“SI VIS PACEM,
PARA BELLUM” – A LÓGICA DOS DOMINADORES...
Alder
Júlio Ferreira Calado
Em
meio a uma síndrome de beligerância, em que nos encontramos mergulhados, ante a
insana troca de ameças entre os presidentes da Coréia do Norte e dos Estados
Unidos, de lançarem bombas nucleares sobre seus respectivos territórios, soa
como lenitivo a notícia do Prêmio Nobel deste ano haver sido concedido a uma
rede de organizações civis de vários países, inclusive o Brasil. Trata-se da
International Campaign to Abolish
Nuclear Weapons – ICANW (vide sua página virtual:
.
Não
deixa,com efeito, de ser um pequeno passo, da parte de organizações de nossas
sociedades, na busca de refrear a gula belicista, tão ao gosto das ditaduras,
que costumam justificar seu ímpeto belicoso, apelando para uma frase, que
remonta a autores gregos e latinos. Na formulação latina, a frase vem assim
cunhada: “Si vis pacem, para bellum” (“Se queres a paz, prepara a guerra”).
Desde Tucídides, passando por Horácio, Lívio, Cícero até aos modernos e
contemporâneos, a tese tem assumido ares de consenso, quer à direita, quer à
esquerda e ao centro. Ou não é mesmo esta, a tese amplamente dominante entre
nós, no noticiário cotidiano? Em medida não desprezível, tal ideologia resulta
fortemente alimentada pela infinda série de programas midiáticos diários, com
altíssimos índices de audiência, a relatarem sucessivas ocorrências criminais,
sob pretexto de estarem retratando nossa realidade de cada dia. Daí não ser por
acaso o retumbante sucesso alcançado, de campanhas de armamento da população
(“Precisamos armar os cidadãos de bem!”... Ainda anteontem, (09/10/2017), a
Rádio Band News FM informava, com crítica apreensão, da campanha apregoada, no
Pará, por Jair Bolsonaro, figura de
ultradireita, no sentido da necessidade de se armar a população, como se já não
se disupusesse de excesso de armas, neste país...
O
crescente descolamento observável, em nossas sociedades, entre processo e
resultado, com atenção concentrada exclusivave neste último, tem a ver com
aspectos fundantes da atual síndrome beligerante. Importam, apenas e tão
somente, resultados IMEDIATOS, FRAGMENTÁRIOS, PONTUAIS, para satisfação de
segmentos enfeitiçada pela razão da força, como na fábula de Fedro, na versão
conferida por La Fontaine: “A razão do mais forte é sempre a melhor” (“La
raison du plus fort est toujours la meilleure”). Nessas circunstâncias de
progressiva cegueira coletiva, não haveria surpresa uma eventual vitória da
tese de pena de morte ou até de justiçamentos de “bandidos” (desde que estes
sejam os outros, jamais os nossos...).
Por
mais que exercitemos a apreciação
crítica da realidade, assusta-nos sobremaneira uma certa tendência de banditização,
não apenas do Estado brasileiro (e outros), mas de amplos e crescentes
segmentos de nossa sociedade, sempre a apostar – e sempre com mais audácia! –
na razão da força! Isto se faz presente no dia-a-dia das relações, expressando
o fracasso de noosso processo organizativo e formativo. Nas linhas que seguem,
associamo-nos, não obstante nossa limitação, ao esforço de grupos e pessoas comprometidos com a
construção de alternativas, a curto, médio e longo prazos, a esta pavorosa
cultura da vioência, sob suas mais distintas manifestações, cuidadamos de
oferecer algum tipo de contribuição, ainda que mínimo, a essa tragédia humana e
planetária, tecendo algumas considerações, na perspctiva de
alternatividade a essa barbárie, mais do
que anunciada, mas já amplamente presente entre nós. Nosso propósito aqui é,
sobretudo, de buscar desmontrar a ideologia da guerra apresentando-se como
pretensa via de construção da paz.
Na
tentativa de fazer valer suas teses equivocadas, os ideólogos da violência como
pretensa estratégia de paz, costumam recorrer a um cipoal de pretextos, dos
quais destacamos alguns, por meio de expressões-chave:
-
a violência faz parte do ser humano, como de todo o mundo animal, razão por que
importa refrear os excessos de violência, confiando ao Estado o monopólio do
emprego da violência;
-
os cidadãos de bem só se protegem da violência dos bandidos, armando-se à
altura do seu poder de fogo;
-
desde que o mundo é mundo, a violência tem sido – e vai continuar sendo –
prática coriqueira, necessitando-se apenas conter os excessos;
-
para assegurar a paz no mundo, é dever da comunidade das nações (ONU) confiar a
apenas aos Estados componentes do Conselho de Segurança (permanente) o direito
de produzir e controlar armas nucleares, proibindo aos demais Estados de
produzir essas mesmas armas.
-
deve-se combater a ameaça externa de lançamento de bombas, armazenando-se e
aumentando o poder de fogo dos cidadãos ameaçados;
Eis
apenas algumas das alegações, por parte das grandes potências, de
autojustificar seu suposto direito de controlar a produção de armas nucleares,
sendo a tão-somente as detentoras deste pretenso direito. Alguns países, não
sem sob sua cumplicidade, avançaram também ao mesmo patamar...
Não
surpreende que, com certa frequência, apareçam atitudes de contestação e
rebeldia contra tal privilégio.
Não
cessa aí a insânia da dominação. Seus ideólogos não param de formular pomposas
autojustificativas, com o intuito de justificarem o injustificável. Uma dessas
alegações consiste em acusar quem tente romper essa barreira, de terroristas
perigosos à paz mundial... Mais: outros alegam, até recorrendo a sábios, como
Sêneca, para tentarem justificar suas posições necrófilas, argumentando, por
exemplo, que Sêneca estaria no rol dos filósofos que teriam justificado o uso
da violência como meio para controlar a própria violênca. Com efeito, aludem a
uma afirmação de Sêneca, segundo a qual é preciso manter-se alerta
preventivamente ante situações adversas. Sábia afirmação que nada tem a ver com
uma suposta defesa da necessidade de se armar para preservar a paz.
Quem ganha com a
onda armamentista?
Quase
sempre passam ao largo as raízes mais fundas da ideologia belicista. Ao se
acentuar a percepção dos efeitos da questão, permite-se manter veladas as verdadeiras
razões da avidez belicosa. À medida que as imagens, as reportagens, os
comentários e os olhos (estes, sim, desarmados!) do grande público se
concentram nos efeitos pirotecnicos da violência, suas raízes vão sendo
propositalmente negligênciadas ou ocultadas. Mesmo em casos extremos, como vem
acontecendo nos Estados Unidos e, em menor escala, em outros países, os
comentários incidem quase todos, em medidas superfíciais, meramente atenuantes
da barbárie praticada. A pergunta de fundo, que permite vislumbrar a raíz do
problema, costuma ser escanteada: “Quem ganha com a onda armamentista?” – eis
aí a pergunta-chave a ser discutida.
No
modelo capitalista, em sua fase atual, as classes dominantes (o Mercado
capitalista) e dirigentes (o Estado) têm na Industria Belica e de armamentos,
se não “a”, com certeza uma das principais fontes de acumulação de riquezas. É
da natureza do progresso e da manutenção desta industria que se promovam as
guerras entre as nações entre segmentos ao interno de cada país. O estado de
paz não lhe interessa: significaria seu congelamento ou mesmo sua involução.
Quanto mais conflitos armados, de alta ou de baixa intensidade, mais armas se
consomem, gerando a necessidade de novos armamentos a serem repostos. Para a
lógica do Capital, pouco ou nada importam millhares ou milhões de mortos e
mutilados, menos ainda os gravíssimos danos causados, não apenas a hospitais, a
escolas, a universidades, a edifícios históricos, a estradas, a pontes, etc.,
etc., etc. O importante é que se obtenha lucro. Assim sucede a todas as grandes
potências, cujos governantes, não por acaso, são frequentemente financiados
pela industria de armamentos.
Também,
no caso do Brasil, “mutatis mutandis”, a lógica é a mesma, com relação a
situações de verdadeira guerra não declarada, cujas consequências são
diariamente armargadas pelo Brasil afora, ainda que com intensidade extrema em
algumas regiões, como no Rio de Janeiro. A pergunta chave a ser feita, também
aqui, é a mesma!
A
mania de se tratar como alvo de execução faz lembrar velhas declarações de
grandes latifundiarios defensores “da reforma agraria”: “desde que seja na
terra dos outros”.
Guerra se previne
com armas ou pelo reinado a justiça?
Em
um exame mais cuidadoso da história recente e menos recente, é possível
observar o caráter equivocado da estrategia, ainda amplamente dominante, de se
obter a paz pela via das armas. A razão da força não garante condições
duradouras de paz, de liberdade, de democracia. Até podem impor-se, por um
certo tempo, mas, justamente por isso, não têm a força de convencimento, de
persuasão, capaz de garantir vigência, até porque suscitam resistências
inevitaveis por parte de amplos segmentos de cidadãos conciêntes e dispostos a
participarem das decisões concernentes ao seu destino histórico.
Tal
arazoado é também extensivo a experiências socialistas que, tendo seu projeto sido
alcançado pela via das armas, acaba, não raro, reproduzindo os vícios do antigo
regime, impondo pela razão da força o que só se consegue fundamentalmente pela
força da razão, da persuasão, da adesão livre e consciente dos cidadãos e
cidadãs. Isto não quer dizer que a superação da dominação de classe não comporte
algum tipo de recurso à autodefesa dos direitos das maiorias, desde que tal
recurso não se constitua o principal instrumento para se fazer valer a nova
ordem alternativa ao antigo regime.
No
atual contexto – inclusive no tocante à atual correlação de forças e ao
refinado controle científico-tecnológico militar, tem despontado – para as classes
populares – como bem mais eficazes, recursos como a desobediência civil e a a
não-violência ativa.
Nesse
sentido, vão as corajasas denúncias formuladas por documentos tais como a Encíclica Pacem e Terris (escrita em
1963, pelo Papa João XXIII) e pela Encíclica
Populorum Progressio (escrita, em 1967, pelo Papa Paulo VI, ao afirmarem,
por exemplo, coisas do tipo, como na Pacem
in Terris:
“É-nos igualmente doloroso constatar
como em estados economicamente mais desenvolvidos se fabricaram e ainda se
fabricam gigantescos armamentos. Gastam-se nisso somas enormes de recursos
materiais e energias espirituais. Impõem-se sacrifícios nada leves aos cidadãos
dos respectivos países, enquanto outras nações carecem da ajuda indispensável
ao próprio desenvolvimento econômico e social. (PT, n.109)”
- “Costuma-se justificar essa corrida
ao armamento aduzindo o motivo de que, nas circunstâncias atuais, não se
assegura a paz senão com o equilíbrio de forças: se uma comunidade política se
arma, faz com que também outras comunidades políticas porfiem em aumentar o
próprio armamento. E, se uma comunidade política produz armas atômicas dá
motivo a que outras nações se empenhem em preparar semelhantes armas, com igual
poder destrutivo. (PT, n.110)”
-“O resultado é que os povos vivem em
terror permanente, como sob a ameaça de uma tempestade que pode rebentar a cada
momento em avassaladora destruição. Já que as armas existem e, se parece
difícil que haja pessoas capazes de assumir a responsabilidade das mortes e
incomensuráveis destruições que a guerra provocaria, não é impossível que um
fato imprevisível e incontrolável possa inesperadamente atear esse incêndio.
Além disso, ainda que o imenso poder dos armamentos militares afaste hoje os
homens da guerra, entretanto, a não cessarem as experiências levadas a cabo com
uns militares, podem elas pôr em grave perigo boa parte da vida sobre a terra. (PT,
n.111)”
-“Eis por que a justiça, a reta razão
e o sentido da dignidade humana terminantemente exigem que se pare com essa
corrida ao poderio militar, que o material de guerra, instalado em várias
nações, se vá reduzindo duma parte e doutra, simultaneamente, que sejam banidas
as armas atômicas; e, finalmente, que se chegue a um acordo para a gradual
diminuição dos armamentos, na base de garantias mútuas e eficazes.” (PT, n.112)”
Assim como na Populorum Progressio
-“Certamente
há situações, cuja injustiça brada aos céus. Quando populações inteiras,
desprovidas do necessário, vivem numa dependência que lhes corta toda a
iniciativa e responsabilidade, e também toda a possibilidade de formação
cultural e de acesso à carreira social e política, é grande a tentação de
repelir pela violência tais injúrias à dignidade humana. (PP, n.30)”
- “Quando tantos
povos têm fome, tantos lares vivem na miséria, tantos homens permanecem
mergulhados na ignorância, tantas escolas, hospitais e habitações, dignas deste
nome, ficam por construir, torna-se um escândalo intolerável qualquer
esbanjamento público ou privado, qualquer gasto de ostentação nacional ou
pessoal, qualquer recurso exagerado aos armamentos. Sentimo-nos na obrigação de
o denunciar. Dignem-se ouvir-nos os responsáveis, antes que se torne demasiado
tarde. (PP, n.53)”
Trata-se de
afirmações feitas há mais de meio século. De lá para cá, obsevamos com tristeza
que a tentação de se obter a paz pela via das armas e das armas nucleares não
apenas se manteve, como se tem agravado, inclusive com consequências efetivas
de crescente degradação de nossa “Casa Comum”. Anima-nos, contudo, a teimosia
das “correntezas subterrâneas”, em seu permanente esforço de construir um novo
modod e produção, um novo modo de consumo e um novo modo de gestão societal, em
respeito à dignidade do planeta e de toda a comunidade dos viventes.
João Pessoa, 11 de
Outubro de 2017.
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