quarta-feira, 19 de julho de 2017

REINO DE DEUS OU INSTITUIÇÕES ECLESIÁSTICAS AUTO-REFERENCIADAS? Paradoxos e desdobramentos da velha tensão entre carisma e poder...


Alder Júlio Ferreira Calado

Acompanhando o esforço hercúleo de Francisco, Bispo de Roma, de mexer minimamente na engrenagem do poder curial, quedamo-nos perplexos com a resistência (quase) invencível oposta por cardeais da Cúria romana, porta-vozes de poderosas forças reacionárias de dentro e de fora dos espaços eclesiásticos,  a qualquer tentativa de mudança, que ameace minimamente seus privilégios. Este é apenas um de numerosas e sucessivas iniciativas pouco ou mal sucedidas, ao longo da Cristandade. Nem o concílio Vaticano II, concluído há meio século atrás, logrou êxito, em várias s de suas conclusões. Desde sua convocação, pelo Papa  João XXIII, e durante e após sua realização, eis que se lhe opuseram significativas, forças reacionárias.

 Remontam aos tempos apostólicos – e aprofundando-se,  ao longo da Cristandade -  as tensões entre carisma e poder. Diante da proposta desinstaladora de Jesus de Nazaré, e sobretudo diante de sua prática desinstalada e desinstaladora, mesmo seus primeiros seguidores tiveram posicionamentos diferenciados. Da parte de alguns, não faltaram palavras e arroubos de adesão, enquanto suas práticas contradiziam seus propósitos declarados. Algumas cenas resultaram bem conhecidas, tais como aquela, em que Thiago e João, dando prova de que nada entenderam da proposta do Mestre, têm a petulância de pedir a Jesus sua parte no poder: “Nisso Tiago e João, filhos de Zebedeu, aproximaram-se dele e disseram: ‘Mestre, queremos que nos faças o que vamos te pedir’. ‘O que vocês querem que eu faça?’, perguntou ele. Eles responderam: ‘Permite que, na tua glória, nos assentemos um à tua direita e o outro à tua esquerda’.” (Mc 10, 35-37). A sede de  poder foi de tal ordem,  a implicar um certo descarte, pelos próprios dissípulos  de Jesus,  da figura de Maria Madalena,  uma das mais fiéis seguidoras do Mestre, enquanto também Este testemunhava por Madalena e por tantas mulheres excluídas dos espaços públicos. A atitude revolucionária de Jesus, em relação às mulheres do Seu tempo incomodava e segue incomodando práticas e concepções patrimonialistas de ontem e de hoje...

Em  seguida, ainda nos primeiros séculos, não faltaram episódios semelhantes, no que se refere à busca de poder pessoal e corporativo, entre os que se diziam seguidores de Jesus. Isto se deu, de várias maneiras, inclusive pela impossição de privilégios a um grupo de teólogos, que não esitou em ditar normas, em busca de uma uniformização da doutrina cristã, ao excluírem como inválidas muitas narrativas populares do Evangelho.

Nos séculos seguintes, sobretudo graças ao  crescente processo de helenização do núcleo da mensagem evangelica, em virtude da qual privilegiam-se princípios, normas e conceitos doutrinários, , em prejuízo das práticas comunitárias do Cristianismo primitivo e do próprio Seguimento de Jesus.  Principalmente, a partir o século IV, com o projeto constantiniano de cristianização do Império Romano, esse grupo de hierarcas vai assumindo um papel preponderande, na tomada de decisões favoráveis ao seu intento de controle da Cristandade.

Teólogos como José Comblin, Eduardo Hoornaert e outros, em suas pesquisas de reconhecida contribuição a uma leitura crítica da Cristandade, trazem a lume diversos episódios mostrando o distanciamento progressivo da mensagem evangélica e neotestamentária, por parte de um grupo de hierarcas, em busca de fazer prevalecer suas decisões que lhes conferiam privilégios em relação ao conjunto do povo cristão, tendo inclusive alimentado uma interpretação distanciada claramente do Evangelho, como no caso relatado tanto por José Comblin, em seu livro “A Força da Palavra”  quanto  por Eduardo Hoornaert.  Comblin, por exemplo, afirma: “Por intermédio de S. Agostinho e dos escolásticos medievais, sobretudo de S. Tomás de Aquino, a teologia ocidental foi também uma tentativa sempre renovada de exprimir o cristianismo nas categorias do pensamento do helenismo. Pelo menos no Ocidente essa foi a influência dominante.” (COMBLIN, J. A Força da Palavra..., p.71). Por sua vez, Hoornaert em seu livro “A Memória do Povo Cristão”: “Ao contrário do famoso texto de Mt 11,25 que fala do segredo revelado aos pequenos e escondido aos sábios, Clemente de Alexandria proclama o segredo revelado aos sábios (Strom. 6,115,1). É de se estranhar que uma doutrina tão claramente oposta aos enunciados evangélicos não tenha sido condenada pela Igreja.” (p.131). Para tanto, serviu-lhes de inspiração eficaz um crescente esforço de helenização, à medida que objetivamente substituiam critérios fundamentais característicos do Movimento de Jesus, a exemplo da primazia dos pobres e marginalizados, bem como da prevalência do agir sobre o discurso (“Não são aqueles que dizem: ´Senhor, Senhor´... mas aqueles que fazem a vontade do Meu Pai”... “Este povo Me louva com a boca, mas seu coração está longe de Mim.”!). Não adianta investir numa posição nominalista, fundada sobretudo em artifícios retóricos e conceituais... Todavia, não é bem isto o que temos observado. O poder-dominação é que tem sido a marca mais frequente, na caminhada das Igrejas cristãs, inclusive a Católica Romana. Por outro lado, ontem como hoje, as “minorias abraâmicas” seguem cumprindo sua vocação profético-missionária ainda que como vozes clamando no deserto, pois acreditam que, pela  força da Palavra, “o deserto é fértil”.
Nas linhas que seguem, trataremos de refletir, a partir de episódios de ontem e de hoje, distintas manifestações pessoais e comunitárias de cristãos e cristãs, no dia a dia de sua vida, tanto no mundo, quanto nos espaços eclesiais, hora agindo na perspectiva do poder-dominação, hora atuando como “fermento na massa”, na perspectiva do carisma profético-missionário. 

Implicações concretas da indistinção entre reino e instituição
Já tivemos oportunidade de refletir sobre a fecundidade de categorias experienciais. Aqui, destacamos as seguintes: “Reino de Deus”, “Instituições eclesiásticas”, “Carisma” e “Poder”. A indistinção ou confusão dessas categorias tem provocado e continuará provocando graves equívocos, como tem acontecido, ao longo da história da Cristandade. A grande ênfase do Evangelho e demais textos neotestamentários incide no  anúncio e na inauguração  do Reino de Deus, testemunhados por Jesus e Seus seguidores. Nos textos evangélicos, percebemos, com efeito, que Jesus vem fundamentalmente anunciar e inaugurar o Reino de Deus. Não é à-toa que esta categoria experiencial  aparece (seja como “Reino de Deus” ou “Reino dos Céus”) perto de cem vezes, nos textos neotestamentários, sendo cerca da metade nos textos evangélicos, enquanto “Igreja” em torno de cinquenta vezes. E de que significado(s) vem aí revestida a expressão “Reino de Deus” (ou “Reino dos Céus”)? Vejamos, de passagem, alguns desses significados emprestados por passagens neotestamentárias, em especial dos textos evangélicos.
- O Reino de Deus (e não necessariamente a(s) instituições eclesiástica(s)) é “a” grande prioridade de Jesus: “Procurem, antes de tudo, o Reino de Justiça, e tudo o mais lhes será dado por acréscimo.” (Mt 6, 13);
- Sendo “a” prioridade, vale a pena fazer de tudo, para alcançá-lo: “O Reino dos Céus é como um tesouro escondido no campo (...) um homem vende tudo que tinha, e o adquire” (Mt 13, 44);
- Não é por acaso que o Reino de Deus constitui um componente essencial da Oração do Pai Nosso; “Venha o Teu Reino, faça-se Tua vontade...” (Mt 6, 10);
- Vontade que o Enviado do Pai cuida de cumprir, com perseverança, ao longo de Sua vida, mesmo quando sua postura profundamente ( também ) humana suscitava dúvida de Quem Ele fosse, como sucedeu, no episódio em que João Lhe envia seus discípulos para perguntar-Lhe se era mesmo Ele o enviado do Pai. Aos quais Ele responde: “Voltem e digam a  João o que vocês estão vendo e ouvindo:  os cegos vêem, os aleijados andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa Nova é anunciada aos pobres.”
Vale, também, a pena destacarmos alguns efeitos (positivos ou negativos), conforme obedeçamos ou resistamos ao que o Espírito Santo, Sopro Fontal, nos inspira, tanto pessoalmente como comunitariamente, enquanto Povo de Deus ou enquanto sociedade civil.
- No campo pastoral
- No campo missionário – Em meados dos anos 80, ao frequentar um templo católico, na França (Élglise Saint Albert le Grand, num bairro vizinho ao da Cité Universitaire), chamava-me a atenção um grande letreiro aposto numa parede interna daque templo: “Appelés... envoyés” (Chamados... enviados). Ajudava-me a rememorar o cerne da vocação da Tradição de Jesus, que nos propõe tornarmo-nos (ou irmos tornando-nos) Seus discípulos/discípulas-missionários/missionárias, como vem inscrito, a cada semana, na folha litúrgica compartilhada pelo Pe. Reginaldo Veloso, presbítero das CEBs. Aquele letreiro me remetia a um sem-número de fecundas experiências missionárias, espalhadas pelo mundo, inclusive na Europa – desperta-me, por exemplo, atenção a saga dos padres operários  (de alguns dos quais me tornei amigo, dentre os quais Pierre Jourdanne – dos Filhos da Caridade, mesma comunidade da qual fazia parte também o Pe Alfredinho, Alfredo Kuntz, cujo trabalho com as vítimas da prostituição, em Crateús - Ceará, se tornaria emblemático (cf. depoimento seu, acessando-se o “linik”:
 Chamados e chamadas; e enviados enviadas pelo Espírito do Resssuscitado, a anunciar – mais pelo testemunho do que pela pregação, a Boa Notícia aos que se acham sufocados por multiformes grilhões e masmorras da opressão, da exploração, da marginalização. Eis o campo de missão proposto pela Tradição de Jesus aos seus discípulos/discípulas-missionários/missionárias. Desafio ao qual muita gente se dispõe a responder, com generosidade e fidelidade ao Espírito do Evangelho, ontem como hoje.

Sucede, por outro lado, que isto nem sempre acontece, e, em determindas épocas ou circunstâncias, os cenários se tornam ainda mais ambivalentes e contraditórios. Temos a tendência de pretender que as coisas sejam sempre lineares – ou de todo boas, ou de todo más. A vida dos humanos não é assim. As coisas vêm misturadas, a partir de nós mesmos, de nós mesmas.

Em meados dos anos 90, num desses encontros de confraternização entre membros de congregações religiosas ou de missionários e missionárias não-nascidos no Brasil, tive ocasião de participar, como convidado, de um destes encontros, em João Pessoa – Paraíba. Tratava-se de um encontro de avaliação fraterna da caminhada missionária no Brasil, com a participação daqueles membros, alguns dos quais já contavam décadas de missão, no Nordeste brasileiro. A ênfase, então, era de uma certa euforia sobre os resultados. Eis que chega um outro convidado, um missionário belga, chegado ao Brasil, em 1958, um teólogo de densa produção e sobretudo de fecundas iniciativas missionárias, em especial no campo da formação: tratava-se do Pe. José Comblin. Ao observar o quadro de giz com registros de saldos alvissareiros, disse que iria apagar aquele quadro, que traduzia antes o consciente, e cuidaria de trazer à baila, antes, coisas do inconsciente. E pôs-se a fazer considerações incômodas sobre o inconsciente colonizador que, por vezes, tomam a cena de figuras missionárias. E assim se pôs a relembrar situações e experiências que, mesmo tendo a marca de missionárias, pareciam mais próximas do espírito colonizador, a sinalizar, a despeito de um discurso ortodoxo, uma extensão de sua cultura original, antes que uma missão imbuída da radical fraternidade evangélica.

Enfrentamos, por certo, situações paradoxais: as coisas são misturadas... Em meio a paradoxos, impasses e contradições,  importa sempre buscar localizar e interpretar, também, os sinais portadores da presença viva e vivicante do Sopro fontal, do Espírito Santo, na história, em nossa caminhada, desde o chão de nosso cotidiano.  Aqui me vêm ao espírito cenas bem edificantes, das quais foram e são protagonistas tantas leigas e leigos vivendo no anonimato, a testemunharem o acontecer do Reino de Deus, em suas vidas e e na vida de suas comunidades. Como em tantas partes do Nordeste, do Brasil, da América Latina, da África e demais continentes, há tanta gente simples, a fazer coisas maravilhosas! Há tantas Marias, Anas, Josés (um deles: Zé Duda, de Jataúba – PE), como também há gente mais conhecida pelo seu testemunho, comunidades e pessoas, tais como: Pe.Ibiapina, Pe. José Comblin, Dom Fragoso, Alfredinho, Irmã Geneviève, Irmã Dorothy, Irmã Almeidinha, Frei Roberto, Pe.Vicente, as Pequenas Comunidades de Religiosas Inseridas no Meio Popular... a lista segue, com a rememoração instantânea de cada pessoa, de cada comunidade...   

Mas, sempre tendo consciência de tantos riscos, alguns de uma extraordinária força destrutiva, aos quais estão sujeitos os missionários e missionárias, nascidos ou não no Brasil. De fato, as coisas são mesmo misturadas, a demandarem, da parte de todos e de cada um, de cada uma, uma constante vigilância e oração, como meio de nos despertar - a todos e cada um, cada uma -  de que “Não foram vocês que Me escolheram, mas fui Eu que os escolhi, para que vocês vão e produzam fruto, e o seu fruto permaneça.” (Jo 15, 16).
 Trata-se de riscos concretos, que enfrentamos também nos dias de hoje. Não raramente, sob tantas formas sedutoras – da “liturgia dos panos”, da “liturgia da fumaça” de iniciativas pomposas, de um ar angelical, de uma retórica sedutora – e disto a mídia religiosa nos fornece tristes exemplos... -, corremos o risco de, em vez de anunciar a Boa Nova do Reino de Deus, com senso crítico e discernimento, acabamos reeditando práticas e concepções que, objetivamente, têm mais a ver com atitudes idolátricas do que propriamente com o cerne da mensagem de Jesus: “ Este povo me honra com os lábios, mas longe de Mim está o seu coração.” ( Mt 15,8 ).

  * Reino de Deus, à luz do Movimento de Jesus: questionamentos em tempos tenebrosos

Das questões acima enunciadas, cuidamos de extrair algumas lições que nos ajudem a enfrentar e ir superando, à luz da Tradição de Jesus, os paradoxos e impasses que se interpõem à nossa caminhada, na perspectiva do  Reino de Deus, de modo a fortalecer nossos carismas e a nos tornarmos mais vigilantes e atentos aos sinais dos tempos, diante dos crescentes riscos e das armadilhas do poder-dominação. Sirmvam-nos, para tatnto, alguns questionametos, tanto em relação à sociedade civil, como em relação à(s) Igreja(s).

= Em relação à sociedade civil

- A grave e multiforme crise que experimentamos foi (e é) acompanhada ou antecedida de vários sinais, ao nosso alcance. Temos dado suficiente atenção, e sobretudo levado a sério tais sinais, antes que a tragédia se consuma(sse)?

- Que condições objetivas e subjetivas permitiram que chegássemos a tal ponto? 

- Suficientemente atentos aos fatores externos desta crise, será que também tivemos ou temos alguma parcela de responsabilidade, na produção da mesma? Estamos mesmo dispostos a enfrentar esta tarefa autoavaliativa? Quando? Como? Com que propósito?

 - Que avaliação fazemos de nosso progressivo distanciamento dos núcleos de base, substituindo-os pela sede de ocupação dos espaços estatais? (Aos movimetnos populares, em Santa Cruz de la Sierra, o Papa Francisco afirmou prefere “gerar processos” a “ocupar posições”...);

- E quanto à saudável alternância entre funções de coordenação e animação desde a base, quê temos a dizer?

- Onde estacionamos, no processo formativo, que segue e seguirá essencial, não apenas para as lideranças como também para osmembros de base?
- Quê temos a refletir sobre certa tendência observável, de deixarmos a alguns as decisões que são de todos?

- Quê lugar têm, entre nós, as tarefas formativas, inclusive de estudo de nossos bons clássicos e contemporâneos?

- Temo-nos empenhado na renovação de nossos assessores, a partir da formação de própria moçada?

- E quanto ao nosso estilo de vida, é bem próximo daqule de nossa gente?


   = Em relação à(s) Igreja(s):

- A despeito de incessantes sinais da presença e da ação viva e vivicante do Espírito Santo, Sopro fontal, constatamos, com tristeza, a indisposição de ouvirmos o que Ele tem a dizer à(s) Igreja(s), que, no entanto, seguem teimando, em vão, controlá-Lo. Até quando vai durar nossa dureza de coração, mesmo diante de gestos proféticos acenados pelo Bispo de Roma, uma voz no deserto?  

- O Sopro fontal nos inspira ações e atitudes de conversão ao Seguimento de Jesus. Por que teimamos em seguir as trilhas normóticas do poder-dominação, em vez de ensaiarmos passos no exercício do poder-diaconia?

- O Sopro fontal nos convida ao processo de conversão contínua. Por que fincamos pé em nos contentar com as estruturas perversas deste mundo?


João Pessoa, 19 de julho de 2017




sábado, 8 de julho de 2017

INDAGAÇÕES DE QUEM ESPERA CONTRA TODA ESPERANÇA: categorias experienciais portadoras de potencialidades reinventivas

INDAGAÇÕES DE QUEM ESPERA CONTRA TODA ESPERANÇA: categorias experienciais portadoras de potencialidades reinventivas

Alder Júlio Ferreira Calado

Em épocas tenebrosas de organização societal (e outras  situações, similarmente sombrias), temos, não raro, a impressão de que inexistem saídas. Então, o desespero bate à porta, mais facilmente. E pior: quem assim avalia, ainda tem a pretensão de estar lidando com dados de realidade. Até certo ponto, isto pode mesmo acontecer, mas apenas como uma face - ainda que a mais visível - da realidade. Não explica, contudo, toda a realidade, sempre bem mais complexa do que aparece aos nossos olhos. A inteireza do  objeto cognoscível sempre escapa à ingênua pretensão dos sujeitos cognoscentes (pessoais e coletivos: é que a realidade sempre comporta um componente de imponderabilidade... Com efeito, em sua complexidade e vastidão, a realidade  apresenta facetas menos visíveis ou mesmo (quase) invisíveis.

Quantas vezes, ao longo da história, quando tudo parecia já dado, eis que irrompe  o imponderável?! E isto nada tem a ver com fatalidade, com as forças cegas do que se chama destino. Tem, antes, a ver com nossos limites (pessoais e coletivos) de compreender o “todo” da realidade concreta, inclusive da realidade histórica. Quantas vezes, não sofremos do limite de estarmos mais propensos a perceber deteminados sinais da história do que outros tidos como aparentemente menos relevantes?! E, no entanto, chega uma hora, em que aqueles sinais antes considerados desprezíveis ou menos relevantes assumem a dianteira dos acontecimentos, pelo seu acúmulo e maturação...

Sucede, por outro lado, que, sob a alegação de que as mudaças históricas acontecem, “de qualquer modo”, corremos o risco de sucumbir à ingenuidade de cruzarmos os braços, à espera de que o imponderável irrompa “ex nihilo”, como uma fatalidade... Sem negar o reconhecimento de certa incidência do acaso, o imponderável desponta, não raramente, como expressão e resultado de um acúmulo e maturação de acontecimentos que se passam, antes, nas “correntezas subterrâneas”: aquelas experiências moleculares que foram ininterruptamente levadas a cabo, a certa altura do tempo, eclodem, manifestam-se nas águas de superfície.

Aqui me vêm à lembrança vários episódios recentes e menos recentes, dentre os quais a brava saga de Gregório Bezerra, ainda criança, criada pela avó, nas cercanias de Panelas, no Agreste pernambucano. Uma criança, em meados da década de 1900 (ele é exatamente de 1900), vivendo os rigores de grande seca, lá ia aquela criança, movida a paixão pelo seu povo e por criatividade, a perscrutar obstinadamente sinais de água, algum filete de água de fonte... E, como "quem procura, encontra", também Gregório encontrou. Quedo-me a imaginar o deslumbramento daquela gente com o milagroso achado da criança... (cf. Memorias, de Gregório Bezerra). Mais recentemente, sobretudo em junho de 2013, irromperam grandes manifestações de massa, a ganharem as ruas de todo o país, clamando por mudanças, sem que houvesse aí o habitual protagonismo de movimentos sociais (sindicais e populares) a conduzirem tais irrupções, trazendo alguma surpresa para os sujeitos históricos convencionalmente tidos como principal fonte articuladora. Este são apenas dois minusculos exemplos dentre tantos  registrados, no curso da história que nos ajudam a perceber para além dos determinismos.



De modo semelhante, cabe-nos ensaiar uma leitura da realidade histórica que, buscando ser fiel aos acontecimentos concretos do dia-a-dia, permita manter-nos  sempre abertos a surpresas que ela, por vezes, nos oferece, mas não sem nossa disposição de percebê-los interpretá-los adequadamente e toma-los a sério.

O proposito dessas notas é o de destacar algumas categorias experiênciais que nos ajudem a pontencializar o ensaio de passos, na direção almejada.

Para tanto, socorremo-nos também de alguns clássicos e contemporaneos de reconhecida contribuição, nesta aventura.

* Que tal beber (também) na fonte de nossa ancestralidade? -  Sendo, ao mesmo tempo, e de forma complementar, Natureza e Cultura, somos chamados, no processo de humanização, a tomar consciência e a agir adequadamente, como tecelões e tecelãs dessa bendita relação, de modo a, de um lado, bem distinguir cada um desses pólos de relação, e, por outro lado, a bem articulá-los, enquanto fios da malha das relações  existenciais do dia-a-dia. Tomar consciência desta duppla condição  significa sentirmo-nos irmanados com toda a comunidade dos viventes de nosso Planeta e com o Cosmo, em sua extraordinária pluriversidade. Tomando consciência de, e assumindo nossa condição de  partículas cósmicas, nos tornamos mais humildes, menos vorazes e menos ávidos de pretensos “donos” da Natureza. Sentimo-nos Natureza, marcados, em grande parte, pelos traços que caracterizam outros animais, os vegtetais e os minerais, de que somos formados e que carregamos presentes em nosso corpo e em nosso espírito, desde as origens do nosso Planeta. Carregamos, conscientemente ou não, as energias que movem os diferentes membros do nosso Planeta, irmanados por uma profunda carga sinergética  que em nós se reflete e em nós atua, inclusive, por meio do exercício da memória dos nossos ancestrais. Tal característica nos faz sentir unidos a tantos outros viventes e à Mãe-Terra, de tal maneira que as agressões cometidas contra a Mãe-Terra e quaisquer de seus membros ressoam no mais íntimo de nós. Assim, somos chamados a tomar certa distância crítica de certo pretensão de assenhoramento da Mãe-Terra e dos demais viventes, donde certa desconfiança saudável com relação a determinada interpretação do conceito de “hominização” (aqui se acentuando o genitivo “hominis”, denotando-se uma relação de posse, de pertencimento, tendendo a um antropocentrismo), no sentido de uma apropriação pelos humanos do conjunto dos viventes da Terra.  Trabalhar, dia após dia, pessoal e coletivamente, essa relação, de modo adequado, ou seja, numa perspectiva de parceria e complementaridade  – eis um grande desafio para nós, hoje. Da forma como venhamos a assumir esta relação, vamos sendo capazes de promover uma con-vivência saudável, amorosa, harmoniosa e complementar entre os humanos, e destes em relação com os demais viventes.

Distinguir e cuidar de cada um desses pólos (Natureza e Cultura) significa assegurar condições de um processo de humanização, na perspectiva de sua plenitude – Uma vez reconhecida nossa dupla condição – de Natureza e Cultura -, importa-nos ter presente qual nosso papel concreto em cada uma dessas dimensões. Enquanto seres de Natureza, muito temos a celebrar da vida, de nossas carências, de nossos limites, do nosso inacabamento, bem como de nossas potencialidades enquanto animais. Aqui é enorme o leque de aspectos a aprender e a a exercitar, de nossa parceria com os animais, com as plantas, com os minerais. Muito a aprender da água, do ar, do fogo, da terra, das pedras (Num de seus depoimentos, pouco antes de ser assassinado, o Cacique Xicão Xukuru, lembrava que as pedras eram os ossos da Mãe-Terra, enquanto a água era seu sangue e a floresta, seus cabelos...). Quanto aprendemos dos parceiros animais! De sua luta pela vida, de sua convivência, de seu modo de colocar-se ante os perigos, de suas estratégias de defesa, de sua extraordinária sensibilidade aos mínimos sinais... E o que dizer da gesta e dos feitos de nossos antepassados humanos? Quanto aprendizado! Pois bem, hoje somos os herdeiros dessa ancestralidade, sentindo-nos a eles unidos, portadores de densa sinergia, que nos move a (con)viver e a promover a vida, em todas as suas manifestações. E, hoje, o famezmo, com enormes vantagens, pelas experiências secularmente, milenarmente acumuldadas?!..

No pólo especificamente humano, a grande diferença – ainda que complementar – é conferida pelo universo da Cultura, ambiente que permite vantaens e características exponenciais, em comparação com o mundo dos demais viventes. No plano da Cultura, é que as diferenças se acentuam, em benefício dos humanos: a criticidade, a autoconsciência, a criatividade, a inventividade, a capacidade de planejar, de avaliar, de mover-se no diversificado campo das artes, não apenas como usuário, como fruidor, mas também como produtor. No terreno cultural, os humanos se mostram seres vocacionados à Liberdade, capazes de assumir valores éticos de conduta pessoal e coletiva. É graças à Cultura, que os humanos se tornam capazes de resistir exitosamente os mais complexos desafios econômicos, políticos e de outra natureza. É graças à Cultura, que os humanos são capazes de desenhar e materizalizar distintos modos de produção, de consumo e de gestão societal. É pela força criadora da Cultura, que os humanos vão se tornando capazes de incessantes mudanças, no plano pessoal e no plano coletivo. Enquanto os demais seres viventes se restringem ao que se acha posto em seu DNA, são seres pré-programados, os humanos, por seu turno, são capazes de irem forjando seu (co)existir, em busca de plenitude. A depender de suas escolhar... Diversamente dos demais seres viventes, os humanos podem fazer-se perguntas do tipo da que se segue.

* Resignar-nos ante os impasses ou ensaiar passos em direção ao “inédito viável”? -


*  O que signfica manter-nos em “estado de busca” – Fecundas iniciativas de que se tem notícia,  irrompem de uma atitude de espírito, de uma contínua prontidão e de atenção aos múltiplos e sucessivos sinais qie a vida e a história não cessam de nos oferecer, desde nossas relações do chão do  dia-a-dia. Não basta que se produzam tais sinais. Se não há quem os capte, resultam culturalmente inócuos. Sua fecundidade  e sua eifcácia transformadoras brotam fundamentalmente de um permanente estado de busca, de uma prontidão de espírito, de uma contínua vigilância, como condição para nos darmos conta da existência de tais sinais. O teólogo José Comblin, em seu livro Um novo amanhecer para a Igreja? (Paulus, 2001) alude a esta atitude de vigilância, ao rememorar o hábito, em antigas cidades cercadas por muralhas, tendo na guarita um vigilante, a observar para fora da cidadela, e a quem perguntavam: “Custos, quid de nocte?” (Houve alguma novidade, durante a noite, Vigia? Vigia?). Episódio parecido é descrito em Isaías, 21. Sem esta disposição de nos pormos à escuta, à observação persistente, em especial em tempos tenebrosos, dos sinais mais sutis, não apenas não iremos longe, como podemos deparar-nos, tardiamente, com trágicas surpresas. Importa, pois, manter-nos despertos. Ernst Bloch falava do “sonho desperto”... Manter-nos em estado de busca! 

* Aprimoramento de nossa capacidade perceptiva dos sinais dos tempos O próprio estado de busca, tendo em vista o aumento de sua eficácia, implica um outro esforço: o de constante aprimoramento da capacidade perceptiva dos sinais. Com efeito, ler, interpretar, compreender os sinais constituem aquisição, fruto de empenho constante, de um lado, e, de outro, de incessante aprimoramento dos sentidos, em especial se e quando bem articulados: ver, ouvir, tocar, cheirar, degustar, sentir, intuir – cada um deles, e em seu conjunto, temos que exercitar, como instrumentos progressivamente aprimorados na captação dos mais distintos sinais. Neste ensaio, recorremos tanto às potencialidades da Natureza quanto às da Cultura, sempre tendo como bússola o “inédito viável”, ou seja, a incessante busca de fazer acontecer, desde já – ainda que de forma molecular – os sonhos que alimentamos, tanto em relação a um novo modo de produção, quanto a um novo modo de consumo e um novo modo de gestão societal.

João Pessoa, 08 de julho de 2017.