Alder Júlio Ferreira Calado
Registramos nossa satisfação em constatar, mesmo em uma conjuntura tenebrosa e de refluxo, as ações desenvolvidas por nossas organizações de base, em especial, pelos movimentos sociais populares, nas correntezas subterrâneas. Vibramos com diferentes iniciativas que vêm sendo assumidas por várias dessas organizações. Nestes tempos de crise sanitária (além de tantas outras), vimos como várias destas organizações de base - entre elas, o MST, a CPT, e outras - se portaram solidárias às vítimas da fome, por meio de fornecimento de cestas básicas distribuídas nas favelas e a outras comunidades do Brasil. Enche-nos, também de alegria, acompanhar as ações de vários segmentos de nossa sociedade civil, a exemplo dos coletivos feministas, dos movimentos negros, dos movimentos indígenas, entre outros. Trata-se, em verdade, de um esforço importante, especialmente para a manutenção e o crescimento destas organizações de base. A despeito destas constatações, perguntamo-nos: um movimento social popular, qualquer que ele seja, cumpre satisfatoriamente sua pauta organizativa, formativa, e de mobilização, apenas desenvolvendo “ad intra”, isto é, ações internas, por mais que isto também seja importante? O propósito das linhas que seguem, é o de problematizar nossas organizações de base, em especial os movimentos sociais populares que lidam com uma pauta alternativa de ações contra o atual modo de produção, de consumo, e de gestão societal. Neste sentido, tratamos, inicialmente, de explicitar o que entendemos por exercício interconectivo da memória, das ações e dos compromissos de nossas organizações de base. Em seguida, passamos a questionar nossos movimentos sociais populares, quando desenvolvem uma agenda respeitável de iniciativas, voltadas para o interno desta organização. Mais adiante, buscamos recuperar a experiência da experiência da “Delegação”, muito presente em nossas organizações de base, entre os anos 60, 70 e 80. Concluímos estas linhas, chamando a atenção de nossas organizações de base, no sentido de buscarem potencializar suas tarefas organizativas, formativas, e de lutas, de maneira conectiva, isto é, de modo a se associarem, em suas diversas instâncias, marcando presença nos encontros e nas lutas dos nossos parceiros e aliados.
Por um exercício conectivo da memória, das ações e dos compromissos dos movimentos sociais populares
Tem sido uma praxe a sensação de que, a cada movimento social popular, basta desenvolver uma agenda de atividades organizativas, formativas e de lutas, apenas ao interno desta organização. Não negamos a importância do desenvolvimento destas ações. Por outro lado, avaliamos serem insuficientes estas ações, à medida que não se faz claro o entendimento de que as mudanças sociais almejadas - principalmente nossa luta de superação da barbárie capitalista -, não se faz apenas pela ação de um movimento social popular, por mais organizado e avançado que seja. Tem que ser obra do conjunto de nossas organizações de base, sem o que nossa luta por uma nova sociedade permanecerá muito a quem do que desejamos.
Ao longo da história, temos conhecimento de diversas mudanças sociais, na idade antiga, na idade média, na idade moderna e sobretudo na idade contemporânea. Todas estas grandes mudanças sociais, em especial as experiências revolucionárias - a da Revolução Francesa, a da Comuna de Paris, a Revolução Russa, a Revolução Chinesa, a Revolução Cubana, entre outras - só se deram, graças ao protagonismo dos movimentos sociais populares, entre outras organizações de base. Com efeito, estas forças se mostram essenciais, indispensáveis a todo processo que se queira revolucionário. Neste sentido, entendemos importante o esforço organizativo, formativo, e de mobilização, desenvolvido por cada umas destas organizações de base, ao mesmo tempo em que avaliamos insuficiente quando tais atividades não se fazem de forma associada, conjugada, tornando bem mais forte sua organização, além de permitir uma ação de maior potencial transformador.
De fato, observamos o esforço hercúleo em várias de nossas organizações de base. Tomemos o caso dos movimentos feministas, como ilustração. Sabemos das conquistas relevantes que vêm sendo feitas pelos movimentos feministas (marcha mundial das mulheres, marcha das margaridas, entre outros). Por outro lado, lamentamos, não apenas em relação ao movimentos feministas, como também aos movimentos negros, movimentos indígenas, movimentos camponeses, movimentos operários, certa teimosia em atuarem isoladamente. Daí resulta um lamentável desperdício, se atuassem de forma orgânica, certamente colheríamos resultados mais promissores. O isolamento de um movimento popular constitui, sob vários aspectos, um equívoco, por mais que reconheçamos os frutos de sua luta. Por exemplo, em um movimento de natureza etnica-indigina, quilombola, cigano…, há não raramente a tendência a um desenvolvimento isolado, voltado apenas para os interesses do movimento. Sucede que, assim agindo, o próprio movimento padece de alguns equívocos. Por exemplo, a luta ao interno dos movimentos negros, quando e se realizada em função dos interesses exclusivos deste movimento resulta enfraquecido, por várias razões:
Como não entender que, em um movimento negro, os participantes e as partipipantes, além de serem negros, pode ser também camponeses/camponesas, operarias/operarios, indentificados com a população lgbtqia+, pode ser formado por jovens, por adultos, por pessoas idosas, pode ser formado por pessoas de diferentes regiões. Cada uma dessas dimensões, quando não devidamente tomada em conta quanto ao seu significado, quanto ao seu limite e potencialidades, acaba não recolhendo as lições mais potencializadoras de avanços para o próprio movimento.
A prática da Delegação como fator conectivo em e das organizações de base e suas respectivas instâncias organizativas
A experiência da Delegação constitui uma marca relevante dos processos revolucionários mais reconhecidos, a exemplo do caso da Comuna de Paris. O princípio da Delegação consiste, como se sabe, na eleição democrática de pessoas, no caso delegados e delegados, cuja missão é de relatar com fidelidade os processo deliberativos tomados pela base, junto a outras instâncias organizativas desta força. O princípio da Delegação (assim como o princípio da alternância de cargos e funções, entre outros) constitui uma marca de nossas experiências organizativas, no final dos anos 70 e 80. Naquela conjuntura, coincidindo com o surgimento de novas forças populares, dentre as quais o Movimento Pró-PT (1979), A CUT (1984), o Movimento do MST (1984-85), além de grupos pastorais progressistas, correspondem a sujeitos históricos que experimentaram, em seus processos organizativos, o princípio da Delegação, este se distingue do princípio de meros representantes, pelo fato de que enquanto os representantes assumem um compromisso meramente formal de “representarem” suas bases organizadas, com frequência não correspondem às tarefas de que foram incubidos. Os delegados, as delegadas, por outro lado, assumem o compromisso formal e material de serem fiéis portadores das decisões tomadas pela base nas ocasiões de participação orgânicas, o princípio da organização cumpriu um papel decisivo naquela conjuntura, a despeitos de suas lacunas.
Naquela conjuntura, estas forças que surgiram, tinham uma avaliação extremamente crítica em relação ao papel do Estado, entendendo-o como componente essencial do modo de produção capitalista e da organização de toda a sociedade de classe, à medida que as classes dominantes de ontem e de hoje sempre se valeram e se valem do Estado ao lado do seu mercado, o mercado capitalista para imporem de suas políticas econômicas, de tal modo que sem a figura de seu Estado não teriam sucesso em suas políticas econômicas, já que o mercado sozinho não dá conta da implementação de tais políticas.
A medida, contudo, que a maioria destas forças que rodeiam aquela conjuntura dos anos 80, se deixaram fascinar pelo processo eleitoral e pelos sucessos eleitorais alcançados, passaram também a desprezar ou a subestimar o mecanismo da delegação, passando a substituí-lo pelo mecanismo da mera representação formal. O resultado não tardou a aparecer: estas forças iam envolvendo-se progressivamente na engrenagem da máquina estatal, de sorte que passaram a ser coadjuvantes do próprio sistema que diziam combater.
Como se percebe, a experiência da delegação desempenha um papel fundamental sob vários aspectos da consciência de classe e do compromisso dos protagonistas sociais - das organizações de base, dos movimentos populares e pastorais sociais - como meios principais de transformação social. Uma vez abandonado ou mitigado estes caminhos, as classes dominantes e dirigentes passam a exercer influência decisiva sob estas mesmas forças populares, de tal modo que, mesmo ascendendo a relevantes espaços estatais ou governamentais, inclusive o espaço da presidência da república, passam a ser administradores do próprio sistema que dizem combater.
Quais exemplos ilustrativos poderíamos rememorar, para comprovarmos a eficácia transformadora do princípio da Delegação?
Alguns exemplos bastam para comprovarem sua eficácia transformadora. Um primeiro exemplo é a consciência da força conectiva da Delegação. Os núcleos, as células, os círculos de cultura, as pequenas comunidades ou algo semelhante, não se limitam a reunir-se de forma isolada. Com certeza, não bastando a mera criação destes espaços nucleares, estes precisam ser continuamente alimentados, por meio de reuniões regulares e outros encontros. A diferença de beneficiar o princípio da Delegação consiste em conter o isolamento destes núcleos, celulas ou círculos de cultura ou que outro nome tenham, no sentido de induzi-los, a uma ligação orgânica não apenas a outros núcleos, como também diferentes instâncias organizativas, em âmbito municipal, estadual, nacional (sem esquecer a necessidade da organização também do âmbito internacional),
Os delegados/delegadas constituem preciosos elementos de conexão, no sentido de entender-se que as transformações buscadas e desejadas não se fazem apenas com a boa organização de um núcleo ou mesmos de vários núcleos mantidos isoladamente, mas como sua conexão com outras instâncias. Portanto, trata-se de se entender que os processos revolucionários comportam múltiplos sujeitos com o mesmo projeto de sociedade, alternativo ao capitalismo e a toda sociedade de classes.
João Pessoa, 18 de julho de 2022.
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