DA SÍNDROME DISJUNTIVA
RUMO A UMA CULTURA CONECTIVA
Alder Júlio Ferreira Calado
O processo de humanização comporta, ao longo do seu curso, uma
considerável diversidade e alternância de situações. O (co)existir humano
corresponde a uma malha de relações necessariamente tecidas de situações de
confluência, alternadas com situações de
conflito e de ruptura. Em meio à rotina cotidiana, alternam-se (por vezes, até
coexistem), com efeito, experiências existenciais de impasse, cuja superação
demanda atitudes de dissenso, de conflito e de ruptura, pressupondo, neste
caso, decisões disjuntivas, do tipo: ”
ou... ou...”. Há, sim, situações exstenciais que implicam
necessariamente escollher um único
caminho entre dois ou mais enfrentados, dada sua natureza antagônica ou
mutuamente excludente. Trata-se de
situações-limite, radicalmente inconciliáveis, pelo menos se e quando o
objetivo almejado é mesmo o de seguir-se buscando um horizonte libertário.
Nesses casos-limite, o próprio diálogo se torna inviabilizado. Paulo Freire
lembrava que o diálogo é sempre possível e desejável, não apenas entre os
iguais, como também entre os diferentes... desde que não antagônicos. Freire
aqui faz eco ao dito evangélico, de que “Não se
pode servir a dois senhores.” Teimar contra tais situações implica
experiências desastrosas.
Por outro lado, nossa convivência comporta um imenso leque de
situações embaraçosas, desafiadoras, por se tratar de casos implicando
diferenças consideráveis, mas não necessariamente antagônicas.
Nas linhas que se
seguem, começamos por explicitar o sentido que estamos aqui atribuindo à
expressão “síndrome disjuntiva”, e, em seguida, buscamos também explicitar o
que estamos entendendo por “cultura conectiva”.
Da síndrome disjuntiva
Por “síndrome
disjuntiva” entendemos a crescente
tendência dominante, nas sociedades de hoje,
de assumir como excludentes situações, experiências ou atitudes diferentes daquelas com as quais me
identifico, ainda que, examinando-as bem, sejam apenas diferentes, mas não
antagônicas das minhas.
Não se trata de jogo de
palavras, mas de situações concretas, cujo equacionamento requer dissernimento
e conduta adequados por parte de quem se vê implicado. Algumas ilustrações
podem servir como pistas concretas, na busca de equacionar ou superar impasses
do cotidiano, em diferentes esferas da realidade.
No campo economico, por
exemplo, não é raro cometer-se equívoco,
ao se negar trabalhar, de forma articulada, com realidades diferentes, mas não
propriamente antagônicas. É o que se dá, no caso de uma experiência de produção
comunitária. Um caso recorrente é o que se enfrenta em vários assentamentos de
Reforma Agrária, cujos protagonistas se posicionam diversamente em relação à
alternativa de trabalho exclusivamente coletivo e, por outro lado, a opção de
trabalho em parcelas exploradas por unidade famíliar. Não raramente, as
deliberações assumem um carater disjuntivo: ou uma situação ou a outra, o que
acaba satisfazendo a uns, e desagradando a outros. Algumas experiências, porém,
foram bem sucedidas, e atendendo às distintas partes, ousando conciliar as duas
situações. Uma parte da terra é consagrada apenas ao trabalho coletivo,
enquanto se permite a cada unidade famíliar explorar uma pequena parcela. O que
antes parecia tratar-se de situações estritamente excludentes acabou
revelando-se conciliável. Em outras palavras, o que antes parecia uma situação
disjuntiva revelou-se, ao final uma situação animada por uma cultura conectiva.
Igualmente, podemos
encontrar no plano político, exemplos tidos inicialmente como antagônicos que,
após cuidadoso exame, mostraram-se passíveis de coexistência. Em algumas
experiências (do passado e do presente), constatam-se casos de uma radical
oposição entre Igualdade e Liberdade. Para certa corrente que se auto-proclama
marxista, o exercício da igualdade só é possível lá onde se proíba a Liberdade,
uma vez que, destronada de seus privilégios a burguesia, enquanto classe, tudo
fará para reverter a situação que agora lhe é adversa, donde a suposta
necessidade de se negar a Liberdade, em suas diversas manifestações.
Reconhecendo-se, embora, algum fundamento neste arrazoado, o que se produziu,
no entanto, foi uma exacerbação e abuso desta condição, ao ponto de, em nome
do Socialismo e da Classe Trabalhadora, abolir-se toda perspectiva de
Liberdade. Sucede que, Igualdade e Liberdade no plano libertário de
humanização, não podem e não devem ser assumidos como valores necessariamente
indissociáveis, sob pena de se desfigurar o próprio processo de humanização.
O mesmo se dá na esfera
cultural. São inúmeros os casos do dia a dia que implicam uma aparente
contradição entre situações vivenciadas, induzindo a não poucos a uma tendência
à “sindrome disjuntiva”. Citemos, de passagem, alguns casos ilustrativos. No
âmbito dos movimentos sociais populares, é frequênte a tendência a declarações
do tipo: “Nós somos operários, e só nos interessam as lutas operárias”, “Nós
somos camponeses, e nos bastamos enquanto Classe”, “Militamos no movimento
feminista, e só a ele nos dedicamos”, “Fazemos parte do movimento LGBT, e só
dele só nos ocupamos”, etc., etc. Nada a objetar, em relação a qualquer um
deles, quanto ao empenho em sua respectiva trincheira de luta, a não ser quanto
ao exclusivismo, quanto a não co-responsabilidade com as lutas de uns e outros,
isto é, com as llutas do conjunto da Classe Trabalhadora. O mal é não colocar
os interesses desta em primeiro plano, ao qual devem estar subordinados até as
lutas específicas de cada movimento. Em busca de despertar a consciência, nesse
sentido, convém lembrar que Classe Trabalhadora comporta gênero (homens e
mulheres), comporta etnias (Povos Indígenas, Quilombolas, Povo Roma
(“Ciganos”), etc.; comporta especialidade (Traballhadoras e Trabalhadores do
Campo e da Cidade), comporta gerações
(Crianças, Adolescentes, Jovens, Idosos...), etc.
Aqui, não se está a
insinuar qualquer idéia irrazoável de ubiquidade, como se todo militante
tivesse que estar presente, ao mesmo tempo, em todas as trincheiras de luta. O
que defendemos é que, em cada movimento específico, se reflitam os desafios e
as perspectivas, não apenas de uma categoria,
mas do conjunto da Classe
Trabalhadora.
Os exemplos acima
ilustrados, situam-se no âmbito coletivo, mas importa observar a necessidade de
ser estender os mesmos critérios às relações também pessoais. Com efeito,
ocorrem situações em que cada pessoa também é confrontada com circunstâncias
aparentemente contraditórias que, uma vez bem examinadas, se mostram apenas
diferentes, ou até complementares. Nas relações cotidianas na família, no
trabalho, nos estudos, nos movimentos, etc., não são poucas as vezes em que nos
defrontamos com tais situações, diante das quais o impulso inicial pode ser de
caráter disjuntivo (“ou é isto, ou é aquilo”). Examinando-se, porém, mais
detidamente tal situação, com discernimento, chegamos à conclusão de que de
fato, não se trata de situações opostas, por força do que somos compelidosa a
escolher entre uma e outra, mas as duas situações resultam conciliáveis.
Seja quanto aos casos
coletivos seja quanto aos casos de âmbito pessoal, um critério eficaz a ter
sempre presente é o principio dialético da unidade na diversidade.
Por uma cultura conectiva
Também aqui começamos
por reconhecer que nem sempre é possível o exercício nas relações do chão do
cotidiano, exercitar-se uma cultura conectiva. Fazemos, inclusive, questão de
prevenir quanto a situações que não permitem o exercício de uma cultura conectiva
do ponto de vista ético-político. Situações há – ainda que em número menor -,
em que não se pode ou não se deve insistir em conciliar o inconciliável, sob
pena de se agredir critérios éticos elementares. A este propósito, aliás, o
atual contexto histórico tem-se revelado pródigo. O noticiário midiático e as
redes sociais fazem circular a este respeito, casos esdrúxulos, de quem se
atreve a conciliar o inconciliável, o que se dá com frequência, por conta das
negociatas dos acordos de cúpulas, do aliancismo, do Auferir vantagens ilícidas
a qualquer custo, em breve, por força do apelo ao discurso da razão cínica.
A exemplo do que acima assinalamos, no caso da
síndrome disjuntiva, quanto à sua incidência no âmbito coletivo, de modo
semelhante procedemos também em relação ao exercício da cultura conectiva. Esta
também, seja para o bem, seja para o mal, incide igualmente tanto no plano
coletivo, quanto no plano individual.
A busca do exercício
adequado de uma cultura conectiva, inspira-se nos princípios dialético da interação universal (“Tudo está
ligado a tudo”) e do movimento, ou da transformação (“Πάντα Ρεί”: tudo flui,
Como dizia Heráclito). Quanto ao primeiro elemento da Dialética, percebemos que
a realidade é complexa, também porque os elementos que a constituem se dispõem
numa infinita diversidade, mas igualmente compreendendo um fio que os atravessa
e os une (a unidade na diversidade), de modo que nela tudo se apresenta
conectada ou como expresso na sabia canção “Tudo está interligado”, da qual fazemos
questão de destacar um trecho:
TUDO
ESTÁ INTERLIGADO
COMO SE FÔSSEMOS UM
TUDO ESTÁ INTERLIGADO
NESTA CASA COMUM
O cuidado com as flores do jardim,
com as matas, os rios e mananciais
O cuidado com o ar e os biomas
com a terra e com os animais
O cuidado com o ser em gestação
co´as crianças um amor especial
O cuidado com doentes e idosos
pelos pobres, opção preferencial
A luta pelo pão de cada dia,
por trabalho, saúde e educação
A luta pra livrar-se do egoísmo
e a luta contra toda corrupção
O esforço contra o mal do consumismo
a busca da verdade e do bem
Valer-se do tempo de descanso,
da beleza deste mundo e do além
O diálogo na escola e na família
entre povos, culturas, religiões
Os saberes da ciência, da política,
da fé, da economia em comunhão
O cuidado pelo eu e pelo tu
pela nossa ecologia integral
O cultivo do amor de São Francisco
feito solidariedade universal.
COMO SE FÔSSEMOS UM
TUDO ESTÁ INTERLIGADO
NESTA CASA COMUM
O cuidado com as flores do jardim,
com as matas, os rios e mananciais
O cuidado com o ar e os biomas
com a terra e com os animais
O cuidado com o ser em gestação
co´as crianças um amor especial
O cuidado com doentes e idosos
pelos pobres, opção preferencial
A luta pelo pão de cada dia,
por trabalho, saúde e educação
A luta pra livrar-se do egoísmo
e a luta contra toda corrupção
O esforço contra o mal do consumismo
a busca da verdade e do bem
Valer-se do tempo de descanso,
da beleza deste mundo e do além
O diálogo na escola e na família
entre povos, culturas, religiões
Os saberes da ciência, da política,
da fé, da economia em comunhão
O cuidado pelo eu e pelo tu
pela nossa ecologia integral
O cultivo do amor de São Francisco
feito solidariedade universal.
A busca de uma cultura
conectiva passa por diversos caminhos, de acordo com a infinita diversidade de
componentes culturais, em diversos lugares e tempo. Há no entanto, algumas
pistas que podem nos ajudar, nessa direção, a partir do chão das relações
cotidianas. Uma dessas pistas tem a ver com nosso processo formativo contínuo,
ao lono do qual vamos aprimorando nossa capacidade perceptiva, nosso empenho
incessante de ver melhor o que antes não enxergávamos ou víamos mal, de escutar
coisas que antes não ouvíamos ou ouvíamos mal, de sentir e de intuir, em breve,
de ler, e interpretar e compreender os múltiplos sinais que a vida nos oferece,
dia após dia. Esta capacidade, é este exercício contínuo de aprendizagem e de
aprimoramento de nossa capacidade perceptiva que nos permitem posicionar-nos
criticamente diante dos desafios que enfrentamos, bem como intervir nessa mesma
realidade, em busca da construção de um novo modo de produção, um novo modo de
consumo e um novo modo de gestão societal, em harmonia com o Planeta e com toda
a comunidade dos viventes.
É claro que um tal
horizonte persegue-se, processualmente, é fruto de incessante esforço coletivo
e pessoal, que não se alcança por um golpe de vontade ou por palavras de ordem:
vai-se construindo, nunca resultará acabado. Por outro lado, trata-se de um
desafio, cujo enfrentamento exitoso é fruto de um conjunto articulado de ações,
dentre as quais um cultivo da memória histórica do legado da humanidade e dos
nossos diferentes povos, em lugares e tempos diversos, incluindo o cultivo de
clássicos e contemporâneos de referência reconhecida; do exercício contínuo das
artes, em todas as suas manifestações; da superação da dicotomia entre trabalho
manual e trabalho intelectual; adequada articulação e costura do tempo
(passado-presente-futuro); exercício da mística revolucionária, capaz de manter
acesos os compromissos coletivos e pessoais com a construção desde já, ainda
que modo molecular, das bases de uma nova sociedade; a contínua busca de se
aplicar isto, seja no processo organizativo, seja no processo formativo, seja
no processo de mobilização das forças sociais historicamente vocacionadas a uma
vida em plenitude, vocacionadas à Liberdade, apesar e para além dos limites
humanos.
João Pessoa, 18 de maio
de 2017.
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