POR UMA CULTURA CONECTIVA DAS AÇÕES
LIBERTÁRIAS: a mística como fonte de alimentação, no chão do dia-a-dia
Alder Júlio Ferreira
Calado
Historicamente
vocacionados a perseguir uma vida em plenitude,
isto é, uma vida com liberdade, defrontamo-nos, a cada dia, com uma
multiplicidade de obstáculos existenciais, de natureza vária. Aqui e ali, até
conseguimos protagonizar uma ou outra ação impregnada deste horizonte
libertário, mas, em seguida, nos flagramos em situações franca ou veladamente
contraditórias... No plano político, por vezes, logramos testemunhar
iniciativas valiosas, ao tempo em que, noutras esferas da vida, nos damos conta
de que estamos a contradizer princípios ou metas correspondentes ao que declaramos,
no âmbito político. Coisa ainda pior sucede no campo religioso: passamos uma
imagem de compromisso com o horizonte ético, pelas vias do Sagrado, de um lado,
e, de outro, nos percebemos em situações frontalmente em choque com a imagem transmitida.
Em momentos de crises mais agudas, tais contradições soem vir
a lume, com maior frequência. É sabida a imagem passada por não poucos
integrantes da chamada “Bancada evangélica” da Câmara. Não poucas de suas
figuras de referência transmitem de si uma imagem de guardiães da moral, dos
bons costumes e dos valores sagrados. Não raramente, por outro lado, resultam
intrigantes cenas bizarras protagonizadas por algumas dessas mesmas figuras.
Tanto mais, quando fazem questão de usar e abusar do nome de Deus. Apenas dois
casos ilustrativos, pela sua força didática. No auge das graves e numerosas
acusações assacadas contra o ex-Deputado Eduardo Cunha, este foi recebido por
alguns pastores, em seus respectivos templos, para receber algum tipo de elogio
e apoio públicos, como é possível observar-se nos Vídeos que seguem, acessíveis
pelos respectivos “links”:
Trata-se de casos extremos e bem à vista. Evidentemente, isto
não se passa apenas no mundo Evangélico. Estende-se pelas mais distintas
expressões religiosas. Importa, igualmente, ter presentes tantos casos que
ocorrem no dia-a-dia bem menos à vista, mas não menos éticamente
comprometedores. Também, isto não se passa apenas na esfera religiosa: nas mais
diversas esferas da vida cotidiana, algo semelhante se passa. E, tal como no
caso daquelas figuras de notoriedade algo semelhante e até com mais frequência,
se dá nas diversas esferas do dia a dia, envolvendo também pessoas comuns.
Tais exemplos assumem um grau de maior reprovação, quando se
tenta encobrir os malfeitos justificá-los, sem qualquer atitude de
reconhecimento da gravidade dos feitos, o que só agrava ainda mais os deslizes
cometidos: “bis peccat qui crimen negat” (peca duas vezes quem nega o crime).
O processo de humanização se da no chão da história, numa
infinda multiplicidade de fios existênciais, isto é, numa enorme diversidade de
situações. O desafio maior para quem se empenha no próprio processo de
humanização é de dupla ordem: de um lado, tomar consciência da ampla
diversidade e da complexidade desses fios existênciais; por outro lado, consciente
de seu inacabamento e de seus limites, cuidar de ir costurando esses mesmos
fios, de modo adequado e de modo a que seja capaz de ir tecendo-os, na
perspectiva do horizonte perseguido. Não se trata de idealizar ingenuamente,
como se para tanto bastasse um resoluto golpe de vontade (voluntarismo), sem se
dar conta dos próprios limites e da complexidade das situações
histórico-existênciais em curso ou a serem enfretadas, dia após dia. São, com efeito, de grande porte os desafios
supervenientes. De todos os lados, despontam dificuldades. O fato de estarmos
mais atentos e preparados para um enfrentamento exitoso, num ou em alguns de
tantos que surgem, não deve nos contentar ou nos resignar com o já feito.
Atitude, aliás, a ser testemunhada, não apenas diante das micro-relações, mas
igualmente ante as macro-relações. Nestas, por exemplo, de modo a vencermos a
tendência dominante, por exemplo, no plano do enfrentamento das mazelas do
Estado, não raro, contentando-nos com a mera exigência de “mais verbas” para
isto ou para aquilo, sem nos darmos conta de que não basta o “quantum” demandado,
se negligenciarmos o poder extremamente corrosivo dos tantos “ralos” criados
ao sabor de um Estado subserviente aos
caprichos de uma classe dominante perdulária, usando e abusando de numerosos
“ralos”, por onde escorrem escandalosos percentuais do bolo orçamentário, antes
que cheguem (se e quando chegam!) aos
destinatários formais/nominais. No longo e sinuoso percurso burocrático, entre
os percentuais formalmente definidos e as habituais vítimas destinatárias, mil
e um desvios se terão interposto, sob múltiplas formas – desde os “rent
seekers” (caçadores de renda, velhas raposas, que agem como verdadeiras
quadrilhas profissionais, sob o manto da legalidade) às costumeiras práticas de
superfaturamentos , atrasos no calendário de conclusião de obras, renúncia
fiscal, seletivos perdões de dívidas, etc., etc. Coisas semellhantes sucedem,
“mutatis mutandis”, nos demais aparelhos de Estado... Apenas um exemplo – para
fins didáticos -, no plano das macro-relações. Há que se conectar adequadamente
esta esfera a tantas outros do percurso existencial, inclusive à esfera das
micro-relações do dia-a-dia, de que cuidaremos, mais enfaticamente, a seguir.
Assim como no plano das
macro-relações, o horizonte libertário que somos chamados a construir, comporta
igual cuidado com a tecedura dos fios existenciais do dia-a-dia, nos mais
distintos aspectos. Partimos, tambem aqui, da tomada de consciência progressiva
de nossa inconclusão, dos nossos limites, sem, porém, deixar de manter
presentes também nossas potencialidades. Animados de tais sentimentos, ousamos
percorrer algumas trilhas dessas micro-relações.
Embora comportando uma notável diversidade de campos de
atuação, conforme nossos pertencimentos e atividades do dia-a-dia (no trabalho
profissional, nas escolas, na família, nas atividades sindicais, partidarias,
nos moviementos sociais, no campo religioso, etc., etc.), ainda assim, nossas
agendas cotidianas incluem um leque significativo de confluência de ações, ao
tempo em que um expressivo número de atividades constantes destas mesmas
agendas tem a ver com nossas escolhas pessoais. Um exame (auto) avaliativo
dessas agendas nos permite fazer um balanço da qualidade de nossas atividades
do dia a dia. Serão todas ou em sua maioria, defensáveis no tocante ao alvo
libertário que perseguimos? Nessas agendas, que atividades podem ser avaliadas
como correspondentes ou coerentes com o rumo almejado? Nesse mesmo sentido, que
atividades têm resultado em frutos proveitosos? Que atividades, por outro lado,
não parecem apontar na direção desejada? Que distância se pode constatar entre
o que planejamos para nós mesmos e as respectivas realizações? (“tra il dire e
il fare, c'è di mezzo il mare”) Que percentual de nossos sonhos temos sido
capazes de alcançar, considerando-se os sonhos mais plausíveis? Temos tomado
alguma atitude concreta em relação a este exame? Por pequenos que pareçam, que
passos fomos e somos capazes de ousar?
É justamente neste ponto que sentimos necessidade de exercitar
a mística como fonte propulsora de passos alternativos, visando a, de um lado,
reconhecer nossos limites, e, de outro, também reconhecer e exercitar, no chão
do dia a dia, nossas potencialidades. E aqui tratamos da mística, não apenas em
sua dimensão teológica, mas também em sua acepção revolucionária. Isto
pressupõe um compromisso ético, exercitado, dia após dia, no intuito de
percebermos lacunas e avanços em nosso quefazer diário. Implica um progressivo
esforço (coletivo e pessoal), orientado em várias direções interconectadas.
Pode suceder que, em minha/nossa lista de compromissos diários, em distintas
esferas, alguns venham corespondendo – a julgar pelos frutos! – ao meu/nosso
processo de humanização. Estes me/nos chamam a aprimorar. Os que se distanciam
deste horizonte – e podem não ser poucos – devem merecer a incidência de
meu/nosso discernimento e empenho em rever, retificar rumo, caminhos e
posturas. Um risco frequente, neste balanço, é o de me contentar com apenas um
ou outro quefazer bem sucedido, ainda quando temos consciência de que, em
vários deles, os frutos se mostram nulos ou medíocres, por vezes até
contrapostos ao horizonte almejado. Pior ainda, quando, em vez de nos empenharmos
em ousar pequenos passos alternativos, tendemos a uma estéril atitude
autojustificativa: “Ah! Eu já faço minha parte. O que faço já está bom, dá para
ir levando. Vejo tanta gente comportar-se assim... Por que eu não poso?”...
Nesse sentido, o exercício cotidiano da mística nos ajuda
sobremaneira. Por exemplo quando tomamos a iniciativa de elencar vários
projetos ou sonhos factíveis e ao nosso alcance, correspondentes ao nosso
processo de humanização. Damo-nos conta de que tais projetos são ditados pelo
âmago de nossa consciência, sentido-nos bem motivados nessa direção. Por vezes,
trata-se de simples planos, tais como: contemplar a natureza, ousar aprender um
instrumento músical, ensaiar uma poesia, exercitar algum trabalho de pintura,
de escultura, de aprendizado de língua, de nos reservar mais tempo de
meditação, de pedalar, de fazer caminhada, de fazer visitas, de fazer viagens,
etc., etc., etc. Chegamos mesmo a fazer um cronograma. O problema está, porém,
de dar o primeiro passo, de iniciar efetivamente algum desses passos. O tempo
vai passando, passando, passando, e acabamos mergulhados na mesma rotina,
movidos pela normose, fonte de dissabores, de tédio e até de doença...
Conscientes de nossa inconclusão, dos nossos limites, sabemos
que a incessante busca de superação dos mesmos passa necessariamente pela
relacionalidade, isto é, pela inserção em, e aprendizado contínuo com outros
sujeitos (individuais e coletivos). À medida que exercitamos o diálogo, a troca
de relatos de experiências, vamos aprendendo e obtendo meios e encorajamento
recíproco de ensaiar passos de recuperação ou de superação dos nossos limites,
aprendendo também com os erros e acertos próprios e dos outros. Aprendemos com
os outros sua experiência de superação de limites e insuficiências que, antes,
pensavam não conseguirem: “Eu sou assim mesmo, sempre fui: tenho essas
limitações, e não tenho como superá-las. Todavia, com esforço e persistência –
portanto, com a força de vontade -, após ousarem dar um primeiro passo, foram
percebendo, sim, ser possível superar limites e insuficiências, sustentados por
uma mística de compromisso de buscarem dar passos concretos, nesse sentido.
Atitude que nos contamina, positivamente, e nos anima a ousar também passos,
nesse sentido. Ou seja: conseguiram vencer uma tendência essencialista: “Minha
natureza é assim, e não posso mudar!”... Mas, à medida que ousavam perceber-se
como seres históricos e de cultura, passaram a ouosar um passo, a cada dia,
numa perspectiva libertária, rompendo as grades da própria jaula, e descobrindo
o sabor da Liberdade, passando a ser movidos por suas trilhas e em direção ao
seu horizonte. Passar da condição de cumpridores de tarefas heteronômicas, para
um progressivo assumir do próprio destino libertário; passando da condição de
meros fios existenciais tecidos conforme orientação externa, a costureiros, costureiras da própria
malha existencial, apoiando-se num grande mutirão de tecedrua junto com outros
tecelões e tecelãs, mas sempre a partir do seu horizonte libertário (pessoal e
coletivo).
Nessa direção, há de se romper progressivamente múltiplas
algemas, principalmente as algemas invisíveis, remanescentes na própria
consciência hospedeira de determinações externas, enquanto se vai tentando
abrir caminho para a tecedura de fios existenciais autônomos, emancipatórios.
Aqui, se vai dialogar com a própria conciência, auscultando, no seu mais
íntimo, o que inspira o Sopro Fontal, com relação a um horizonte libertário.
Por exemplo, a tomada de decisão de conferir tantos pequenos e grandes planos indefinidamente
adiados, inviabilizados que foram por determinações ou por condicionamentos
alheios. Planos do tipo:
- retomar leituras identificadas como de sua mais forte
escolha (no campo da literatura, da ficção, dos grandes romances clássicos; no
plano da literatura na própria área profissional, igualmente adiadas por
circunstância da rotina normótica; exercício de algum tipo de arte também
adiado para as calendas gregas; aprendizado de um novo idioma; dar-se ao
exercício de caminhadas; tempo de contemplação/meditação/oração; dar-se ao
trabalho de registrar fatos mais impactantes de seu percurso existencial; ousar
cuidar da saúde, pelas vias das terapias naturalistas; tomar coragem de não se
deixar aprisionar pela onda escravizante de redes sociais mais voltadas ao
gosto da moda (fofocas, exibicionismo, consumismo, troca de insultos; piadas de
péssimo gosto; divulgação de “correntes” e de vídeos preconceituosos; mensagens
de intrigas e autoafirmação patológica; rotina de conferir páginas ou mensagens
da parte de círculos mais próximos, sem a necessária autocrítica;
enfim, toda uma longa programação de um protagonismo
alternativo àquela rotina normótica, em que se acabou enjaulando-se, e a ela
amoldando-se, com consequências negativas diversas. Ousar o “inédito viável”
(Paulo Freire), também nas micro-relações, desprendendo-se de falsas
seguranças, de bens supérfluos, aprendendo a fazer feliz com o necessário (“Buen
Vivir), sem apego a acumulação de bens sedutores... E, sobretudo, dedicando a
vida a serviço de quem mais precisa, do Planeta, dos humanos, dos viventes,
sendo um com eles.
João Pessoa, 19 de outubro de 2017.
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