terça-feira, 29 de janeiro de 2019


O DESERTO É FÉRTIL: partilha de uma semana de experiências nas "correntezas subterrâneas”

Alder Júlio Ferreira Calado

Com um ano de antecedência, por ocasião da II Romaria da Terra, realizada em Santa Fé (Solânea-PB), em memória do Padre José Comblin, foi agendado o compromisso, relativo ao fraterno convite feito pela Associação dos Missionários e Missionárias do Campo (AMMC) e pela Fraternidade do Discípulo Amado (FDA), para acompanhá-los e acompanhá-las, em seu encontro anual de 2019, no Sítio Catita, em Colônia Leopoldina - AL, onde se acha o Mosteiro da Fraternidade do Discípulo Amado, num sítio que fica a uns 12 Km (serra acima), de Colônia Leopoldina. Como previsto, o encontro se deu, durante o período de 18 a 25 próximo-passados, com a participação de cerca de 30 membros de ambas as entidades. O alegre e tocante convite feito - e imediatamente acatado, com humildade e alegria - propunha a participação e acompanhamento de minha parte, no sentido de ver, ouvir, sentir e ressoar, junto aos participantes, acerca do que era refletido e partilhado por todos, por todas que do encontro participaram.

Da densa programação vivenciada destacam-se os seguintes pontos: marcantes momentos de oração comunitária e pessoal; relato de cada participante acerca de sua caminhada pessoal, familiar e comunitária; celebração, em Tacaimbó - PE, dos 50 anos da Teologia da Enxada; retiro tendo como principal "matéria-prima" e ponto de partida, as partilhas vivenciadas; a consagração de um novo membro da AMMC; a renovação dos compromissos daqueles e daquelas que pertencem à AMMC - alguns desde a fundação, há 25 anos; prestação de contas pelos membros da atual Coordenação dos trabalhos e atividades realizadas, no curso de último ano; eleição de membros para a Coordenação, em vista do próximo período.

Nas linhas que seguem, propomo-nos ressoar alguns aspectos da vivência desta densa e profunda experiência, digna da fecundidade característica
das "correntezas subterrâneas" que irrigam e tornam viçosas as experiências aí em curso, qual "deserto fértil", usando uma expressão cara a Dom Helder Câmara.

Desta rica experiência, ainda que correndo o risco de omissão, atrevo-me a mencionar os seguintes nomes, por Estado e por ordem alfabética (incluindo crianças e adolescentes):
Alagoas: Analene, Benedito, Cacau, Flaviano, Gabriel, Márcio, Sebastiana, Sirlene, Solange, Valdo;
Bahia: Genival;
Maranhão: Luiz Barros, Robertinho;
Paraíba: Ana, Clara, Deda, Francisco, Lucinha, Meirinha, Pedro, Severo;
Pernambuco: Barbosa, Catarina, Cida, Filipe, Geovan, Glaudemir, João Batista;
São Paulo: Alessandra, Maria Eduarda, Rafaela, Risal;
Sergipe: Jaime, Júnior, Moisés, Nanai;

Também os ausentes se fazem presentes, dentre os quais: Ana Cláudia, Raminho, Irmã Zarita, Irmã Marival, Alexandre, José Florêncio...

Quem é, e de onde vem essa gente?
Trata-se de missionários e missionárias vocacionados a trabalharem como e entre os pobres, no campo e nas periferias urbanas do Nordeste. Vêm da Teologia da Enxada, iniciada há meio século, e protagonizada por jovens (hoje, adultos e alguns já idosos) do campo e das periferias urbanas, que, sentindo-se vocacionados a servirem à Tradição de Jesus, orientados e alimentados pelos valores do Reino de Deus e Sua Justiça, seguem entregando-se ao convívio entre os pobres, seja como contemplativos (Fraternidade do Discípulo Amado), seja como casados, vivendo em família, a serviço da causa do Reino de Deus (Associação dos Missionários e Missionárias do Campo – AMMC, Escolas de formação Missionária). Alguns vivem em assentamento; outros e outras vivem do trabalho da roça (agricultura, criação de pequenos animais, apicultura), outros fazendo objetos do artesanato nordestino, há quem ganhe a vida como ambulante, como gari, outros vivem de sua aposentadoria, e há quem também receba contribuições em função de assessoria (por exemplo, à CRB), assim ganham o pão de cada dia. Suas respectivas associações são mantidas graças a uma caixa comum, alimentada pelas contribuições dos seus sócios e sócias e de colaboradores. Desde o Maranhão à Bahia, vivem inseridos no meio popular, como missionárias e missionários, enquanto outros e outras consagram-se à vida contemplativa, num mosteiro de leigos e leigas, que também trabalham para se manterem. Levam uma vida de simplicidade, com um estilo de vida muito próximo da média do povo dos pobres.

Encontros anuais

Tendo em vista a distância geográfica em que vivem, costumam encontrar-se todos os anos, no Sítio Catita, para realizarem atividades de formação contínua, para aprofundarem momentos conjuntos de oração mais intensa, para avaliarem e planejarem sua caminhada, para deliberarem sobre pendências, por meio de sua Assembleia Geral. A grande importância que atribuem a esses encontros pode ser dimensionada pelo enorme sacrifício que fazem, para se deslocarem de grandes distâncias, assumindo custos nada desprezíveis (há deles e delas que chegam a desembolsar até em torno de mil reais, para poderem participar desses encontros anuais). Além dos encontros anuais, também eles e elas se visitam, com certa frequência, conforme suas possibilidades.

Pontos fortes do Encontro 2019

Oração: Memória e Compromisso: Os vários ramos da família combliniana (centro de formação de Missionárias populares, grupo de peregrinos e peregrinas, escolas de formação missionárias e outras) trazem em comum o empenho pessoal e coletivo na oração diária. Trata-se de dedicar momentos de sua jornada para expressarem sua fé por meio da oração. Uma oração que manifesta traços admiráveis, dentre os quais:
- Por meio de sua oração exercitam a memória e renovam os compromissos com a causa do Reino de Deus e sua justiça;
- Com o canto salmódico (Sl 51 - "estes lábios meus vem abrir, senhor"-), faz-se a entrada na oração, momento seguido da "recordação da vida", seguindo o Ofício Divino das Comunidades, livro emblemático da espiritualidade de quantos e quantas seguem a Teologia da Enxada;
- Os cantos bíblicos, conforme o tempo litúrgico, cantados ou recitados, de modo compenetrado, instigam o louvor e a memória: a memória de diferentes momentos da caminhada do povo de Deus, ao longo da história;


- em se tratando de uma oração encarnada/contextualizada, o exercício da memória da caminhada do Povo de Deus, de ontem e de hoje, ajuda-os/as a reforçarem o compromisso com a causa do Reino de Deus, à medida que os/as inspira, numa perspectiva de maior entrega e solidariedade com todas as vítimas de injustiças e de perseguições;
- impulsiona-os/as ao aprendizado, na leitura e interpretação dos sinais dos tempos, e a busca de toma-los a sério, na convivência do dia-a-dia;
- Instiga-os/as a aprimorarem sua capacidade perceptiva, sua sensibilidade, em relação às dores, aos sofrimentos, mas também às alegrias e às esperanças do povo dos pobres; - todos esses (e outros) traços são ainda mais reforçados pela força transformadora dos cantos escolhidos para esses momentos, dentre os quais ocorre-me destacar, por exemplo: “Seduziste-me, Senhor”; “Antes que te formasses dentro do seio de tua mãe”, “Virá o dia em que todos, ao levantarem a vista, veremos nesta terra reinar a Liberdade, “Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão entre outros;
- Vale, ainda, destacar, no modo como se vivenciam os momentos de oração comunitária, o permanente cuidado, não apenas com o envolvimento de cada um, de cada uma, em ser responsável pela condução da oração, a cada dia, como também com o envolvimento dos membros mais jovens (adolescentes e crianças) nas atividades e leituras deste momento.

Tais momentos de oração também constituem preciosa ocasião formativa, à medida que, não apenas os/as recém-chegados/as, como também quem já está na caminhada há mais tempo, todos se empenham em fazer novos aprendizados e a irem incorporando-os em seu dia-a-dia, resultando daí elementos relevantes de seu processo organizativo e de sua ação mobilizadora, no quadro geral de seu processo de humanização;

Exercício de partilha

Já no segundo dia, após a chegada, reunindo-se num grande círculo, no principal salão daquele mosteiro, passou-se à socialização, por parte de cada participante, de trechos relevantes de sua experiência missionária, tal como vivenciada, no âmbito familiar, no plano comunitário, no trabalho e nas atividades missionárias desenvolvidas, nos últimos meses. Eis um outro momento de denso aprendizado para todos, sob vários aspectos:
- como se dá no dia-a-dia de cada pessoa, na vida em família, nos desafios enfrentados pela comunidade local (enfrentamento dos desafios de violência que vitima os jovens, os pobres as mulheres);
- na labuta nos assentamentos – os trabalhos na roça, a produção, a lida com os pequenos animais, com a apicultura, com as feiras agroecológicas, as marchas de solidariedade com os sem-terra e os sem-teto;
- os desafios da convivência com as comunidades das periferias urbanas;
- as vivências desafiantes em lugares com jovens e adultos dependentes de drogas, sofrendo toda sorte de influência e pressão do comércio de drogas;
- o constante exercício de discernimento para se lidar com uma vasta diversidade de perfis humanos.


Retalhos da celebração dos 50 anos da Teologia da Enxada, em Tacaimbó – PE

As chuvas que vinham caindo, nos últimos dias, sobre o solo encharcado da Serra do Catita tornavam mais difíceis os deslocamentos, naquela região. Mesmo assim, em um pequeno ônibus, saímos por volta das 6 horas, e seguimos viagem em direção a Tacaimbó. Por volta das 10 horas, estávamos chegando. A antiga cidadezinha de Tacaimbó de há cinquenta anos atrás havia mudado sensivelmente: muitas coisas haviam mudado, a olhos vistos: a população crescido rapidamente, novos bairros, novas ruas. A cidade estava em festa, inclusive com serviço de som a tocar canções características da caminhada da Teologia da Enxada, em especial “Eu acredito que o mundo será melhor, quando o menor que padece acreditar no menor” (Jorge Pereira de Lima, agricultor sergipano). Dirigimo-nos inicialmente, à sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, onde fomos acolhidos, com muita afeição, e onde nos foi servido um café saboroso. Em seguida, marchamos em direção à Matriz, em cuja lateral foi aposta uma placa comemorativa, com a presença do vigário local e do prefeito do município, Álvaro (que também passou pela trajetória da Teologia da Enxada, com sua mãe). Este momento foi coordenado pelo Monge João Batista Magalhães, apresentando as pessoas, chamando-as para uma breve fala, e também partilhando seu sentimento, como um dos fundadores da Teologia da Enxada, juntamente com figuras tais como Pe. José Comblin, Raimundo Nonato Queiroz (bem representado ali por sua esposa Cida Queiroz e seus filhos Catarina e Filipe), João Moura, João Firminio, Maria Emília Ferreira, contando com a participação também de Pe. Pedro Aguiar, de Frei Enoque, Antônio Gudes, o prof. Heleno, o prof. Adauto Guedes e tantas outras pessoas. Encerrado este momento, a marcha segue. Desta vez, em direção a uma Escola Pública local, em cujo auditório as pessoas participantes foram acolhidas, para um momento de rememoração desta caminhada. Foi formada uma grande mesa, à qual foram sendo convidadas diferentes pessoas da comunidade local, que haviam também protagonizado a história da Teologia da Enxada, em Tacaimbó, sendo convidadas a darem seu testemunho. Com a coordenação de João Batista, feita com muita leveza e discrição, pudemos ouvir com atenção e com emoção densos testemunhos, de cujo teor destacamos:
- a gratidão àquele grupo de seminaristas e sua Equipe de formadores e formadoras, pelo seu testemunho de pobreza e de compromisso com a causa libertadora dos pobres;
- a vida de simplicidade, a vida de trabalhos, a convivência fraterna com as pessoas da comunidade local, inclusive ajudando-as em seus trabalhos na roça;
- a construção de cerca de uma dezena de casas simples, feitas em mutirão;
- o importante apoio às lutas populares, às reivindicações da comunidade, à luta sindical, o apoio a candidatos da própria comunidade, como foi o caso do Prof. Antônio Guedes.

Na mesma Escola foi servido um almoço simples e bem preparado aos participantes. Já por volta das 14h30, seguimos em marcha em direção à Matriz, onde foi celebrada a Eucaristia, contando com muita gente da comunidade e um bom número de pessoas visitantes e solidárias à caminhada da Teologia da Enxada, dentre as quais:
- uma comitiva de irmãos e irmãs evangélicos (Pastora Elivete, Pastor Quino, Bispo Sebastião Armando e Madalena (sua esposa), Lindolfo, o casal Edvaldo e Anilda, da Fraternidade Leiga dos Irmãozinhos e Irmãzinhas Charles de Foucauld. Testemunhos marcantes e proféticos foram pronunciados e partilhados por essas figuras e por muita gente, ao final da celebração, presidida por três presbíteros (Robertinho, Nanai, Severo) da caminhada da Teologia da Enxada, e com a homilia do Diácono Genival, da Associação dos Missionários e Missionárias do Campo, atuando na Bahia. Um dia inesquecível! Por tudo o que havíamos vivido, demos graças a Deus. De volta ao Sítio Catita, no mesmo dia, tendo chegado por volta das 20h30, preparando-nos para a retomada dos trabalhos, no dia seguinte, dando continuidade às partilhas.

Assim como no sábado, também desde a manhã da segunda-feira, ocupando a tarde e a noite, seguimos ouvindo atentamente as partilhas feitas por todos e por todas, sobre sua vida, seu trabalho, sua vida missionária, sua vida familiar, sua vida de oração, etc.

Experiência do Retiro
Durante os dias da quarta-feira e da quinta-feira, foi vivenciada do retiro, em clima de silêncio, de contemplação, de meditação e de partilha, em busca de uma atenta escuta ao que o Espírito Santo tinha a dizer a cada uma, a cada um. Como “matéria-prima e ponto de partida, buscou-se trazer para este momento os relatos anteriores, atentamente escutado. E, alternando momentos de uma reflexão provocativa e momentos de escuta e oração (pessoal e comunitária), cuidamos de nos abrir docilmente ao que o espírito santo nos tinha a comunicar. Na intenção de ajudar os participantes neste exercício, foi distribuída à cada participante uma lista de questões (a quem interessar possa, seguem, ao final, estas questões), abrangendo o conhecido método, Ver-Julgar-Agir, com o intuito de provocar cada participante que assim o desejasse.

Consagração de um novo membro e renovação dos compromissos por parte dos membros participantes
Culminando o retiro, e com criativos arranjos e adornos do local da celebração participamos da eucaristia, presidida pelos presbíteros, durante a qual se deu a consagração missionária de Junior, seguindo belo ritual mantido pelos membros da AMMC, bem como tivemos a graça de presenciar, com muitos membros e famílias, moradoras da catita, a renovação das promessas de todos os membros da AMMC.
Assembleia e eleição da coordenação para o próximo período
Na sexta feira seguinte, dia 25, festa da conversão de São Paulo, os membros da AMMC reuniram-se em assembleia geral, para deliberam pendências da caminhada, bem como para elegerem os membros da nova coordenação.
Eis uma breve síntese do que consegui ver, ouvir e sentir, ao longo desses dias abençoados.

João Pessoa, 29 de janeiro de 2019. 

PROPOSTA DE ROTEIRO PARA O RETIRO

1. Quanto ao VER:

- No âmbito pessoal:

* Como me sinto enquanto criatura de Deus, enquanto ser natural, em convivência com a Mãe-Natureza e toda comunidade dos viventes?
* Como me comporto na contemplação da Criação, na convivência, no cuidado com, e no uso dos bens de nossa Casa Comum?
* Como lido com o meu corpo, com minha abençoada sexualidade, com minha saúde do corpo, da mente do espírito?
* Como me avalio enquanto homem / enquanto mulher, nas relações sociais de gênero?
* Como me penso enquanto Negro/Negra, enquanto Indígena ou descendente de outra etnia?
* Em que minha condição de um ser nascido onde nasci, me faz pensar em minhas particularidades (de nordestino, de nordestina; de sertanejo, de sertaneja, de agrestino, de agrestina; de pessoa nascida na zona da Mata; de pessoa nascido em outra região, em outro país?
* Como me sinto enquanto uma pessoa situada nesta faixa de idade, em relação a mim mesmo, a mim mesma e em relação a outras pessoas de outras faixas etárias?
* Antes de avaliar mais diretamente minha vida missionária, como anda minha vida como ser humano? A vida que levo, como ser humano, me tem feito feliz?
* Que aspectos de minha vida me fazem mais feliz?
* Que aspectos de vida pessoal me deixam insatisfeito?
* Como anda minha agenda? O que meu fazer cotidiano anda priorizando?
* O que venho priorizando, em minhas ações, que frutos vem dando? 
* Se não tem dado fruto, por que será? Tem algo a ver (também) comigo?
* Que atividades tenho realizado, que avalio mais frutuosas?
* A que fatores eu atribuo tal êxito?
* Que atividades de minha agenda não me parecem satisfatórias?
* Como avalio essas dificuldades?
* Que atividades considero frustradas? 
* Por que isto teve tal desfecho?  
* Eu (também) terei alguma parcela de responsabilidade nisto?



No âmbito comunitário

- O que, na via comunitária, mais me atrai?
- O que nela mais desafia?
- Num rápido balanço, eu acho que contribuo mais com a vida comunitária ou da vida comunitária tudo recebo, em quase nada contribuindo?
- Percebo a comunidade da qual participo como exclusiva ou me sinto chamado a colaborar também com outras, que também faço minhas?

No âmbito do Trabalho

- Como me percebo no mundo do trabalho?
- Como me avalio enquanto enquanto trabalhador/trabalhadora do campo?
- Que sentido faz para mim minha rotina de trabalho?
- Para quem trabalho? O que produzo?
- Eu me vejo no que produzo?
- Para onde vai o que eu produzo?

No âmbito de minha/nossa formação contínua

- Como associo minha rotina à necessidade de formação contínua?
- Que tempo dedico/dedicamos a refletir o que faço/fazemos?
- Que textos ou livros estou/estamos lendo?
- Com quem partilho/partilhamos essas leituras?
- Que balanço posso/podemos fazer do tempo dedicado à formação, enquanto ser humano, trabalhador, cidadão...?


No âmbito da Cidadania

- Tal como em outros planos, também aqui busco estar atento e vigilante aos sinais dos tempos? 
- Atuando mais diretamente no âmbito local, procuro perceber e levar a sério os laços orgânicos que há entre os acontecimentos locais, regionais, nacionais e internacionais?
- Apesar de minhas/nossas limitações, busco sempre dotar-me de instrumentos que me ajudem a ler, interpretar e intervir mais coerentemente a realidade social, econômica, política e cultural?



2. Quanto ao JULGAR

No plano da Mãe-Natureza:
- Assim como Jesus, que não cessava de aprender da Mãe Natureza (ver a profusão de parábolas inspiradas em fenômenos e aspectos da Mãe-Natureza), eu também busco aprender com a Mãe-Natureza, sob as mais diversas manifestações?
- Como Daniel e seus companheiros, como Francisco e tantas outras pessoas, eu contemplo e louvo o Criador pela Sua Criação? 
 - Quem ama cuida: busco testemunhar esse cuidado com a Criação, em meu dia-a-dia, no meu trabalho, no cuidado com as plantas e os animais, na sobriedade do consumo dos bens da natureza, na mística da agroecologia, no re-uso, no tratamento do lixo, etc., etc., etc.? 
 - No cuidado com a saúde do corpo e da mente, inclusive por meio da vivência de uma rotina frutuosa?

No plano do trabalho:
- O que faço no dia-a-dia, que ligação tem com os valores do Reino de Deus?

No plano da cidadania:
- Como costumo ler os sinais dos tempos, tal como Jesus fazia?
- A que fontes recorro para buscar acompanhar a realidade e interpretá-la?
- O que faço para aumentar minha consciência crítica de modo a não engolir fake News?
- Como interpreto, na prática, a recomendação de Jesus de que “Entre vocês, não será assim” (cf. Mc 10, 42 – 45)?
- Que esforço concreto de autocrítica busco/buscamos fazer em relação aos malfeitos no âmbito político?
- O que estamos semeando como ação alternativa às práticas dominantes no cenário político?

No âmbito das relações familiares
- Que lugar tem a família em meu/nosso dia a dia, na perspectiva do Reino de Deus?
- Nas relações de gênero, como tento me comportar?

3. Quanto ao AGIR
- No que sou chamado a mudar em meu processo de conversão, em cada um dos itens acima mencionados e em outros tantos?

Serra do Catita, 18 – 25/01/2019.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019


FUNDAMENTOS E APORTES DA TEOLOGIA DA ENXADA:  esboço organizativo, proposta formativa e ação mobilizadora

Alder Júlio Ferreira Calado

No rol dos acontecimentos sócio-eclesiais cinquentenários, neste 2019, inclui-se a caminhada da Teologia da Enxada. Mais que uma expressão conceitual do vocabulário teológico recente, a Teologia da Enxada constitui uma densa caminhada experiencial e reflexiva, protagonizada por cristãos leigos e leigas nordestinos, comprometidos com a causa libertadora dos empobrecidos, à luz dos valores do Reino de Deus e Sua Justiça. 

A caminhada experiencial da Teologia da Enxada brota de uma confluência de fatores e circunstâncias sócio-eclesiais dos quais ousamos destacar:

O contexto de fermentação característico do final dos anos 1960 na América Latina e no Brasil. A crescente mobilização popular, em grande medida, potenciada pelo acontecimentos Medellín (1968) Puebla (1979), que desencadeiam um fortalecimento e expansão de pequenas comunidades (CEBs), a irrupção de pequenos grupos de Religiosas que se vão enraizando nas periferias urbanas e na zona rural, por meio de iniciativas de caráter organizativo (pequenos grupos, círculos bíblicos, apoio sindical, iniciativas de aprendizado profissional, de combate ao desemprego e ao custo de vida; iniciativas de caráter formativo, por meio das Pastorais Sociais, que vão ajudando a despertar, cada vez mais, a consciência crítica dos participantes, entre outras;

uma crescente associação nos trabalhos então desenvolvidos entre a reflexão crítica de temas sócio eclesiais candentes (Igreja-Povo de Deus, desenvolvimento de uma leitura crítica da Sagrada Escritura, em especial dos Evangelhos, para uma maior clareza da figura de Jesus de Nazaré; com base nos textos do Concílio Vaticano II e, sobretudo, das Conferências de Medellín e Puebla, em nítida associação com o que se passava no mundo dos pobres (povos indígenas, camponeses, operários, desempregados, etc.); iniciativas tais como Encontros de Irmãos (Olinda e Recife), Irmãos em Ação (Agreste pernambucano), Igreja Viva (Agreste paraibano), entre outras;
Importantes subsídios e textos de Teologia disponibilizados por agentes de pastoral a um número crescente de Leigas e Leigos, o que permitia o encontro com novas correntes de teologia, afinadas com a temática do Concílio (Revista Concílium), de Medellín e de Puebla, etc. Importa destacar, com ênfase, a enorme contribuição prestada ao processo formativo da “Igreja na Base”, pela Comisión de Historia de la Iglesia Latinoamericana, CEHILA, coordenada por figuras tais como Enrique Dussel, José Oscar Beozzo, Eduardo Hoornaert (Brasil, CEHILA – popular). Tanto a CEHILA quanto a CEHILA popular tem um papel de excelência no desenvolvimento da consciência crítica da história das igrejas latino-americanas e do Caribe, inclusive, do Brasil.

Tais circunstância sócio-eclesiais se acham, por certo, nas origens da Teologia da Enxada. Disto podem ser bons exemplos ilustrativos os cantos mais entoados, a esta época, dentre os quais: “Deixa a tua Terra, e vai”, “Da Cepa brotou a Rama”, “Dizei aos cativos: saí”, “Antes que te formasse”, “Os discípulos de Emaús”, “Seduziste-me, senhor”, “Desde o raiar”, “Pelos Caminhos da América”, “Dança aí Negro Nagô”, “Virá o dia, virá o dia”, Eu vim para que todos tenham vida”, "Igreja é Povo que se organiza"; "Eu sou feliz é na Comunidade"; "Com a vida cara, a gente fica sem dormir", "Prova de Amor maior não há", “Eu acredito que o mundo será melhor, quando o menor que padece acreditar no menor”, entre outros.

Íntima associação entre os temas trabalhados, os cantos de animação, as novas iniciativas litúrgicas ensaiadas (de caráter mais participativa e popular) e, por último mas não menos importantes, a metodologia adotada, sobre a qual convém destacar alguns dos seus pontos principais.


Ao longo desses cinquenta anos de sua trajetória, diversos são os ângulos sob os quais nos sentimos motivados a revisitá-la: sua proposta discipular-missionária, de seguidora da Tradição de Jesus; sua contribuição no plano organizativo, seu investimento no processo formativo contínuo de seus membros; a diversidade de experiências discipular-missionárias assumidas pelos seus protagonistas ocorre-nos aqui destacar.


A Tradição de Jesus e Seu Movimento como fontes maiores de inspiração da Teologia da Enxada no modo inovador de atuar.

1. No campo da organização

Nas linhas que seguem, pretendemos refletir sobre o título acima, orientando-nos por questões tais como: em que sentido nos propomos a tratar da Teologia da Enxada? Em que contexto sócio-eclesial desponta? Quem são seus principais protagonistas, no processo de fundação? Que objetivos perseguem? Quais suas propostas axiais, do ponto de vista da organização, do processo formativo e de suas atividades básicas? Em que fonte(s) bebem seus fundadores? Como se comportam diante das adversidades enfrentadas, dentro e fora dos espaços eclesiais? Que passos organizativos tem priorizado? Quais traços principais marcam sua proposta de formação? Que atividades mais frequentes tem realizado?

A expressão Teologia da Enxada comporta distintas significações. De início, remete ao universo rural ("Enxada"). Associa-se a jovens camponeses em processo de formação, num Seminário católico. O Seminário Regional do Nordeste II, associado ao Instituto de Teologia do Recife (ITER), constitui uma experiência de formação de presbíteros, num contexto de (pós Concílio Vaticano II, mais precisamente a partir da presença de Dom Helder Câmara, recém-nomeado Arcebispo da Arquidiocese de Olinda e Recife. Rodeado de uma equipe de assessores e assessoras de reconhecida qualificação teológica, o SeERENE II aparece como uma possibilidade de se oferecer uma formação presbiteral em sintonia com as conclusões do recém-findo Concílio Vaticano II, realizado entre 1962 e 1965. Contando com assessores e professores tais como Pe. Marcelo Carvalheira, Pe. José Comblin, Pe. Eduardo Hoornaert, Pe. Zildo Rocha, Pe. René Guerre, entre outros, buscava-se tocar um plano de formação presbiteral, em sintonia com as conclusões do Vaticano II. Nesta época, foi escolhido o Pe. José Comblin como Diretor de Estudos. Da turma de estudantes componente daquele Seminário (maior) também faziam parte jovens seminaristas tais como João Batista Magalhães, Raimundo Nonato Queiroz, João Firmino, José Diácono, Ivan Targino e outros. Em sua maioria, tratava-se de jovens vindos de família camponesa ou de famíilias pobres habitando as periferias urbanas, que, embora reconhecendo a qualidade dos estudos ali realizados, se sentiam relativamente perdidos, com relação a um propósito que os marcava:  o de servirem como missionários, como discípulos de Jesus, comprometidos com a causa dos pobres, camponeses e operários, razão por que sentiam estar faltando algo de importante, naquela proposta de formação. Agindo em grupo, tomam a iniciativa de compartilhar seu sentimento comum ao então Diretor de Estudos, Pe. José Comblin, que, para surpresa deles, se sensibiliza com suas inquietações e se compromete a levar refletir melhor sobre tal desafio. 

Comblin, que já vinha atuando há vários anos como Assistente de JOC, também não se encontrava só. Tinha alguns colegas igualmente sensíveis a este apelo. E assim, via surgindo um novo clima de abertura e de flexibilização, compartilhado também por Dom Helder. Surge, então, a ideia de ousar uma experiência alternativa de formação. Em vez de jovens como aqueles ficarem naquele espaço de seminário, buscariam uma formação em lugar mais próximo da gente a quem gostariam de dedicar sua formação: os camponeses.  Daí nascem as propostas de criação de dois núcleos "rur-banos" de formação, um em Tacaimbó - PE e outro em Salgado de São Félix - PB, já no final dos anos 60. O que aí se inicia, desenvolve-se e cria raízes. Menos de dez anos após, é o próprio Comblin quem relata o plano de formação aí em curso, num livro de referência, "Teologia da Enxada", publicado pela Vozes, em 1977.


2. Esboço de um plano de formação e de atividades missionárias.

Como acima mencionado, aquele grupo de jovens seminaristas do Seminário Regional Nordeste II, associado ao ITER, do qual Pe. José Comblin era o Diretor de Estudos, não se sentia contente com a formação aí recebida. Sem deixarem de reconhecer a qualidade dos estudos oferecidos - que se destacavam, inclusive, no cenário do País -, sentiam falta de uma proximidade maior com o povo dos pobres, de onde haviam vindo e com os quais pretendiam se comprometer, como discípulos-missionários a serviço do Reino de Deus. Uma vez obtida a concordância e o apoio de formadores como o próprio Pe. José Comblin, que traços mais fortes entendiam dever estar presentes em seu processo formativo?  Vejamos alguns pontos que aí se ressaltavam:
Uma maior interação entre o horizonte discipular-missionário almejado e os caminhos correspondentes. Isto se traduzia por meio de sua escolha formativa fundada sobre a coerência entre os estudos temáticos que deveriam refletir os compromissos com a causa libertária do povo dos pobres (camponeses, povo negro, povos indígenas, operários, etc.), por um lado; e, por outro, uma metodologia de vida, de trabalho e de estudos correspondentes ao horizonte temático. O método passa a ser um item substantivo, ao lado dos temas priorizados naquele processo formativo. Na prática, isto implicava:
- Estilo de vida, em primeiro lugar, isto é, manter um estilo de vida próximo da gente a que queriam dedicar seu trabalho missionário. Viver, não apenas perto do povo, mas com ele interagir, compartilhar inquietações e estilo de vida e de trabalho, sem prejuízo do necessário aprofundamento da reflexão crítica e teórica, processo que seria igualmente acompanhado de perto pela Equipe de formadores, da qual faziam parte, além do Pe. José Comblin, também figuras tais como: Pe. René Guerre, Pe. José Servat, Ir. Maria Emília Ferreira, Ir. Zarita, Ir. Agostinha Vieira de Melo, Pe. Jorge Raimundo, João Batista Magalhães Raimundo Nonato (estes últimos, após o término de sua formação missionária inicial).



O que se poderia encontrar de novo, na experiência formativa destes jovens vocacionados, em seu dia-a-dia? O lugar geográfico (os Núcleos de Tacaimbó e de Salgado de São Félix) constitui um primeiro traço desta novidade formativa. Aqueles jovens vocacionados sentiam-se, agora, rodeados de sua gente, num convívio frutuoso, num aprender-compartilhar incessante, numa convivência enriquecedora, para ambos os lados. Respiravam os ares do campo, da Mãe-Natureza, experimentavam mais de perto a beleza de um alvorecer, de um por de sol; podiam contemplar as estrelas; ou ouvir o cantar dos pássaros; encantar-se com a chegada das chuvas naquela paisagem ressequida. A alegria e o entusiasmo dos camponeses, a caminho da roça. Ali, podiam testemunhar de perto o estilo de vida das famílias, como se processava a educação dos filhos; como se dava a distribuição das tarefas entre os membros da família; como se davam as relações de trabalho, as atividades devocionais, a reverência aos santos, as festas de padroeiro. Em breve: podiam imergir no universo cultural daquela gente, sua gente, com ela aprendendo, compartilhando e refletindo diferentes aspectos da vida, no chão do dia a dia. Aquela terra, aquela gente constituíam parte ativa de sua formação. Por outro lado, também repartiam o tempo, de modo a terem condições de se dedicarem aos trabalhos manuais (ao trabalho na roça, inclusive). Tempo para os estudos, orientados pela Equipe de formadores. O que estudavam no Seminário ali se fazia presente, mas com uma grande diferença: tudo partia da vida daquela gente. Do grito e do sofrer: das alegrias e das festas; do conviver no trabalho e no lazer daquela gente - daí brotavam os temas de seus estudos: os Evangelhos, a Sagrada Escritura, as primeiras comunidades, a oração, a partilha, a solidariedade, o encanto com a Natureza, pecado, graça, sacramentos, Igreja, comunidade, Povo de Deus, Salvação, Libertação - o dia-a-dia daquela gente constituía permanente fonte de inspiração para seus estudos teológicos, pra sua oração, para seus trabalhos para sua convivência com as comunidades. A começar das palavras-chave que selecionavam, com a orientação de seus formadores, sempre associadas às atividades concretas de sua gente.

Este jeito de se organizarem e de cuidar de sua formação, estendeu-se, em seu primeiro período, até o final dos anos 70, durante os quais o Pe. José Combilin, uma vez expulso do Brasil, em 1972 (foi expulso pela Ditadura Civil-Militar brasileira), e passando a residir no Chile, mais precisamente em Talca, animando trabalhos semelhantes, não perdeu o contato com esses núcleos nem com os membros da Equipe de formação. Sempre arrumavam um jeito de se encontrarem, na fronteira com o Brasil (Uruguai, Argentina...), de modo a compartilharem informações e orientações de formação, tanto em Talca como no Nordeste do Brasil (Pernambuco e Paraíba, principalmente).

Com a conquista da anistia aos exilados, começa uma nova fase. A partir de um encontro realizado em Itamaracá – PE, entre membros da Equipe de Formação e parte do formando, já vivendo um outro momento de sua formação, agora mais como formadores -, surge o plano de criação de um seminário rural, em terras da Arquidiocese da Paraíba, mais precisamente em Pilões, num sítio chamado Avarzeado. Com o apoio do Arcebispo da Paraíba, Dom José Maria Pires, e de alguns bispos do Nordeste, mas sobretudo graças ao protagonismo dos participantes daquele encontro, lançam-se as bases desta nova experiência, e o Seminário Rural inicia suas atividades, no início de 1981, com a participação de uma turma composta por doze jovens. Estes jovens camponeses do Nordeste e outras regiões passavam a vivenciar uma experiência inovadora de formação presbiteral, baseada numa distribuição atípica de atividades, com tempo para os estudos, tempo para o trabalho na roça, tempo para oração, tempo para o acompanhamento missionário das comunidades vizinhas àquele sítio. Objetivo era o de formar jovens vocacionados ao Presbiterado, a partir de uma experiência formativa junto ao seu povo, o povo camponês. Roma, porém, não aprovaria tal experiência como apropriada para a formação de presbíteros, deixando a entender que aquela experiência não atendia os requisitos eclesiásticos para a formação de padres. E mandaria fechar o Seminário Rural.

O que, num primeiro momento, repercutiu como um revés, acabou transformando-se numa bênção: no ano seguinte, 1983, já em Serra Redonda - PB, foi iniciado o Centro de Formação Missionária, que daria sequência, mas em novo estilo, ao processo de formação, já não de jovens destinados ao Presbiterado, mas para jovens vocacionados à Missão junto ao povo do campo e das periferias urbanas.

O processo formativo que aí teve lugar, constava de uma experiência de 6 anos, sendo 2 anos de formação no CFM, mais 2 anos junto a famílias ou comunidades da redondeza (sempre acompanhados por membros da equipe de formação), e os 2 últimos anos de volta às suas comunidades de origem, com a tarefa missionária de fundar e animar novas comunidades, nutridas com esses valores.

Com o passar do tempo, foram surgindo novas demandas ou novos formatos de formação, de modo a contemplar uma variedade de vocações: havia os que manifestavam a vontade de serem missionários casados (daí a criação da Associação dos Missionários e Missionárias do Campo); havia a demanda de um novo CFM voltado para as vocações missionárias femininas (demanda atendida, a partir de 1986–87, na cidade de Mogeiros); outros e outras sentiam-se vocacionado mais diretamente a uma vida contemplativa (daí a criação da fraternidade do discípulo amado), no Sítio Catita, município de colônia Leopoldina – AL; também, houve quem se sentisse chamado-chamada à uma vida de Peregrinação; outros/outras sentiram-se movidos a um trabalho missionários nas periferias urbanas do Nordeste (daí, a criação da AMINE – Associação dos missionários e missionárias do Nordeste); uma outra experiência mais diretamente ligada ao processo formativo de leigas e leigos, com fecunda metodologia de trabalho (tarefa cumprida pela Associação Árvore); a frutuosa e continuada experiência das escolas de formação missionária (em Juazeiro - BA; em Mogeiro – PB; em Esperantina – PI; em Floresta – PE; em Barra – BA...). Por inspiração destas e na caminhada junto a estes mesmos protagonistas, outras experiências brotaram e continuam vivas, tais como a experiência formativa das comunidades em torno de café do vento (Sobrado – PB), o grupo Kairós (Criado em 1998, em torno do Pe. José Comblin, e que se reúne semanalmente, para estudar a obra do Pe. José e de outros teólogos e teólogas tais como Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Jean-Yves Leloup, Eduardo Hoornaert, Ivone Gebara, Sebastião Armando, Hans Küng, José Antonio Pagola, Luís Carlos Araújo, Marcelo Barros, Teresa Forcades, entre outros e outras).

Revisitando tais experiências de organização e de formação contínua acompanhadas sempre de inúmeras iniciativas e atividades, junto às comunidades do campo e da cidade, principalmente no nordeste do Brasil, encontramos fortes sinais que nelas/delas recolhemos, e que se apoiam em valores da Tradição de Jesus, dentre os quais:

-Compromisso perseverante coma  causa do povo dos pobres, à luz dos valores do Reino de Deus e sua justiça;
- Enraizamento comunitários no campo e nas periferias urbanas;
- Primazia pela causa do Reino de Deus, sempre colocado como horizonte inegociável nas lides com as Igrejas Cristãs e suas respectivas hierarquias;
- Contínua disponibilidade para ouvir o que o Espírito tem a dizer ao povo dos pobres em sua luta por justiça, paz, solidariedade e partilha;
- Empenho continuado em resistir às amarras do sistema dominante, em busca e à caminho de uma sociabilidade alternativa ao sistema hegemônico, tratando de, enquanto se busca essa nova sociabilidade, já ir-se semeando sementes de alternatividade...

João Pessoa, 16 de janeiro de 2019.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

ENTRE OS 50 ANOS DE MEDELLÍN E OS 40 DE PUEBLA: rememorar para avançar!


ENTRE OS 50 ANOS DE MEDELLÍN E OS 40 DE PUEBLA: rememorar para avançar!

Alder Júlio Ferreira Calado

Salutar tradição, a de fazermos memória de acontecimentos e de personagens de referência, que implicaram reconhecidos ganhos à humanidade, a povos de vários continentes e países.  A memória histórica, se e quando bem exercitada, comporta uma extraordinária força reparadora e renovadora/inovadora. Nem sempre, contudo, isto se tem dado, a contento. Não raramente, restringe-se ao mero exercício de saudosismo ou de revisitação que se circunscreve ao mero hábito “eventista”, isto é, de prestar-se reverência, a certos eventos do calendário oficial, sem que isto suscite – como deveria – o compromisso de fazer-se avançar, para além daqueles acontecimentos, conforme o caráter e as exigências de novos desafios.



No debate sobre memória histórica, resulta, por vezes, curioso observar-se o significado imputado às iniciativas de comemoração. Quando se trata de comemoração, do ponto de vista dos setores privilegiados, costuma-se assumir tal iniciativa, apenas quando isto não encerra algum tipo de risco aos festejadores, afinal uma coisa é festejar heróis nacionais, quando encarnam os valores dos privilegiados. Deles, aliás, abundam os nomes de ruas e praças. Outra coisa é celebrar datas comemorativas ligadas a figuras comprometidas com os interesses dos de baixo. Aí, todo cuidado é pouco!...


No intuito, portanto, de ajudar a despertar um compromisso mais efetivo com a causa libertária dos empobrecidos, cuidamos de rememorar aspectos axiais dos 50 anos de Medellín e dos 40 anos de Puebla, de modo a de cada uma destas Conferências extrair lições que nos ajudem a enfrentar exitosamente velhos e novos desafios da atualidade sócio eclesial. 


Embora comportando algumas diferenças de menor relevância, podemos dizer não haver grandes diferenças entre o contexto de uma e de outra. Uma distância de apenas dez anos e meio entre Medellín e Puebla, nada de tão extraordinário se passa, na América Latina. Ao contrário, um leque de pontos comuns os caracteriza no plano econômico, por exemplo, segue uma conjuntura de notável empobrecimento. No caso do Brasil, uma conjuntura agravada pelo aumento da dívida externa, pela elevada inflação, pelo aumento do custo de vida, pelo desemprego. O continente ainda geme, em várias partes, sob o peso das botas. É a mesma, a voracidade lucrativa das transnacionais, em distintos setores da economia. O tão celebrado crescimento econômico do período da ditadura começa a fazer água. Na América Central, agravam-se os conflitos sangrentos, a expressarem o peso da opressão de regimes sanguinários, como o de El Salvador e o da Nicarágua, onde as forças populares ganham terreno, até a vitória sobre Somoza, em meados de 1979, com o ascenso revolucionário das forças sandinistas, sob forte protagonismo dos cristãos. No caso do Brasil, observa-se um franco avanço da resistência popular contra a Ditadura, que vai perdendo força, e entra em contagem regressiva, principalmente graças ao aumento da resistência popular, protagonizada por movimentos sindicais e por segmentos da “Igreja na Base”, contando, inclusive, com o decisivo apoio da CNBB que, em 1977, lança seu corajoso documento “Exigências Cristãs de uma ordem política”. Graças, também, à contestação generalizada, sobretudo no período do General Figueiredo. Por outro lado, avançam os movimentos populares e outras organizações de base de nossa sociedade, culminando, ainda neste ano de 1979, com o surgimento do Movimento Pró PT, no caso do Brasil.
A "Igreja na Base" não cessa de ampliar seu protagonismo, principalmente a partir das Pastorais Sociais (CIMI, CPT, CPO, PJMP, CDDHs, Comissão Justiça e Paz, entre outras). Ainda no âmbito da Igreja Católica, ressoava o trauma do falecimento, no ano anterior ao início da conferencia de Puebla, do Papa Paulo VI, reconhecido pelo seu decisivo apoio às iniciativas da Igreja na Base, por meio principalmente de bispos-profetas. A este respeito, ficaria célebre sua afirmação, endereçada à Ditadura Civil- Militar do Brasil e seus cúmplices que perseguiam Dom Pedro Casaldáliga, em seu apoio pastoral aos povos indígenas e aos camponeses da região do Araguaia: “Quem mexe com Pedro, mexe com Paulo” (cf. https://www.youtube.com/watch?v=Xnzy4y44kZs)


No âmbito mais diretamente eclesial, a realização da II Conferência Episcopal Latino-Americana, em Medellín, representou um verdadeiro Pentecostes na Igreja Católica Romana, em especial em relação à América Latina e o Caribe. Foi muito além do que dela mesma esperavam seus protagonistas, que se contentariam com ser uma aplicação no plano do continente, das decisões tomadas pelo Concílio Vaticano II. Significou uma refundação da Igreja Latino-Americana, ao conferir-lhe rosto próprio, protagonismo profético inaudito, da parte de parcela significativa do seu episcopado, comprometido com a causa libertadora de seu povo - povos tradicionais, indígenas, afrodescendentes, jovens, camponeses, operários, mulheres, ... O tema então trabalhado - " A Igreja na presente transformação da América Latina à luz do Concílio Vaticano II” - constituía um apelo sugestivo em vista dos desafios e do seu compromisso. Disto também falavam forte seus dezesseis temas integrantes do Documento Final.  Dentre os temas-chave constavam: Justiça, Pobreza, Paz, Família, Educação, Leigos e Leigas, Comunicação, Colegialidade, etc. Mais do que o evento em si, falou forte o compromisso de seus protagonistas, de ecoar tanto no continente quanto mundo afora os clamores dos pobres, por meio da "opção pelos pobres". Nesse sentido, importa destacar os avanços significativos protagonizados pelas mais diversas formas de organização eclesial, em especial por meio das Pastorais Sociais, de importantes serviços, associações e movimentos leigos. Com efeito, o pós-Medellín, sobretudo ao longo dos anos 70, conseguiu ressoar em todo o mundo, nos mais distintos continentes, contundentes mensagens em busca de uma ampla reforma da Igreja Católica Romana, principalmente em sua missão profética de compromisso com a causa dos oprimidos. Sobretudo a partir de Medellín, vão ganhando terreno, por exemplo, o CIMI, as CEBs, a CPT, a CPO, a PJMP, as PCIs, a Teologia da Libertação, o CEBI, os Centros de Defesa dos Direitos Humanos, a Comissão Justiça e Paz e outras organizações de referência.

O Legado de Medellín, portanto, vai bem além do ano em que foi realizada a referida Conferência. Marca, de maneira emblemática, o impetuoso esforço de renovação eclesial, especialmente no tocante à sua voz profética que vai ecoar e incomodar as forças conservadoras, dentro e fora dos espaços eclesiais, de tal modo que, anos depois, as forças conservadoras da Igreja Católica Romana junto com as forças das grandes potências, Estados Unidos à frente, tratam de articular, no plano eclesiástico e no plano político, vigorosas estratégias de combate, pressionando o Vaticano a conter tal onda de renovação, que ameaçava a ordem vigente...
Pouco tempo depois, ainda sob o efeito dos ganhos obtidos na Conferência de Medellín organiza-se, em 1979, na cidade de Puebla (México), a III Conferência Episcopal Latino-Americana, que reafirma os compromissos de Medellín, de modo bastante convincente, inclusive dada a qualidade da intervenção mediatizadora de assessores qualificados junto ao grupo mais profético de Bispos participantes daquela conferência. Já em sua introdução, o documento final assina-la aspectos relevantes tratados na conferência, da qual sublinhamos o seguinte trecho (da Introdução):

“Como atuar pastoralmente na América Latina, numa total fidelidade ao Evangelho? Quais são os critérios e as linhas de uma verdadeira e autêntica evangelização para a América Latina? Quais deverão ser as opções pastorais fundamentais para que o Evangelho seja um acontecimento atual e presente, com toda a sua, vitalidade e força original? [...] É necessário pensar na edificação de uma nova realidade, de uma inserção evangélica na nova sociedade que surge na América Latina muito ligada com o povo do mundo de hoje e de amanhã. Trata-se de buscar o caminho para que o Evangelho, através do testemunho de nossa vida e de sua proclamação sempre nova, seja luz, fermento, sal, água viva para os povos do nosso Continente.

[...]

Tal ubiquação em nossa história concreta nos tornará sensíveis à vitalidade de nossas Igrejas e a um conjunto de problemas. A vitalidade: no presente de nossas Igrejas percebe-se uma vitalidade nova; a sede de Deus e sua busca na oração e contemplação; a colegialidade episcopal cada vez mais vivida; o grande desenvolvimento das pequenas comunidades eclesiais em comunhão com a hierarquia; os novos ministérios; uma vida de fé mais profunda por parte de muitos jovens; a ação pastoral intensa dos religiosos e das religiosas, sobretudo a inserção comunitária cada vez maior nas zonas mais pobres; o planejamento pastoral em seu processo de participação, em todos os níveis, das comunidades e pessoas interessadas, educando as numa e para uma metodologia de análise da realidade, para a reflexão sobre a realidade a partir do Evangelho, os objetivos e os meios mais aptos e seu uso mais racional para a ação pastoral; a presença sempre maior dos bispos entre o povo; a liberdade cada vez maior frente ao braço secular; uma consciência mais aguda dos leigos quanto à sua identidade e missão eclesial.”

Como se percebe Puebla, não apenas assume os compromissos de Medellín como trata de atualiza-los, a exemplo do que se passa em seu admirável esforço de sintetizar os alvos prioritários a merecerem sua atenção, ou seja quais eram os pobres, concretamente, pelos quais a Igreja Latino-americana fazia sua opção? Eis uma lista bastante representativa destes rostos:
“Ao analisar mais a fundo tal situação, descobrimos que esta pobreza não é uma etapa casual, mas sim o produto de determinadas situações e estruturas econômicas, sociais e políticas, embora haja também outras causas da, miséria. A situação interna de nossos países encontra, em muitos casos, sua origem e apoio em mecanismos que, por estarem impregnados não de autêntico humanismo, mas de materialismo, produzem, em nível internacional, ricos cada vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais pobres. Esta situação de extrema pobreza generalizada adquire, na vida real, feições concretíssimas, nas quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras de Cristo, o Senhor (que nos questiona e interpela) : 32. - feições de crianças, golpeadas pela pobreza ainda antes de nascer, impedidas que estão de realizar-se, por causa de deficiências mentais e corporais irreparáveis, que as acompanharão por toda a vida; crianças abandonadas e muitas vezes exploradas de nossas cidades, resultado da pobreza e da desorganização moral da família;. - Feições de jovens, desorientados por não encontrarem seu lugar na sociedade e frustrados, sobretudo nas zonas rurais e urbanas marginalizadas, por falta de oportunidades de capacitação e de ocupação; 34. - Feições de indígenas e, com freqüência, também de afro-americanos, que, vivendo segregados e em situações desumanas, podem ser considerados como os mais pobres dentre os pobres. 35. - feições de camponeses, que, como grupo social, vivem relegados em quase todo o nosso continente, sem terra, em situação de dependência interna e externa, submetidos a sistemas de comércio que os enganam e os exploram; 36. - feições de operários, com freqüência mal remunerados, que têm dificuldade de se organizar e defender os próprios direitos; 37. - feições de subempregados e desempregados, despedidos pelas duras exigências das crises econômicas e, muitas vezes, de modelos desenvolvimentistas que submetem os trabalhadores e suas famílias a frios cálculos econômicos; 38. - feições de marginalizados e amontoados das nossas cidades, sofrendo o duplo impacto da carência dos bens materiais e da ostentação da riqueza de outros setores sociais; 39. - feições de anciãos cada dia mais numerosos, freqüentemente postos à margem da sociedade do progresso, que prescinde das pessoas que não produzem.”
Observe-se a profunda afinidade de propostas e valores assumidos nessas duas conferências, que reputamos as mais contundentes, no que diz respeito ao compromisso Evangélico com a causa libertadora dos empobrecidos, tendo ido bem além do que conseguiram as Conferências ulteriores (a de Santo Domingo, em 1992, e a de Aparecida, em 2007), até porque estas últimas se deram sob os pontificados João Paulo II e de Bento XVI (a de Puebla, embora já contando com a presença de João Paulo II, já estava solidamente encaminhada).
Rememorados aspectos axiais das conferências de Medellín Puebla, resta-nos o desafio de atualiza-las, tomando em consideração grandes e novos desafios que nos rodeiam, na presente atualidade. Eis porque, no item seguinte, cuidamos de levantar questionamentos com relação a tais desafios, dentro e fora dos espaços eclesiais.

Que lições extrair de Medellín e de Puebla, em vista de um enfrentamento exitoso de grandes desafios sócio eclesiais, na atualidade?

A centelha profética de Medellín e de Puebla segue e a inspirar e a mover agentes e ações libertárias, nos dias atuais, principalmente - ou quase apenas - nas "correntezas subterrâneas" de nossa sociedade e de nossas Igrejas. Nas águas de superfície, é quase impossível notar sua ação. Como, então, reacender mais e mais as fagulhas de Medellín e de Puebla, naquilo que têm a ver com os desafios de hoje?

Talvez mais no que se associa ao seu conteúdo, não seria sobretudo no método por elas seguido, que teríamos mais a delas extrair lição?

Segue eficaz a metodologia vivenciada por aquelas Conferências:
- Examinar criteriosamente a realidade social e eclesial, em seu movimento dinâmico, em seus entrechoques históricos, na profunda interconexão de seus elementos, atinentes a uma diversidade de campos de saberes, como um saberes (na perspectiva de “Interculturalidade” ou, nos termos de Franscisco, atual Bispo de Roma, “Cultura do Encontro) primeiro momento que se oferece a quem pretenda ajudar a transformar a realidade. Diante de tantos equívocos reiterados nas leituras de realidade hoje exercitadas, não será bem o caso de recolher melhor as lições de Medellíin e de Puebla? Diante das armadilhas de hoje, sob a égide de uma época de "pós-verdade" (cf. artigo de Marcos Barbosa de Oliveira: https://outraspalavras.net/internetemdisputa/pos-verdade-uma-filha-do-relativismo-cientifico/)

- Como vimos exercitando o confronto entre a compreensão da realidade com os critérios referenciais propostos pela Tradição de Jesus? (Julgar);

- E, sobretudo, do ponto de vista da ação, da intervenção sobre nossa realidade, salvo exceções colhidas sobretudo nas correntezas subterrânea", como retomar o Trabalho de Base, em novo estilo, isto é, com os olhos e o coração voltados para os novos desafios hoje enfrentados?

Os aprendizados de natureza metodológica só fazem sentido, se nos ajudam concretamente a (re) assumirmos temas candentes, velhos e novos, que também estiveram presentes em Medellín e em Puebla, e que hoje seguem a nos desafiar: que temas hoje priorizar?

Como atualizar as grandes questões então enfrentadas, e das quais se tornaram emblemáticos documentos tais como: a "Gaudium et Spes", a Populorim Progressio,o Manifesto escrito por bispos e superiores religiosos do Nordeste, intitulado "Eu Ouvi os Clamores do Meu Povo" (1973); o Manifesto dos Bispos de Centro-Oeste, "A Igreja do Centro-Oeste em conflito com com o Latifúndio" (1974); o documento "da CNBB, "Exigências Cristãs de uma Ordem Política" (1977); o documento da CNBB sobre a questão da terra, no Brasil, de 1981, fazendo bem a distinção entre terra de trabalho e terra de negócio. Iniciativas de um profetismo emblemático, em plena sintonia com o espírito de Medellín e Publa. Como reacender esses compromissos, hoje, no que for pertinente?

Importantes que sejam - e são! -, não bastam as questões de caráter mais diretamente societal. É fundamental igualmente reavaliarmos a caminhada de meio século, ao interno da Igreja Católica  Romana. Durante parte expressiva deste período - mais de três décadas -, a "Igrejana Base", na América Latina e no mundo, teve que amargar sucessivos retrocessos sócio-pastorais, por conta dos graves recuos e das perseguições a ela movidas, em consonância com as forças conservadoras do mundo político. Como enfrentar, de modo atualizado, esses desafios, hoje?

Por exemplo, do ponto de vista da organização estrutural da Igreja Católica Romana, a despeito de atitudes proféticas do Bispo de Roma, prevalece uma inércia gigantesca, da parte dos órgãos eclesiásticos que se apropriam das instâncias decisórias, ao interno da Igreja Católica Romana, sem sequer observarem as decisões do próprio Concílio Ecumênciao, com relação, por exemplo, ao indicado na "Lumen Gentium", que põe o Povo de Deus, e não a hierarquia apenas, a centralidade organizativa da Igreja. Como enfrentar, hoje, concretamente, esses desafios?


E quanto ao lugar das Mulheres na Igreja, como romper com esta traição ao espírito do Evangelho, em que as atitudes de Jesus de Nazaré em relação às Mulheres continuam sendo desrespeitadas, com a manutenção de decisões controladas apenas por homens, e mantendo as Mulheres distantes das instâncias de decisão?



Duas figuras, entre outras, nós vêm à lembrança, quando cuidamos de refletir criticamente sobre as coisas da/na Igreja Católica Romana, a estarem a merecer profundas mudanças. Em uma de suas últimas entrevistas, o Cardeal Carlo Maria Martini, questionado sobre a necessidade de reformas da Igreja Católica, ele não hesitou em afirmar que nossa Igreja está a duzentos anos de atraso... Algo semelhante foi dito pelo teólogo José Comblin, por ocasião de uma longa entrevista, concedida a uma emissora radiofônica do Chile. Perguntado o que precisaria mudar na Igreja, Comblin, com sua conhecida ironia profética, começa a responder a esta questão, dizendo; "Tudo!" à parte a ironia combliniana, de fato, há muito, muito a ser alterado nas estruturas da Igreja Católica Romana, para ser fiel à Tradição de Jesus: 
Em que pese o reconhecido esforço de Dom Helder, junto ao Papa Paulo VI, de quem Dom Helder se sentia próximo, no sentido de sensibilizá-lo em favor de desfazer o formato de Estado sob o qual a Igreja Católica segue organizada, não vemos sinais convincentes, nessa direção, e isto há mais de cinquenta anos de sucessivos alertas, como o ainda recentemente reiterado por Dom Pedro Casaldáliga, acerca da necessidade de a Igreja se desfazer de sua organização ao modo de Estado, para ser fiel ao Mestre, cujas advertências não parecem ressoar no coração dos hierarcas de todos os tempos: "Entre vocês, não há de ser assim..." (cf. Mc 10, 42-45).

A despeito de alguns avanços feitos, inclusive, na Teologia dos Ministérios, há, também aí, uma longa estrada a percorrer, para fazer prevalecer na organização ministerial  da Igreja Católica Romana o espírito da Tradição de Jesus. Como enfrentar isto?

Outro desafio de monta diz respeito a um profundo reexame bíblico-teológico, por parte das Batizadas e dos Batizados, integrantes da mesma e grande Comunidade Eclesial, das bases e dos fundamentos em que se tem assentado a separação entre clero e leitos; entre ordenados e não-ordenados, que acabaram prevalecendo sobre a condição comum de Batizados  e Batizadas. Quem vai enfrentar tal reexame? Por meio de que instâncias?

Não é menor o debate sobre a exclusão das Mulheres do seu direito – relativo, é claro, apenas às vocacionadas - de terem acesso e reconhecimento de sua vocação ao exercício de funções específicas, tais como a do Diáconado, ao à do Presbiterato, à do Episcopado. Quem, e através de que instâncias, isto vai ser reexaminado?

Que base consistente de argumentação bíblico-teológica respalda certa tradição eclesiástica que cobre de privilégios os membros dos segmentos ordenados - em especial, os do Episcopado -, em detrimento dos direitos dos segmentos não-ordenados?

Por exemplo, o que justifica haver conferências episcopais, e conferências de Religiosos e Religiosas, e não se permitir igual direito às Leigas e Leigos?

A quem vai caber reexaminar esses casos?

O mesmo se diga em relação às instâncias decisivas, relativas às Igrejas particulares, como o caso das Conferências continentais: por que conferências episcopais, e não com protagonistas de todos os segmentos?

Que instância ou instâncias decisórias estão por ser criadas, nesse sentido?

Nesse sentido, somos chamados a dar prosseguimento, isto é, a avançar, em nossa caminhada atual, bem nutridos pelo legado de Medellín e de Puebla, e buscando ser fiéis ao seu espírito profético e renovador. Isto só confirma a pertinência do dito "Eclseia semper reformanda est" ou "Reformata, Ecllssia semper reformanda est". Precisamos, sim avançar, desta vez, tomando em conta a natureza de novos desafios que se nos interpõem, e que não são bem percebidos ou o mesmo nada percebidos, mesmo passados cinquenta anos. Precisamos dotar-nos de meios que nos permitam concretizar, em nosso dia-a-dia, os valores do Reino de Deus, tal como hoje o Espírito Santo nos inspira, em busca permanente da unidade, na diversidade. Em distintas circunstâncias, o atual Bispo de Roma tem chamado a atenção, nessa direção, mas tem sido pouco ouvido, principalmente pela Cúria Romana e seus aliados, nos mais diversos países, inclusive na América Latina e no Brasil. tal é a sensibilidade de Francisco, Bispo de Roma, que, por ocasião de uma de seus encontros com o membros do CELAM, no Brasil, não hesitou em sugerir que não se tivesse medo de avançar, de seguir estrada, inspirados no Evangelho, pra além dos preceitos e disciplina vigentes. Aqui, ali, receberiam alguma reprimenda, algum alerta, mas, equacionados os exageros, que se seguisse empreendendo novas experiências. Não ter medo de avançar! O Bispo de Roma - e nós com ele - está convencido de que as mudanças necessárias não virão de cima para baixo (ou, pelo menos, apenas nem sobretudo), mas, antes, pela ousadia vinda desde a base. Nessa direção, é que começamos a compreender significativas iniciativas por parte de Leigas e Leigas, mundo afora. Aqui e ali, com algum excesso, reconhecemos, mas sem tal ousadia, não haverá mudança, pois quem controla hoje as decisões da Igreja não tem do que reclamar: são os beneficiários das medidas e normas por eles mesmos elaboradas... 

E se, seguindo todo um processo, toda uma gama de passos necessários, as Leigas e os Leigos começassem (ou já começaram?) a dar passos, guiados pelo Espírito santo, ousando iniciativas não previstas necessariamente pela hierarquia? Por exemplo, ousando a experiência de Conferência de Leigos e Leigos? Organizando sínodos, no âmbito de Igrejas particulares? E, se com tais passos, Leigas e Leigos, por certo com o apoio de membros da hierarquia, dessem passos progressivos em direção a um novo concilio do Povo de Deus, na Igreja Católica? Mesmo sabendo que o Povo de Deus ultrapassa, como é sabido, as fronteiras da Igreja Católica e das Igrejas Cristãs, devendo comportar todas as expressões de Fé do conjunto da humanidade, em sua rica diversidade...

João Pessoa, 10 de janeiro de 2018