas de políticas públicas, de forma cogestionária. Os mais diversos segmentos da sociedade passam a ser geridos de modo colegial, nas mais distintas áreas (infra-estrutura, processo produtivo, organização do trabalho, estrutura de circulação dos bens e serviços, serviços públicos universais, concepção, planejamento, avaliação e gestão da cultura, etc. A representação aqui, além de estar subordinada a escolhas diretas sob critérios rígidos, definidos pelo conjunto dos produtores, por meio inclusive de escolhas temporárias e revogáveis, obedece ao princípio do rodízio ou alternância do exercício de cargos e funções.

Uma sociedade culturalmente plural – Graças à organização em conselhos, também na esfera da cultura, o protagonismo de todos também se constitui na marca de maior referência. Aqui, os membros da sociedade não são tratados, como sói ocorrer nas democracias formais, como meros espectadores ou consumidores de bens culturais. Graças à qualidade da formação exercitada, da mera condição de espectadores ou consumidores de cultura, os formandos passam à condição de sujeitos, de produtores de cultura.

Tendo em vista que se trata de uma cultura plural, o processo de formação omnilateral e contínuo propicia a todos o exercício ininterrupto de um processo de emancipação, de autonomia, de modo que, ao se priorizar o atendimento das necessidades e das aspirações coletivas, não se anula, antes se desenvolve, uma individualidade respeitosa, apta a pôr em prática o respeito às diferenças. Essas se manifestam com fluência. À medida que se dá o processo de formação omnilateral, a sociedade passa a se reconhecer como formada por diferentes protagonistas (individuais e coletivos), seja nas relações sociais de Gênero, de Etnia, geracionais, espaciais, ecológicas, políticas, econômicas, culturais... 

Numa organização societal com tal esboço, garantidas a todos a igualdade social, fica compreensível o efetivo exercício das diferenças, graças inclusive ao protagonismo dos próprios diferentes (Mulheres, Homens, Negros, Índios, outras Etnias, Crianças, Jovens, Adultos, Pessoas com deficiência, Sertanejos, Nordestinos, Nortistas, Sulistas, Rurais e Urbanos, Crentes de todos as denominações ou expressões...). Numa sociedade dessas, nem faria sentido, por exemplo, o recurso ao expediente de cotas, que seriam rejeitadas pela raiz, por força do protagonismo de todos os grupos e em respeito ao princípio da isonomia. 


5. Qual o lugar da Escola, nesse processo?


Percebe-se, pelo que foi até aqui exposto, que a passagem de condições de barbárie hoje observáveis rumo à aventura humanizadora demanda a superação das mais diversas condições que o impedem, inviabilizam, inibem ou retardam. Entre essas condições se inclui o atual quadro do sistema escolar, tal como globalmente se nos apresenta. Cientes, pois, de que o espaço escolar constitui um desses fatores de humanização, tratamos, em seguida, de examinar especificamente o que toca à Escola nesse processo humanizador.

Mesmo sabendo que, dentro das condições sócio-históricas hegemônicas em que se move o sistema escolar brasileiro, parece vão, de partida, pretender-se cobrar da Escola as atribuições decisivas, naquele horizonte, cuidamos de recorrer a expedientes relevantes que, se exercitados adequadamente, são capazes de contribuir significativamente, de algum modo, na direção almejada.

Levantar o perfil geral dos nossos Alunos e Alunas, como ponto de partida do nosso quefazer pedagógico – Se não todos, pelo menos a grande maioria de nossos professores e professoras foi educada num contexto em que, não apenas os conteúdos, mas também o plano de curso, o plano de aula, os conteúdos, as metodologias e até os procedimentos já vinham prontos, elaborados pelos professores, para serem “aplicados” uniformemente a todas as turmas. As conseqüências desse modelo hoje aparecem mais claramente. Revela-se contraproducente – para não dizer desastrado - pretender-se educar por via de padronização, por meio de uma espécie de fôrma, supostamente válida para tudo e para todos, sem se atentar para as diferenças concretas existentes entre as escolas e suas condições gerais, entre seus protagonistas (discentes, docentes, gestores...), entre as turmas e entre os Alunos e Alunas de cada turma.

Uma formação humanizadora, processada numa perspectiva freireana, sente-se instada a tomar em conta as diferenças, as singularidades dessas situações, sobretudo dos protagonistas das experiências pedagógicas vivenciadas. Pode-se objetar quanto à complexidade da tarefa, o tamanho do esforço que isso implica na rotina pedagógica, rodeada de desafios: precariedade geral das condições (salas superlotadas, carga horária excessiva para professores que trabalham em duas, três escolas, arrocho salarial...). Remetemo-nos aqui ao alerta feito acima quanto à impossibilidade de alcançar-se pleno êxito nesse processo, sem uma mudança estrutural.

Por outro lado, sem abdicarmos um só instante da luta por mudanças estruturais, havemos de convir em que, a quem busca, sempre se torna possível fazer-se alguma coisa nessa direção, mesmo em situações das mais precárias. E, a fazer alguma coisa, que se priorize fazer algo cujo alcance político-pedagógico seja reconhecido como necessário em qualquer contexto, de modo a transcender o contexto capitalista.

Uma dessas iniciativas pode ser o levantamento do perfil dos Alunos e Alunas com quem vamos trabalhar. À medida que travamos os primeiros contatos, vamos empenhando-nos em observar e registrar traços dessas turmas e respectivos alunos e alunas, assinalando singularidades relativas a gênero, a etnia, a idade, a procedência geográfica, a situação sócio-econômica dos alunos e famílias, a eventuais pessoas com deficiência, às expectativas, ao nível de aprendizado em que se encontram, às suas potencialidades artístico-culturais, aos seus distintos saberes, etc.

Por mais simples que possa parecer, um tal levantamento vai servir de preciosa bússola aos professores e professoras, no sentido de lhes permitir tomar na devida consideração diferentes aspectos observados. Elementos que serão levados em conta, quando se definir todo tipo de atividade pedagógica a ser proposta à turma. Além do enorme alcance pedagógico, há de se sublinhar igualmente a carga de auto-estima que isso é capaz de aportar ao conjunto dos protagonistas.

Pense-se, por exemplo, por ocasião das atividades avaliativas, feitas de modo processual, contínuo e propositivo, na enorme utilidade de um instrumento desses ao alcance do professor, da professora, capaz de proporcionar uma idéia mais objetiva do desempenho progressivo dos alunos e das alunas, comparado com sua situação inicial.

Partir dos saberes prévios dos nossos Alunos e Alunas – Quantos casos de suposta “indisciplina” atribuída a certos alunos e alunas tem a ver, antes, com a ausência de sentido da rotina escolar. Sentir-se obrigado a engolir conteúdos curriculares sem a necessária motivação, que pode começar por meio de uma conversa descontraída, em que os alunos manifestam seus saberes experienciais, pouco ou nada levados em conta pelos professores. Quantas vezes pode ocorrer, na sala de aula, que mal os alunos terminem de contar seus casos, suas histórias, são abruptamente interrompidos pelos professores, com a simples alegação de que “Acabou a conversa mole. Agora, vamos começar a aula...” Não raro, sentindo-se pouco ou nada valorizados, alunos passam a curtir um certo desestímulos pelo que se ensina na escola, donde a tendência a atos de indisciplina...

Isto não quer dizer que os professores e professoras tenham que escantear os componentes curriculares, e superdimensionar os casos trazidos pelos alunos. Trata-se, antes, de aprender a tomar os saberes prévios dos alunos como um bom pretexto, uma boa introdução aos conteúdos trabalhados.

Exercitar a memória histórica da Humanidade, em todos os tempos e quadrantes – Adaptando linguagem e procedimentos metodológicos, conforme as situações didáticas concretas, cumpre promover uma fecunda incursão pelas experiências de produção de saberes de distintos povos, em diferentes épocas. Em cada área de conhecimento, há uma gama expressiva de achados relevantes, legados pelos povos antigos à atualidade. Manter-se atento a essas experiências, descobertas e achados só fortalece o esforço de cultivar a densa riqueza de conhecimentos produzidos pela Humanidade, e não apenas por alguns povos, como os Europeus.

Quanto mais nos mostramos capazes, quanto a isso, de empreender passos alternativos rumo uma sociabilidade alternativa, a partir do imenso mosaico de variedades, mais nos afirmamos enquanto Mulheres e Homens, sujeitos de direitos. Quando o vasto patrimônio humano não é tomado na devida conta, o risco que corremos é o de torna-nos multiplamente reféns da ideologia do pensamento único.

Tomar as relações do cotidiano escolar como mostruário do nosso efetivo compromisso de mudança – À semelhança dos demais espaços sociais, também o espaço escolar se constitui numa malha de relações, na qual se entrecruzam fios de natureza econômica (financiamento, custos, etc.), política (a estrutura, o exercício e a distribuição de poderes, ao interno da Instituição) e política (a circulação, a transmissão, a introjeção e a disputa de valores entre os protagonistas desse mesmo espaço.

Também aí se vivencia uma rotineira disputa de modelos de educação e de escola. Nas diferentes instâncias e entre os distintos protagonistas, reflete-se uma correlação conflituosa de forças, correspondente, de um lado, à hegemônica grade de valores, e, de outro, à resistência axiológica oposta pelos setores comprometidos com uma grade de valores alternativa à do modelo dominante. Disputa que se dá diante de valores tais como individualismo X corresponsabilidade; cultura presidencialista X protagonismo coletivo; cultivo da competição exacerbada X aposta na força do mutirão; tendência ao consumismo X cultivo da moderação e da simplicidade como estilo de vida; apologia do novo pelo novo X postura de acolhimento condicional tanto das coisas novas quanto dos valores tradicionais, a depender do seu conteúdo humanizador ou de aviltamento da condição humana; postura de dominação sobre a Mãe-Natureza X relação filial e harmoniosa com o Universo; relação de troca interesseira com o Sagrado X relação de gratuidade, e assim por diante.

Trata-se de posturas que, de um modo ou de outro, incidem nas relações do cotidiano escolar, inclusive nas lides estritamente didáticas. Um exemplo, entre tantos, pode ser observado diante das motivações apresentadas para o quefazer escolar: de um lado, uma motivação estritamente subordinada aos interesses do Mercado (estudar para passar; estudar para tirar boas notas; estudar para arrumar um bom emprego; estudar para passar no vestibular, etc.); por outro lado, uma motivação alimentada pela freireana “curiosidade epistemológica”, a entrega de peito aberto aos estudos por prazer, como caminho de auto-realização, enfim numa perspectiva de educação omnilateral e contínua.

No campo das relações sociais de Gênero, graças aos constantes avanços protagonizados pelas lutas feministas, nas últimas décadas, tende-se a um relativo equilíbrio, no cotidiano escolar das relações entre alunos e alunas. O que não quer dizer que ainda não persistam, notadamente nas periferias urbanas e na zona rural, algum descompasso em certas situações, em desfavor das alunas.

Quanto à diversidade espacial – Ainda há muita estrada a se fazer nesse item, sobre o qual ainda pesa um enorme desconhecimento, que só fortalece a incidência de relações de discriminação. Ainda pouco se atenta para as implicações concretas resultantes da avaliação comum que se faz entre quem vive na capital, em relação a quem vive no interior; entre quem mora na zona urbana e quem habita o campo; entre quem é do Norte/Nordeste e quem nasce no Sul/Sudeste; entre quem é do chamado “Primeiro Mundo” e quem é dos países periféricos do Capitalismo, e assim por diante. Até mesmo entre estes últimos, não se avalia por critério de eqüidade quem é brasileiro e quem é paraguaio, boliviano...

Situação que se reproduz também ao interno da vida escolar. Será que é o mesmo o conceito que, perante colegas e professores, costumam ter alunos e alunas da zona rural, em relação aos seus colegas da cidade? Qual o conceito dominante dos alunos e alunas que freqüentam as escolas das periferias, em relação aos seus colegas que estudam em escolas do centro da cidade? Situação mais agravada, quando se faz a clivagem da avaliação mais comum de alunos e alunas da rede pública e da rede privada. Ainda persiste, por aí afora, uma montanha de preconceitos e discriminações, a ser removida.

No tocante às relações geracionais, no caso do universo escolar, não há muito a considerar, até por conta do relativo equilíbrio das faixas etárias predominante. Mesmo assim, não se pode descartar completamente a incidência de alguns traços de discriminação. Uma pergunta, a esse respeito, pode ajudar a compreender parte do problema: por que será que as crianças costumam demonstrar uma pressa cada vez maior de atingir idades superiores à sua? Até que ponto, elas se sentem bem acolhidas enquanto crianças?

Como se percebe, é enorme o leque de situações diversas que, também no universo escolar, se vivencia. Pode-se apresentar um  leque ainda mais amplo, de modo a incluir o rico mosaico das relações de trabalho, o trato em relação à Mãe-Natureza, as relações com o Sagrado, entre outras. Todas merecem ser diligentemente trabalhadas, numa perspectiva de formação omnilateral, pressuposto fundamental do processo de humanização, numa ótica libertadora. Outras dimensões merecem igualmente nossa atenção.

Exercitar as múltiplas linguagens que as artes nos proporcionam, inclusive como instrumento político-educativo – No cotidiano escolar, embora suspeitemos da diversidade enorme de situações dos alunos e alunas, temos a tendência a padronizar nossos critérios de atuação, e às vezes até sob a alegação de um “tratamento igual para todos”... E assim procedendo, conscientemente ou não, nos deparamos com situações de grande injustiça. Por exemplo, apesar de constatarmos em sala a existência de alunos e alunas dotados de diferentes talentos artístico-culturais, sucumbimos à injustiça do nosso critério de padronização. Ou seja, recorremos – por vezes, abusivamente - à oralidade, cobrando dos alunos e alunas igual desempenho. Ocorre que tal linguagem se presta como uma luva para uma minoria de alunos e alunas, que, bem dotados do dom da oralidade, se saem de modo excelente. Mas, e aqueles e aquelas que, embora não tendo a oralidade como seu ponto forte, demonstram outras habilidades igualmente relevantes: desenham bem, tocam algum instrumento, são portadores de voz privilegiada, têm pendor para artes cênicas, ete., etc. E aí: como é que não suspeitamos que, a mantermos a nossa postura padronizadora, estamos sendo injustos em relação a esses alunos e alunas, por não lhes proporcionar, como devíamos, as condições que os estimulem a revelar seus talentos, assim contribuindo para uma avaliação escolar que lhes faça justiça?

E, ainda a esse propósito, convém atentar para um fato cada vez mais comum: a presença, no espaço escolar, de crianças com deficiência, portadoras, portanto, de necessidades especiais. Aqui, a pergunta desponta inevitável: de que modo vamos garantir-lhes o direito à aprendizagem, tal como o fazemos em relação aos demais alunos? 

Cultivar a força transformadora do “sonho acordado”, da Utopia freireana – Atestado de sabedoria é estimular e exercitar a sensibilidade dos alunos e alunas, a partir de seus legítimos sonhos. Os Humanos são também reconhecidos como seres de desejo. Ontem como hoje, o desejo tem-se manifestado como um fator relevante de transformação. Ernst Bloch falava do “Sonho Acordado”, Freire aposta na força transformadora da Utopia. Bem trabalhada – ou seja: trabalhada na perspectiva de uma humanização libertadora -, a Utopia se constitui num instrumento eficaz de transformação, também no universo da escola. 

Repensar uma escola que possa contribuir nesse horizonte de sociabilidade implica, conseqüentemente, ter presentes situações as mais diversas, sob o ponto de vista econômico, político e cultural. Implica, por exemplo, firmar e preservar parcerias estratégicas com as famílias dos Alunos e com as Comunidades. Implica, igualmente, tomar em conta conteúdos e procedimentos metodológicos, de modo a priorizar o estudo da realidade concreta mais próxima. Do ponto de vista ético-político, demanda, por exemplo, sustentar atividades docentes e discentes em processo, enfatizando-se a unidade teoria-prática. Implica, não menos, ousar-se o instituinte, promover e ensaiar ações de caráter instituinte.


Considerações sinópticas


Nossa proposta foi a de exercitar um olhar crítico, a partir do nosso universo escolar, sobre as condições que nos permitem passar de um quadro pontilhado de sinais de desumanização, nas mais variadas esferas da realidade social, a um horizonte de incessante humanização dos Humanos em harmonia com o Planeta. Nossa inquietação-chave, proposta pelo tema deste Simpósio, consistiu em examinar que tipo de escola é capaz de contribuir nessa direção. 

Para tanto, entendemos necessário ter claro, como ponto de partida, o tipo de Gente que pretendemos formar, em nossas escolas. Tratamos, em seguida, de confrontar esse ponto de referência inicial com o perfil básico de nossos alunos e alunas, constatando a distância abissal entre o que desejamos e a realidade circundante. Vimos que, a manter-se tal configuração de sociabilidade, torna-se inviável a meta desejável – a de vencer as barreiras interpostas pelos múltiplos sinais de barbárie presentes, em direção a um processo de formação apontando para o atendimento das necessidades fundamentais e das legítimas aspirações do conjunto dos membros de nossa sociedade. Após ousarmos esboçar as linhas básicas do horizonte de sociabilidade em que apostamos, buscamos pontuar algumas tarefas concretas ao alcance de nossas escolas e dos respectivos protagonistas, de modo a contribuir com a construção de um horizonte humanizador dos Humanos em sintonia com todos os viventes do Planeta.

Do leque de quefazeres ao alcance de nossas escolas e respectivos protagonistas – discentes, docentes, gestores, corpo técnico-administrativo, famílias, comunidades -, destacamos aspectos tais como:

- o conhecimento do perfil de nossos alunos e alunas, graças ao qual nos seja possível identificar melhor suas possibilidades e seus limites;

- a promoção de seu protagonismo, exercitada de várias maneiras, começando pela identificação de seus saberes prévios que assumimos como ponto de partida para a construção de saberes necessários à sua formação;

- o recurso a diferentes linguagens artístico-culturais, por meio das quais os alunos e alunas se sintam estimulados a descobrir e a exercitar suas potencialidades, sem deixar de reconhecer seus limites;

- trabalhar a memória histórica da Humanidade, em diferentes espaços e tempos, de modo a descobrir suas conquistas e seus feitos, seus tropeços e lutas, seja no âmbito coletivo, seja em nível individual (figuras históricas que nos servem ainda hoje como referência);

- reconhecer a força do desejo, do sonho, da Utopia, como catalisadores de mudanças, na perspectiva do horizonte almejado;

- exercitar as potencialidades extraordinárias das relações do cotidiano, como espaço social que permite vivenciar, por meio da adequada relação teoria-prática, diferentes aspectos da sociabilidade almejada, na tessitura dos múltiplos fios existenciais (gênero, idade, etnia, espacialidade, ecologia, trabalho, cidadania, relações com o Sagrado...


João Pessoa, abril de 2008