LIÇÕES DAS UTOPIAS MEDIEVAIS: a
contribuição de Gioacchino da Fiore (1135-1202)
Alder Júlio
Ferreira Calado.
“Utopia”,
“Eutopia”, “Atopia”, “Distopia”... são termos polissêmicos. Não é nosso
propósito deter-nos sobre tal polissemia. Concentramo-nos apenas no conceito de
“Utopia”. É conhecida a resposta dada por um expositor a uma pergunta que lhe
fora dirigida, sobre “para que serve a
utopia?” Nas palavras de Eduardo Galeano, a resposta conclui simplesmente que
as utopias servem “para caminhar!”. Conclusão
esta, precedida pela argumentação metafórica de que a utopia é como quem
caminha em direção à linha do horizonte. Quantos passos são dados nesta
direção, nesta mesma medida se distancia do horizonte de quem caminha, em
direção ao mesmo...
As utopias
despontam prodigas sobretudo, em tempos de carência, penúria ou de enormes
desafios. Assim se tem passado em todas as épocas da história. Também, na Idade
Média. Nesta, com efeito, também em função dos impasses econômicos-políticos e
culturais então vivenciados, prosperaram abundantemente distintas utopias.
Vasta é a bibliografia sobre este fenômeno
(cf. Hilário Franco, Editora Brasiliense, 1992.)
Devido à
longa duração da idade média, é amplo o
espectro de situações de impasse social, eocnômico, política, cultural, em que
diferentes populações medievais estiveram envolvidas, sob a égide do sistema
feudal, ressalvados os segmentos privilégiados do sistema (a nobreza e o clero)
enormes parcelas de camponeses tiveram que armargar, em distintos períodos
medievaís, sucessuvas experiências de fome, de peste, de guerras, de
marginalidades de ameaças,de humilhações
de preconceitos de toda sorte... Tais situações constituíam a motivação maior
de seus sonhos, de suas utopias. Assim como no sonho, cujo motor principal é a
experiência de um cotidiano de faltas, de ausensias, de frustaçãos, também as
útopias servem para alimentar a esperança de pão para quem tem fome; de saúde
para os enfermos; de paz para os que vivem vitimados de guerras; de justiça
para os esfarrapados; de respeito e dignidade para os humilhados; de liberdade
para os que vivem sob o julgo da lei.
Ao longo da
idade Media, com efeito, sucederam-se ou coexistiram várias narrativas
populares, a expressarem profundas aspirações de vários segmentos populares,
organizações e movimentos, como instrumentos de superação das mais diversas
situações de penúria de sofrimento, de perseguição, de marginalização e de preconceitos
contra os “debaixo”, tanto ou mais do que que a história, são os textos
literários que melhor relatam esses episódios. A literatura medieval é, sobre
isto, farta. Bons clássicos serviram-se em suas obras primas, de incontáveis
relatos, a este respeito a tal ponto, que nos convencemos cada vez mais da
notável fecundidade das abordagens literárias para a construção das ciências
sociais (da História, da Sociologia, da Política, da Antropologia, etc.).
Nas linhas
que seguem, restringimo-nos a uma dessas utopias – à utopia da liberdade,
especificamente tal como abordada pelo monge calabrês, Gioacchino da Fiore.
Para tanto, a) partimos de uma breve contextualização do período histórico em
que viveu o mone calabrês; b) em seguida, fornecemos alguns dados
biobibliográficos de Giocchino da Fiore; c) expomos, resumidamente, suas
principais teses; d) por fim, tentamos extrair alguns ensinamentos de sua
utopia
a) Alguns
traços históricos do século XII
Os últimos
dos longos dez séculos medievais – em espeical, a partir do século XI-XII - são
conhecidos como “Baixa Idade Média”. Assinalam o declínio do modo de produção
então vigente – o feudalismo, ao mesmo tempo em que prenunciam e inauguram o
advento de um novo modo de produção – o capitalismo.
O século XII
apresenta-se como de grande eferscência econoômica, política e cultural, em
continuação doq que começara a ocorrer do seculo xi. O descontamento com a
sociedade feudal ganhava corpo. Sentia-se uma exaustão de parcelas
consideráveis da população, decorrentes das diversas formas de exploração, de
dominação e de marginalização presentes na organização feudal. Ansiava-se por
liberdades. Para se livrarem do rígido controle da nobreza e do clero, uma
crescente parcela da população recorreu ao comércio, fundando, em aliança com
os reis, pequenos núcleos urbanos – os “burgos” -, estabelecidos em pontos
estratégicos de rotas terrestres e fluciváis espalhadas em parte da Europa
(Flandres, Champagnhe...). À medida que se intensificavam as trocas de bens e
produtos, em feiras e centros comerciais, ia-se registrando um crescimento
demográfico considerável, inclusive pela necessidade de provisionamento
constante de bens e produtos, para cuja produção deviam contribuir artesãos,
nos mais mais distintos ramos de atividades. Daí foram nascendo as corporações
de ofício e outras associações tipicamente urbanas, abrindo caminho para uma
vida de escolhas de que não se dispunha nos ambientes feudais. Enquanto os
burgos se expandiam, iam assumindo diferentes formatos, como no caso do
surgimento das comunas,a ampliando o leque de escolhas mais livres, pelo menos
em relação ao antigo regima.
Essas
condições de caráter econômico, a despeito das concessões políticas feitas aos
reis, propiciaram o desenvolvimento de um clima de certa autonomia em relação,
não apenas à nobreza, mas também em relação ao clero. Autonomia que acabaria
viabilizando as condições para o surgimento de iniciativas de certa rebeldia
ante o antigo regime. , o ambiente urbano asummia, cadaz vez uma ar de liberade
o que ese expressa na frase alemã * Stadtluft
macht frei”Disto são prova alguns movimentos populares da época, a exemplo dos
movimentos pauperísticos, como o animado pelos Fraticelli ou os Espirituais
Franciscanos. Outra iniciativa que expressava boa dose de rebeldia contra os
malfeitos da hierarquia eclesiástica da época vinha da veia artística dos
protestos lançados pelos Goliardos, uma espécie de “hippies”da época” . São,
com efeito, diversos os movimenos populares surgidos, a partir do século XII,
dentre os quais: os Valdenses, os Albigenses, as Beguinas, para mencionar
apenas três.
Em “O Nome
da Rosa”, por exemplo, Umberto Eco faz referência a ações ou episódios
relativos a alguns desses movimentos, sobre os quais é relativamente farta a
bibliografia (cf., por ex., a obra de LE
GOFf, Jacques. História Memória, 4ª ed., Campinas:Editora da
UNICAMP, 1995). A influência das idéias de Giocchino da Fiore vai além: faz-se
igualmente presente na formação de figuras protagonistas dos primeiros tempos
da Reforma, a exemplo de Jan Hus.
b) Retalhos da vida e do pensamento
de Giocchino da Fiore
Gioacchino
da Fiore, monge calabrês, nascido em
Celico (Itália), província de Cosenza viveu entre 1135 e 1202, tem seu
“sobrenome” ligado ao lugar que marcaria sua densa experiência monacal (Fiore,
uma referência ao lugar que ele associava às flores de Nazaré), como abade cisterciense.
Conta-se sobre ele com escassas informações, quanto à sua infância. Seus pais,
Mauro e Gemma, antes dele, tinham tido três filhos – todos falecidos. Eles também
tiveram três filhas. Por empenho do seu
pai, um tabelião notário, segue, quando jovem, uma carreira de relações
públicas, com Papas e Reis. Não duraria muito. Logo partiria em viagem para a
Terra Santa, como peregrino. Fato que o marcaria profundamente, em definitivo.
Dotado de raro talento intelectual, e desperto para a vida consagrada, em
especial para a Ordem dos Cistercienses, (de origem Beneditina) ele vai
dedicar-se incansávelmente à leitura e interpretação da Bíblia – do Antigo e do
Novo Testamento, encontrando no Apocalipse uma preciosa chave de interpretação,
dada a consistência das concordâncias entre o Antigo e o Novo Testamento.
O
aprofundamento de seus estudos escriturísticos dar-se, principalmente, após o
seu retorno à Itália. Ao mesmo tempo, apresentava fortes sinais de um
vocacionado à vida consagrada, mais do que a uma vida presbiteral. Sua
humildade, sua simplicidade, sua vida de pobreza contrastavam com toda uma tendência
carreirista dos clérigos do seu tempo, o que talvez pudesse explicar sua
resistência à ordenação presbiteral, bem
como ao cargo de abade, acabando por aceitar estes encargos em função da insistência de autoridades eclesiásticas da
época.
De seus
escritos mais relevantes, cumpre destacar: Liber
Concordiae Novi ac Veteris Testamenti (livro de concordância entre o antigo e o novo testamento); Expositio
in Apocalipsim (Exposição
sobre o Apocalipce) e Psalterium Decem Chordarum (Saltério de
dez cordas) ; Liber Figurarum (Livro
dos Números).
Considerável
foi o reconhecimento, desde sua vida, do legado de Gioacchino da Fiore.
Reconhecimento de sua santidade, de seu genial talento de pesqisador, de
profeta. A despeito de sua produção bastante avançada para o tempo – alguns dos
seus escritos soando como heréticos, para não poucos ouvidos “ortodoxos” da
época -, seu reconhecimento atravessa séculos e passa por figuras clássicas
como Dante, em cuja obra-prima – “A Divina Comédia”, e mais precisamente no
Canto XII do Paraíso -constam estes versetos:
(...) e lucemi da lato/il calavrese abate Giovacchino/ Di spirito profetico
dotato(...).
C) Idéias axiais de sua teoria da
história
À semelhança
de figuras tais como Agostinho, cujos escritos encerram uma concepção de
história, também Gioacchhino da Fiore é encarado como alguém que propõe uma
leitura da história, de modo singular. A principal contribuição deste monge
cisterciense calabrês reside justamente na proposta inovadora de interpretação
da história, fundada na expressão trinitária de Deus, que se manifesta, a cada
tempo, especialmente por meio de uma de Suas Pessoas – a do Pai, a do Filho e a
do Espírito Santo. Em torno das qualidades específicas de cada uma dessas
Pessoas, girava cada uma das três idades em que se divide a história da
humanidade: a Era do Pai, a Era do Filho e a Era do Espírito Santo. Tal leitura
da história se dá por meio de sua profunda incursão hermenêutica nos escritos
bíblicos do Antigo e do Novo Testamento, em especial no Livro do Apocalipse,
onde encontra expressiva concordância.
A Era do Pai
corresponde ao tempo da lei, da obediência aos mais velhos. O Antigo Testamento
constitui sua referência bíblica. Noite, inverno, água e ervas são tomadas como
linguagens representativas desta idade. A Idade do Filho corresponde ao período
do Novo Testamento, a época de Jesus, à qual correspondem virtudes como a
graça, a sabedoria, a fé, a valorização dos jovens. A Idade do Filho também é
representada por símbolos como a primavera, a aurora, as espigas, o vinho.
Quanto à terceira Era, que na leitura hermenêutica de Giocchino da Fiore, ainda
estaria por acontecer, seria marcada pela Idade do Espirito Santo, tendo como
características um tempo de liberdade, de compreensão profunda, a vivencia do
amor e da amizade, e pelo protagonismo das crianças. Correspondem a esta época
símbolos como o verão, o meio dia, a colheita, o oléo.
Atendo-se
específicamente à Era do Espirito Santo, Giocchino da Fiore, sempre
fundamentado da interpretação escriturística, sublinha as novas condições
avigorarem na humanidade, graças ao protagonismo de uma Igreja renovada animada
pelo Espirito Santo, e, portanto generosamente solícita ao que o Espirito Santo
lhe propõe. A Igreja é chamada a emepenhar-se numa espiritualidade
transformadora, capaz de fermentar o mundo de novos valores – De justiça, de
paz, de fraternidade, de partilha. Este chamamento a levaria a romper
progressivamente com suas velhas práticas de corrupção, de luxo, de
hierarquização, de imperialismo, etc.
A época de
Giocchino da Fiore revelava-se muito favorável a um vigoroso ressurgimento do
monaquismo, o que explica o aparecimento de mosteiros de abadias, de várias
ordens mendicantes. O próprio monge calabrês parecia convencido de que a nova
humanidade seria animada pela Igreja, por meio de uma espiritualidade
fortemente contemplativa, sem ruptura com uma ação concreta renovadora – daí a
formula então conhecida na expressão “contemplação na ação”.
A partir
dessas ideias e dessas experiências que se difundiriam por vários pontos da
Europa vão surgir movimentos leigos de renovação, a se contraporem aos
numerosos escândalos da auta hierarquia eclesiástica, ocasionando, de um lado,
uma crescente perseguição (que chegaria ao auge, com o início da Inquisição,
alguns séculos depois), bem como, por outro lado a assegurar condições para o
grande movimento da Reforma.
d) Lições a extrair do legado de Gioacchino
da Fiore
Quase nove
séculos distam de nós, desde o nascimento de Gioacchino da Fiore (1135). De lá para
cá, uma sucessão imensa de grandes e pequenas mudanças de toda ordem. Desde
então, ruiu o modo de produção feudal, substituído pelo Capitalismo, em
diversas etapas de seu desenvolvimento. Na esfera econômica, tivemos profundas
alterações científico-tecnológicas, assegurando condições para grandes navegações,
estabelecimetno de entrepostos comerciais pelo mundo a afora; assistimos ao
longo e penoso processo de colonização do continente americano; tivemos várias
etapas da revolução industrial... No plano político, o surgimento dos Estados
nacionais, vários períodos de guerras
fratricidas, transformações sócio-políticas de grande porte... Na âmbito
cultural, profundas mudanças de valores, resultado e expressão de sucessivas
crises societais, como a que vivemos, atualmente. É sobretudo neste plano – o da
Cultura – que podemos recolher as melhores lições do legado do monge calabrês.
Pela sua formação, aqui destacamos sua contribuição, no plano do Cristianismo,
e mais precisamente do Movimento de Jesus. Neste sentido, um primeiro ponto a
servir de preciosa bússola ainda hoje: a força luminosa e transformadora de uma
espiritualidade referenciada na comunhão trinitária, com incidência mais forte
no Espírito Santo, enviado pelo Pai, em comunhão com o Ressuscitado.
Sem qualquer
pretensão de sugerir uma sorte de retorno ou de reedição literal das intuições
de Gioacchino da Fiore, vale a pena nelas buscar inspirção frutuosa, que nos
ajudem melhor a irmos enfrentando e buscando superar os desafios de nosso
tempo.
Um primeiro
ensinamento que segue fecundo e atual é o de seguirmos tomando como referência
maior o núcleo da pregação de Jesus e dos Seu Espírito: o Reino de Deus e Sua
justiça. Revisitando o Novo Testamento, constatamos ter esta a grande preocupação
de Jesus: anunciar e inaugurar o Reino de Deus. Nesse sentido, convém lembrar
que a expressão “Reino de Deus” aparece mais de cem vezes. Bem mais do que a
expressão “Igreja”. Sem pretendermos sugerir qualquer contraposição, entre um e
outra, nunca é demias sublinhar que a Igreja (as Igrejas) são chamadas a serem
instrumento do Reino de Deus, enquanto se voltam, pobres, humildes e
servidoras, dos valores do Reino de Deus: justiça, paz, igualdade, solidariedade,
partilha, serviço gratuito, misericórdia, liberdade.
Uma
consequência concreta desta distinção entre reino de Deus e Igreja(s) consiste
na disposição de nos abrirmos ao mundo, à humanidade, indo além das fronteiras eclésiais. O atual Bispo de
Roma, Fransisco, não cessa de insistir, em seus gestos em seus escritos e em seus
pronnciamentos, na necessidade e urgência de sermos fiéis ao horizonte do Reino
de Deus, de modo a que superemos a tendência a termos na(s) Igreja(s) uma
Instituição auto-referenciada, comportando-nos como meros funcionários
eclesiásticos e não como vocacionados a sermos agentes transformadores de um
mundo, em conformidade com os valores do Reino de Deus – de justiça, de paz, de
fraternidade, de partilha, de solidariedade, de misericordia, de verdade, de
convivência harmoniosa com o planeta e toda a comunidade dos viventes.
Outra
inspiração a recolher do legado do monge calabrês tem a ver com nossa vocação à
liberdade. Seu estilo de vida de profunda comunhão trimitária, de imersão
articulada nos textos sagrados, na perspectiva da inovação, da construção de novas relações inspiradas na
Era do Espirito Santo, isto é, chamando-nos ao protagonismo de um reino de
liberdade, já apartir do chão do nosso cotidiano. Tal compromisso nos instiga,
por exemplo, a nos comprometermos, pessoal e coletivamente, com a construção de
um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de
gestão societal.
A utopia
Giocchinita da “Terceira Idade” ademais, nos incita a exercitar a memoria
histórica, em busca de inspiração e intuição, para, de um lado, recolhermos ensinamentos do passado, e, de
outro, sermos capazes de conectá-los aos desafios presentes, em busca de uma
sociabilidade alternativa.
Referências virtuais (vídeos e links):
João Pessoa,
31 de Maio de 2017.
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