INDAGAÇÕES
DE QUEM ESPERA CONTRA TODA ESPERANÇA: categorias experienciais portadoras de
potencialidades reinventivas
Alder Júlio Ferreira Calado
Em épocas tenebrosas de organização societal (e outras situações, similarmente sombrias), temos, não
raro, a impressão de que inexistem saídas. Então, o desespero bate à porta,
mais facilmente. E pior: quem assim avalia, ainda tem a pretensão de estar
lidando com dados de realidade. Até certo ponto, isto pode mesmo acontecer, mas
apenas como uma face - ainda que a mais visível - da realidade. Não explica,
contudo, toda a realidade, sempre bem mais complexa do que aparece aos nossos
olhos. A inteireza do objeto cognoscível
sempre escapa à ingênua pretensão dos sujeitos cognoscentes (pessoais e
coletivos: é que a realidade sempre comporta um componente de imponderabilidade...
Com efeito, em sua complexidade e vastidão, a realidade apresenta facetas menos visíveis ou mesmo
(quase) invisíveis.
Quantas vezes, ao longo da história, quando tudo parecia já dado, eis
que irrompe o imponderável?! E isto nada
tem a ver com fatalidade, com as forças cegas do que se chama destino. Tem,
antes, a ver com nossos limites (pessoais e coletivos) de compreender o “todo”
da realidade concreta, inclusive da realidade histórica. Quantas vezes, não
sofremos do limite de estarmos mais propensos a perceber deteminados sinais da
história do que outros tidos como aparentemente menos relevantes?! E, no entanto,
chega uma hora, em que aqueles sinais antes considerados desprezíveis ou menos
relevantes assumem a dianteira dos acontecimentos, pelo seu acúmulo e
maturação...
Sucede, por outro lado, que, sob a alegação de que as mudaças históricas
acontecem, “de qualquer modo”, corremos o risco de sucumbir à ingenuidade de cruzarmos
os braços, à espera de que o imponderável irrompa “ex nihilo”, como uma
fatalidade... Sem negar o reconhecimento de certa incidência do acaso, o
imponderável desponta, não raramente, como expressão e resultado de um acúmulo
e maturação de acontecimentos que se passam, antes, nas “correntezas
subterrâneas”: aquelas experiências moleculares que foram ininterruptamente
levadas a cabo, a certa altura do tempo, eclodem, manifestam-se nas águas de
superfície.
Aqui me vêm à lembrança vários episódios recentes e menos recentes,
dentre os quais a brava saga de Gregório Bezerra, ainda criança, criada pela
avó, nas cercanias de Panelas, no Agreste pernambucano. Uma criança, em meados
da década de 1900 (ele é exatamente de 1900), vivendo os rigores de grande
seca, lá ia aquela criança, movida a paixão pelo seu povo e por criatividade, a
perscrutar obstinadamente sinais de água, algum filete de água de fonte... E,
como "quem procura, encontra", também Gregório encontrou. Quedo-me a
imaginar o deslumbramento daquela gente com o milagroso achado da criança...
(cf. Memorias, de Gregório Bezerra).
Mais recentemente, sobretudo em junho de 2013, irromperam grandes manifestações
de massa, a ganharem as ruas de todo o país, clamando por mudanças, sem que
houvesse aí o habitual protagonismo de movimentos sociais (sindicais e
populares) a conduzirem tais irrupções, trazendo alguma surpresa para os
sujeitos históricos convencionalmente tidos como principal fonte articuladora.
Este são apenas dois minusculos exemplos dentre tantos registrados, no curso da história que nos
ajudam a perceber para além dos determinismos.
De modo semelhante, cabe-nos ensaiar uma leitura da realidade histórica
que, buscando ser fiel aos acontecimentos concretos do dia-a-dia, permita
manter-nos sempre abertos a surpresas
que ela, por vezes, nos oferece, mas não sem nossa disposição de percebê-los
interpretá-los adequadamente e toma-los a sério.
O proposito dessas notas é o de destacar algumas categorias
experiênciais que nos ajudem a pontencializar o ensaio de passos, na direção
almejada.
Para tanto, socorremo-nos também de alguns clássicos e contemporaneos de
reconhecida contribuição, nesta aventura.
* Que tal beber
(também) na fonte de nossa ancestralidade? - Sendo, ao mesmo tempo, e de forma
complementar, Natureza e Cultura, somos chamados, no processo de humanização, a
tomar consciência e a agir adequadamente, como tecelões e tecelãs dessa bendita
relação, de modo a, de um lado, bem distinguir cada um desses pólos de relação,
e, por outro lado, a bem articulá-los, enquanto fios da malha das relações existenciais do dia-a-dia. Tomar consciência
desta duppla condição significa sentirmo-nos
irmanados com toda a comunidade dos viventes de nosso Planeta e com o Cosmo, em
sua extraordinária pluriversidade. Tomando consciência de, e assumindo nossa
condição de partículas cósmicas, nos
tornamos mais humildes, menos vorazes e menos ávidos de pretensos “donos” da
Natureza. Sentimo-nos Natureza, marcados, em grande parte, pelos traços que
caracterizam outros animais, os vegtetais e os minerais, de que somos formados
e que carregamos presentes em nosso corpo e em nosso espírito, desde as origens
do nosso Planeta. Carregamos, conscientemente ou não, as energias que movem os
diferentes membros do nosso Planeta, irmanados por uma profunda carga
sinergética que em nós se reflete e em
nós atua, inclusive, por meio do exercício da memória dos nossos ancestrais.
Tal característica nos faz sentir unidos a tantos outros viventes e à
Mãe-Terra, de tal maneira que as agressões cometidas contra a Mãe-Terra e
quaisquer de seus membros ressoam no mais íntimo de nós. Assim, somos chamados
a tomar certa distância crítica de certo pretensão de assenhoramento da
Mãe-Terra e dos demais viventes, donde certa desconfiança saudável com relação
a determinada interpretação do conceito de “hominização” (aqui se acentuando o
genitivo “hominis”, denotando-se uma relação de posse, de pertencimento,
tendendo a um antropocentrismo), no sentido de uma apropriação pelos humanos do
conjunto dos viventes da Terra. Trabalhar,
dia após dia, pessoal e coletivamente, essa relação, de modo adequado, ou seja,
numa perspectiva de parceria e complementaridade – eis um grande desafio para nós, hoje. Da
forma como venhamos a assumir esta relação, vamos sendo capazes de promover uma
con-vivência saudável, amorosa, harmoniosa e complementar entre os humanos, e destes
em relação com os demais viventes.
Distinguir e cuidar de cada um desses pólos (Natureza e Cultura)
significa assegurar condições de um processo de humanização, na perspectiva de
sua plenitude – Uma vez reconhecida nossa dupla condição – de Natureza e
Cultura -, importa-nos ter presente qual nosso papel concreto em cada uma
dessas dimensões. Enquanto seres de Natureza, muito temos a celebrar da vida,
de nossas carências, de nossos limites, do nosso inacabamento, bem como de
nossas potencialidades enquanto animais. Aqui é enorme o leque de aspectos a
aprender e a a exercitar, de nossa parceria com os animais, com as plantas, com
os minerais. Muito a aprender da água, do ar, do fogo, da terra, das pedras
(Num de seus depoimentos, pouco antes de ser assassinado, o Cacique Xicão
Xukuru, lembrava que as pedras eram os ossos da Mãe-Terra, enquanto a água era
seu sangue e a floresta, seus cabelos...). Quanto aprendemos dos parceiros animais!
De sua luta pela vida, de sua convivência, de seu modo de colocar-se ante os
perigos, de suas estratégias de defesa, de sua extraordinária sensibilidade aos
mínimos sinais... E o que dizer da gesta e dos feitos de nossos antepassados
humanos? Quanto aprendizado! Pois bem, hoje somos os herdeiros dessa
ancestralidade, sentindo-nos a eles unidos, portadores de densa sinergia, que
nos move a (con)viver e a promover a vida, em todas as suas manifestações. E,
hoje, o famezmo, com enormes vantagens, pelas experiências secularmente,
milenarmente acumuldadas?!..
No pólo especificamente humano, a grande diferença – ainda que
complementar – é conferida pelo universo da Cultura, ambiente que permite
vantaens e características exponenciais, em comparação com o mundo dos demais
viventes. No plano da Cultura, é que as diferenças se acentuam, em benefício
dos humanos: a criticidade, a autoconsciência, a criatividade, a inventividade,
a capacidade de planejar, de avaliar, de mover-se no diversificado campo das
artes, não apenas como usuário, como fruidor, mas também como produtor. No
terreno cultural, os humanos se mostram seres vocacionados à Liberdade, capazes
de assumir valores éticos de conduta pessoal e coletiva. É graças à Cultura,
que os humanos se tornam capazes de resistir exitosamente os mais complexos
desafios econômicos, políticos e de outra natureza. É graças à Cultura, que os
humanos são capazes de desenhar e materizalizar distintos modos de produção, de
consumo e de gestão societal. É pela força criadora da Cultura, que os humanos
vão se tornando capazes de incessantes mudanças, no plano pessoal e no plano
coletivo. Enquanto os demais seres viventes se restringem ao que se acha posto
em seu DNA, são seres pré-programados, os humanos, por seu turno, são capazes
de irem forjando seu (co)existir, em busca de plenitude. A depender de suas
escolhar... Diversamente dos demais seres
viventes, os humanos podem fazer-se perguntas do tipo da que se segue.
* Resignar-nos
ante os impasses ou ensaiar passos em direção ao “inédito viável”? -
* O que signfica manter-nos em “estado de busca”
– Fecundas iniciativas de que se tem
notícia, irrompem de uma atitude de
espírito, de uma contínua prontidão e de atenção aos múltiplos e sucessivos
sinais qie a vida e a história não cessam de nos oferecer, desde nossas
relações do chão do dia-a-dia. Não basta
que se produzam tais sinais. Se não há quem os capte, resultam culturalmente
inócuos. Sua fecundidade e sua eifcácia
transformadoras brotam fundamentalmente de um permanente estado de busca, de uma
prontidão de espírito, de uma contínua vigilância, como condição para nos
darmos conta da existência de tais sinais. O teólogo José Comblin, em seu livro
Um novo amanhecer para a Igreja? (Paulus,
2001) alude a esta atitude de vigilância, ao rememorar o hábito, em antigas
cidades cercadas por muralhas, tendo na guarita um vigilante, a observar para
fora da cidadela, e a quem perguntavam: “Custos, quid de nocte?” (Houve alguma
novidade, durante a noite, Vigia? Vigia?). Episódio parecido é descrito em
Isaías, 21. Sem esta disposição de nos pormos à escuta, à observação
persistente, em especial em tempos tenebrosos, dos sinais mais sutis, não apenas
não iremos longe, como podemos deparar-nos, tardiamente, com trágicas surpresas.
Importa, pois, manter-nos despertos. Ernst Bloch falava do “sonho desperto”...
Manter-nos em estado de busca!
* Aprimoramento de nossa capacidade perceptiva
dos sinais dos tempos– O
próprio estado de busca, tendo em vista o aumento de sua eficácia, implica um
outro esforço: o de constante aprimoramento da capacidade perceptiva dos
sinais. Com efeito, ler, interpretar, compreender os sinais constituem
aquisição, fruto de empenho constante, de um lado, e, de outro, de incessante
aprimoramento dos sentidos, em especial se e quando bem articulados: ver,
ouvir, tocar, cheirar, degustar, sentir, intuir – cada um deles, e em seu
conjunto, temos que exercitar, como instrumentos progressivamente aprimorados
na captação dos mais distintos sinais. Neste ensaio, recorremos tanto às
potencialidades da Natureza quanto às da Cultura, sempre tendo como bússola o “inédito
viável”, ou seja, a incessante busca de fazer acontecer, desde já – ainda que
de forma molecular – os sonhos que alimentamos, tanto em relação a um novo modo
de produção, quanto a um novo modo de consumo e um novo modo de gestão
societal.
João Pessoa, 08 de julho de 2017.
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