quinta-feira, 19 de outubro de 2017

POR UMA CULTURA CONECTIVA DAS AÇÕES LIBERTÁRIAS: a mística como fonte de alimentação, no chão do dia-a-dia

POR UMA CULTURA CONECTIVA DAS AÇÕES LIBERTÁRIAS: a mística como fonte de alimentação, no chão do dia-a-dia

Alder Júlio Ferreira Calado

 Historicamente vocacionados a perseguir uma vida em plenitude,  isto é, uma vida com liberdade, defrontamo-nos, a cada dia, com uma multiplicidade de obstáculos existenciais, de natureza vária. Aqui e ali, até conseguimos protagonizar uma ou outra ação impregnada deste horizonte libertário, mas, em seguida, nos flagramos em situações franca ou veladamente contraditórias... No plano político, por vezes, logramos testemunhar iniciativas valiosas, ao tempo em que, noutras esferas da vida, nos damos conta de que estamos a contradizer princípios ou metas correspondentes ao que declaramos, no âmbito político. Coisa ainda pior sucede no campo religioso: passamos uma imagem de compromisso com o horizonte ético, pelas vias do Sagrado, de um lado, e, de outro, nos percebemos em situações frontalmente em choque com a imagem transmitida.

Em momentos de crises mais agudas, tais contradições soem vir a lume, com maior frequência. É sabida a imagem passada por não poucos integrantes da chamada “Bancada evangélica” da Câmara. Não poucas de suas figuras de referência transmitem de si uma imagem de guardiães da moral, dos bons costumes e dos valores sagrados. Não raramente, por outro lado, resultam intrigantes cenas bizarras protagonizadas por algumas dessas mesmas figuras. Tanto mais, quando fazem questão de usar e abusar do nome de Deus. Apenas dois casos ilustrativos, pela sua força didática. No auge das graves e numerosas acusações assacadas contra o ex-Deputado Eduardo Cunha, este foi recebido por alguns pastores, em seus respectivos templos, para receber algum tipo de elogio e apoio públicos, como é possível observar-se nos Vídeos que seguem, acessíveis pelos respectivos “links”:


Trata-se de casos extremos e bem à vista. Evidentemente, isto não se passa apenas no mundo Evangélico. Estende-se pelas mais distintas expressões religiosas. Importa, igualmente, ter presentes tantos casos que ocorrem no dia-a-dia bem menos à vista, mas não menos éticamente comprometedores. Também, isto não se passa apenas na esfera religiosa: nas mais diversas esferas da vida cotidiana, algo semelhante se passa. E, tal como no caso daquelas figuras de notoriedade algo semelhante e até com mais frequência, se dá nas diversas esferas do dia a dia, envolvendo também pessoas comuns.

Tais exemplos assumem um grau de maior reprovação, quando se tenta encobrir os malfeitos justificá-los, sem qualquer atitude de reconhecimento da gravidade dos feitos, o que só agrava ainda mais os deslizes cometidos: “bis peccat qui crimen negat” (peca duas vezes quem nega o crime).

O processo de humanização se da no chão da história, numa infinda multiplicidade de fios existênciais, isto é, numa enorme diversidade de situações. O desafio maior para quem se empenha no próprio processo de humanização é de dupla ordem: de um lado, tomar consciência da ampla diversidade e da complexidade desses fios existênciais; por outro lado, consciente de seu inacabamento e de seus limites, cuidar de ir costurando esses mesmos fios, de modo adequado e de modo a que seja capaz de ir tecendo-os, na perspectiva do horizonte perseguido. Não se trata de idealizar ingenuamente, como se para tanto bastasse um resoluto golpe de vontade (voluntarismo), sem se dar conta dos próprios limites e da complexidade das situações histórico-existênciais em curso ou a serem enfretadas, dia após dia.  São, com efeito, de grande porte os desafios supervenientes. De todos os lados, despontam dificuldades. O fato de estarmos mais atentos e preparados para um enfrentamento exitoso, num ou em alguns de tantos que surgem, não deve nos contentar ou nos resignar com o já feito. Atitude, aliás, a ser testemunhada, não apenas diante das micro-relações, mas igualmente ante as macro-relações. Nestas, por exemplo, de modo a vencermos a tendência dominante, por exemplo, no plano do enfrentamento das mazelas do Estado, não raro, contentando-nos com a mera exigência de “mais verbas” para isto ou para aquilo, sem nos darmos conta de que não basta o “quantum” demandado, se negligenciarmos o poder extremamente corrosivo dos tantos “ralos” criados ao  sabor de um Estado subserviente aos caprichos de uma classe dominante perdulária, usando e abusando de numerosos “ralos”, por onde escorrem escandalosos percentuais do bolo orçamentário, antes que  cheguem (se e quando chegam!) aos destinatários formais/nominais. No longo e sinuoso percurso burocrático, entre os percentuais formalmente definidos e as habituais vítimas destinatárias, mil e um desvios se terão interposto, sob múltiplas formas – desde os “rent seekers” (caçadores de renda, velhas raposas, que agem como verdadeiras quadrilhas profissionais, sob o manto da legalidade) às costumeiras práticas de superfaturamentos , atrasos no calendário de conclusião de obras, renúncia fiscal, seletivos perdões de dívidas, etc., etc. Coisas semellhantes sucedem, “mutatis mutandis”, nos demais aparelhos de Estado... Apenas um exemplo – para fins didáticos -, no plano das macro-relações. Há que se conectar adequadamente esta esfera a tantas outros do percurso existencial, inclusive à esfera das micro-relações do dia-a-dia, de que cuidaremos, mais enfaticamente, a seguir.

 Assim como no plano das macro-relações, o horizonte libertário que somos chamados a construir, comporta igual cuidado com a tecedura dos fios existenciais do dia-a-dia, nos mais distintos aspectos. Partimos, tambem aqui, da tomada de consciência progressiva de nossa inconclusão, dos nossos limites, sem, porém, deixar de manter presentes também nossas potencialidades. Animados de tais sentimentos, ousamos percorrer algumas trilhas dessas micro-relações.
Embora comportando uma notável diversidade de campos de atuação, conforme nossos pertencimentos e atividades do dia-a-dia (no trabalho profissional, nas escolas, na família, nas atividades sindicais, partidarias, nos moviementos sociais, no campo religioso, etc., etc.), ainda assim, nossas agendas cotidianas incluem um leque significativo de confluência de ações, ao tempo em que um expressivo número de atividades constantes destas mesmas agendas tem a ver com nossas escolhas pessoais. Um exame (auto) avaliativo dessas agendas nos permite fazer um balanço da qualidade de nossas atividades do dia a dia. Serão todas ou em sua maioria, defensáveis no tocante ao alvo libertário que perseguimos? Nessas agendas, que atividades podem ser avaliadas como correspondentes ou coerentes com o rumo almejado? Nesse mesmo sentido, que atividades têm resultado em frutos proveitosos? Que atividades, por outro lado, não parecem apontar na direção desejada? Que distância se pode constatar entre o que planejamos para nós mesmos e as respectivas realizações? (“tra il dire e il fare, c'è di mezzo il mare”) Que percentual de nossos sonhos temos sido capazes de alcançar, considerando-se os sonhos mais plausíveis? Temos tomado alguma atitude concreta em relação a este exame? Por pequenos que pareçam, que passos fomos e somos capazes de ousar? 

É justamente neste ponto que sentimos necessidade de exercitar a mística como fonte propulsora de passos alternativos, visando a, de um lado, reconhecer nossos limites, e, de outro, também reconhecer e exercitar, no chão do dia a dia, nossas potencialidades. E aqui tratamos da mística, não apenas em sua dimensão teológica, mas também em sua acepção revolucionária. Isto pressupõe um compromisso ético, exercitado, dia após dia, no intuito de percebermos lacunas e avanços em nosso quefazer diário. Implica um progressivo esforço (coletivo e pessoal), orientado em várias direções interconectadas. Pode suceder que, em minha/nossa lista de compromissos diários, em distintas esferas, alguns venham corespondendo – a julgar pelos frutos! – ao meu/nosso processo de humanização. Estes me/nos chamam a aprimorar. Os que se distanciam deste horizonte – e podem não ser poucos – devem merecer a incidência de meu/nosso discernimento e empenho em rever, retificar rumo, caminhos e posturas. Um risco frequente, neste balanço, é o de me contentar com apenas um ou outro quefazer bem sucedido, ainda quando temos consciência de que, em vários deles, os frutos se mostram nulos ou medíocres, por vezes até contrapostos ao horizonte almejado. Pior ainda, quando, em vez de nos empenharmos em ousar pequenos passos alternativos, tendemos a uma estéril atitude autojustificativa: “Ah! Eu já faço minha parte. O que faço já está bom, dá para ir levando. Vejo tanta gente comportar-se assim... Por que eu não poso?”...

Nesse sentido, o exercício cotidiano da mística nos ajuda sobremaneira. Por exemplo quando tomamos a iniciativa de elencar vários projetos ou sonhos factíveis e ao nosso alcance, correspondentes ao nosso processo de humanização. Damo-nos conta de que tais projetos são ditados pelo âmago de nossa consciência, sentido-nos bem motivados nessa direção. Por vezes, trata-se de simples planos, tais como: contemplar a natureza, ousar aprender um instrumento músical, ensaiar uma poesia, exercitar algum trabalho de pintura, de escultura, de aprendizado de língua, de nos reservar mais tempo de meditação, de pedalar, de fazer caminhada, de fazer visitas, de fazer viagens, etc., etc., etc. Chegamos mesmo a fazer um cronograma. O problema está, porém, de dar o primeiro passo, de iniciar efetivamente algum desses passos. O tempo vai passando, passando, passando, e acabamos mergulhados na mesma rotina, movidos pela normose, fonte de dissabores, de tédio e até de doença...

Conscientes de nossa inconclusão, dos nossos limites, sabemos que a incessante busca de superação dos mesmos passa necessariamente pela relacionalidade, isto é, pela inserção em, e aprendizado contínuo com outros sujeitos (individuais e coletivos). À medida que exercitamos o diálogo, a troca de relatos de experiências, vamos aprendendo e obtendo meios e encorajamento recíproco de ensaiar passos de recuperação ou de superação dos nossos limites, aprendendo também com os erros e acertos próprios e dos outros. Aprendemos com os outros sua experiência de superação de limites e insuficiências que, antes, pensavam não conseguirem: “Eu sou assim mesmo, sempre fui: tenho essas limitações, e não tenho como superá-las. Todavia, com esforço e persistência – portanto, com a força de vontade -, após ousarem dar um primeiro passo, foram percebendo, sim, ser possível superar limites e insuficiências, sustentados por uma mística de compromisso de buscarem dar passos concretos, nesse sentido. Atitude que nos contamina, positivamente, e nos anima a ousar também passos, nesse sentido. Ou seja: conseguiram vencer uma tendência essencialista: “Minha natureza é assim, e não posso mudar!”... Mas, à medida que ousavam perceber-se como seres históricos e de cultura, passaram a ouosar um passo, a cada dia, numa perspectiva libertária, rompendo as grades da própria jaula, e descobrindo o sabor da Liberdade, passando a ser movidos por suas trilhas e em direção ao seu horizonte. Passar da condição de cumpridores de tarefas heteronômicas, para um progressivo assumir do próprio destino libertário; passando da condição de meros fios existenciais tecidos conforme orientação  externa, a costureiros, costureiras da própria malha existencial, apoiando-se num grande mutirão de tecedrua junto com outros tecelões e tecelãs, mas sempre a partir do seu horizonte libertário (pessoal e coletivo).

Nessa direção, há de se romper progressivamente múltiplas algemas, principalmente as algemas invisíveis, remanescentes na própria consciência hospedeira de determinações externas, enquanto se vai tentando abrir caminho para a tecedura de fios existenciais autônomos, emancipatórios. Aqui, se vai dialogar com a própria conciência, auscultando, no seu mais íntimo, o que inspira o Sopro Fontal, com relação a um horizonte libertário. Por exemplo, a tomada de decisão de conferir tantos pequenos e grandes planos indefinidamente adiados, inviabilizados que foram por determinações ou por condicionamentos alheios. Planos do tipo:
- retomar leituras identificadas como de sua mais forte escolha (no campo da literatura, da ficção, dos grandes romances clássicos; no plano da literatura na própria área profissional, igualmente adiadas por circunstância da rotina normótica; exercício de algum tipo de arte também adiado para as calendas gregas; aprendizado de um novo idioma; dar-se ao exercício de caminhadas; tempo de contemplação/meditação/oração; dar-se ao trabalho de registrar fatos mais impactantes de seu percurso existencial; ousar cuidar da saúde, pelas vias das terapias naturalistas; tomar coragem de não se deixar aprisionar pela onda escravizante de redes sociais mais voltadas ao gosto da moda (fofocas, exibicionismo, consumismo, troca de insultos; piadas de péssimo gosto; divulgação de “correntes” e de vídeos preconceituosos; mensagens de intrigas e autoafirmação patológica; rotina de conferir páginas ou mensagens da parte de círculos mais próximos, sem a necessária autocrítica;
enfim, toda uma longa programação de um protagonismo alternativo àquela rotina normótica, em que se acabou enjaulando-se, e a ela amoldando-se, com consequências negativas diversas. Ousar o “inédito viável” (Paulo Freire), também nas micro-relações, desprendendo-se de falsas seguranças, de bens supérfluos, aprendendo a fazer feliz com o necessário (“Buen Vivir), sem apego a acumulação de bens sedutores... E, sobretudo, dedicando a vida a serviço de quem mais precisa, do Planeta, dos humanos, dos viventes, sendo um com eles.

João Pessoa, 19 de outubro de 2017.




quarta-feira, 11 de outubro de 2017

“SI VIS PACEM, PARA BELLUM” – A LÓGICA DOS DOMINADORES...

“SI VIS PACEM, PARA BELLUM” – A LÓGICA DOS DOMINADORES...

Alder Júlio Ferreira Calado

Em meio a uma síndrome de beligerância, em que nos encontramos mergulhados, ante a insana troca de ameças entre os presidentes da Coréia do Norte e dos Estados Unidos, de lançarem bombas nucleares sobre seus respectivos territórios, soa como lenitivo a notícia do Prêmio Nobel deste ano haver sido concedido a uma rede de organizações civis de vários países, inclusive o Brasil. Trata-se da International Campaign to Abolish  Nuclear Weapons – ICANW (vide sua página virtual:
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Não deixa,com efeito, de ser um pequeno passo, da parte de organizações de nossas sociedades, na busca de refrear a gula belicista, tão ao gosto das ditaduras, que costumam justificar seu ímpeto belicoso, apelando para uma frase, que remonta a autores gregos e latinos. Na formulação latina, a frase vem assim cunhada: “Si vis pacem, para bellum” (“Se queres a paz, prepara a guerra”). Desde Tucídides, passando por Horácio, Lívio, Cícero até aos modernos e contemporâneos, a tese tem assumido ares de consenso, quer à direita, quer à esquerda e ao centro. Ou não é mesmo esta, a tese amplamente dominante entre nós, no noticiário cotidiano? Em medida não desprezível, tal ideologia resulta fortemente alimentada pela infinda série de programas midiáticos diários, com altíssimos índices de audiência, a relatarem sucessivas ocorrências criminais, sob pretexto de estarem retratando nossa realidade de cada dia. Daí não ser por acaso o retumbante sucesso alcançado, de campanhas de armamento da população (“Precisamos armar os cidadãos de bem!”... Ainda anteontem, (09/10/2017), a Rádio Band News FM informava, com crítica apreensão, da campanha apregoada, no Pará, por Jair Bolsonaro,  figura de ultradireita, no sentido da necessidade de se armar a população, como se já não se disupusesse de excesso de armas, neste país...

O crescente descolamento observável, em nossas sociedades, entre processo e resultado, com atenção concentrada exclusivave neste último, tem a ver com aspectos fundantes da atual síndrome beligerante. Importam, apenas e tão somente, resultados IMEDIATOS, FRAGMENTÁRIOS, PONTUAIS, para satisfação de segmentos enfeitiçada pela razão da força, como na fábula de Fedro, na versão conferida por La Fontaine: “A razão do mais forte é sempre a melhor” (“La raison du plus fort est toujours la meilleure”). Nessas circunstâncias de progressiva cegueira coletiva, não haveria surpresa uma eventual vitória da tese de pena de morte ou até de justiçamentos de “bandidos” (desde que estes sejam os outros, jamais os nossos...).

Por mais que  exercitemos a apreciação crítica da realidade, assusta-nos sobremaneira uma certa tendência de banditização, não apenas do Estado brasileiro (e outros), mas de amplos e crescentes segmentos de nossa sociedade, sempre a apostar – e sempre com mais audácia! – na razão da força! Isto se faz presente no dia-a-dia das relações, expressando o fracasso de noosso processo organizativo e formativo. Nas linhas que seguem, associamo-nos, não obstante nossa limitação, ao esforço de  grupos e pessoas comprometidos com a construção de alternativas, a curto, médio e longo prazos, a esta pavorosa cultura da vioência, sob suas mais distintas manifestações, cuidadamos de oferecer algum tipo de contribuição, ainda que mínimo, a essa tragédia humana e planetária, tecendo algumas considerações, na perspctiva de alternatividade  a essa barbárie, mais do que anunciada, mas já amplamente presente entre nós. Nosso propósito aqui é, sobretudo, de buscar desmontrar a ideologia da guerra apresentando-se como pretensa via de construção da paz.

Na tentativa de fazer valer suas teses equivocadas, os ideólogos da violência como pretensa estratégia de paz, costumam recorrer a um cipoal de pretextos, dos quais destacamos alguns, por meio de expressões-chave:
- a violência faz parte do ser humano, como de todo o mundo animal, razão por que importa refrear os excessos de violência, confiando ao Estado o monopólio do emprego da violência;
- os cidadãos de bem só se protegem da violência dos bandidos, armando-se à altura do seu poder de fogo;
- desde que o mundo é mundo, a violência tem sido – e vai continuar sendo – prática coriqueira, necessitando-se apenas conter os excessos;
- para assegurar a paz no mundo, é dever da comunidade das nações (ONU) confiar a apenas aos Estados componentes do Conselho de Segurança (permanente) o direito de produzir e controlar armas nucleares, proibindo aos demais Estados de produzir essas mesmas armas.
- deve-se combater a ameaça externa de lançamento de bombas, armazenando-se e aumentando o poder de fogo dos cidadãos ameaçados;
Eis apenas algumas das alegações, por parte das grandes potências, de autojustificar seu suposto direito de controlar a produção de armas nucleares, sendo a tão-somente as detentoras deste pretenso direito. Alguns países, não sem sob sua cumplicidade, avançaram também ao mesmo patamar...

Não surpreende que, com certa frequência, apareçam atitudes de contestação e rebeldia contra tal privilégio.

Não cessa aí a insânia da dominação. Seus ideólogos não param de formular pomposas autojustificativas, com o intuito de justificarem o injustificável. Uma dessas alegações consiste em acusar quem tente romper essa barreira, de terroristas perigosos à paz mundial... Mais: outros alegam, até recorrendo a sábios, como Sêneca, para tentarem justificar suas posições necrófilas, argumentando, por exemplo, que Sêneca estaria no rol dos filósofos que teriam justificado o uso da violência como meio para controlar a própria violênca. Com efeito, aludem a uma afirmação de Sêneca, segundo a qual é preciso manter-se alerta preventivamente ante situações adversas. Sábia afirmação que nada tem a ver com uma suposta defesa da necessidade de se armar para preservar a paz. 



Quem ganha com a onda armamentista?

Quase sempre passam ao largo as raízes mais fundas da ideologia belicista. Ao se acentuar a percepção dos efeitos da questão, permite-se manter veladas as verdadeiras razões da avidez belicosa. À medida que as imagens, as reportagens, os comentários e os olhos (estes, sim, desarmados!) do grande público se concentram nos efeitos pirotecnicos da violência, suas raízes vão sendo propositalmente negligênciadas ou ocultadas. Mesmo em casos extremos, como vem acontecendo nos Estados Unidos e, em menor escala, em outros países, os comentários incidem quase todos, em medidas superfíciais, meramente atenuantes da barbárie praticada. A pergunta de fundo, que permite vislumbrar a raíz do problema, costuma ser escanteada: “Quem ganha com a onda armamentista?” – eis aí a pergunta-chave a ser discutida.

No modelo capitalista, em sua fase atual, as classes dominantes (o Mercado capitalista) e dirigentes (o Estado) têm na Industria Belica e de armamentos, se não “a”, com certeza uma das principais fontes de acumulação de riquezas. É da natureza do progresso e da manutenção desta industria que se promovam as guerras entre as nações entre segmentos ao interno de cada país. O estado de paz não lhe interessa: significaria seu congelamento ou mesmo sua involução. Quanto mais conflitos armados, de alta ou de baixa intensidade, mais armas se consomem, gerando a necessidade de novos armamentos a serem repostos. Para a lógica do Capital, pouco ou nada importam millhares ou milhões de mortos e mutilados, menos ainda os gravíssimos danos causados, não apenas a hospitais, a escolas, a universidades, a edifícios históricos, a estradas, a pontes, etc., etc., etc. O importante é que se obtenha lucro. Assim sucede a todas as grandes potências, cujos governantes, não por acaso, são frequentemente financiados pela industria de armamentos.

Também, no caso do Brasil, “mutatis mutandis”, a lógica é a mesma, com relação a situações de verdadeira guerra não declarada, cujas consequências são diariamente armargadas pelo Brasil afora, ainda que com intensidade extrema em algumas regiões, como no Rio de Janeiro. A pergunta chave a ser feita, também aqui, é a mesma!






A mania de se tratar como alvo de execução faz lembrar velhas declarações de grandes latifundiarios defensores “da reforma agraria”: “desde que seja na terra dos outros”.

Guerra se previne com armas ou pelo reinado a justiça?
Em um exame mais cuidadoso da história recente e menos recente, é possível observar o caráter equivocado da estrategia, ainda amplamente dominante, de se obter a paz pela via das armas. A razão da força não garante condições duradouras de paz, de liberdade, de democracia. Até podem impor-se, por um certo tempo, mas, justamente por isso, não têm a força de convencimento, de persuasão, capaz de garantir vigência, até porque suscitam resistências inevitaveis por parte de amplos segmentos de cidadãos conciêntes e dispostos a participarem das decisões concernentes ao seu destino histórico.
Tal arazoado é também extensivo a experiências socialistas que, tendo seu projeto sido alcançado pela via das armas, acaba, não raro, reproduzindo os vícios do antigo regime, impondo pela razão da força o que só se consegue fundamentalmente pela força da razão, da persuasão, da adesão livre e consciente dos cidadãos e cidadãs. Isto não quer dizer que a superação da dominação de classe não comporte algum tipo de recurso à autodefesa dos direitos das maiorias, desde que tal recurso não se constitua o principal instrumento para se fazer valer a nova ordem alternativa ao antigo regime.

No atual contexto – inclusive no tocante à atual correlação de forças e ao refinado controle científico-tecnológico militar, tem despontado – para as classes populares – como bem mais eficazes, recursos como a desobediência civil e a a não-violência ativa.

Nesse sentido, vão as corajasas denúncias formuladas por documentos tais como a Encíclica Pacem e Terris (escrita em 1963, pelo Papa João XXIII) e pela Encíclica Populorum Progressio (escrita, em 1967, pelo Papa Paulo VI, ao afirmarem, por exemplo, coisas do tipo, como na Pacem in Terris:


“É-nos igualmente doloroso constatar como em estados economicamente mais desenvolvidos se fabricaram e ainda se fabricam gigantescos armamentos. Gastam-se nisso somas enormes de recursos materiais e energias espirituais. Impõem-se sacrifícios nada leves aos cidadãos dos respectivos países, enquanto outras nações carecem da ajuda indispensável ao próprio desenvolvimento econômico e social. (PT, n.109)”

- “Costuma-se justificar essa corrida ao armamento aduzindo o motivo de que, nas circunstâncias atuais, não se assegura a paz senão com o equilíbrio de forças: se uma comunidade política se arma, faz com que também outras comunidades políticas porfiem em aumentar o próprio armamento. E, se uma comunidade política produz armas atômicas dá motivo a que outras nações se empenhem em preparar semelhantes armas, com igual poder destrutivo. (PT, n.110)”

-“O resultado é que os povos vivem em terror permanente, como sob a ameaça de uma tempestade que pode rebentar a cada momento em avassaladora destruição. Já que as armas existem e, se parece difícil que haja pessoas capazes de assumir a responsabilidade das mortes e incomensuráveis destruições que a guerra provocaria, não é impossível que um fato imprevisível e incontrolável possa inesperadamente atear esse incêndio. Além disso, ainda que o imenso poder dos armamentos militares afaste hoje os homens da guerra, entretanto, a não cessarem as experiências levadas a cabo com uns militares, podem elas pôr em grave perigo boa parte da vida sobre a terra. (PT, n.111)”

-“Eis por que a justiça, a reta razão e o sentido da dignidade humana terminantemente exigem que se pare com essa corrida ao poderio militar, que o material de guerra, instalado em várias nações, se vá reduzindo duma parte e doutra, simultaneamente, que sejam banidas as armas atômicas; e, finalmente, que se chegue a um acordo para a gradual diminuição dos armamentos, na base de garantias mútuas e eficazes.” (PT, n.112)”


Assim como na Populorum Progressio
-“Certamente há situações, cuja injustiça brada aos céus. Quando populações inteiras, desprovidas do necessário, vivem numa dependência que lhes corta toda a iniciativa e responsabilidade, e também toda a possibilidade de formação cultural e de acesso à carreira social e política, é grande a tentação de repelir pela violência tais injúrias à dignidade humana. (PP, n.30)”

- “Quando tantos povos têm fome, tantos lares vivem na miséria, tantos homens permanecem mergulhados na ignorância, tantas escolas, hospitais e habitações, dignas deste nome, ficam por construir, torna-se um escândalo intolerável qualquer esbanjamento público ou privado, qualquer gasto de ostentação nacional ou pessoal, qualquer recurso exagerado aos armamentos. Sentimo-nos na obrigação de o denunciar. Dignem-se ouvir-nos os responsáveis, antes que se torne demasiado tarde. (PP, n.53)”

Trata-se de afirmações feitas há mais de meio século. De lá para cá, obsevamos com tristeza que a tentação de se obter a paz pela via das armas e das armas nucleares não apenas se manteve, como se tem agravado, inclusive com consequências efetivas de crescente degradação de nossa “Casa Comum”. Anima-nos, contudo, a teimosia das “correntezas subterrâneas”, em seu permanente esforço de construir um novo modod e produção, um novo modo de consumo e um novo modo de gestão societal, em respeito à dignidade do planeta e de toda a comunidade dos viventes.

João Pessoa, 11 de Outubro de 2017.


















sexta-feira, 6 de outubro de 2017

APRENDIZADO DAS JORNADAS COMUNITÁRIAS E DA SESSÃO DE ENCERRAMENTO DA VII SEMANA TEOLÓGICA Pe. JOSÉ COMBLIN

APRENDIZADO DAS JORNADAS COMUNITÁRIAS E DA SESSÃO DE ENCERRAMENTO DA VII SEMANA TEOLÓGICA Pe. JOSÉ COMBLIN

Alder Júlio Fereira Calado

Encerrada, sábado próximo passado, dia 30/09, a VII Semana Teológica Pe. José Comblin (VII STPJC),  ainda está por ser feita uma avaliação por parte dos grupos coorganizadores da mesma iniciativa. Aqui nos permitimos compartilhar alguns pontos mais destacados, recolhidos  do denso aprendizado.

Conforme a programação, a VII STPJC compôs-se de quatro Jornadas Comunitárias (urbanas e rurais): a realizada em Cabedelo com a CPT (dia 10/09), a do Rangel (dia 03/09), a de Café do Vento (dia 17/09) e a do Alto do Mateus (dia 24/09), além da Sessão de Encerramento (dia 30/09).

Ao longo dessas semanas, cuidamos de refletir, em mutirão, a partir do tema geral da VII STPJC – “Instiuição e Carisma à luz da Tradição de Jesus”, com rebatimentos em alguns sub-temas, ligados às comemorações dos 500 anos da Reforma (chamando a atenção aos clamores por reformas profundas e urgentes, também ao interno da Igreja Católica Romana; a importância do Movimento de Terapia Comunitária Integrativa; o desafio de se exercitar a mística, em tempos de crise; o desafio de enfrentarmos, hoje,  os caminhos em busca de transformação social, alternativa ao atual modelo imperante.

Um dos objetivos mais apreciados, em sucessivas avaliações desta iniciativa, em edições precedentes, é o de promover ampla participação, desde a construção temática, de distintas comunidades do campo e da cidade, num permanente mutirão formativo. É este protagonismo que tem conferido, ano após ano, sabor especial e frutos memoráveis produzidos pela experiência das Jornadas Comunitárias. Hora entre comunidades do campo, hora entre comunidades das periferias urbanas, é confortante experimentar o entusiasmo e a dedicação das pessoas participantes, sentindo-se protagonistas do processo de construção dessas STPJC.

Por meio de uma metodologia fortemente participativa, as Jornadas Comunitárias tratam de semear experiências de protagonismo dos participantes, que se sentem estimulados a dar sua contribuição nos debates de cada tema, principalmente partindo de sua realidade local, conectada com a realidade regional, nacional, mundial. No caso específico da VII STPJC, os participantes cuidaram de trazer sua contribuição quanto às tensões observadas entre instituição e carisma, sempre a partir dos desafios de sua realidade local. Aí vêm a lume relatos de casos concretos, ilustrativos das tensões entre, por um lado, a figura de um padre ou de uma coordenação paroquial tendentes a controlar os serviços realizados na comunidade, e, por outro, a capacidade de pessoas ou de grupos, de romperem o silêncio, de perderem o medo, de questionarem e até de se oporem àquela tendencia. Algumas vezes, com sucesso; outras vezes, tendo que suportar atitudes mais agressivas e até algum tipo de marginalização. Acabam compreendendo que faz parte da missão profética algum tipo de represália. Importa assinalar, a este respeito, que quase sempre atitudes corajosas proféticas de questionamento ao monopólio paroquial partem de pessoas ou de  grupos que investem em sua formação contínua. É o caso dos participantes de uma dessas Jornadas Comunitárias, a primeira, reazlizada em Cabedelo. Falavam das experiências de uma comunidae de assentamento rural. Diante da insensibilidade do vigário, a insistir que todos venham ao templo, e queixando-se da reduzida fraquência, negava-se a celebrar naquela comunidade, ou memso de visitá-la. A comunidade tratou de celebrar a Palavra, semanalmente. Quando um padre se apresentava por lá, era bem-vindo e celebrava-se a Eucaristia, por ele(s) presidida; quando não, cuidavam de assegurar comunitariamente a Celebração da Palavra. Em outra Jornada Comunitária, aprendemos mais: as comunidades, na ausência de padre, tomavam a iniciativa de celebrar a Palavra, e nela, abençoar e partillahr o pão. Também aqui, fala forte o processo formativo com que aquelas pessoas e comunidades andam comprometidas. Certa vez, por ocasião de um dos tantos cursos aí organizados, um deles trazia a história do Concílio Vaticano II e das Conferências Episcopais, com foco em seus respectivos documentos, um deles, aquele Compêndio do Concílio Vaticano II, da Editora Vozes. Uma das pessoas participantes, com o mencionado livro em mãos, confidenciava: “É a primeira vez que tomo conhecimento disto. Isto não me foi ensinado, antes...”

Nessas Jornadas Comunitárias, aprendemos dos relatos compartilhados que as iniciativas mais fecundas e mais eficazes vêm daquelas pessoas e daqueles grupos que não se limitam a uma oposição verbal, frente à normose reinante, mas, antes, de tomada de iniciativas inovadoras, em que, agora pelas suas práticas, são capazes de demonstrar, ainda que molecularmente, que é possível fazer-se diferente, em vez de se ficar apenas esperando – em vão! – que os “de cima” mudem de atitude. Outro aprendizado igualmente relevante é que as comunidades que mais prosperam, no processo organizativo e no processo formativo, são aquelas que tomam consciência e atitude quanto à distinção entre “Igreja” e Reino de Deus, e desta compreensão passam a melhor assumir sua vocação missionária. Tal compreensão não surge por acaso ou espontaneisticamente. Surge como  expressão e resultado do seu processo formativo. Lá onde se tem investido, durante anos, em encontros de formação, cursos e seminários, os frutos logo se apresentam.

As quatro Jornadas Comunitárias, realizadas entre agosto e setembro passados, no campo e nas periferias urbanas, constittuíram momentos fortes de reflexão em cima do tema e dos subtemas, desaguaram na Sessão de Encerramento, realizada no sábado passado, dia 30/09, no auditório da Livraria Paulinas, em João Pessoa. Após as boas-vindas e a Oração inicial, animada pelo Prof. Vanderlan Paulo de Oliveira, seguindo parte do roteiro do Ofício das Comunidades,  com ampla participação dos presentes, passou-se à chamada e apresentação das comunidades e pessoas presentes (Leigas, Leigos, Religiosas, Presbíteros, Diáconos, Bispo emérito). Em seguida, foram chamados delegados e delegadas de cada Jornada Comunitária, a compartilharem os principais pontos de reflexão sobre o tema, vivênciados em cada Jornada Comunitária. Também, foi assegurado ao Pe. Hermínio Canova um breve tempo para apresentar a página virtual do sítio Teologia Nordeste, com a contribuição de Carmelo.

Seguiram-se duas preciosas exposições sobre o tema: a primeira, a cargo do Prof. Vanderlan Paulo de Oliveira, e a de Dom Sebastião Armando Gameleria Soares, Bispo emérito da Igreja Anglicana. Remetemos os interessados numa consulta dessas exposições (a serem oportunamente publicadas) ao sítio Teologia Nordeste.

Cuidamos de resumir, também, aspectos importantes do aprendizado resultante destas duas exposições.  Aprendemos que a tensão entre tradição e carisma acompanha toda a história do Povo de Deus, desde o Antigo Testamento.  Quantas vezes, inspirados por Deus, tiveram os profetas de intervir – denunciando os desmandos e anunciando o Projeto de Deus– ante as sucessivas tentações de abuso de poder, de opressão e de exploração, cometidas por reis e poderosos contra a dignidade dos membros do Povo de Deus! Tendência que segue, nos primeiros séculos do Movimento de Jesus, e vai se agravando, sobretudo, a partir do século IV, com a impropriamente chamada “cristianização do Império Romano” : antes, ter-se-ia dado uma paganização/romanização do que se tinha como Igreja... A partir daí, por meio de um seleto grupo de teólogos fascinados pelo legado cultual greco-latino (até mais do que a escuta do Evangelho...), vai-se consolidando, concílio após concílio, este modelo até hoje hegemônico, não obstante o legado do Concílio Vaticano II, do Pacto das Catacumbas, de Medellín (1968) e do testemunho profético de Francisco, Bispo de Roma.

Antes da Oração final, o Prof. Vanderlan convidou a Profa. Aparecida, do Grupo Kaiós, um dos grupos coorganizadores da VII STPJC, para fazer uma convocação: no próximo dia 29 de outubro, dois dias antes da celebração dos 500 anos da Reforma, vários movimentos e organizações da Igreja Católica Romana, em apoio ao esforço testemunhado pelo Papa Francisco, de clamar por reformas urgentes na Igreja, vão celebrar um Ato público, clamando por cinco pontos de reforma:
- Centralidade do Povo de Deus, na estrutura organizativa da Igreja;
- Mais Evangelho, menos Direito Canônico;
- Participação das Mulheres nas instâncias decisórias da Igreja;
- Reconhecimento do direito, também, das Mulheres que se sintam vocacionadas por Deus à ordenação ministerial, de serem assim ordenadas;
- Reconhecimento do direito de Mulheres ou Homens ordenados, de escolherem seu estado civil,de cumprimento de sua respectiva vocação;
 - Empenho pela unidade dos Cristãos, respeitando a diversidade e a Liberdade do Espírito Santo, sem uniformidade doutrinária.

Diferentes grupos e comunidades  são convidados a organizarem uma celebração, nesse sentido. No caso do Grupo Kairós, a celebração ocorrerá, no dia 29 de outubro, das 9 às 11 horas da manhã (local a confirmar: possívelmente na Capela Ecumênca da UFPB).



João Pessoa, 06 de outubro de 2017.


  


quarta-feira, 4 de outubro de 2017

TRIBUTO A MÉSZÁROS

TRIBUTO A  MÉSZÁROS

Alder Júlio Ferreira Calado

Com saudade e enorme gratidão pela preciosidade de sua contribuição como pensador, acabamos de receber a notícia do falecimento de István Mészaros, neste domingo, 1 de outubro de 2017. Ele nos deixa um instigante legado, à altura de um eficaz enfrentamento dos atuais desafios colocados pelo Capitalismo, em suas atuais manifestações. Compõe, junto com figuras tais como Ernest Mandel (1923-95), Adolfo Sánchez Vázquez (1915-2011), Michael Löwy (nascido em 1938) e outros, um seleto grupo de Marxistas revolucionários de reconhecida contribuição à humanidade. Mészáros, nascido em Budapeste (Húngria), em 19 de dezembro de 1930 apresenta um percurso existêncial atípico, desde sua adolescência, quando se lança precocemente ao trabalho, numa industria de aviões de carga, em Budapeste, conhecendo na pele a experiência capitalista de exploração em uma multinacional, causando-lhe indignação o fato de ganhar (como adolescênte) salário igual ao de sua mãe, o que demonstra a insensíbilidade capitalista, em relação também à questão de gênero. Somente depois da Segunda Guerra Mundial, é que consegue dar prosseguimento aos seus estudos, avendo cursado filosofia, na Universidade de Budapeste, tendo sido Assistênte de G. Lukács, no Instituto de Estética da mesma universidade. Veio a defender sua tese de Doutorado, em 1954 aos 24 anos. Após a resistência Húngara à invasão Soviética, em 1956, exila-se na Itália, tornando-se professor na Universidade de Turim, tendo atuado ainda como professor, na Escócia, e, em seguida, na Universidade de Sussex e York, na Inglaterra.

Vasta e densa é sua obra de pensador Marxista da qual destacamos as seguintes: A teoria da alienação em Marx (1970), O conceito de dialética em Lukács (1972),  A obra de Sartre: Busca da liberdade e desafio da História (1979), Para além do capital (1994), Produção destrutiva e Estado capitalista (1996), A Educação para além do Capital (2005).

Trata-se, também, de um grande amigo do Brasil, aqui tendo vindo e intervindo em várias oportunidades, das quais destacamos sua intrevista concedida ao programa Roda Viva (cf. “link” https://www.youtube.com/watch?v=6Lh5ZSNo1Hc), sua reflexão crítica sobre o Estado e a Dialética de Lukács, pronunciada na UFG
(cf.”link” https://www.youtube.com/watch?v=VWkv7D_RmtE), e sua visita à Escola Florestan Fernandes (cf.”link”https://www.youtube.com/watch?v=xvLfAExWdao).
Mais: importa, sobretudo, sublinhar a confiança por ele demonstrada à Editora Boitempo, de publicar vários de seus livros, principalmente seu gesto de confiar aos cuidados da Boitempo a publicação de sua obra Para além do Leviatã: crítica do Estado, em 3 volumes, sendo que o lançamento do primeiro volume – “O desafio histórico” – está previsto para o segundo semestre deste ano, enquanto o segundo – “A dura realidade” – projetava-se para ser publicado em 2018, e finalmente o terceiro volume – “A alternativa necessária” -, em 2019. É principalmente sobre este seu longo projeto, de mais de 15 anos, com cerca de 1000 páginas que gostaríamos de tecer breves linhas, ainda que embasadas apenas no sumário mencionado, relativo aos 3 volumes de Para além do Leviatã: crítica do Estado, tal como publicado no link  da Boitempo:

É reconfortante tomar conhecimento de um projeto de tal envergadura, protagonizado por um pesquisador da estirpe de Mészáros, não terá sido em vão seu investimento de tempo e de energia criativa, de percorrer, por mais de 15 anos os labirintos históricos do Estado – não apenas no tocante ao despotismo oriental e aos antigos Estados Imperiais, como também à saga dos Estados Modernos, desde Maquiavel, Hobbes, Owen, Rousseau, Kant e Hegel, Marx, Lenin, Rosa Luxemburgo, Gramsci, Bloch, Lukács e entre outros. Em tempos de “mudança de época”, eis que nos deparamos com este que é se não o maior, um dos principais desafios aos revolucionários de hoje e das novas gerações. Para tanto será  de fundamental importância uma profunda avaliação crítica do Estado, não apenas no âmbito do Capitalismo, mas também do Estado realmente existente nas dezenas de experiências de Socialismo, já contando um século.
Ainda que complexa, a crítica ao Estado capitalista não constitue o maior desafio, dada a crítica radical feita por clássicos marxistas, a começar dos fundadores. As pesquisas de Marx, por exemplo, ainda que dedicadas à dissecação exaustiva do Capitalismo, foram bem menos atinentes ao próprio Estado. Ainda assim, não padece dúvida o entendimento de que o Estado constitui fundamentalmente, ao lado do Mercado, o principal componente do modelo capitalista. Sem o Estado, não se viabilizariam as políticas econômicas ditadas pelo mercado capitalista. Tal composição (Mercado + Estado) pode até sofrer alterações conjunturais, em sua implementação mais ou menos eficaz. Mas o fundamental é ter presente sua unidade orgânica, a fazer prevalecer sempre os interesses da classe dominante, deixando pouca margem ao cumprimento dos interesses das classes populares.

Ainda mais desafiadora é a tarefa  de nos voltarmos para uma profunda avaliação crítica do Estado socialista, por mais incomoda e palatável que se apresente à nossas organizações de base. Com efeito, sucessivas gerações foram – e continuam sendo – alimentadas pela convicção de que o Estado socialista é garantia incondicional para superação do Capitalismo, sem estarem muito dispostas a reconhecer os profunddos equívocos do Estado socialista, nas mais distintas experiências de Socialismo que tivemos, nos últimos 100 anos. É crença consolidada que a mera deposição do Estado capitalista, uma vez substituído pelo Estado socialista, assegurará incondicionalmente o modo socialista de se organizar, em vista da passagem em direção a uma sociedade sem classes e, portanto, sem Estado. Eis que, à medida que se vai implantando, acabam sendo internalizados e reproduzidos nos segmentos dirigentes os vícios do antigo regime, agora se fazendo “em nome da Classe Trabalhadora”. E se assim não é, como explicar que as experiências socialistas, salvo raríssimas e fugazes exceções, não só não se mantiveram enquanto tais, mas acabaram também refluíndo para formas dissímuladas de capitalismo? Normalmente, nas poucas vezes em que esse debate é feito, a tendência largamente dominante é de atribuir os recuoos apenas aos inimigos de classe, passando-se ao largo da autocrítica, ou seja, do reconhecimento também dos fatores endógenos. Eis uma tarefa – desafio – para as novas gerações.

João Pessoa, 4 de Outubro de 2017.