segunda-feira, 25 de julho de 2022

A INVENTIVIDADE REVOLUCIONÁRIA DE LUDOVICO SILVA

 A INVENTIVIDADE REVOLUCIONÁRIA DE LUDOVICO SILVA


Alder Júlio Ferreira Calado


Em seu denso "Filosofia da Práxis” (Expressão Popular, 2007), Adolfo Sánchez-Vásquez, ao tratar de criatividades na perspectiva marxista, faz questão de assinalar que nem toda criatividade se reveste de relevância social, mas somente a que comporta uma intencionalidade revolucionária. Não raramente, deparamos com a mídia comercial a anunciar, com estardalhaço uma iniciativas pretensamente "original", e quando analisarmos criticamente, nós a percebemos desprovida de predicado capaz de nos trazer uma inovação relevante, sob o ponto de vista da mudança social. Também ao interno das forças de esquerda, atribui-se valor extraordinário a certos feitos cuja contribuição resta, por vezes, duvidosa. Este não é, com certeza, o caso da figura do filósofo venezuelano Ludovico Silva (1937-1988), sobre quem nas linhas que seguem, me ocorre tecer umas brevíssimas notas.


Seu percurso inicial, a despeito das condições intelectuais familiares serem favoráveis (parentes próximos seus também se destacavam, especialmente no campo das Letras), seus primeiros anos de universitário se caracterizam por seu empenho e desempenho privilegiados, no campo das Letras, a partir da filosofia, que concluiu obtendo aprovação “Summa Cum Laude” pela Universidade Central da Venezuela. Alternou temporadas de estudos em Madrid (filosofia), e, Paris e na Alemanha (Filologia Românica).;


Já antes de seu giro pela europa, ele cultivava um gosto especial por línguas (além de espanhol. também o francês, o Alemão, entre outras), bem como pela literatura, pela poesia, pela comunicação (radiofônica)., ao tempo em que lograva promover interlocução com poetas latinoamericanos de renome, inclusive Ernesto Cardenal (Nicarágua). Também começou a despertar interesse pela leitura de Marx, inclusive sob O Capital, mantendo-se igualmente atento às outras obras marxistas.


No entanto, foi a partir do seu regresso da Europa, que Ludovico Silva dedicou atenção especial, a um mergulho profundo e crítico acerca do legado de Marx. Já tinha em torno de trinta anos de idade quando iniciou um período de leitura mais detida da obra de Marx, sem que isto em nada tenha afetado a qualidade e a excelência do seu trabalho. Muito ao contrário. Com efeito, em 1970, nos vai brindar com um dos textos mais fecundos - “A Mais Valia Ideológica”, seguido de “Teoria e Prática da Ideologia”. 


Conquanto fosse também um marxólogo importa assinalar que Ludovico Silva militando em distintas trincheiras anticapitalistas, especialmente no campo da Filosofia e da Literatura (mais particularmente da Poética: os jovens, os chamavam “Ludo, o Poeta”) - campo de militância no qual faz lembrar a militância de Antonio Candido - ofereceu ao campo revolucionário latinoamericano valiosas contribuições, por meio de obras tais como “O Estilo literário de Marx”, “Anti-manual para uso de Marxianos, Marxistas e Marxólogos”, entre outros.


Pela forma como trata e analisa minuciosamente a obra de Marx, Ludovico ganha autoridade e respeito, perante os militantes e pesquisadores do legado marxiano, de modo a elaborar um trabalho hermenêutico persistente das obras de Marx, insurgindo-se  de modo contundente, contra toda postura dogmática - principalmente contra o Marxismo soviético, postura a qual se deve, inclusive, a ocultação durante décadas, de parte expressiva da obra de Marx, atitude agravada pelo comportamento ultra-seletivo de partes ou trechos dos escritos Marxianos. Notemos, por exemplo, que a publicação dos “Manuscritos Econômico-Filosóficos” só veio a lume em 1932.


O primeiro grande impacto de sua obra foi causado por seu livro “A Mais-Valia Ideológica”, publicado em 1970. Nele, o autor se revela sobremaneira criativo, ao formular, em linha sequencial ao conceito de “Mais-Valia” da lavra de Marx, a categoria “Mais-Valia ideológica”. Partindo da formulação marxiana do mais-valia, Ludovico se dá conta da carga semântica igualmente presente nas relações capitalistas, da dimensão imaterial do mecanismo de exploração e geração do lucro, observável na extração material de mais-valia, desta feita arrancada, na exploração física/material do trabalhador alienado, mas do seu espírito e da sua psiquê, a medida que tal exploração se estende, do chão da fábrica, para o lar do trabalhador, de modo que os aparelhos ideológicos - especialmente os meios de comunicação de massa, da indústria cultural - mantém prisioneiro o trabalhador: ele se torna refém de suas ideias, toda grade de valores, de crenças, de ideias que o mesmo sistema dominante faz circular, dia e noite, pelo rádio, pela televisão, na família, na escola, na igreja, etc. Outro aspecto não menos importante contido na “Mais-Valia Ideológica”, tem a ver com a descoberta pelo explorado de que, dando-se conta dos mecanismos de exploração por ele sofridos, passa a enfrentá-los, neles identificando seu inimigo de classe: o patronato, o sistema capitalista.


A partir desta brevíssima notícia acerca de Ludovico Silva e de aspectos de seu legado - cujo intento é apenas o de instigar especialmente os jovens das classes populares - importa agora ressaltar alguns ensinamentos recolhidos de sua contribuição teórica.


Um primeiro ponto a destacar de seu legado: o entendimento de que também Marx e em qualquer outro clássico não devemos tomar como acabada sua produção, como se fosse algo cristalizado ou congelado no tempo, a ser mecanicamente aplicado em toda e qualquer conjuntura. Ao contrário, até em respeito a essas mesmas figuras que não se cansam de insistir sobre o caráter histórico e, portanto, mutável da realidade, não se trata de assumi-los como uma obra acabada, fechada, válida integralmente para qualquer situação.

O bom entendimento das teses marxianas feito por Ludovico Silva se mostra, com efeito, bastante fecundo, especialmente, no caso do conceito de “mais-valia”, à medida que, vai além de uma interpretação meramente econômica, ou seja, partindo do seu alcance especialmente econômico. Ludovico Silva o estende criativamente à esfera ideológica, isto é, mostra como a extração da mais-valia não se dá apenas no chão da fábrica. O mesmo trabalhador, que é sugado no ambiente fabril, também vai ser sugado no próprio ambiente do lar. Aqui a exploração se faz no plano ideológico, por meio do componente ideológico, fazendo-o refém da grade de ideias, valores, crenças incutidas pelo sistema patronal, através dos meios de comunicação, da propaganda, dos programas radiofônicos e televisivos, todos controlados pelo patronato que financia a mídia hegemônica.

A este respeito, cumpre observar o alcance deletério da “Mais-Valia Ideológica”, sob um duplo efeito: do ponto de vista estritamente econômico, extrai do trabalhador a vantagem ou o lucro do seu sobretrabalho, ao mesmo tempo em que, com a mais-valia ideológica, ao incutir em sua cabeça falsas explicações sobre a verdadeira causa de seu empobrecimento, anula sua capacidade de exercício crítico, impedindo ou dificultando extremamente sua capacidade de resistência, o que resulta em uma vantagem significativa para a manutenção e fortalecimento do mesmo sistema de exploração. Por outro lado, em se tratando de uma experiência dialética, ao sofrer a exploração, o trabalhador também acaba apreendendo sua capacidade de lutar contra a exploração, seja no âmbito pessoal, seja no âmbito coletivo. Ao observarmos nossa atual conjuntura, nos damos conta da impactante atualidade deste relevante legado de Ludovico Silva. Inspirados em seu frutuoso trabalho, somos historicamente instados a nos servir do seu achado (mais-valia ideológica) como um valioso instrumento político-pedagógico de fortalecimento de nossa tarefa organizativa, formativa e de luta, nos diferentes campos de atuação e militância de nossas organizações de base.


À medida que nossas organizações de base, articulando adequadamente sua tríplice tarefa (organizativa, formativa e de luta), forem capazes de assegurar condições favoráveis aos trabalhadores e trabalhadoras de exercitarem uma leitura crítica do mundo, acabarão fazendo impactantes descobertas, à semelhança das que fez o “Operário em Construção” do célebre poema de Vinícius de Moraes, a merecer especial atenção nos trabalhos de base.


João Pessoa,  25 de Julho de 2022




segunda-feira, 18 de julho de 2022

O POTENCIAL TRANSFORMADOR DO EXERCÍCIO INTERCONECTIVO, DA MEMÓRIA, DAS AÇÕES E NO COMPROMISSO, ENTRE NOSSAS ORGANIZAÇÕES DE BASE



Alder Júlio Ferreira Calado


Registramos nossa satisfação em constatar, mesmo em uma conjuntura tenebrosa e de refluxo, as ações desenvolvidas por nossas organizações de base, em especial, pelos movimentos sociais populares, nas correntezas subterrâneas. Vibramos com diferentes iniciativas que vêm sendo assumidas por várias dessas organizações. Nestes tempos de crise sanitária (além de tantas outras), vimos como várias destas organizações de base - entre elas, o MST, a CPT, e outras - se portaram solidárias às vítimas da fome, por meio de fornecimento de cestas básicas distribuídas nas favelas e a outras comunidades do Brasil. Enche-nos, também de alegria, acompanhar as ações de vários segmentos de nossa sociedade civil, a exemplo dos coletivos feministas, dos movimentos negros, dos movimentos indígenas, entre outros. Trata-se, em verdade, de um esforço importante, especialmente para a manutenção e o crescimento destas organizações de base. A despeito destas constatações, perguntamo-nos: um movimento social popular, qualquer que ele seja, cumpre satisfatoriamente sua pauta organizativa, formativa, e de mobilização, apenas desenvolvendo “ad intra”, isto é, ações internas, por mais que isto também seja importante? O propósito das linhas que seguem, é o de problematizar nossas organizações de base, em especial os movimentos sociais populares que lidam com uma pauta alternativa de ações contra o atual modo de produção, de consumo, e de gestão societal. Neste sentido, tratamos, inicialmente, de explicitar o que entendemos por exercício interconectivo da memória, das ações e dos compromissos de nossas organizações de base. Em seguida, passamos a questionar nossos movimentos sociais populares, quando desenvolvem uma agenda respeitável de iniciativas, voltadas para o interno desta organização. Mais adiante, buscamos recuperar a experiência da experiência da “Delegação”, muito presente em nossas organizações de base, entre os anos 60, 70 e 80. Concluímos estas linhas, chamando a atenção de nossas organizações de base, no sentido de buscarem potencializar suas tarefas organizativas, formativas, e de lutas, de maneira conectiva, isto é, de modo a se associarem, em suas diversas instâncias, marcando presença nos encontros e nas lutas dos nossos parceiros e aliados.


Por um exercício conectivo da memória, das ações e dos compromissos dos movimentos sociais populares


Tem sido uma praxe a sensação de que, a cada movimento social popular, basta desenvolver uma agenda de atividades organizativas, formativas e de lutas, apenas ao interno desta organização. Não negamos a importância do desenvolvimento destas ações. Por outro lado, avaliamos serem insuficientes estas ações, à medida que não se faz claro o entendimento de que as mudanças sociais almejadas - principalmente nossa luta de superação da barbárie capitalista -, não se faz apenas pela ação de um movimento social popular, por mais organizado e avançado que seja. Tem que ser obra do conjunto de nossas organizações de base, sem o que nossa luta por uma nova sociedade permanecerá muito a quem do que desejamos. 

Ao longo da história, temos conhecimento de diversas mudanças sociais, na idade antiga, na idade média, na idade moderna e sobretudo na idade contemporânea. Todas estas grandes mudanças sociais, em especial as experiências revolucionárias - a da Revolução Francesa, a da Comuna de Paris, a Revolução Russa, a Revolução Chinesa, a Revolução Cubana, entre outras - só se deram, graças ao protagonismo dos movimentos sociais populares, entre outras organizações de base. Com efeito, estas forças se mostram essenciais, indispensáveis a todo processo que se queira revolucionário. Neste sentido, entendemos importante o esforço organizativo, formativo, e de mobilização, desenvolvido por cada umas destas organizações de base, ao mesmo tempo em que avaliamos insuficiente quando tais atividades não se fazem de forma associada, conjugada, tornando bem mais forte sua organização, além de permitir uma ação de maior potencial transformador. 

De fato, observamos o esforço hercúleo em várias de nossas organizações de base. Tomemos o caso dos movimentos feministas, como ilustração. Sabemos das conquistas relevantes que vêm sendo feitas pelos movimentos feministas (marcha mundial das mulheres, marcha das margaridas, entre outros). Por outro lado, lamentamos, não apenas em relação ao movimentos feministas, como também aos movimentos negros, movimentos indígenas, movimentos camponeses, movimentos operários, certa teimosia em atuarem isoladamente. Daí resulta um lamentável desperdício, se atuassem de forma orgânica, certamente colheríamos resultados mais promissores. O isolamento de um movimento popular constitui, sob vários aspectos, um equívoco, por mais que reconheçamos os frutos de sua luta. Por exemplo, em um movimento de natureza etnica-indigina, quilombola, cigano…, há não raramente a tendência a um desenvolvimento isolado, voltado apenas para os interesses do movimento. Sucede que, assim agindo, o próprio movimento padece de alguns equívocos. Por exemplo, a luta ao interno dos movimentos negros, quando e se realizada em função dos interesses exclusivos deste movimento resulta enfraquecido, por várias razões: 

  • Como não entender que, em um movimento negro, os participantes e as partipipantes, além de serem negros, pode ser também camponeses/camponesas, operarias/operarios, indentificados com a população lgbtqia+, pode ser formado por jovens, por adultos, por pessoas idosas, pode ser formado por pessoas de diferentes regiões. Cada uma dessas dimensões, quando não devidamente tomada em conta quanto ao seu significado, quanto ao seu limite e potencialidades, acaba não recolhendo as lições mais potencializadoras de avanços para o próprio movimento.


A prática da Delegação como fator conectivo em e das organizações de base e suas respectivas instâncias organizativas


A experiência da Delegação constitui uma marca relevante dos processos revolucionários mais reconhecidos, a exemplo do caso da Comuna de Paris. O princípio da Delegação consiste, como se sabe, na eleição democrática de pessoas, no caso delegados e delegados, cuja missão é de relatar com fidelidade os processo deliberativos tomados pela base, junto a outras instâncias organizativas desta força. O princípio da Delegação (assim como o princípio da alternância de cargos e funções, entre outros) constitui uma marca de nossas experiências organizativas, no final dos anos 70 e 80. Naquela conjuntura, coincidindo com o surgimento de novas forças populares, dentre as quais o Movimento Pró-PT (1979), A CUT (1984), o Movimento do MST (1984-85), além de grupos pastorais progressistas, correspondem a sujeitos históricos que experimentaram, em seus processos organizativos, o princípio da Delegação, este se distingue do princípio de meros representantes, pelo fato de que enquanto os representantes assumem um compromisso meramente formal de  “representarem” suas bases organizadas, com frequência não correspondem às tarefas de que foram incubidos. Os delegados, as delegadas, por outro lado, assumem o compromisso formal e material de serem fiéis portadores das decisões tomadas pela base nas ocasiões de participação orgânicas, o princípio da organização cumpriu um papel decisivo naquela conjuntura, a despeitos de suas lacunas.

Naquela conjuntura, estas forças que surgiram, tinham uma avaliação extremamente crítica em relação ao papel do Estado, entendendo-o como componente essencial do modo de produção capitalista e da organização de toda a sociedade de classe, à medida que as classes dominantes de ontem e de hoje sempre se valeram e se valem do Estado ao lado do seu mercado, o mercado capitalista para imporem de suas políticas econômicas, de tal modo que sem a figura de seu Estado não teriam sucesso em suas políticas econômicas, já que o mercado sozinho não dá conta da implementação de tais políticas.

A medida, contudo, que a maioria destas forças que rodeiam aquela conjuntura dos anos 80, se deixaram fascinar pelo processo eleitoral e pelos sucessos eleitorais alcançados, passaram também a desprezar ou a subestimar o mecanismo da delegação, passando a substituí-lo pelo mecanismo da mera representação formal. O resultado não tardou a aparecer: estas forças iam envolvendo-se progressivamente na engrenagem da máquina estatal, de sorte que passaram a ser coadjuvantes do próprio sistema que diziam combater.

Como se percebe, a experiência da delegação desempenha um papel fundamental sob vários aspectos da consciência de classe e do compromisso dos protagonistas sociais - das organizações de base, dos movimentos populares e pastorais sociais - como meios principais de transformação social. Uma vez abandonado ou mitigado estes caminhos, as classes dominantes e dirigentes passam a exercer influência decisiva sob estas mesmas forças populares, de tal modo que, mesmo ascendendo a relevantes espaços estatais ou governamentais, inclusive o espaço da presidência da república, passam a ser administradores do próprio sistema que dizem combater.


Quais exemplos ilustrativos poderíamos rememorar, para comprovarmos a eficácia transformadora do princípio da Delegação?

Alguns exemplos bastam para comprovarem sua eficácia transformadora. Um primeiro exemplo é a consciência da força conectiva da Delegação. Os núcleos, as células, os círculos de cultura, as pequenas comunidades ou algo semelhante, não se limitam a reunir-se de forma isolada. Com certeza, não bastando a mera criação destes espaços nucleares, estes precisam ser continuamente alimentados, por meio de reuniões regulares e outros encontros. A diferença de beneficiar o princípio da Delegação consiste em conter o isolamento destes núcleos, celulas ou círculos de cultura ou que outro nome tenham, no sentido de induzi-los, a uma ligação orgânica não apenas a outros núcleos, como também diferentes instâncias organizativas, em âmbito municipal, estadual, nacional (sem esquecer a necessidade da organização também do âmbito internacional), 

Os delegados/delegadas constituem preciosos elementos de conexão, no sentido de entender-se que as transformações buscadas e desejadas não se fazem apenas com a boa organização de um núcleo ou mesmos de vários núcleos mantidos isoladamente, mas como sua conexão com outras instâncias. Portanto, trata-se de se entender que os processos revolucionários comportam múltiplos sujeitos com o mesmo projeto de sociedade, alternativo ao capitalismo e a toda sociedade de classes.


João Pessoa, 18 de julho de 2022.


terça-feira, 12 de julho de 2022

UM TRIBUTO AO REPENTE E SEUS POETAS



Alder Júlio Ferreira Calado


O universo da Arte é multiforme

Pois o belo comporta muitas faces

Eu duvido que isto tu negasses

O Repente exige talento enorme

Harmonia requer: nada é disforme

O Repente é poesia nordestina

A exemplo do Cordel, com que combina

Têm raízes ibéricas, européias

Que aqui floresceram como veias

Circulando belezas femininas


Propagando notícias qual jornais

Sendo escrito, Cordel, oral Repente

O Cordel, segue sendo atraente

Do Poeta o Repente exige mais

Em verdade, “milagres” ele faz

O Repente é oral, requer talento

Repentista nenhum pode ser lento

Sua poesia se faz, bem instantânea

Se gravada, vira até uma coletânea

Se eu pensar, vem mais forte que o vento


Pra deleite de quem quer ouvir mais

Com excelência, o Repente resplandece 

No universo das Artes, com “finesse”

O Repetente glosado beleza traz

O povão o aprecia, na rua, pertinaz

É cantado por dupla de grande porte

Vila Nova, Oliveira, dando o Norte

Evocando os Batistas do Egito

Na peleja,  seu par deixam aflito

Referência eles são, bastante forte

O Repente tem gêneros diversos:

Tem sextilhas, septilhas, tem oitavas

E as décimas, o poeta também crava

Respeitantes ao número de versos

Que tipo de estrofes vêm imersos

De Seis versos, de sete, oito ou dez

Na peleja, o Repente dá revés…

O Martelo e o Mourão estão na área

O Repente tem belas faces, várias

O improviso não permite rodapés


As estrofes decassílabas têm acento

Na terceira, na sexta e na décima 

Do contrário, a estrutura fica péssima

Tornaria o verso não isento

De chacota, ao calor de tais eventos

Na sextilha e septilha, por sua vez

Elas têm específicas suas leis:

Na terceira e na sétima, recaia a tônica

E assim, a poesia faz-se eufônica

Agradando aos ouvidos: nota dez!


Do Repente a gigantes rendo loa

Aos Batistas, irmãos, lá do Egito

Homenagem lhes presto por seus ditos

Vila Nova, Amâncio, Oliveira 

Salve, Pinto de Monteiro, gente boa

E Daudeth o nordeste tematiza

Destacando suas praias, sua brisa

Cada Estado com seus próprios atributos 

Ressaltando seus filhos mais argutos 

O nordeste na cultura se enraíza


Repentistas Mulheres temos tantas

A brilhar, recorrendo a própria luz

Ante os homens, seu valor não se reduz

Com Mocinha de Passira também canta

Minervina Ferreira - que garganta!

Atuando em gêneros diversos

Fabiana e Lucinha, com seus versos

Na Peleja, Mourão, quebra-cabeça

Cantam livres, ao machismo sendo avessas

Feminismo na luta está imerso



João Pessoa, 12 de julho de 2022


sábado, 9 de julho de 2022

XII SEMANA TEOLÓGICA PE. JOSÉ COMBLIN EM MARCHA: Ressonâncias da segunda jornada comunitária em Café do Vento

 XII SEMANA TEOLÓGICA PE. JOSÉ COMBLIN EM MARCHA: Ressonâncias da segunda jornada comunitária em Café do Vento


Alder Júlio Ferreira Calado


Segue em curso a XII Semana Teológica Pe. José Comblin (STPJC), que se estende por vários meses de trabalho, quatro jornadas comunitárias, além da Sessão de encerramento, marcada para o dia 25 de setembro vindouro. 


Esta XII edição de STPJC, organizada por diversos grupos e coletivos (Kairós, CPT, Coletivo Feminista, CEBI, Comunidades organizadas em volta de Café do Vento, entre outros), tem como tema central: “Os pobres e Pe. José Comblin nos ensinam a caminhar no Caminho de Jesus”, que se desdobra em outros temas conexos, trabalhados durante as jornadas comunitárias: “Fé e Evangelho na vida cotidiana”, “humanizar a humanidade: o rosto humano de Jesus”, “Evangelho não é Religião”, além de reflexões sobre o tema central da XII STPJC, durante a Sessão de encerramento.


No domingo, 26/06/2022, realizamos a II Jornada Comunitária, que teve lugar no Centro de Formação Pe. José Comblin, em Café do Vento. Acolhidos pelo Pe. Hermínio Canova, que, juntamente com Rolando Lazarte, coordenou os trabalhos do Encontro, do qual participaram em torno de vinte pessoas: representantes do Kairós, do Coletivo Feminista, do CPT, de vários grupos de jovens das comunidades em volta de Café do Vento, procedentes de Sobrado, Sapé, Riachão do Poço, São Miguel de Taipu, Pilar, Caldeiras Brandão, Riacho do Gado…


A Segunda Jornada Comunitária se inspirou no tema “Fé e Evangelho na vida cotidiana”, como havia sido escolhido desde a I Jornada. Pe. Hermínio Canova e Rolando Lazarte coordenaram o Encontro. De início, coube ao Pe. Hermínio Canova apresentar para os participantes do Encontro, muitos dos quais eram jovens que se faziam presentes pela primeira vez, uma síntese das últimas STPJC, bem como especificamente acerca do tema central da XII STPJC (“os pobres e o Pe. José Comblin nos ensinam a caminhar no Caminho de Jesus”). Coube a Pe. Hermínio e a Elinaide explicitarem o sentido da Teologia, já que estamos vivenciando a XII STPJC. Sublinharam tratar-se do estudo sistemático e metodológico da ideia que os humanos têm de Deus muitas vezes atribuindo a Deus predicados humanos. A reflexão prosseguiu com diversas outras intervenções. Um dos entendimentos expressos acentua  a teologia como uma estratégia usada e abusada pelo Clero, ao longo da história da Igreja para afirmar-se como Classe ou casta, com o objetivo de ditarem normas de crença e conduta dos leigos e leigas. Por outro lado, não esqueçamos que, a despeito de tal hegemonia, sempre houve e há da parte das “minorias abraâmicas” a produção de uma teologia alternativa, tal como a Teologia da Libertação e a Teologia Feminista, que teologizam a partir do povo dos pobres.

Neste sentido, destacam o aprendizado recíproco: Comblin, como verdadeiro discípulo de Jesus, de quem os pobres são os prediletos, em sua longa convivência com o povo da América Latina, muito aprendeu a viver a insegurança dos pobres, ao mesmo tempo em que, como grande teólogo, pastor e profeta, empenhou-se incansavelmente em rememorar o espírito do Evangelho, ajudando o povo dos pobres a discernir os apelos do Evangelho frente aos contra-valores que impregnam a cultura das classes dominantes.


A leitura orante e comunitária do Evangelho nos permite, pessoal e comunitariamente, não apenas desmascarar esses contravalores, como também fazemos uma leitura crítica da realidade, com o objetivo de transformá-la, conforme o espírito do Movimento de Jesus.


Dando sequência as reflexões, coube a Rolando Lazarte compartilhar, como coordernador dos trabalhos, distintos aspectos de seu sentir acerca do tema da Jornada. Expressou seu encanto pelas afinidades encontradas entre o Papa Francisco, o Pe. Comblin e o Antropólogo Aldaberto Barreto, fundador do Movimento Terapia Comunitária Integrativa (TCI): as três personalidades se empenham em ressaltar a incidência da Fé e do Evangelho nas relações do dia a dia. Os três, cada qual atuando em seu modo e conforme o contexto em que atuam, sublinham a relevância de se testemunhar os Valores do Evangelho, desde as ações mais simples do cotidiano.


Maria Oliveira, formadora do Movimento Terapia Comunitária Integrativa, compartilhou o relato de diversas experiências, nos trabalhos da TCI, ilustrando a eficácia da partilha fraterna de experiências, observadas nas rodas de conversa. 


Da parte dos jovens participantes surgiam uma dúvida: diante do Evangelho que apresenta um Jesus pobre entre os pobres, será que nós também não somos chamados a ser pobres? Das sucessivas falas compartilhadas, formou-se um certo consenso, de que importa distinguir entre pobreza e miséria. Para Jesus, pobreza deve ser uma opção a ser tomada por seus discípulos e discípulas, com abertura e liberdade, assegurada a satisfação das necessidades básicas como sugere o texto dos Atos dos apóstolos (“e todos repartiam o pão, e não haviam necessitados.”), enquanto a miséria deve ser sempre combatida por desfigurar o ser humano em sua dignidade. 


A Segunda Jornada foi encerrada com a confraternização dos participantes, com brindes e um saboroso almoço preparado por Maria José.


João Pessoa, 09 de julho de 2022.


quarta-feira, 6 de julho de 2022

Educação Indígena Xukuru de Ororubá: notas sobre a apresentação da dissertação de Anne Flávia de Souza Rodrigues, realizada no dia 30 de Junho de 2022

 Educação Indígena Xukuru de Ororubá: notas sobre a apresentação da dissertação de Anne Flávia de Souza Rodrigues, realizada no dia 30 de Junho de 2022


Alder Júlio Ferreira Calado


Educação Popular protagonizada pelo povo Xukuru de Ororubá - PE foi o tema da dissertação de mestrado, apresentada, no dia 30/06/2022, a banca examinadora do Programa de Pós Graduação em Educação da UFPB.

    Nas linhas que seguem, buscamos compartilhar algumas observações acerca da apresentação desta dissertação, intitulada “LIMOLAYGO TOYPE: NOSSA EDUCAÇÃO É NOSSA RESISTÊNCIA. EDUCAÇÃO INDÍGENA E A PEDAGOGIA DECOLONIAL, POVO XUKURU DO ORORUBÁ, PE”.

    A autora da dissertação é membro do povo Xukuru, fato ainda raro nos espaços da Academia, no Brasil. Anne é uma das poucas mestrandas provenientes de um povo indígena, a obterem o seu mestrado pela Universidade Federal da Paraíba. Sua dissertação versa sobre as práticas pedagógicas ao interno do povo Xukuru, no campo da Educação Popular, e, mais precisamente, no campo da Educação Escolar Indígena. Cuida de descrever e analisar, em cinco capítulos, distintas dimensões em que se dá as escolas indígenas do povo Xukuru de Ororubá, atendo-se a diversos aspectos de sua vida: a expressão de fé nos Encantado (não foi por acaso que iniciou sua fala, exercitando a mística da ancestralidade), o“Ethos” Comunitário, o cuidado de pôr em prática, nos moldes da Educação Popular de feição Freireana, os desafios de busca de autonomia e de emancipação, mesmo nos quadros de um sistema escolar super controlado, de certa maneira, pelo Estado. Empenha-se, a autora, em trazer notícias da presença territorial do povo indígena Xukuru, situado na serra do Ororubá, em Pesqueira-PE. Antes disto, trata de situar e caracterizar brevemente os povos indígenas de Pernambuco, em especial no tocante aos desafios da Educação indígena na região.

    Nos últimos capítulos, trata de analisar as práticas pedagógicas das escolas indígenas Xukuru, seja quanto à gestão, seja quanto aos protagonistas, seja quanto à metodologia, seja quanto à busca de autonomia em relação às escolas oficiais.

    Do ponto de vista metodológico, a autora escolhe enfrentar seu desafio investigativo, tomando por base a metodologia triangular, fundada na pesquisa bibliográfica, na pesquisa documental, e na observação participante. No que diz respeito à pesquisa qualitativa, a autora buscou localizar, em sites especializados, textos, arquivos, e eventuais livros acerca do povo Xukuru, em especial no que concerne à educação do povo Xukuru. Não exita em dizer que se surpreendeu com o pequeno número de textos encontrados, menos ainda, no tocante à educação do povo Xukuru. Também, do ponto de vista metodológico, tomou como base a pesquisa documental. Neste sentido encontrou um número razoável de documentos, em parte produzidos fora do território Xukuru, mas também, em parte, produzidos por educadores e educadoras das escolas indígenas Xukuru. Fez um bom uso destes documentos, que analisa no curso de seu trabalho. Também recorreu à observação participante, tendo a vantagem de ser ela própria um membro daquela comunidade. 

    Do ponto de vista teórico-conceitual, a autora  prioriza a categoria “Decolonialidade”, a qual também se refere por meio de conceitos correlatos, tais como “Anti-colonialidade” entre outros. Graças a este conceito, analisa a história do povo Xukuru, bem como, a dos povos indígenas, como alvo-mor do processo colonialista, apontando ilustrações de um processo escravizador e domesticador dos povos indígenas. Entende que, também hoje, os povos indígenas do Brasil, inclusive o povo Xukuru, continuam sofrendo pesadas consequências por conta da vigência deste processo de colonização. A certa altura de sua fala, na apresentação do seu trabalho, enfatiza, como exemplo ilustrativo, os recentes assassinatos ocorridos na Amazônia envolvendo as figuras de Maxciel Pereira, de Bruno Araújo Pereira e de Dom Phillips. Mencionou que, para o sepultamento de Bruno Araújo Pereira, em Paulista - PE, o povo Xukuru se deslocou, a fim de expressar sua comunhão com Bruno, e sua solidariedade aos seus familiares, bem como denunciar os crimes praticados pelo atual governo federal.

    Em se tratando de uma sessão de apresentação de sua dissertação, sua fala foi seguida pela dos membros da banca examinadora, composta pelo Orientador da dissertação, pelo prof. dr. Pedro José Santos Carneiro Cruz, da UFPB, que coordenou os trabalhos; pelo Antropólogo e Educador, prof. dr. Reinaldo Matias Fleuri, da profª. pesquisadora dos povos indígenas, Giselia, ela própria sendo membro do povo Pankararu (em Pernambuco), pelo prof. Roberto dos Santos Lacerda, da UFSE, e da profª. Nilvania dos Santos Silva, da UFPB. Cada um, cada uma, dos membros da banca teceu comentários críticos sobre o texto, ao tempo em que reconheciam todos os méritos da dissertação, enaltecendo a contribuição que Anne de Souza Rodrigues estava a oferecer à Academia e ao povo brasileiro, no que diz respeito à educação indígena.

    De nossa parte, entre tantos pontos a sublinhar, atemo-nos apenas a dois aspectos. Um primeiro diz respeito à contribuição da autora, no que concerne aos fundamentos epistemológicos da educação indígena. Ao analisar as dezenas de escolas espalhadas pelas vinte e quatro aldeias do povo Xukuru do Ororubá, a autora trata de descrever e analisar, as escolas indígenas como verdadeira expressão da educação popular, na perspectiva Freireana. Importa, ainda, destacar que a educação popular comporta várias dimensões de práticas pedagógicas, tais como:a educação indígena, a educação quilombola, a educação camponesa, as práticas educativas protagonizadas pelo movimento anarquista, nas primeiras décadas do século passado. Trata-se, em verdade, de fases distintas da mesma educação popular.

    Outro aspecto que - agora como sugestão à autora, para novos empreendimentos investigativos -, ouso enfatizar a importância de uma das categorias por ela desenvolvidas em seu trabalho: a “interculturalidade”. Pois bem, espero que, nos próximos empreendimentos de pesquisa que ela venha a desenvolver, cuide de exercitar a interculturalidade, não apenas ao interno dos povos originários, mas também em relação às comunidades quilombolas, aos grupos camponeses, aos segmentos operários, como forças que compõem todo o segmento dos “de baixo”, como forma mais potencializada de enfrentamento dos grandes e atuais desafios dos embates contra o processo de colonização, de colonialismo, sobretudo protagonizado pelo capitalismo, em sua face-fase atual. Neste sentido, ouso ainda sugerir um mergulho nas contribuições de autores clássicos e contemporâneos que lidem com o marxismo.


João Pessoa, 06 de julho de 2022.






sábado, 2 de julho de 2022

AMÉRICA LATINA, "PÁTRIA GRANDE” EM CONSTRUÇÃO: o aporte dos Cristãos libertários

 AMÉRICA LATINA, "PÁTRIA GRANDE” EM CONSTRUÇÃO: o aporte dos Cristãos libertários


Alder Júlio Ferreira Calado


Nos entrechoques da História, e a despeito dos golpes e retrocessos ultradireitistas, a América Latina e o Caribe emitem sinais alvissareiros de um novo ciclo progressista. As recentes eleições na Colômbia, das quais resultaram vitoriosos Gustavo Petro e Francia Márquez, parecem indicar em nosso continente a tendência de um novo ascenso das forças progressistas. México, Honduras, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile e Argentina avançam para um novo tempo. Para o Brasil e o Paraguai, estes eventos constituem um chamamento.. Também, o Uruguai  pode extrair lições desses eventos.


Eis por que, uma vez mais, voltamos a insistir, junto aos jovens das classes populares, especialmente de nossas organizações de base, na necessidade do exercício da memória histórica dos oprimidos.


Deste vez, decidimos tomar como algo especial de reflexão, o Movimento dos Sacerdotes para o Terceiro Mundo e outros eventos conexos da mesma conjuntura.


Compartilhado por milhões de latino-americanos e caribenhos - mulheres e homens -, o sonho de Simón Bolívar, de tornar o novo conjunto de países e de povos a "Pátria Grande”, segue forte e firme, na busca de realização deste sonho. Como dizia Helder Câmara, “um sonho que se sonha só, é somente um sonho. Mas quando compartilhado, torna-se realidade”. 


Com efeito, sobretudo a partir da primeira metade do século XIX, os povos latino-americanos e caribenhos empenharam-se mais fortemente, nas lutas de libertação nacional. No entanto, desde os inícios da colonização, nossas gentes - principalmente os povos originários e os africanos escravizados nunca cessaram de lutar contra o processo de colonização, nas manifestações e movimentos que travaram, desde então. Os sinais e registros são abundantes, neste sentido, já na metade do século XV, são conhecidos os embates protagonizados, na atual República Dominicana, por parte dos franciscanos, dos quais se destaca a figura de Antônio Montesinos, sua resistência firme contra os escravizadores dos povos originários. Ao mesmo tempo, em outros espaços latino-americanos e caribenhos, inclusive no Brasil, registraram-se diversas lutas dos povos indígenas contra os colonizadores. Neste sentido, no que diz respeito ao caso brasileiro, vale a pena rememorar as grandes lutas dos povos Guaranis contra os colonizadores, registros também feitos pelo pesquisador Clovis Lugon, em seu famoso livro “A República Comunista Cristã dos Guaranis”.


Mas, estas lutas de resistência também tiveram como protagonistas diversos segmentos de africanos escravizados na América Latina e no Caribe, inclusive no Brasil. Para mencionar apenas um exemplo, vale a pena destacar as lutas do povo negro desde os Quilombos, em especial o dos Palmares. 


No entanto, quando se toma em consideração o esforço pela independência, melhor dizendo, pela busca de afirmação de sua nacionalidade contra as metrópoles europeias, o tempo mais indicado começa nas primeiras décadas do século XIX, especialmente entre 1808 e 1830, período durante o qual teve lugar a maioria dos processos de separação dos países latino-americanos e do caribe em relação às metrópoles europeias. 


As linhas que seguem tomaram em conta especialmente as lutas de separação política dos países latino americanos e caribenhos de suas ex-metrópoles. É durante este período, e para além dele, que tem lugar mais especial a Figura de Simón Bolivar, a clamar pela construção da “Patria Grande”, sonho compartilhado por diferentes povos do nosso continente. 


Neste longo processo de busca, de unificação dos diversos países latino-americanos e do Caribe - cerca de 40 -, vale a pena situar o papel específico desempenhado pelos cristãos libertários, principalmente a partir dos anos 1960. Este constitui o alvo-mor destas linhas. Neste sentido, cuidamos de caracterizar o contexto de plena ebulição sócio-econômica e política dos povos latino-americanos e do Caribe. Em seguida, cuidamos de destacar, com mais ênfase, o lugar ocupado pelo movimento intitulado “sacerdotes para o Terceiro mundo” com marcante presença e participação na Argentina, principalmente durante os anos de 1960. Este movimento situava-se em um contexto latino-americano e caribenho de enorme efervescência das lutas libertárias. Durante este período que ainda reflete a influência da Revolução Cubana, cujo ápice se dera poucos anos antes (1959), a mover milhares de latino-americanos em busca da realização do sonho de Simón Bolivar e outros parceiros. Para tanto, tratamos de situar os contornos mais fortes da conjuntura latino-americana e caribenha dos anos 60.


Nos anos 60 a América Latina vivia uma onda de ebulição principalmente no chamado Cone Sul. As massas populares, depois de curtirem uma opressão econômica, política e cultural, tratavam de se manifestar, guiadas por quadros importantes da Igreja Católica, em particular, por um numeroso grupo de padres animados pelo esforço de renovação da Igreja em função do Concílio Vaticano II.


A Revolução Cubana, realizada nos anos 50, culminando com a conquista do poder, em 1959, rondava todo o continente Latino Americano e o Caribe. A Classe Dominante tremia e temia por conta do que Cuba pudesse representar para os outros países latino-americanos e do próprio Caribe. Ao mesmo tempo, ao interno da Igreja Católica Romana, vivia-se um tempo de muita esperança, por conta da atitude profética do Papa João XXIII, que, aos 80 anos, teve a coragem de convocar um Concílio Ecuménico - seria o Concílio Vaticano II. Houve uma tensão nas forças conservadoras da Igreja, enquanto para o povo dos pobres crescia a confiança no gesto do bom Papa João, como era chamado. Com efeito, em 1º de janeiro de 1959, um ano após assumir suas funções, o Papa João XXIII convoca o Concílio Vaticano II cuja primeira sessão realiza-se em 1962. De 1962 a 1965, realizou-se, em Roma, este Concílio, do qual participaram em torno de 2500 Bispos, vindos dos diversos continentes, ainda que com maioria de Bispos europeus. O Concílio Vaticano II jogou esperança no continente latino-americano como também nos demais países do então chamado terceiro mundo. Ainda que as decisões do Concílio Vaticano II dissessem mais respeito a uma atualização (“Aggiornamento”) da Igreja em relação a modernidade, alguns documentos conciliares, dentre os 16 (4 constituições, 9 decretos e 3 comunicações) pouco tinham a ver diretamente com a causa dos pobres, o que levaria um de seus participantes, o Bispo Dom Antônio Batista Fragoso, em um vídeo comemorativo do famoso “Pacto das Catacumbas”, realizado em 16 de novembro de 1965, há poucos dias do encerramento do Concílio Vaticano II, declarava que o Concílio tinha feito as pazes com a modernidade, mas não atendeu satisfatoriamente ao interesse dos pobres. Mesmo assim na igreja latino-americana, inclusive na Argentina, aqueles que acompanhavam de perto o desenrolar do Concílio Vaticano II, especialmente os Padres, passaram a extrair dos documentos conciliares muita inspiração ao seu trabalho junto ao povo dos pobres.


Não apenas na Argentina, mas também nos demais países latino-americanos e do Caribe, havia um forte apelo popular por justiça social, diante de uma realidade de escandalosas desigualdades sociais, o que movia parte da Igreja, especialmente os que tinham um compromisso mais forte com as Classes Populares, a assumirem o compromisso de orientarem e de travarem com o povo uma luta por justiça social. Na Colômbia por exemplo, a Classe Dominante continuava sendo, como ainda hoje, uma das mais cruéis do continente. Neste contexto, é que surge a figura profética Camilo Torres, que passa a ter um trabalho profético junto aos jovens universitários. Camilo Torres, ao mesmo tempo, teve uma sólida orientação sociológica, em seus estudos de pós-graduação na Bélgica, onde pontificavam relevantes figuras de intelectuais, a exemplo do sociólogo François Houtart que exerceu considerável influência na trajetória pastoral profética de Camilo Torres. Ao terminar seus estudos de pós-graduação na Bélgica, o padre Camilo Torres volta a atuar cada vez mais radicalmente junto às classes populares, principalmente junto aos estudantes. Com as crescentes desigualdades econômicas, políticas e sociais, as Classes Sociais entendiam ser necessário enfrentar a Classe Dominante, de preferência pelas vias da paz, mas, caso as Classes Dominantes se recusassem a este diálogo, as mudanças deveriam ser feitas de qualquer modo, inclusive pela via da luta armada. Camilo Torres, que gozava de enorme confiança das Classes Populares, passava a radicalizar seu trabalho junto a estas mesmas Classes Populares, de sorte que, já no final de 1965, decide entrar para o exército de libertação nacional (ELN), tendo sido assassinado, em 15 de fevereiro de 1966. Lembremo-nos por outro lado, que Ernesto Che Guevara, um dos comandantes mais estimados da Revolução Cubana, decide deixar o seu país para inaugurar o período de enfrentamento guerrilheiro na Bolívia. A despeito de sua luta, resultou assassinado, na floresta Boliviana, pelas forças militares bolivianas, em 1977. Vê-se, que, portanto, todo o continente latino-americano e caribenho vivia um contexto de enorme efervescência política, o que explica o surgimento na Argentina, do famoso movimento de sacerdotes para o terceiro mundo.





Formação e passos do movimento sacerdotes para o terceiro mundo.


Considerando a conjuntura de efervescência característica da América Latina de então, também na Argentina estes traços se achavam bastante acentuados. A influência do Concílio Vaticano II e possivelmente, também, a do pacto das catacumbas - embora esta última seja menos perceptível nos documentos analisados -, diversos Padres que haviam acompanhado de perto o desenrolar do Concílio Vaticano II, sentiram-se bastante motivados para, não apenas um empenho na renovação eclesial, como também no enfrentamento das profundas desigualdades então reinantes e o compromisso da causa libertadora os pobres.


Nos diversos espaços da Argentina, especialmente em regiões como a de Córdoba, Santa Fé e outras, foram convocados diversos encontros de âmbito nacional, do movimento padres para o mundo, o primeiro encontro realizou-se em Córdoba em 1968. Dele participaram pouco mais de 20 membros desse movimento. O encontro inaugurou a caminhada do movimento. No ano seguinte, 1969, realizou-se o segundo encontro já contando da participação de 18 padres, este fato indica o ascenso em que o movimento estava situado. As atividades destes padres constituíam além de sua atuação no âmbito da paróquia também no chamamento de reuniões e encontros nas periferias e no mundo rural. Tratava-se de rememorar as conclusões do Vaticano II, ao mesmo tempo em que se cuidava de fazer-se uma análise crítica da situação social, econômica e política. Neste sentido, o movimento vai progressivamente contanto com o apoio popular. Insistia-se na busca de uma via socialista, alternativa ao Capitalismo. Uma via, que, no entanto, não se queria, alinhada ao socialismo real, donde a preferência pelo terceiro mundo. O terceiro encontro realizou-se em 1970, além dos 3 últimos, realizados em 1971, 1972 e 1973, este último encontro se deu já num clima de muita tensão por conta da Ditadura Militar então instalada. 


Com relação às lideranças principais para sacerdotes para o terceiro mundo, convém destacar a figura de Padre Carlos Mugica, que acabaria assassinado, em função de sua atuação profético-pastoral. Além do Padre Carlos Mugica, algumas dezenas de padres sofreram perseguições, e alguns experimentaram tortura e assasinato.

Ainda no período áureo deste movimento, vale destacar a iniciativa tomada, em um de seus primeiros encontros, de enviarem aos bispos reunidos na segunda conferência espiscopal latino americana, em Medellín, na Colômbia em 1968, uma carta dirigida aos participantes da conferência, propondo uma conversão profética da Igreja, no sentido de assumir a causa libertadora dos oprimidos. Não apenas por esta iniciativa, mas também com outras semelhantes, o fato é que a conferência de Medellín, acabariam marcada principalmente pela sua “opção pelos pobres”.


Além da influência do Concílio Vaticano II em sua renovação litúrgica pastoral, também no âmbito da realidade social em diálogo com o mundo moderno, também incisiva influência exerceram com o movimento padres para o terceiro  mundo, as experiências proféticas dos padres operários, especialmente na frança, cujas atividades marcaram o compromisso com a causa dos pobres, o que significaria uma inspiração também para os padres do terceiro mundo.


Outro fator decisivo para a atuação de Padres para o terceiro mundo, foi a publicação, em 1967 da Encíclica Social intitulada "Populorum Progressio” (o desenvolvimento dos povos), de autoria do Papa Paulo VI. Este documento, com efeito, suscitou um ânimo renovado nas experiências libertadoras, ao tempo em que a Encíclica fazia ecoar fortes denúncias contra o sistema capitalista, principal fator de empobrecimento também dos pobres da América Latina. Igualmente relevante, enquanto iniciativa inspiradora deste Movimento, foi um documento assinado por 18 bispos latino-americanos, liderados por D. Helder Câmara, publicado em 1967, e no qual vinham uma análise crítica da realidade capitalista, seguida de referências positivas à busca de um socialismo que correspondesse ao espírito do Evangelho, neste documento apareciam fortes elementos argumentativos de apreço a um horizonte socialista, profundamente enraizado nos valores do Evangelho, das primeiras comunidades cristãs, nas quais o princípio maior era a partilha dos bens - “e todos repartiram o pão e não havia necessitados entre eles." (Cf. Atos dos Apóstolos, caps. 2 e 4). Ao mesmo tempo, o documento vinha eivado de princípios das primeiras comunidades cristãs dos primeiros séculos, inclusive, com a contribuição de algumas figuras de teólogos conhecidos como padres da Igreja. Neste sentido, a ênfase se punha na destinação universal dos bens, isto é, Deus criou a Terra e suas riquezas para o conjunto dos seres humanos e viventes, de modo que significa uma usurpação a apropriação de tais bens por uma pequena minoria, provocando a miséria de enormes maiorias. Em um dos documentos do Concílio do Vaticano II, a “Gaudium et Spes”, o documento sobre o mundo de hoje, em seu número 71, afirma que para assegurar sua subsistência para sobreviver à fome, os famintos têm o direito de irem buscar junto aos que têm aquilo que lhes falta. Como se percebe, tratou-se de um documento muito relevante de apoio para os membros do movimento Padres para o Terceiro Mundo.




]Que lições recolher desses eventos?


Na perspectiva da Classe Trabalhadora (devidamente atualizada diante dos desafios de hoje), a elaboração de um plano de ação e de lutas requer “uma análise objetiva da realidade objetiva”.  Entre tantos elementos a serem tomados em conta para tanto, destacamos, por relevante e indispensável, a presença historicamente capilarizada na vida de nossas gentes latinoamericanas, a presença de valores religiosos, em especial os ligados ao Cristianismo ao ponto de um dos nossos marxistas de referência, Michael Lowy, ter afirmado que, na América Latina, a Revolução será feita com os cristãos ou não haverá revolução. 


    Com efeito, não por acaso, ontem e hoje, classes dominantes e dirigentes seguem implementando no continente, como estratégia relevante a brutal perseguição a figuras, grupos de militantes populares que seguem afinados com a Teologia da Libertação e as lideranças e militantes de base desses segmentos.


    O chamado “Marxismo cultural”, de inspiração Gramsciana, vem sendo a principal estratégia usada pelas forças imperialistas, desde os anos 1970. A este respeito, especialmente no que toca aos anos 1970, importa conferir, entre outros, o livro “Catholic Radicals in Brazil (Católicos radicais no Brasil)'', da editora Oxford University Press, datado em 1970. Tais estratégias tornaram-se, fortes meios de repressão, as forças cristãs progressistas do continente. Prova disto é também o famigerado “Relatório Rockefeller”, recomendando especial atenção às atividades realizadas pelos segmentos católicos progressistas, no continente. Enquanto, em relação ao final dos anos 1970/começo dos anos 1980, já na era Reagan, entram em cena, os Documentos Santa Fé I e Santa Fé II, produzidos por uma comissão ligada às forças imperialistas dos EUA, na cidade de Santa Fé, ao sul dos EUA. 


    Estratégias que seguem presentes nos anos mais recentes, inspiradas em grupos e figuras da ultra-direita, a exemplo de Steve Bannon e Olavo de Carvalho, principal mentor dos bolsonaristas. Exercitar a memória histórica dos oprimidos nos dias de hoje, em busca constante da construção da “Pátria Grande” (termo, ainda que não utilizado por Simón Bolívar, nele se inspira), que possamos por em prática, no campo e nas periferias urbanas o processo formativo contínuo, a ser assumido principalmente por nossas organizações de base, cuja força mais significativa repousa nos Movimentos Sociais Populares. Uma dessas tarefas de base pode ser a de revisitarmos, tendo como propósito o enfrentamento exitoso dos atuais desafios, revisitarmos os documentos de Rockefeller e Santa Fé I e II, além do livro recém publicado por Giuliano da Empoli, "Engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições", que se constitui em uma análise sobre a barbárie provocada pela ultra direita, em nossos dias.





João Pessoa, 02 de julho de 2022.