quarta-feira, 31 de maio de 2017

LIÇÕES DAS UTOPIAS MEDIEVAIS: a contribuição de Gioacchino da Fiore (1135-1202)

LIÇÕES DAS UTOPIAS MEDIEVAIS: a contribuição de Gioacchino da Fiore (1135-1202)

Alder Júlio Ferreira Calado.

“Utopia”, “Eutopia”, “Atopia”, “Distopia”... são termos polissêmicos. Não é nosso propósito deter-nos sobre tal polissemia. Concentramo-nos apenas no conceito de “Utopia”. É conhecida a resposta dada por um expositor a uma pergunta que lhe fora dirigida, sobre “para que  serve a utopia?” Nas palavras de Eduardo Galeano, a resposta conclui simplesmente que as utopias servem  “para caminhar!”. Conclusão esta, precedida pela argumentação metafórica de que a utopia é como quem caminha em direção à linha do horizonte. Quantos passos são dados nesta direção, nesta mesma medida se distancia do horizonte de quem caminha, em direção ao mesmo...

As utopias despontam prodigas sobretudo, em tempos de carência, penúria ou de enormes desafios. Assim se tem passado em todas as épocas da história. Também, na Idade Média. Nesta, com efeito, também em função dos impasses econômicos-políticos e culturais então vivenciados, prosperaram abundantemente distintas utopias. Vasta é a bibliografia sobre este fenômeno  (cf. Hilário  Franco, Editora Brasiliense, 1992.)

Devido à longa duração da idade média,  é amplo o espectro de situações de impasse social, eocnômico, política, cultural, em que diferentes populações medievais estiveram envolvidas, sob a égide do sistema feudal, ressalvados os segmentos privilégiados do sistema (a nobreza e o clero) enormes parcelas de camponeses tiveram que armargar, em distintos períodos medievaís, sucessuvas experiências de fome, de peste, de guerras, de marginalidades  de ameaças,de humilhações de preconceitos de toda sorte... Tais situações constituíam a motivação maior de seus sonhos, de suas utopias. Assim como no sonho, cujo motor principal é a experiência de um cotidiano de faltas, de ausensias, de frustaçãos, também as útopias servem para alimentar a esperança de pão para quem tem fome; de saúde para os enfermos; de paz para os que vivem vitimados de guerras; de justiça para os esfarrapados; de respeito e dignidade para os humilhados; de liberdade para os que vivem sob o julgo da lei.

Ao longo da idade Media, com efeito, sucederam-se ou coexistiram várias narrativas populares, a expressarem profundas aspirações de vários segmentos populares, organizações e movimentos, como instrumentos de superação das mais diversas situações de penúria de sofrimento, de perseguição, de marginalização e de preconceitos contra os “debaixo”, tanto ou mais do que que a história, são os textos literários que melhor relatam esses episódios. A literatura medieval é, sobre isto, farta. Bons clássicos serviram-se em suas obras primas, de incontáveis relatos, a este respeito a tal ponto, que nos convencemos cada vez mais da notável fecundidade das abordagens literárias para a construção das ciências sociais (da História, da Sociologia, da Política, da Antropologia, etc.).

Nas linhas que seguem, restringimo-nos a uma dessas utopias – à utopia da liberdade, especificamente tal como abordada pelo monge calabrês, Gioacchino da Fiore. Para tanto, a) partimos de uma breve contextualização do período histórico em que viveu o mone calabrês; b) em seguida, fornecemos alguns dados biobibliográficos de Giocchino da Fiore; c) expomos, resumidamente, suas principais teses; d) por fim, tentamos extrair alguns ensinamentos de sua utopia

a) Alguns traços históricos do século XII

Os últimos dos longos dez séculos medievais – em espeical, a partir do século XI-XII - são conhecidos como “Baixa Idade Média”. Assinalam o declínio do modo de produção então vigente – o feudalismo, ao mesmo tempo em que prenunciam e inauguram o advento de um novo modo de produção – o capitalismo.

O século XII apresenta-se como de grande eferscência econoômica, política e cultural, em continuação doq que começara a ocorrer do seculo xi. O descontamento com a sociedade feudal ganhava corpo. Sentia-se uma exaustão de parcelas consideráveis da população, decorrentes das diversas formas de exploração, de dominação e de marginalização presentes na organização feudal. Ansiava-se por liberdades. Para se livrarem do rígido controle da nobreza e do clero, uma crescente parcela da população recorreu ao comércio, fundando, em aliança com os reis, pequenos núcleos urbanos – os “burgos” -, estabelecidos em pontos estratégicos de rotas terrestres e fluciváis espalhadas em parte da Europa (Flandres, Champagnhe...). À medida que se intensificavam as trocas de bens e produtos, em feiras e centros comerciais, ia-se registrando um crescimento demográfico considerável, inclusive pela necessidade de provisionamento constante de bens e produtos, para cuja produção deviam contribuir artesãos, nos mais mais distintos ramos de atividades. Daí foram nascendo as corporações de ofício e outras associações tipicamente urbanas, abrindo caminho para uma vida de escolhas de que não se dispunha nos ambientes feudais. Enquanto os burgos se expandiam, iam assumindo diferentes formatos, como no caso do surgimento das comunas,a ampliando o leque de escolhas mais livres, pelo menos em relação ao antigo regima.

Essas condições de caráter econômico, a despeito das concessões políticas feitas aos reis, propiciaram o desenvolvimento de um clima de certa autonomia em relação, não apenas à nobreza, mas também em relação ao clero. Autonomia que acabaria viabilizando as condições para o surgimento de iniciativas de certa rebeldia ante o antigo regime. , o ambiente urbano asummia, cadaz vez uma ar de liberade o que ese expressa na frase alemã * Stadtluft macht freiDisto são prova alguns movimentos populares da época, a exemplo dos movimentos pauperísticos, como o animado pelos Fraticelli ou os Espirituais Franciscanos. Outra iniciativa que expressava boa dose de rebeldia contra os malfeitos da hierarquia eclesiástica da época vinha da veia artística dos protestos lançados pelos Goliardos, uma espécie de “hippies”da época” . São, com efeito, diversos os movimenos populares surgidos, a partir do século XII, dentre os quais: os Valdenses, os Albigenses, as Beguinas, para mencionar apenas três.

Em “O Nome da Rosa”, por exemplo, Umberto Eco faz referência a ações ou episódios relativos a alguns desses movimentos, sobre os quais é relativamente farta a bibliografia (cf., por ex., a obra de  LE GOFf, Jacques. História  Memória, 4ª ed., Campinas:Editora da UNICAMP, 1995). A influência das idéias de Giocchino da Fiore vai além: faz-se igualmente presente na formação de figuras protagonistas dos primeiros tempos da Reforma, a exemplo de Jan Hus.

b) Retalhos da vida e do pensamento de Giocchino da Fiore

Gioacchino da Fiore, monge calabrês,  nascido em Celico (Itália), província de Cosenza viveu entre 1135 e 1202, tem seu “sobrenome” ligado ao lugar que marcaria sua densa experiência monacal (Fiore, uma referência ao lugar que ele associava às flores de Nazaré), como abade cisterciense. Conta-se sobre ele com escassas informações, quanto à sua infância. Seus pais, Mauro e Gemma, antes dele, tinham tido três filhos – todos falecidos. Eles também tiveram três filhas.  Por empenho do seu pai, um tabelião notário, segue, quando jovem, uma carreira de relações públicas, com Papas e Reis. Não duraria muito. Logo partiria em viagem para a Terra Santa, como peregrino. Fato que o marcaria profundamente, em definitivo. Dotado de raro talento intelectual, e desperto para a vida consagrada, em especial para a Ordem dos Cistercienses, (de origem Beneditina) ele vai dedicar-se incansávelmente à leitura e interpretação da Bíblia – do Antigo e do Novo Testamento, encontrando no Apocalipse uma preciosa chave de interpretação, dada a consistência das concordâncias entre o Antigo e o Novo Testamento.

O aprofundamento de seus estudos escriturísticos dar-se, principalmente, após o seu retorno à Itália. Ao mesmo tempo, apresentava fortes sinais de um vocacionado à vida consagrada, mais do que a uma vida presbiteral. Sua humildade, sua simplicidade, sua vida de pobreza contrastavam com toda uma tendência carreirista dos clérigos do seu tempo, o que talvez pudesse explicar sua resistência à ordenação presbiteral,  bem como ao cargo de abade, acabando por aceitar estes encargos em função  da insistência de autoridades eclesiásticas da época.
                                                              
De seus escritos mais relevantes, cumpre destacar: Liber Concordiae Novi ac Veteris Testamenti (livro de concordância entre o antigo e o novo testamento); Expositio in Apocalipsim (Exposição sobre o Apocalipce) e Psalterium Decem Chordarum  (Saltério de dez cordas) ; Liber Figurarum (Livro dos Números).

Considerável foi o reconhecimento, desde sua vida, do legado de Gioacchino da Fiore. Reconhecimento de sua santidade, de seu genial talento de pesqisador, de profeta. A despeito de sua produção bastante avançada para o tempo – alguns dos seus escritos soando como heréticos, para não poucos ouvidos “ortodoxos” da época -, seu reconhecimento atravessa séculos e passa por figuras clássicas como Dante, em cuja obra-prima – “A Divina Comédia”, e mais precisamente no Canto XII do Paraíso -constam estes  versetos:

 (...) e lucemi da lato/il calavrese abate Giovacchino/ Di spirito profetico dotato(...).


C) Idéias axiais de sua teoria da história

À semelhança de figuras tais como Agostinho, cujos escritos encerram uma concepção de história, também Gioacchhino da Fiore é encarado como alguém que propõe uma leitura da história, de modo singular. A principal contribuição deste monge cisterciense calabrês reside justamente na proposta inovadora de interpretação da história, fundada na expressão trinitária de Deus, que se manifesta, a cada tempo, especialmente por meio de uma de Suas Pessoas – a do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo. Em torno das qualidades específicas de cada uma dessas Pessoas, girava cada uma das três idades em que se divide a história da humanidade: a Era do Pai, a Era do Filho e a Era do Espírito Santo. Tal leitura da história se dá por meio de sua profunda incursão hermenêutica nos escritos bíblicos do Antigo e do Novo Testamento, em especial no Livro do Apocalipse, onde encontra expressiva concordância.

A Era do Pai corresponde ao tempo da lei, da obediência aos mais velhos. O Antigo Testamento constitui sua referência bíblica. Noite, inverno, água e ervas são tomadas como linguagens representativas desta idade. A Idade do Filho corresponde ao período do Novo Testamento, a época de Jesus, à qual correspondem virtudes como a graça, a sabedoria, a fé, a valorização dos jovens. A Idade do Filho também é representada por símbolos como a primavera, a aurora, as espigas, o vinho. Quanto à terceira Era, que na leitura hermenêutica de Giocchino da Fiore, ainda estaria por acontecer, seria marcada pela Idade do Espirito Santo, tendo como características um tempo de liberdade, de compreensão profunda, a vivencia do amor e da amizade, e pelo protagonismo das crianças. Correspondem a esta época símbolos como o verão, o meio dia, a colheita, o oléo.

Atendo-se específicamente à Era do Espirito Santo, Giocchino da Fiore, sempre fundamentado da interpretação escriturística, sublinha as novas condições avigorarem na humanidade, graças ao protagonismo de uma Igreja renovada animada pelo Espirito Santo, e, portanto generosamente solícita ao que o Espirito Santo lhe propõe. A Igreja é chamada a emepenhar-se numa espiritualidade transformadora, capaz de fermentar o mundo de novos valores – De justiça, de paz, de fraternidade, de partilha. Este chamamento a levaria a romper progressivamente com suas velhas práticas de corrupção, de luxo, de hierarquização, de imperialismo, etc.

A época de Giocchino da Fiore revelava-se muito favorável a um vigoroso ressurgimento do monaquismo, o que explica o aparecimento de mosteiros de abadias, de várias ordens mendicantes. O próprio monge calabrês parecia convencido de que a nova humanidade seria animada pela Igreja, por meio de uma espiritualidade fortemente contemplativa, sem ruptura com uma ação concreta renovadora – daí a formula então conhecida na expressão “contemplação na ação”.

A partir dessas ideias e dessas experiências que se difundiriam por vários pontos da Europa vão surgir movimentos leigos de renovação, a se contraporem aos numerosos escândalos da auta hierarquia eclesiástica, ocasionando, de um lado, uma crescente perseguição (que chegaria ao auge, com o início da Inquisição, alguns séculos depois), bem como, por outro lado a assegurar condições para o grande movimento da Reforma.

d) Lições a extrair do legado de Gioacchino da Fiore

Quase nove séculos distam de nós, desde o nascimento de Gioacchino da Fiore (1135). De lá para cá, uma sucessão imensa de grandes e pequenas mudanças de toda ordem. Desde então, ruiu o modo de produção feudal, substituído pelo Capitalismo, em diversas etapas de seu desenvolvimento. Na esfera econômica, tivemos profundas alterações científico-tecnológicas, assegurando condições para grandes navegações, estabelecimetno de entrepostos comerciais pelo mundo a afora; assistimos ao longo e penoso processo de colonização do continente americano; tivemos várias etapas da revolução industrial... No plano político, o surgimento dos Estados nacionais,  vários períodos de guerras fratricidas, transformações sócio-políticas de grande porte... Na âmbito cultural, profundas mudanças de valores, resultado e expressão de sucessivas crises societais, como a que vivemos, atualmente. É sobretudo neste plano – o da Cultura – que podemos recolher as melhores lições do legado do monge calabrês. Pela sua formação, aqui destacamos sua contribuição, no plano do Cristianismo, e mais precisamente do Movimento de Jesus. Neste sentido, um primeiro ponto a servir de preciosa bússola ainda hoje: a força luminosa e transformadora de uma espiritualidade referenciada na comunhão trinitária, com incidência mais forte no Espírito Santo, enviado pelo Pai, em comunhão com o Ressuscitado.

Sem qualquer pretensão de sugerir uma sorte de retorno ou de reedição literal das intuições de Gioacchino da Fiore, vale a pena nelas buscar inspirção frutuosa, que nos ajudem melhor a irmos enfrentando e buscando superar os desafios de nosso tempo.

Um primeiro ensinamento que segue fecundo e atual é o de seguirmos tomando como referência maior o núcleo da pregação de Jesus e dos Seu Espírito: o Reino de Deus e Sua justiça. Revisitando o Novo Testamento, constatamos ter esta a grande preocupação de Jesus: anunciar e inaugurar o Reino de Deus. Nesse sentido, convém lembrar que a expressão “Reino de Deus” aparece mais de cem vezes. Bem mais do que a expressão “Igreja”. Sem pretendermos sugerir qualquer contraposição, entre um e outra, nunca é demias sublinhar que a Igreja (as Igrejas) são chamadas a serem instrumento do Reino de Deus, enquanto se voltam, pobres, humildes e servidoras, dos valores do Reino de Deus: justiça, paz, igualdade, solidariedade, partilha, serviço gratuito, misericórdia, liberdade.

Uma consequência concreta desta distinção entre reino de Deus e Igreja(s) consiste na disposição de nos abrirmos ao mundo, à humanidade, indo além  das fronteiras eclésiais. O atual Bispo de Roma, Fransisco, não cessa de insistir, em seus gestos em seus escritos e em seus pronnciamentos, na necessidade e urgência de sermos fiéis ao horizonte do Reino de Deus, de modo a que superemos a tendência a termos na(s) Igreja(s) uma Instituição auto-referenciada, comportando-nos como meros funcionários eclesiásticos e não como vocacionados a sermos agentes transformadores de um mundo, em conformidade com os valores do Reino de Deus – de justiça, de paz, de fraternidade, de partilha, de solidariedade, de misericordia, de verdade, de convivência harmoniosa com o planeta e toda a comunidade dos viventes.

Outra inspiração a recolher do legado do monge calabrês tem a ver com nossa vocação à liberdade. Seu estilo de vida de profunda comunhão trimitária, de imersão articulada nos textos sagrados, na perspectiva da inovação,  da construção de novas relações inspiradas na Era do Espirito Santo, isto é, chamando-nos ao protagonismo de um reino de liberdade, já apartir do chão do nosso cotidiano. Tal compromisso nos instiga, por exemplo, a nos comprometermos, pessoal e coletivamente, com a construção de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal.
A utopia Giocchinita da “Terceira Idade” ademais, nos incita a exercitar a memoria histórica, em busca de inspiração e intuição, para, de um lado,  recolhermos ensinamentos do passado, e, de outro, sermos capazes de conectá-los aos desafios presentes, em busca de uma sociabilidade alternativa.
Referências  virtuais (vídeos e links):


João Pessoa, 31 de Maio de 2017.









terça-feira, 23 de maio de 2017

GRAVE CRISE (TAMBÉM) DE REFERÊNCIAS E DE VALORES: à procura de rumo, caminhos e estilo de vida de novo tipo

GRAVE CRISE (TAMBÉM) DE REFERÊNCIAS E DE VALORES:
à procura de rumo, caminhos e estilo de vida de novo tipo

Alder Júlio Ferreira Calado

Seguimos imersos em uma profunda e prolongada crise econômica, ético-política, ecológica, hídrica... Atemo-nos, desta feita, mais diretamente a uma dimensão específica da atual crise: a que diz respeito à perda ou distanciamento de irrenunciáveis  valores que devem inspirar, animar e orientar, seja no âmbito coletivo, seja no plano pessoal,  a práxis das forças sociais ou dos sujeitos históricos que se pretendam alternativos ao atual modelo societal.

À semelhança de outros contextos como o dos anos 80, no Brasil, quando se falava numa “década perdida”, também no Brasil de hoje, na América Latina e em escala mundial, de 2008 para cá, ainda que no Brasil tal espectro de crise venha se acentuando, após 2012, também se pode falar, pelo menos, em algo parecido. O fato de que, à época dos anos 80, a avaliação acerca da “década perdida”, continha um componente sobretudo econômico -  em grande medida, vinculado aos trágicos efeitos  da famigerada dívida externa -, isto não quer dizer que, no mesmo período, não se tenham registrado ganhos significativos, como foi o caso do (re)surgimento de movimentos populares, sindicais, pastorais sociais, no campo e na cidade,  com grande ímpeto transformador, comprometidos com a construção de um modelo alternativo de sociedade.

Em textos recentes, em várias ocasiões, já tivemos oportunidade de ferir distintos aspectos deste panorama de crise. Nestas linhas, reiteramos o proposito de nos atermos apenas uma dimensão da crise – a da  crise de referências e de valores.

Parte expressiva das forças sociais – movimentos populares, movimentos sindicais, pastorais sociais e outras organizações de base de nossa sociedade -, após um período de expressivas lutas, dissabores e conquistas, graças ao seu notável protagonismo ético-político de transformação (neste instante, me vem à lembrança uma de suas iniciativa – a  da campanha “Ética na Política”, em meados dos anos 90, dentre lutas e movimentos analisados por Maria da Glória Gohn, cf., por ex.,
 tem apresentado, nos dias atuais, fortes sinais de desnorteamento, de perda de bússola ou de considerável distanciamento de referências e de valores que animavam seu esforço organizativo, formativo e de mobilização. Um dentre tantos sintomas observáveis é, por exemplo, sua contumaz teimosia em manter-se DEMASIADO absorta no plano imediatista dos conflitos, sem tomarem a MÍNIMA distância (auto)crítica dos acontecimentos em curso. Todas as suas forças, todas as suas energias “criativas” (que, pelos frutos colhidos, já não se mostram revolucionárias, no sentido atribuído por Adolfo Sánchez-Vázquez, em seu livro “Filosofia da Práxis”, publicado, há alguns anos, pela Expressão Popular), enfim toda a sua aposta em responder a revejo a cada ponto da pauta da oficialidade, inclusive a interminável sucessão de escândalos protagonizados por agentes políticos das distintas esferas estatais, governamentais, em conluio com grandes figuras empresariais...

A manter-se tal estado de coisas, resulta quase impossível a essas forças sociais travarem uma luta eficaz que, mais do que de meras resistências pontuais aos ataques desferidos crescentemente pelas forças adversárias, seja capaz de ousar passos grávidos de verdadeira alternatividade, ainda que de efeito molecular, mas sempre de modo a articular o curto, o médio e o longo prazos, e dispostas a aprender com a história, irem costurando adequadamente passado-presente-futuro.

Múltiplos são os sinais ao alcance de quem se disponha a percebê-los, de que a superação dos desafios axiais do presente passa necessariamente pela retomada, reintrojeção e implementação de referências e de valores compatíveis com a condição de  sujeitos históricos que se pretendam protagonistas alternativos ao atual modelo societal hegemônico. Um dos primeiros passos, nesta direção, é o de repensar ou refazer o rumo da caminhada. Como lembra, a justo titulo, um experimentado  militante das lutas populares, em texto semanal compartilhado com um público eclesial, importa dar atenção ao dito popular, segundo o qual “Quem não sabe aonde vai, não chega a lugar nenhum”, que, por sua vez, coincide com o mote pronunciado pela personagem José Dolores, do filme “Queimada (um filme de referência para os militantes dos anos 70): “É melhor saber para onde ir, sem saber como, do que saber como, e não saber para ontde ir.” Precisamos, sim, de (re)assumir referências e valores compatíveis com os nossos objetivos. Também aqui, podemos observar que nem devemos assumir apenas aqueles valores e referências exclusivos do passado, nem pretender que todas as referências e valores terão que ser, todos, recriados. Melhor é trabalharmos, sim, nossos bons clássicos, sem nos omitirmos de atualizá-los, em constante diálogo com bons contemporâneos – mulheres e homens, conforme a natureza dos novos desafios.

Que referências e que valores somos chamados a (re)assumir, então, na perspectiva de seguirmos perseguindo rumo desejável? Vejamos alguns, situando-os, seja na esfera formativa, seja no plano organizativo, seja no terreno da mobilização.

À procura de (re)assumir referências e valores compatíveis com as urgências atuais.

* O exercício coerente e eficaz da crítica pressupõe e começa pela autocrítica – Não basta à nossa condição de humanos que nos mostremos seres inconclusos: é preciso também que tenhamos consciência do nosso inacabamento. É esta consciência que nos permite lidar adequadamente com nossos limites, em busca de superação. O mundo novo pelo qual lutamos, a nova sociedade em cuja construção nos empenhamos, só tem sentido se, conscientes dos nossos limites, nos esforçamos, dia após dia, por superar, a partir de nós mesmos. Em vão, nos declaramos comprometidos com a busca de uma nova sociabiliade, se desde já não testemunhamos, inclusive pelo nosso estilo de vida, atitudes convincentes compatíveis com o que dizemos ser a nossa meta: “Dize-me a qualidade do teu cotidiano, e te direi qual sociedade sonhas construir”, escrevemos num artigo publicado, na Revista Universidade e Sociedade, n. 12, do ANDES, em 1997.
A primeira condição que imprime credibilidade à consistência da crítica feita, é que quem critica se coloque como possível alvo-primeiro das acusações assacadas contra outrem. Há outras condições. Quando uma força social ou seus alidados se tornam alvo de crítica alheia, em vão se torna enveredar-se pela negativa ou pelas meias verdades – “Nada há oculto, que não venha a ser revelado.” “Só a verdade é revolucioária”! Com espantasoa frequência, no entanto, assistimos a uma imensa sucessão de negativas por parte de gente envolvida escancaradamente em em falcatruas próprias ou de aliados. A despeito das evidências, opta-se por optar pela via atribuída a Aristóteles: “Platão é meu amigo, mas a verdade é mais.” (“Amicus Plato, sed magis amica veritas”). Uma efetiva autocrítica, ademais, há de ser processual (não se trata de fazer autocrítica, uma vez por todas...) e propositiva, isto é: capaz de nos levar a mudança concreta de atitude, não bastando o simples reconhecimento ou arrependimento do malfeito. É o exercício, é o sincero esforço permanente de autocrítica que tem a condição de tornar credível nossa crítica “ad extra”: se, antes, feita “ad intra”), seja no plano pessoal, seja no âmbito coletivo.

* Vinculação orgânica e coerente entre prática-teoria – Parte expressiva dos equívocos cometidos pelos movimentos sociais e demais organizações de base tem a ver fortemente com a subestimação, o abandono da prática teórica. Infelizmente, a dedicação a atividades práticas e teóricas, exercitada de modo articulado, em décadas passadas, foi sendo progressivamente secundarizada ou mesmo abandonada. Na década dos anos 80, sempre se estimulou, entre membros de base, de coordenação ou direção, a leitura continuada de textos formativos de gande valia, dentre os quais podia-se contar com algum jornal, com revista (“teoria e débate”), com coletâneas de artigos assinados por figuras com reconhedia contribuição, etc. É também por esta via que se consegue aprimorar a capacidade perceptiva e a acuidade analítica da militância,  inclusive por conterem aqueles materiais uma saudável diversidade de posições assumidas por correntes de reflexão, ajudando a militância a fortalecer seus critérios de análise da conjuntura histórica e seus protagonistas. Trata-se de uma condição essencial à formação da consciência crítica, de modo a prevenir a militância do risco de sucumbir a uma posição viciada hoje recorrente, uma vez que se observa como praxe ler, por exemplo, nas redes sociais, matérias provenientes da mesma fonte, por coincidirem perfeitamente com as idéias dos leitores e leitoras. Enquanto isto, observa-se, com frequência, a propensão nos próprio movimentos sociais de se discutir o que agrada à direção ou à coordenação de tal ou qual movimento... Dai a ilusão perigosa de que seja a uniformidade garantia de unidade. Algumas perguntas, a proósito do papel da formação teórico-prática da militância, ou, antes, da falta ou insuficiência desta formação:
- A que se deve – a não ser a tanta negligência teórica – a aposta excessiva no processo eleitoral (ou eleitoreiro) das forças de esquerda?
- Como não suspeitar que o investimento excessivo na ocupação de espaços estatais, conhecendo a natureza do Estado e sua função essencial, só poeria resultar nos amargos frutos que experimentamos?
- Como não situar no abandono teórico a raíz do progressivo afastamento das bases, dos núcleos, das decisões pela base, do princípio da delação, do zelo pela autonomia em relação ao Mercado e aos Estado da auternância de cargos e funções, do altofinanciamento das atividades organizativas e de mobilização, do abandono do processo formativo?


  * Revisitação incessante do passado (memória histórica), não como apenas rememoração emocional, mas sobretudo como busca de refontização, de renovação dos compromissos frente aos atuais desafios -  Sobre este ponto já nos reportamos ainda recentemente (cf. Textos De Alder Calado). Baste-nos, aqui, de passagem, enfatízar alguns aspectos. Para qualquer força social que se pretenda protagonista de uma sociabilidade alternativa ao modelo vigente, resulta indispensável tomarem conta traços fundamentais do legado da humanidade, em distintos lugares e tempos, sem que isto implique qualquer pretensão de reeditar o passado. Trata-se de buscar extrair lições das experiências passadas de povos, de movimentos sociais, em suas lutas, em suas conquistas, em suas derrotas. Ao mesmo tempo, resulta fundamental revisitar os bons clássicos e contemporâneos – homens e mulheres -, na medida em que se trata de figuras de refinada sensibilidade e acuidade analítica, com muito a contribuir com a compreensão de aspectos fundamentais dos desafios presentes.

Leitura crítica, interpretação criteriosa e intervenção coerente ante os fatos e acontecementos históricos – Estando conscientes, de um lado, da enorme e crescente complexidade da realidade social – ela não se deixa perceber a olho nu -, e, de outro lado, de nossa inconclusão e limites, somos continuamente  instados a trabalhar mais e melhor nossa capacidade perceptiva e de observação da realidade social, em suas mais distintas e desafiantes manifestações, desde o chão das relações do cotidiano, ainda que sem a pretensão de apreendê-la ou compreendê-la a contento: a a complexidade da realidade é sempre maior do que o nosso esforço de apreendê-la, de compreendê-la. Mas, dela podemos chegar perto ou irmos nos aproximando. Para tanto, precisamos dotar-nos de insturmentos especiais que nos habilitem, cada vez mais, a captar e bem interpretar parte dos seus infinitos sinais. Isto é obra de um incessante aprendizado, de um contínuo trabalho formativo, coletivo e pessoal. No dia-a-dia desta busca, vamos aprendendo múltiplas vias de acesso a esta complexa realidade. Vamos, por exemplo, aprendendo que dela melhor se aproxma quem a observa em movimento (antes, como um filme, não tanto como numa foto). Vamos observando e registrando seus sinais. Aprendemos a melhor situar os campos específicos desses sinais (uns mais afeitos à esfera econômica, outros mais ligados ao campo político, outros ao plano cultural...). Vamos aprensdendo que tais sinais não se dão de forma isolada, mas se acham interrelacionados (o princípio da interação universal, exercitado desde Heráclito, de que “Tudo está em movimento” (“Panta rei”), “Tudo está ligado a tudo”. Os acontecimentos não ocorrem como numa evolução linear, mas, antes, como um vaivém, uma sucessão de entrechoques, como em ondas. E desses aprendizados vamos nos servindo para um constante ensaio de apreensão-compreensão da realidade social, ainda que sempre limitada, parcial e provisória, mas em constante busca de aprimoramento, permitindo que cheguemos mais perto da realidade analisada.   

*  O Público como alvoa maior de nossa práxis – Nosso processo de humanização comporta nossa condição de Cidadãos e Cidadãs, razão por que nos incita à construção de um mundo, de uma sociabilidade, em que todos caibam com dignidade, em harmonia com toda a comunidade dos viventes. Isto requer que todos assumamos nossa  como protagonistas também dos espaços públcos, partindo de uma compreensão do Público, a partir de sua etimologia, que evoca “populus”, povo, popular, público. Ora, sucede que nos acostumamos mal a entender “público” como algo ligado fundamentalmente a estatal: desde a gestão, em âmbito federal, ao que se passa nas prefeifeituras, passando pelas escolas, universidades, saúde, etc., etc.., esquecendo-nos de que os espaços estatatis – sobretudo hoje – podem ser privatizados. Grave reduionismo! É urgente recuperarmos o sentido de “Público”, a partir das relações do cotidiano. Conhecemos pessoas e grupos que, no anonimato, se dedicam a fazer o bem, desinteressadamente, como é o caso, por exemplo, de tantas parteiras, por este Nordeste afora, realizando um serviço PÚBLICO de gande alcance, e com pouco reconhecimento. Enquanto isto, seguimos alimentando a idéia de que para realizarmos um serviço público, temos que nos candidatar a um manato públco... As consequências estão aí, graves e numerosas, ao alcance de nossa vista...  
*  Diuturno cuidado em fazer prevalecer a prática sobre o discurso, como critério de permanente busca da verdade – A cada momento, enfrentamos situações embaraçosas, graças à nossa propensão a julgarmos a realidade, não em cima de fatos concretos, mas pelo que dela se diz e se repete. Desde tenra idade, somos formados a apreciar as coisas,  sitações e as próprias pessoas pelo que elas dizem, pelo seu relato oral, sem qualquer confronto com os fatos, com a realidade concreta. Mesmo sabendo do tamanho da esquizofrenia que caracteriza, de forma crescente, as relações do nosso cotidiano – em que, não raramente, se sente uma coisa, se pensa uma segunda, se quer uma terceira, se faz uma quarta, se comunica uma quinta... -, ainda assim, teimamos em buscar a verdade, presididos, não pelo critério da prática, mas com base apenas nos relatos orais. “A árvore se conhece pelo fruto.”

* Adequada articulação entre trabalho manual e trabalho intelectual –Uma das heranças colonialistas ao longo de nossa história, tem sido a dicotomia estabelecida entre trabalho manual e trabalho intelectual. Desafio de cada dia é irmos superando tal dicotomia, cônscios de que o processo de humanização supõe que cresçamos como pessoas íntegras, material e imaterialmente, evitando, inclusive, assimilar preconceitos do tipo: “Uns pensam e outros excecutam”...

* Exercício das artes como experiência vivificante da beleza da vida -   Uma das marcas mais fortes dos humanos e nos humanos é a de se constituírem seres contemplativos do belo, além de capazes de exercitarem as diversas expresões de beleza contidas nas mais diferentes linguagens e manifestações artísticas, a tal ponto que, sem as artes, torna-se mutilado o processo de humanização: o ser humano se embrutece... Não importa qual seja a linguagem artística – desde que libertadora -, somos todos chamados a algum tipo de exercicío artistico, seja por meio da poesia, da literatura, da música da dança, da pintura, da escultura da fotografia, do cinema, em breve, exercitando a arte de transfomar a natureza em objetos culturais, seja trabalhando o barro, seja trabalhando o metal, seja trabalhando o tecido, seja trabalhando a madeira, etc., etc.

* Cuidado com a Casa Comum, como incessante execício de aprimoramento de nossa condição de seres viventes em meio aos demais seres viventes do Planeta e do Cosmo -  À diferença dos demais animais e seres vivos, os humanos despontam, ao mesmo tempo, como natureza e cultura. Tal característica nos confere a responsabilidade maior pelo cuidado de nossa “Casa Comum”. O fato de sermos natureza (também) natureza nos faz parceiros, e não proprietários, dos demais componentes da comunidade dos viventes. Isto implica uma responsabilidade maior pela qualidade de Planeta em que habitamos. Difícil é compreendermos a tragédia que nós próprios engendramos contra o planeta e contra nós. Educação ambiêntal resulta, portanto, como tarefa nossa, no cotidiano de nossas relações, seja no âmbito das macropolíticas, seja na esfera munincipal, seja no terreno comunitário,  seja no plano famíliar e no pessoal.

* Exercício da mística revolucionária -  A própria consiência dos limites nos convida à experiência mística revolucionária, como condição de observância dos valores que nos animam, como condição de nossa perseverança no compromisso revolucionário, que se faz e refaz, a cada dia, inspirados e alimentados pelo legado de figuras que doaram sua vida pela Liberdade e pela construção d eum novo modo de produção, de um novo modo de consumo, de um novo modo de gestão societal.

* Por uma militância de novo tipo – Os desafios e as urgências que enfrentamos demandam, também, um novo perfil de militância. Um primeiro aspecto a se tomar em consideração, tem a ver com as novas características formativas demandadas, em função da natureza dos novos desafios. Ser, em outros contextos, bastava uma formação extritamente política, em especial referente as relações Sociedade-Estado, hoje se exige muito mais dessa formação. Não apenas extender-se a atividade política para além do Estado, necessitando articular essas relações com as relações da cidadania do dia a dia. Muito mais: sem prejuízode se trabalhar a dimensão política urge uam formação capaz de responder, articuladamente, a uma conjunto de desafios experimentados no cotidiano da nova militância: relações de genêro, relações de etnia, relações geracionais, relações de espacialidade, relações ecológicas, relações cósmicas, relações com o Sagrado... Em Breve, uma formação integral, isto é: Do ser humano como um todo e de todos os seres humanos.

Eis apenas algumas pistas – a não serem jamis tomadas como receituário! – que entendemos úteis e fecundas a uma sincera retomada de rumo, de caminhos e de estilo de vida de novo tipo.

João Pessoa, 23 de maio de 2017  


















quinta-feira, 18 de maio de 2017

DA SÍNDROME DISJUNTIVA RUMO A UMA CULTURA CONECTIVA

DA SÍNDROME DISJUNTIVA RUMO A UMA CULTURA CONECTIVA

Alder Júlio Ferreira Calado

O processo de humanização comporta, ao longo do seu curso, uma considerável diversidade e alternância de situações. O (co)existir humano corresponde a uma malha de relações necessariamente tecidas de situações de confluência, alternadas com  situações de conflito e de ruptura. Em meio à rotina cotidiana, alternam-se (por vezes, até coexistem), com efeito, experiências existenciais de impasse, cuja superação demanda atitudes de dissenso, de conflito e de ruptura, pressupondo, neste caso,  decisões disjuntivas, do tipo: ” ou... ou...”.  Há, sim,  situações exstenciais que implicam necessariamente escollher  um único caminho entre dois ou mais enfrentados, dada sua natureza antagônica ou mutuamente excludente.  Trata-se de situações-limite, radicalmente inconciliáveis, pelo menos se e quando o objetivo almejado é mesmo o de seguir-se buscando um horizonte libertário. Nesses casos-limite, o próprio diálogo se torna inviabilizado. Paulo Freire lembrava que o diálogo é sempre possível e desejável, não apenas entre os iguais, como também entre os diferentes... desde que não antagônicos. Freire aqui faz eco ao dito evangélico, de que “Não se  pode servir a dois senhores.” Teimar contra tais situações implica experiências desastrosas.

Por outro lado, nossa convivência comporta um imenso leque de situações embaraçosas, desafiadoras, por se tratar de casos implicando diferenças consideráveis, mas não necessariamente antagônicas.

Nas linhas que se seguem, começamos por explicitar o sentido que estamos aqui atribuindo à expressão “síndrome disjuntiva”, e, em seguida, buscamos também explicitar o que estamos entendendo por “cultura conectiva”.

Da síndrome disjuntiva

Por “síndrome disjuntiva”  entendemos a crescente tendência dominante, nas sociedades de hoje,  de assumir como excludentes situações, experiências ou atitudes  diferentes daquelas com as quais me identifico, ainda que, examinando-as bem, sejam apenas diferentes, mas não antagônicas das minhas.

Não se trata de jogo de palavras, mas de situações concretas, cujo equacionamento requer dissernimento e conduta adequados por parte de quem se vê implicado. Algumas ilustrações podem servir como pistas concretas, na busca de equacionar ou superar impasses do cotidiano, em diferentes esferas da realidade.

No campo economico, por exemplo,  não é raro cometer-se equívoco, ao se negar trabalhar, de forma articulada, com realidades diferentes, mas não propriamente antagônicas. É o que se dá, no caso de uma experiência de produção comunitária. Um caso recorrente é o que se enfrenta em vários assentamentos de Reforma Agrária, cujos protagonistas se posicionam diversamente em relação à alternativa de trabalho exclusivamente coletivo e, por outro lado, a opção de trabalho em parcelas exploradas por unidade famíliar. Não raramente, as deliberações assumem um carater disjuntivo: ou uma situação ou a outra, o que acaba satisfazendo a uns, e desagradando a outros. Algumas experiências, porém, foram bem sucedidas, e atendendo às distintas partes, ousando conciliar as duas situações. Uma parte da terra é consagrada apenas ao trabalho coletivo, enquanto se permite a cada unidade famíliar explorar uma pequena parcela. O que antes parecia tratar-se de situações estritamente excludentes acabou revelando-se conciliável. Em outras palavras, o que antes parecia uma situação disjuntiva revelou-se, ao final uma situação animada por uma cultura conectiva.

Igualmente, podemos encontrar no plano político, exemplos tidos inicialmente como antagônicos que, após cuidadoso exame, mostraram-se passíveis de coexistência. Em algumas experiências (do passado e do presente), constatam-se casos de uma radical oposição entre Igualdade e Liberdade. Para certa corrente que se auto-proclama marxista, o exercício da igualdade só é possível lá onde se proíba a Liberdade, uma vez que, destronada de seus privilégios a burguesia, enquanto classe, tudo fará para reverter a situação que agora lhe é adversa, donde a suposta necessidade de se negar a Liberdade, em suas diversas manifestações. Reconhecendo-se, embora, algum fundamento neste arrazoado, o que se produziu, no entanto, foi uma exacerbação e abuso desta condição, ao ponto de, em nome do Socialismo e da Classe Trabalhadora, abolir-se toda perspectiva de Liberdade. Sucede que, Igualdade e Liberdade no plano libertário de humanização, não podem e não devem ser assumidos como valores necessariamente indissociáveis, sob pena de se desfigurar o próprio processo de humanização.
O mesmo se dá na esfera cultural. São inúmeros os casos do dia a dia que implicam uma aparente contradição entre situações vivenciadas, induzindo a não poucos a uma tendência à “sindrome disjuntiva”. Citemos, de passagem, alguns casos ilustrativos. No âmbito dos movimentos sociais populares, é frequênte a tendência a declarações do tipo: “Nós somos operários, e só nos interessam as lutas operárias”, “Nós somos camponeses, e nos bastamos enquanto Classe”, “Militamos no movimento feminista, e só a ele nos dedicamos”, “Fazemos parte do movimento LGBT, e só dele só nos ocupamos”, etc., etc. Nada a objetar, em relação a qualquer um deles, quanto ao empenho em sua respectiva trincheira de luta, a não ser quanto ao exclusivismo, quanto a não co-responsabilidade com as lutas de uns e outros, isto é, com as llutas do conjunto da Classe Trabalhadora. O mal é não colocar os interesses desta em primeiro plano, ao qual devem estar subordinados até as lutas específicas de cada movimento. Em busca de despertar a consciência, nesse sentido, convém lembrar que Classe Trabalhadora comporta gênero (homens e mulheres), comporta etnias (Povos Indígenas, Quilombolas, Povo Roma (“Ciganos”), etc.; comporta especialidade (Traballhadoras e Trabalhadores do Campo e da Cidade),  comporta gerações (Crianças, Adolescentes, Jovens, Idosos...), etc.

Aqui, não se está a insinuar qualquer idéia irrazoável de ubiquidade, como se todo militante tivesse que estar presente, ao mesmo tempo, em todas as trincheiras de luta. O que defendemos é que, em cada movimento específico, se reflitam os desafios e as perspectivas, não apenas de uma categoria,  mas  do conjunto da Classe Trabalhadora.

Os exemplos acima ilustrados, situam-se no âmbito coletivo, mas importa observar a necessidade de ser estender os mesmos critérios às relações também pessoais. Com efeito, ocorrem situações em que cada pessoa também é confrontada com circunstâncias aparentemente contraditórias que, uma vez bem examinadas, se mostram apenas diferentes, ou até complementares. Nas relações cotidianas na família, no trabalho, nos estudos, nos movimentos, etc., não são poucas as vezes em que nos defrontamos com tais situações, diante das quais o impulso inicial pode ser de caráter disjuntivo (“ou é isto, ou é aquilo”). Examinando-se, porém, mais detidamente tal situação, com discernimento, chegamos à conclusão de que de fato, não se trata de situações opostas, por força do que somos compelidosa a escolher entre uma e outra, mas as duas situações resultam conciliáveis.
Seja quanto aos casos coletivos seja quanto aos casos de âmbito pessoal, um critério eficaz a ter sempre presente é o principio dialético da unidade na diversidade.

Por uma cultura conectiva

Também aqui começamos por reconhecer que nem sempre é possível o exercício nas relações do chão do cotidiano, exercitar-se uma cultura conectiva. Fazemos, inclusive, questão de prevenir quanto a situações que não permitem o exercício de uma cultura conectiva do ponto de vista ético-político. Situações há – ainda que em número menor -, em que não se pode ou não se deve insistir em conciliar o inconciliável, sob pena de se agredir critérios éticos elementares. A este propósito, aliás, o atual contexto histórico tem-se revelado pródigo. O noticiário midiático e as redes sociais fazem circular a este respeito, casos esdrúxulos, de quem se atreve a conciliar o inconciliável, o que se dá com frequência, por conta das negociatas dos acordos de cúpulas, do aliancismo, do Auferir vantagens ilícidas a qualquer custo, em breve, por força do apelo ao discurso da razão cínica. A exemplo do que acima assinalamos, no caso da  síndrome disjuntiva, quanto à sua incidência no âmbito coletivo, de modo semelhante procedemos também em relação ao exercício da cultura conectiva. Esta também, seja para o bem, seja para o mal, incide igualmente tanto no plano coletivo, quanto no plano individual.

A busca do exercício adequado de uma cultura conectiva, inspira-se nos princípios  dialético da interação universal (“Tudo está ligado a tudo”) e do movimento, ou da transformação (“Πάντα Ρεί”: tudo flui, Como dizia Heráclito). Quanto ao primeiro elemento da Dialética, percebemos que a realidade é complexa, também porque os elementos que a constituem se dispõem numa infinita diversidade, mas igualmente compreendendo um fio que os atravessa e os une (a unidade na diversidade), de modo que nela tudo se apresenta conectada ou como expresso na sabia canção “Tudo está interligado”, da qual fazemos questão de destacar um trecho:

TUDO ESTÁ INTERLIGADO
COMO SE FÔSSEMOS UM
TUDO ESTÁ INTERLIGADO
NESTA CASA COMUM

O cuidado com as flores do jardim,
com as matas, os rios e mananciais
O cuidado com o ar e os biomas
com a terra e com os animais

O cuidado com o ser em gestação
co´as crianças um amor especial
O cuidado com doentes e idosos
pelos pobres, opção preferencial

A luta pelo pão de cada dia,
por trabalho, saúde e educação
A luta pra livrar-se do egoísmo
e a luta contra toda corrupção

O esforço contra o mal do consumismo
a busca da verdade e do bem
Valer-se do tempo de descanso,
da beleza deste mundo e do além

O diálogo na escola e na família
entre povos, culturas, religiões
Os saberes da ciência, da política,
da fé, da economia em comunhão

O cuidado pelo eu e pelo tu
pela nossa ecologia integral
O cultivo do amor de São Francisco
feito solidariedade universal.


A busca de uma cultura conectiva passa por diversos caminhos, de acordo com a infinita diversidade de componentes culturais, em diversos lugares e tempo. Há no entanto, algumas pistas que podem nos ajudar, nessa direção, a partir do chão das relações cotidianas. Uma dessas pistas tem a ver com nosso processo formativo contínuo, ao lono do qual vamos aprimorando nossa capacidade perceptiva, nosso empenho incessante de ver melhor o que antes não enxergávamos ou víamos mal, de escutar coisas que antes não ouvíamos ou ouvíamos mal, de sentir e de intuir, em breve, de ler, e interpretar e compreender os múltiplos sinais que a vida nos oferece, dia após dia. Esta capacidade, é este exercício contínuo de aprendizagem e de aprimoramento de nossa capacidade perceptiva que nos permitem posicionar-nos criticamente diante dos desafios que enfrentamos, bem como intervir nessa mesma realidade, em busca da construção de um novo modo de produção, um novo modo de consumo e um novo modo de gestão societal, em harmonia com o Planeta e com toda a comunidade dos viventes.

É claro que um tal horizonte persegue-se, processualmente, é fruto de incessante esforço coletivo e pessoal, que não se alcança por um golpe de vontade ou por palavras de ordem: vai-se construindo, nunca resultará acabado. Por outro lado, trata-se de um desafio, cujo enfrentamento exitoso é fruto de um conjunto articulado de ações, dentre as quais um cultivo da memória histórica do legado da humanidade e dos nossos diferentes povos, em lugares e tempos diversos, incluindo o cultivo de clássicos e contemporâneos de referência reconhecida; do exercício contínuo das artes, em todas as suas manifestações; da superação da dicotomia entre trabalho manual e trabalho intelectual; adequada articulação e costura do tempo (passado-presente-futuro); exercício da mística revolucionária, capaz de manter acesos os compromissos coletivos e pessoais com a construção desde já, ainda que modo molecular, das bases de uma nova sociedade; a contínua busca de se aplicar isto, seja no processo organizativo, seja no processo formativo, seja no processo de mobilização das forças sociais historicamente vocacionadas a uma vida em plenitude, vocacionadas à Liberdade, apesar e para além dos limites humanos.

João Pessoa, 18 de maio de 2017.


segunda-feira, 1 de maio de 2017

EM INCESSANTE BUSCA DE OUTRO BRASIL: “Nem o passado como era, nem o presente como está”...

EM INCESSANTE BUSCA DE OUTRO BRASIL: “Nem o passado como era, nem o presente como está”...

Alder Júlio Ferreira Calado

Todos os dias, e em especial neste PRIMEIRO DE MAIO, Dia dos Trabalhadores e Trabalhadoras, somos instigados a nos debruçarmos sobre rumos e caminhos do mundo, desde o chão do dia-a-dia de nossa sociedade. E podemos fazer isto, ensaiando perguntar-nos um conjunto articulado de questões, bem ao nosso alcance, várias das quais apresentando-se-nos bastante incômodas, graças à sua força de interpelação. Eis como cuido, hoje, de compartilhar algumas linhas provocativas, sentindo-me eu o primeiro provocado, com tais questionamentos.
* Uma parte imensa de Trabalhadores e Trabalhadoras, no mundo e no Brasil, graças à sua situação concreta – migração forçada, incidência de etno-genocídio, feminicídio, violência social, desemprego, sub-emprego, crescente precarização do trabalho, etc., etc., etc. – acha-se quase impossibilitados de refletir criticamente e, menos ainda, de enfrentarem  as causas de sua stiuação. Eles, elas antes as sofrem do que as compreendem. Ainda assim, muitos deles e delas fazem o que está ao seu alcance. Mas, nossos questionamentos se dirigem, prioritariamente, a um número considerável de Trabalhadores e Trabalhadoras, no Brasil, que reúnem, sim, condições favoráveis de se fazerem questionamentos do tipo: Mergulhados em terreno pantanoso de uma crise multifacetada (econômica, política, ética, ecológica, de paradigmas...), temo-nos dado ao INCESSANTE trabalho, não apenas de buscar compreender melhor o que se passa, mas também de ensaiarmos saídas, ao nosso alcance?  

* No empenho em compreendermos melhor o que acontece, no mundo e no Brasil, sem prejuízo das fontes de nossos habituais parceiros, temos examinado criticamente tamabém outras fontes, que pensam diferentemente de nós e dos “nossos”, a fim de nos inteirarmos de suas críticas? 

* Por mais que nos agradem os comentários feitos pelos “nossos”, será que, atendo-nos exclusivamente a tais fontes,  não corremos o sério risco de empobrecer nossa visão (auto)crítica?

* Se nos pretendemos fiéis à Classe Trabalhadora, será que nos limitarmos a analisar a realidade, apenas desde as fontes que coincidem plenamente com o nosso sentir-pensar-querer-agir, não acabamos sucumbindo a um grave reducionismo endógeno?
* Em seu carisma de exímio analista social, Eduardo Galeano costumava dizer que “A história é um profeta com um olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será.” E quanto a nós, pessoal e coletivamente, será que nos damos ao trabalho de tomar certa distância crítica desta síndrome do imediatismo de que vimos sendo reféns, e buscamos  examinar, em relação aos “nossos” analistas de referência quase exclusiva, o que se dizia e se escrevia dos inúmeros escândalos cometidos pel às forças dominantes de há  quinze, vinte, trinta  anos atrás, enquanto hoje, diante de  fatos de semelhante gravidade, o que anda sendo dito e escrito? Quanta contradição!

* Será que temos lembrança e consciência de nosso programa de ações (organizativas, formativas e de mobilização), vivenciado nas décadas 70 e 80, no campo e na cidade, e que fomos progressivamente abandonando ou secundarizando, fazendo vistas grossas a condições essenciais de transformação social, embriagados e seduzidos pelo “atalho” da desmedida ocupação dos espaços governamentais, de que acabamos nos tornando reféns, com altíssimos custos que hoje amarga a sociedade brasileira?

* Será que nos damos conta – inclusive e sobretudo, nossas principais organizações de base – das terríveis consequências de nosso adesismo, de nossa perda de autonomia, de nossa credibilidade junto  a enormes parcelas  das classes populares?
 
* Temos tido o cuidado de priorizar as análises de quem, a despeito de certos limites, se tem apresentado coerente, nas linhas-mestras de  suas análises, sem comportarem frequentes e graves contradições (de quem afirma coisas hoje, para negá-las pouco tempo depois, remanescendo similares os fundamentos da atual realidade, sem fazerem qualquer autocrítica dos equívocos cometidos)?       

* Numa sincera busca de retomada, EM NOVO ESTILO, desses compromissos interrompidos, serão mesmo iguais as chances de êxito, ante os profundos estragos cometidos – em especial em consequência de um progressivo desenraizamento de parte expressiva de nossas forças do cotidiano de nossa gente, inclusive com estilo de vida próximo do nosso povo? 

* Nos segmentos de esquerda (partidários, sindicais, populares, eclesiais, etc.), diante do evidente descrédito experimentado e das pressões internas e externas por mudanças de rumo e de caimihos,  será mesmo razoável que tal processo de autocrítico e de “renovação” seja conduzido pelas mesmas figuras dirigentes e seus prepostos?

* Por mais árduas que sejam as batalhas travadas e a serem ainda enfrentadas, conforta-nos a convicção de que, ao longo de sua história, aos humanos não são colocados desafios que, a seu tempo e graças ao seu esforço persistente, não sejam capazes de superar. Isto posto, por que razão confiar acriticamente a CONDUÇÃO desTe processo às mesmas forças que, a despeito de terem protagonizado ganhos econômicos inegáveis, malograram fragorosamente em ítens fundamentais da luta ético-política? Uma coisa é seguir contando com sua participação, outra é seguir confiando-lhes a condução desse processo, sem que se disponham a emitir sinais convincentes de autocrítica?

* Seria mesmo sinônimo de garantia, sob o pretexto de construir a “unidade”, a qualquer preço, das forças de resistência aos ataques das classes dominantes e dirigentes,  propugnar por uma reedição sem critérios sustentáveis de simples frentes conduzidas por lideranças cujos frutos são amplamente conhecidos (por ex.: em matéria de aliancismo, de associação espúria com o que há de pior das “elites” brasileiras, enriquecimento ilícito de figuras, parcerias com representantes de forças antagônicas, recurso habitual a expedientes aéticos)?

* Se é verdade que nos empenhamos na construção de um novo modo de produção, de um novo modod e consumo e de um novo modo de gestão societal, por que teimamos em apostar o melhor de nossas energias criativas, para administrar o inadministrável (o modelo vigente)?
Neste Primeiro de Maio de 2017, eis o que me ocorre compartilhar, como mensagem de solidariedade a todas aquelas e aqueles –que-vivem-do-Trabalho-?

João Pessoa, 1 de Maio de 2017.