Alder Júlio Ferreira Calado
Acompanhando o esforço hercúleo de Francisco, Bispo de Roma, de mexer
minimamente na engrenagem do poder curial, quedamo-nos perplexos com a
resistência (quase) invencível oposta por cardeais da Cúria romana, porta-vozes
de poderosas forças reacionárias de dentro e de fora dos espaços eclesiásticos,
a qualquer tentativa de mudança, que ameace minimamente seus privilégios.
Este é apenas um de numerosas e sucessivas iniciativas pouco ou mal sucedidas,
ao longo da Cristandade. Nem o concílio Vaticano II, concluído há meio século
atrás, logrou êxito, em várias s de suas conclusões. Desde sua convocação, pelo
Papa João XXIII, e durante e após sua realização, eis que se lhe opuseram
significativas, forças reacionárias.
Remontam aos tempos apostólicos – e aprofundando-se, ao
longo da Cristandade - as tensões entre carisma e poder. Diante da proposta
desinstaladora de Jesus de Nazaré, e sobretudo diante de sua prática
desinstalada e desinstaladora, mesmo seus primeiros seguidores tiveram
posicionamentos diferenciados. Da parte de alguns, não faltaram palavras e
arroubos de adesão, enquanto suas práticas contradiziam seus propósitos
declarados. Algumas cenas resultaram bem conhecidas, tais como aquela, em que
Thiago e João, dando prova de que nada entenderam da proposta do Mestre, têm a
petulância de pedir a Jesus sua parte no poder: “Nisso Tiago e João, filhos de
Zebedeu, aproximaram-se dele e disseram: ‘Mestre, queremos que nos faças o que
vamos te pedir’. ‘O que vocês querem que eu faça?’, perguntou ele. Eles
responderam: ‘Permite que, na tua glória, nos assentemos um à tua direita e o
outro à tua esquerda’.” (Mc 10, 35-37). A sede de poder foi de tal
ordem, a implicar um certo descarte, pelos próprios dissípulos de
Jesus, da figura de Maria Madalena, uma das mais fiéis seguidoras
do Mestre, enquanto também Este testemunhava por Madalena e por tantas mulheres
excluídas dos espaços públicos. A atitude revolucionária de Jesus, em relação
às mulheres do Seu tempo incomodava e segue incomodando práticas e concepções
patrimonialistas de ontem e de hoje...
Em seguida, ainda nos primeiros séculos, não faltaram episódios
semelhantes, no que se refere à busca de poder pessoal e corporativo, entre os
que se diziam seguidores de Jesus. Isto se deu, de várias maneiras, inclusive
pela impossição de privilégios a um grupo de teólogos, que não esitou em ditar
normas, em busca de uma uniformização da doutrina cristã, ao excluírem como
inválidas muitas narrativas populares do Evangelho.
Nos séculos seguintes, sobretudo graças ao crescente processo de
helenização do núcleo da mensagem evangelica, em virtude da qual privilegiam-se
princípios, normas e conceitos doutrinários, , em prejuízo das práticas
comunitárias do Cristianismo primitivo e do próprio Seguimento de Jesus.
Principalmente, a partir o século IV, com o projeto constantiniano de cristianização
do Império Romano, esse grupo de hierarcas vai assumindo um papel
preponderande, na tomada de decisões favoráveis ao seu intento de controle da
Cristandade.
Teólogos como José Comblin, Eduardo Hoornaert e outros, em suas
pesquisas de reconhecida contribuição a uma leitura crítica da Cristandade,
trazem a lume diversos episódios mostrando o distanciamento progressivo da
mensagem evangélica e neotestamentária, por parte de um grupo de hierarcas, em
busca de fazer prevalecer suas decisões que lhes conferiam privilégios em
relação ao conjunto do povo cristão, tendo inclusive alimentado uma
interpretação distanciada claramente do Evangelho, como no caso relatado tanto
por José Comblin, em seu livro “A Força da Palavra” quanto
por Eduardo Hoornaert. Comblin, por exemplo, afirma: “Por intermédio de
S. Agostinho e dos escolásticos medievais, sobretudo de S. Tomás de Aquino, a
teologia ocidental foi também uma tentativa sempre renovada de exprimir o
cristianismo nas categorias do pensamento do helenismo. Pelo menos no Ocidente
essa foi a influência dominante.” (COMBLIN, J. A Força da Palavra...,
p.71). Por sua vez, Hoornaert em seu livro “A Memória do Povo Cristão”:
“Ao contrário do famoso texto de Mt 11,25 que fala do segredo revelado aos
pequenos e escondido aos sábios, Clemente de Alexandria proclama o segredo
revelado aos sábios (Strom. 6,115,1). É de se estranhar que uma doutrina tão
claramente oposta aos enunciados evangélicos não tenha sido condenada pela
Igreja.” (p.131). Para tanto, serviu-lhes de inspiração eficaz um crescente
esforço de helenização, à medida que objetivamente substituiam critérios
fundamentais característicos do Movimento de Jesus, a exemplo da primazia dos
pobres e marginalizados, bem como da prevalência do agir sobre o discurso (“Não
são aqueles que dizem: ´Senhor, Senhor´... mas aqueles que fazem a vontade do
Meu Pai”... “Este povo Me louva com a boca, mas seu coração está longe de
Mim.”!). Não adianta investir numa posição nominalista, fundada sobretudo em
artifícios retóricos e conceituais... Todavia, não é bem isto o que temos
observado. O poder-dominação é que tem sido a marca mais frequente, na
caminhada das Igrejas cristãs, inclusive a Católica Romana. Por outro lado,
ontem como hoje, as “minorias abraâmicas” seguem cumprindo sua vocação
profético-missionária ainda que como vozes clamando no deserto, pois acreditam
que, pela força da Palavra, “o deserto é fértil”.
Nas linhas que seguem, trataremos de refletir, a partir de episódios de
ontem e de hoje, distintas manifestações pessoais e comunitárias de cristãos e
cristãs, no dia a dia de sua vida, tanto no mundo, quanto nos espaços
eclesiais, hora agindo na perspectiva do poder-dominação, hora atuando como
“fermento na massa”, na perspectiva do carisma profético-missionário.
* Implicações concretas da indistinção entre reino e instituição
Já tivemos oportunidade de refletir sobre a fecundidade de categorias
experienciais. Aqui, destacamos as seguintes: “Reino de Deus”, “Instituições
eclesiásticas”, “Carisma” e “Poder”. A indistinção ou confusão dessas
categorias tem provocado e continuará provocando graves equívocos, como tem
acontecido, ao longo da história da Cristandade. A grande ênfase do Evangelho e
demais textos neotestamentários incide no anúncio e na inauguração do
Reino de Deus, testemunhados por Jesus e Seus seguidores. Nos textos
evangélicos, percebemos, com efeito, que Jesus vem fundamentalmente anunciar e
inaugurar o Reino de Deus. Não é à-toa que esta categoria experiencial
aparece (seja como “Reino de Deus” ou “Reino dos Céus”) perto de cem
vezes, nos textos neotestamentários, sendo cerca da metade nos textos
evangélicos, enquanto “Igreja” em torno de cinquenta vezes. E de que
significado(s) vem aí revestida a expressão “Reino de Deus” (ou “Reino dos
Céus”)? Vejamos, de passagem, alguns desses significados emprestados por
passagens neotestamentárias, em especial dos textos evangélicos.
- O Reino de Deus (e não necessariamente a(s) instituições
eclesiástica(s)) é “a” grande prioridade de Jesus: “Procurem, antes de tudo, o
Reino de Justiça, e tudo o mais lhes será dado por acréscimo.” (Mt 6, 13);
- Sendo “a” prioridade, vale a pena fazer de tudo, para alcançá-lo: “O
Reino dos Céus é como um tesouro escondido no campo (...) um homem vende tudo
que tinha, e o adquire” (Mt 13, 44);
- Não é por acaso que o Reino de Deus constitui um componente essencial
da Oração do Pai Nosso; “Venha o Teu Reino, faça-se Tua vontade...” (Mt 6, 10);
- Vontade que o Enviado do Pai cuida de cumprir, com perseverança, ao
longo de Sua vida, mesmo quando sua postura profundamente ( também ) humana
suscitava dúvida de Quem Ele fosse, como sucedeu, no episódio em que João Lhe
envia seus discípulos para perguntar-Lhe se era mesmo Ele o enviado do Pai. Aos
quais Ele responde: “Voltem e digam a João o que vocês estão vendo e
ouvindo: os cegos vêem, os aleijados andam, os leprosos são curados, os
surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa Nova é anunciada aos pobres.”
Vale, também, a pena destacarmos alguns efeitos (positivos ou
negativos), conforme obedeçamos ou resistamos ao que o Espírito Santo, Sopro
Fontal, nos inspira, tanto pessoalmente como comunitariamente, enquanto Povo de
Deus ou enquanto sociedade civil.
- No campo pastoral
- No campo missionário – Em meados dos anos 80, ao frequentar um templo católico, na França
(Élglise Saint Albert le Grand, num bairro vizinho ao da Cité Universitaire),
chamava-me a atenção um grande letreiro aposto numa parede interna daque
templo: “Appelés... envoyés” (Chamados... enviados). Ajudava-me a rememorar o cerne
da vocação da Tradição de Jesus, que nos propõe tornarmo-nos (ou irmos
tornando-nos) Seus discípulos/discípulas-missionários/missionárias, como vem
inscrito, a cada semana, na folha litúrgica compartilhada pelo Pe. Reginaldo
Veloso, presbítero das CEBs. Aquele letreiro me remetia a um sem-número de
fecundas experiências missionárias, espalhadas pelo mundo, inclusive na Europa
– desperta-me, por exemplo, atenção a saga dos padres operários (de
alguns dos quais me tornei amigo, dentre os quais Pierre Jourdanne – dos Filhos
da Caridade, mesma comunidade da qual fazia parte também o Pe Alfredinho,
Alfredo Kuntz, cujo trabalho com as vítimas da prostituição, em Crateús - Ceará,
se tornaria emblemático (cf. depoimento seu, acessando-se o “linik”:
Chamados e chamadas; e enviados enviadas pelo Espírito do Resssuscitado, a anunciar – mais pelo
testemunho do que pela pregação, a Boa Notícia aos que se acham sufocados por
multiformes grilhões e masmorras da opressão, da exploração, da marginalização.
Eis o campo de missão proposto pela Tradição de Jesus aos seus
discípulos/discípulas-missionários/missionárias. Desafio ao qual muita gente se
dispõe a responder, com generosidade e fidelidade ao Espírito do Evangelho,
ontem como hoje.
Sucede, por outro lado, que isto nem sempre
acontece, e, em determindas épocas ou circunstâncias, os cenários se tornam
ainda mais ambivalentes e contraditórios. Temos a tendência de pretender que as
coisas sejam sempre lineares – ou de todo boas, ou de todo más. A vida dos
humanos não é assim. As coisas vêm misturadas, a partir de nós mesmos, de nós
mesmas.
Em meados dos anos 90, num desses encontros de
confraternização entre membros de congregações religiosas ou de missionários e
missionárias não-nascidos no Brasil, tive ocasião de participar, como
convidado, de um destes encontros, em João Pessoa – Paraíba. Tratava-se de um
encontro de avaliação fraterna da caminhada missionária no Brasil, com a
participação daqueles membros, alguns dos quais já contavam décadas de missão,
no Nordeste brasileiro. A ênfase, então, era de uma certa euforia sobre os
resultados. Eis que chega um outro convidado, um missionário belga, chegado ao
Brasil, em 1958, um teólogo de densa produção e sobretudo de fecundas
iniciativas missionárias, em especial no campo da formação: tratava-se do Pe.
José Comblin. Ao observar o quadro de giz com registros de saldos
alvissareiros, disse que iria apagar aquele quadro, que traduzia antes o
consciente, e cuidaria de trazer à baila, antes, coisas do inconsciente. E
pôs-se a fazer considerações incômodas sobre o inconsciente colonizador que,
por vezes, tomam a cena de figuras missionárias. E assim se pôs a relembrar
situações e experiências que, mesmo tendo a marca de missionárias, pareciam
mais próximas do espírito colonizador, a sinalizar, a despeito de um discurso
ortodoxo, uma extensão de sua cultura original, antes que uma missão imbuída da
radical fraternidade evangélica.
Enfrentamos, por certo, situações paradoxais:
as coisas são misturadas... Em meio a paradoxos, impasses e contradições, importa sempre buscar localizar e interpretar,
também, os sinais portadores da presença viva e vivicante do Sopro fontal, do
Espírito Santo, na história, em nossa caminhada, desde o chão de nosso
cotidiano. Aqui me vêm ao espírito cenas
bem edificantes, das quais foram e são protagonistas tantas leigas e leigos
vivendo no anonimato, a testemunharem o acontecer do Reino de Deus, em suas
vidas e e na vida de suas comunidades. Como em tantas partes do Nordeste, do
Brasil, da América Latina, da África e demais continentes, há tanta gente
simples, a fazer coisas maravilhosas! Há tantas Marias, Anas, Josés (um deles:
Zé Duda, de Jataúba – PE), como também há gente mais conhecida pelo seu
testemunho, comunidades e pessoas, tais como: Pe.Ibiapina, Pe. José Comblin, Dom
Fragoso, Alfredinho, Irmã Geneviève, Irmã Dorothy, Irmã Almeidinha, Frei
Roberto, Pe.Vicente, as Pequenas Comunidades de Religiosas Inseridas no Meio
Popular... a lista segue, com a rememoração instantânea de cada pessoa, de cada
comunidade...
Mas, sempre tendo consciência de tantos
riscos, alguns de uma extraordinária força destrutiva, aos quais estão sujeitos
os missionários e missionárias, nascidos ou não no Brasil. De fato, as coisas
são mesmo misturadas, a demandarem, da parte de todos e de cada um, de cada
uma, uma constante vigilância e oração, como meio de nos despertar - a todos e
cada um, cada uma - de que “Não foram
vocês que Me escolheram, mas fui Eu que os escolhi, para que vocês vão e
produzam fruto, e o seu fruto permaneça.” (Jo 15, 16).
Trata-se de riscos concretos, que
enfrentamos também nos dias de hoje. Não raramente, sob tantas formas sedutoras
– da “liturgia dos panos”, da “liturgia da fumaça” de iniciativas pomposas, de
um ar angelical, de uma retórica sedutora – e disto a mídia religiosa nos
fornece tristes exemplos... -, corremos o risco de, em vez de anunciar a Boa
Nova do Reino de Deus, com senso crítico e discernimento, acabamos reeditando
práticas e concepções que, objetivamente, têm mais a ver com atitudes
idolátricas do que propriamente com o cerne da mensagem de Jesus: “ Este povo
me honra com os lábios, mas longe de Mim está o seu coração.” ( Mt 15,8 ).
* Reino de
Deus, à luz do Movimento de Jesus: questionamentos em tempos tenebrosos
Das questões acima enunciadas, cuidamos de extrair algumas lições que
nos ajudem a enfrentar e ir superando, à luz da Tradição de Jesus, os paradoxos
e impasses que se interpõem à nossa caminhada, na perspectiva do Reino de Deus, de modo a fortalecer nossos
carismas e a nos tornarmos mais vigilantes e atentos aos sinais dos tempos,
diante dos crescentes riscos e das armadilhas do poder-dominação. Sirmvam-nos,
para tatnto, alguns questionametos, tanto em relação à sociedade civil, como em
relação à(s) Igreja(s).
= Em relação à sociedade civil
- A grave e multiforme crise que experimentamos foi (e é) acompanhada ou
antecedida de vários sinais, ao nosso alcance. Temos dado suficiente atenção, e
sobretudo levado a sério tais sinais, antes que a tragédia se consuma(sse)?
- Que condições objetivas e subjetivas permitiram que chegássemos a tal
ponto?
- Suficientemente atentos aos fatores externos desta crise, será que também
tivemos ou temos alguma parcela de responsabilidade, na produção da mesma?
Estamos mesmo dispostos a enfrentar esta tarefa autoavaliativa? Quando? Como?
Com que propósito?
- Que avaliação fazemos de nosso
progressivo distanciamento dos núcleos de base, substituindo-os pela sede de
ocupação dos espaços estatais? (Aos movimetnos populares, em Santa Cruz de la
Sierra, o Papa Francisco afirmou prefere “gerar processos” a “ocupar posições”...);
- E quanto à saudável alternância entre funções de coordenação e
animação desde a base, quê temos a dizer?
- Onde estacionamos, no processo formativo, que segue e seguirá
essencial, não apenas para as lideranças como também para osmembros de base?
- Quê temos a refletir sobre certa tendência observável, de deixarmos a
alguns as decisões que são de todos?
- Quê lugar têm, entre nós, as tarefas formativas, inclusive de estudo
de nossos bons clássicos e contemporâneos?
- Temo-nos empenhado na renovação de nossos assessores, a partir da
formação de própria moçada?
- E quanto ao nosso estilo de vida, é bem próximo daqule de nossa gente?
= Em relação à(s) Igreja(s):
- A despeito de incessantes sinais da presença e da ação viva e
vivicante do Espírito Santo, Sopro fontal, constatamos, com tristeza, a
indisposição de ouvirmos o que Ele tem a dizer à(s) Igreja(s), que, no entanto,
seguem teimando, em vão, controlá-Lo. Até quando vai durar nossa dureza de
coração, mesmo diante de gestos proféticos acenados pelo Bispo de Roma, uma voz
no deserto?
- O Sopro fontal nos inspira ações e atitudes de conversão ao Seguimento
de Jesus. Por que teimamos em seguir as trilhas normóticas do poder-dominação,
em vez de ensaiarmos passos no exercício do poder-diaconia?
- O Sopro fontal nos convida ao processo de conversão contínua. Por que
fincamos pé em nos contentar com as estruturas perversas deste mundo?
João Pessoa, 19 de julho de 2017
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