ROGER GARAUDY, UM SER EM BUSCA DE PLENITUDE:
horizonte, caminhos, postura
Alder Júlio
Ferreira Calado
"Confesso
que vivi!" - Tal como dita por Pablo Neruda, em seu livro, a célebre frase
poderia também estender-se, a justo título, a figuras como Roger Garaudy
(1913-2012). Trata-se, com efeito, de um ser que viveu seu tempo,
apaixonadamente, de modo intenso e impetuoso. Um ser protagonista de uma vida
em busca da liberdade, apesar e para além de seus erros, publicamente por ele
mesmo reconhecidos, em admirável exercício de autocrítica.
Ainda jovem,
nascido em Marseille, França, de uma família pobre, mostra-se cedo influenciado
pelo catolicismo, o que não o impede de filiar-se, aos vinte anos, ao partido
comunista francês (PCF), em 1933. Pouco tempo depois, ao ver seu povo ameaçado
pelo nazismo, não hesita em integrar a resistência, razão por que é preso e
deportado pelo governo de Vichy, para a Argélia, tendo-se livrado da pena
máxima, graças à atitude de soldados muçulmanos que lhe pouparam a vida. Libertado
em 1944, seguiria seu curso de filosofia. Também, foi eleito deputado para
assembleia nacional, por duas vezes, e tornando-se em seguida senador pelo PCF.
Não tardaria também a ser nomeado para o comitê do seu partido, chegando a
ocupar um de seus cargos-chave, até 1956, quando é constrangido a deixar, em
razão de suas críticas assacadas contra a ex-URSS pela invasão a Praga, na
então Checoslováquia, naquele ano. Episódio conhecido como a "primavera de
Praga". Consequência que se agravaria sobre ele, até sua expulsão do PCF,
em 1970.
Espírito
irrequieto, continua sua militância, sobre outros palcos da vida. Segue seus
estudos, tendo concluído seu doutorado, sob a orientação de Gaston Bachelard,
com uma tese versando sobre a Razão Dialética, trabalho do qual não se
orgulharia, o que corresponde a uma de suas autocríticas, possivelmente em
razão da influência stalinista, que ele passa a extrojetar, em atitude de
autocrítica. Tal sua paixão pela vida, que jamais deixa de ser um militante, em
várias trincheiras, seja viajando por várias partes do mundo, nos cinco
continentes, seja elaborando livros e artigos, seja em seu trabalho docente.
Nas breves
linhas que seguem, nosso interesse consiste em três pontos-chave de sua
trajetória: em décadas de uma existência irrequieta quanto criativa, o que se
poderia assinalar como tendo sido seu horizonte axial? Que trilhas-chave
percorreu em busca de alcançar seu horizonte dominante? Como Garaudy se portou
diante dos desafios múltiplos enfrentados?
Que horizonte maior ele perseguiu?
Como poucas
figuras históricas de referência internacional, Roger Garaudy, ao longo de sua
trajetória de militante, de intelectual engajado, de exímio pensador, de crente
- em breve, de um ser humano em incessante busca de uma vida plena, foi
constantemente orientado e movido em direção a um horizonte de humanização, que
comporta traços, dentre os quais ousamos assinalar os que entendemos como
centrais:
- Um
ardoroso defensor e promotor da vida, em todas as suas manifestações
Desde tenra
juventude, é possível perceber valores fortes que o atravessariam, ao longo da
vida: compromisso com a vida dos humanos e de toda comunidade dos viventes;
apurado sentimento de justiça; fascínio pelos valores estéticos; solidariedade;
compaixão; perseguição da verdade, entre outros. Não foi, com efeito, por mero
acaso que se daria sua filiação, aos 20 anos, ao PCF, sem que tal decisão o
levasse a abdicar de sua condição de crente (católico). Não poucos, a este
respeito, o criticarão, por entenderem incompatíveis o Cristianismo e o
Marxismo: “ALGUMA DESTAS DUAS CORRENTES HÁ DE SAIR COMPROMETIDA”... Mesmo
tratando-se de uma crítica amplamente dominante, convém sobre tal fato tecer
algumas observações críticas. O caso Garaudy (de conciliar sua fé cristã com
sua adesão ao Marxismo) não resulta tão isolado assim. Há outros casos. Por
exemplo, a Revolução nicaraguense, como se sabe, foi protagonizada por
cristãos, em sua maioria, inclusive algumas de suas lideranças sendo sacerdotes
católicos. De vários deles, ouvia-se declaração do tipo: “Não há
indissociabilidade insolúvel entre a fé cristã e a adesão ao Marxismo ou à
Revolução”. De fato, ainda que se trate de fatos menos frequentes, na história,
não se pode afirmar categoricamente tratar-se de posições inconciliáveis ou
necessariamente incompatíveis, assim como não se pode afirmar categoricamente
que, em assim se dando, uma das posições – ou ambas – resultarão desfiguradas.
E isto, por várias razões. Tanto o Cristianismo como o Marxismo comportam uma
pluralidade de interpretações. Não há uma única maneira de se definir o
Cristianismo nem o Marxismo, nem outra posição filosófica ou teológica. Há, com
efeito, distintas – e algumas até contraditórias – concepções do que seja
Cristianismo e do que seja Marxismo. Como, então, negar-se categoricamente a
legitimidade de uma interpretação tanto de Cristianismo como de Marxismo que
não correspondam necessariamente a uma desfiguração de uma ou de outra? Mais:
Se assim fosse, isto é, se assistisse razão a uma pessoa ou a um grupo a
apropriação exclusiva de um deles ou de qualquer outra corrente de pensamento,
aí sim, haveria uma desfiguração: não esqueçamos de que, à vista de alguns
textos que se reivindicavam “marxistas”, Marx dizia não ser um marxista. Jesus
poderia dizer coisa semelhante... E mesmo não havendo esse tipo de escolha (de
duas correntes), também não é seguro que alguém se pretenda proprietário
exclusivo do cristianismo ou do marxismo, pois, aqui, ali, sempre surge uma
nuança, um ponto discordante para quem se pretenda cem por cento cristão ou cem
por cento marxista...
Que caminhos ensaiou, em busca de tal horizonte?
Contrariamente
ao percurso de um burocrata ou de alguém refém de seus caprichos de poder e de
prestígio, Roger Garaudy preferiu tomar distância dos atalhos ou, como alude o
Evangelho, “de entrar pela porta larga”. Pelos seus predicados intelectuais,
poderia ter-se deixado seduzir pelos numerosos apelos ao conformismo, à
cumplicidade com os poderosos. Preferiu enfrentá-los, não raramente, em
condições desiguais. Eis uma marca do ser humano livre, guiado antes pela busca
da verdade do que pela busca de fama; antes pelos critérios de justiça do que
pelo fascínio do prestígio. Foi assim que ele enfrentou diversas situações
desafiantes. Uma dessas situações lhe ocorre quando ele, uma das principais
lideranças do PCF, decide, fazendo autocrítica pública, denunciar os horrores
do período stalinista, o que lhe custaria bastante caro: a expulsão do PCF!
Tantas ocasiões semelhantes confirmariam a solidez de suas escolhas. Teve, por
exemplo, que enfrentar, de cabeça erguida,
toda a carga contra ele exercida pela imprensa, pelos grandes meios de
comunicação do seu país, inclusive a sistemática negativa a conceder-lhe direito de resposta, em razão
de múltiplas calúnias de que seria vítima, sobretudo em razão de suas severas
críticas ao Ocidente e à sua suposta democracia, a propósito do que importa
conferir a força de suas críticas, no
famoso livro seu, intitulado “L´Occident, c´est un accident”... Ainda a este
respeito, resulta útil conferir um instigante debate, por meio do link:
https://www.youtube.com/watch?v=jLbATnDzUDo
Para Garaudy
e para gente de semelhante jaez, a plenitude da vida humana comporta
necessariamente a experiência da Liberdade. Vida sem liberdade não condiz com o
processo de humanização. Os seres humanos, com efeito, não se contentam apenas
com a insatisfação de suas carências materiais (o alimentar-se, o vestir-se, o
abrigar-se, etc.). Tudo isto é, por certo, fundamental, mas os humanos requerem
mais; aspiram, não menos, a satisfazerem suas necessidades imateriais: a
contemplação do belo, o exercício das artes, a criatividade, a inventividade.
Aspirações que também têm a ver com sua sede do Sagrado, com sua relação
(pessoal e social) com o Sopro Fontal, em todas as suas manifestações, para
além das formas religiosas culturalmente assumidas, não importando o nome pelo qual
seja invocada sua Divindade. Foi também assim que Roger Garaudy lidou com o
Sagrado, ao longo de sua trajetória existencial.
Seja com
Marx e outras figuras marxistas, com representantes do existencialismo, seja
com personalidades religiosas, a exemplo de Abbé Pierre e Dom Helder Câmara,
Garaudy exercitou uma interlocução respeitosa, crítica e aberta. Também com a
Teologia da Libertação, com a qual apresenta momentos de fecundo diálogo, o que
se reflete em parte de suas obras, inclusive numa prefaciada por Leonardo Boff.
Tal
interlocução com figuras e lideranças católicas e cristãs não o impediu de ir
além, de travar denso relacionamento com os irmãos muçulmanos, chegando mesmo a
converter-se ao Islamismo, sempre numa demonstração de interculturalidade. Em
sua itinerância geográfica (foi um peregrino a percorrer numerosos países), e como
um peregrino existencial, cuidou de exercitar um contínuo aprendizado, o que o
levaria a descobrir, a reconhecer e a levar a sério valores preciosos da
cultura islâmica, fortemente ignorada e combatida no Ocidente. Mais: tratou de
desmascarar a presunção dos ocidentais como os "verdadeiros" pais da
civilização, enquanto eles próprios são tributários de enormes riquezas
culturais da civilização islâmica (oriental e de outros povos...).
Ao trilhar tais caminhos, em busca de seu horizonte, que postura Garaudy
testemunhava?
Qual diligente atleta, ou mais precisamente, qual
extraordinário arqueiro, as "flechas" utilizadas por Garaudy eram
lançadas em direção a um só alvo: o processo de humanização, aqui
entendido como seu horizonte maior, em função do qual não media esforços,
buscava entregar-se, por completo, de modo que suas mais distintas atividades
se transformavam em "flechas" dirigidas para este alvo. As múltiplas
atividades que compunham sua agenda - militância, pesquisa, viagens, debates,
docência, meditações, atividade espiritual, etc., cada uma das quais
organicamente conectada às demais, todas voltadas para o mesmo alvo. Um homem
de projeto! Um homem de práxis!
Outra marca de operário do processo de humanização
residia em lidar com a realidade humana, com a realidade social,
consciente de sua complexidade, de suas múltiplas determinações, razão pela
qual não costumava dar-se por satisfeito com a versão dominante, com a
ideologia dominante. Sentia-se movido pela incessante busca da verdade, ainda
que sabendo dela poder apenas aproximar-se, cônscio de jamais poder alcançá-la
em plenitude. Limitado sujeito cognoscente, não abria mão de seguir caminho, em
sua insaciável condição de um ser movido pela curiosidade epistemológica. Eis
por que teimava em não introjetar acriticamente verdades tidas como
consolidadas, que o ocidente tratava de inculcar "urbi et orbi"...
Preferia seguir o princípio segundo o qual "de omnibus dubitandum".
Daí sua incursão por trilhas bem além das apontadas pelo ocidente: daí suas
aventuras pelas civilizações orientais, árabes e de outros mundos. E são
impactantes suas descobertas! Mais: ao ter a coragem de compartilhá-las,
provoca uma reviravolta cheia de impactos e reações por parte dos pretensos
detentores exclusivos do saber. Vai enfrentar toda sorte de perseguição,
difamação e calúnia, justamente por parte dos que se acreditavam superiores a
outros povos...
Em consonância com seu horizonte e com os caminhos
por ele trilhados, há de se incluir sua postura, ou seja, o modo como lidar com
tal percurso. Deste modo de lidar com os desafios enfrentados, vale a pena destacar
alguns pontos. Resulta impactante, em suas buscas, a paixão pela humanidade, a
alta conta em que sempre teve cada ser humano, a começar pelas vítimas e as
pessoas mais desprezadas do planeta. Fazia suas as dores, as explorações, as
lutas e as esperanças dos "de baixo", bem como dos espaços e
territórios que os abrigavam. Tratava-se de um ser indignado diante de toda
sorte de injustiça. Disto também é prova a lista de publicações que nos
permitimos divulgar abaixo:
·
Antée,
(roman), Éditions Hier et Aujourd'hui, 1945.
·
Le Communisme et la renaissance de
la culture française, 1945.
·
Le Huitième jour de la création (roman),
Éditions Hier et Aujourd'hui, 1946.
·
Contribution historique de la
civilisation arabe, Alger, Éditions Liberté, 1946.
·
Les sources françaises du
socialisme scientifique, Éditions Hier et Aujourd'hui,
1948.
·
L'Église, le communisme et les
chrétiens, Paris, Éditions Sociales, 1949.
·
Grammaire de la liberté,
Paris, Éditions Sociales, 1950.
·
Le manifeste du Parti
communiste : révolution dans l’histoire de la pensée socialiste,
1952.
·
La théorie matérialiste de la
connaissance, Paris, PUF,
coll. « Bibliothèque de philosophie
contemporaine », 1953.
·
La Liberté,
Paris, Éditions Sociales, 1955.
·
Mésaventures de l’anti-marxisme –
Les malheurs de M. Ponty (ouvrage collectif), Paris,
Éditions Sociales, 1956.
·
L'Économie socialiste au service du
peuple, Les Conférences éducatives du Parti communiste
français, 14 mai 1956.
·
Humanisme marxiste,
Paris, Éditions Sociales, 1957.
·
Questions à Jean-Paul Sartre,
précédées d’une lettre ouverte, 1960.
·
Du surréalisme au monde réel :
l'itinéraire d'Aragon, Paris, Gallimard, 1961.
·
Perspectives de l’homme:
existentialisme, pensée catholique, structuralisme, marxisme,
Paris, PUF, coll. « Bibliothèque de philosophie
contemporaine », 1959.
·
Dieu est mort; étude sur Hegel,
Paris, PUF, coll. « Bibliothèque de philosophie
contemporaine », 1962.
·
Qu’est-ce que la morale marxiste?,
Paris, Éditions Sociales, 1963.
·
D'un réalisme sans rivages Picasso
Saint-John Perse Kafka, préface de Louis Aragon, Paris, Plon, 1963.
·
Karl Marx,
Paris, Seghers, 1965.
·
D’un réalisme sans rivage,
Paris, Plon, 1965.
·
De l’anathème au dialogue,
Paris, Plon, 1965.
·
Marxisme du xxe siècle,
Paris-Genève, La Palatine, 1966.
·
La Pensée de Hegel,
Paris, Bordas, 1966.
·
Le Problème chinois,
Paris, Seghers, 1967.
·
Lénine,
Paris, PUF, 1968.
·
Pour un réalisme du xxe siècle.
Étude sur Fernand Léger, Paris, Grasset, 1968.
·
Pour un modèle français du
socialisme, Paris, Gallimard, 1968.
·
Peut-on être communiste
aujourd'hui ?, Paris, Grasset, 1968.
·
La liberté en sursis : Prague
1968, Paris, Fayard, 1968.
·
Le Grand tournant du socialisme,
Paris, Gallimard, 1969.
·
Marxistes et chrétiens face à face,
en collaboration avec Q. Lauer, Paris, Arthaud, 1969.
·
Toute la vérité,
Paris, Grasset, 1970.
·
Reconquête de l'espoir,
Paris, Grasset, 1971.
·
L’Alternative,
Paris, Robert Laffont, 1972.
·
60 œuvres qui annoncèrent le futur,
Genève, Skira, 1974.
·
Parole d'homme,
Paris, Robert Laffont, 1975.
·
Le Projet espérance,
Paris, Robert Laffont, 1976.
·
Qui dites-vous que je suis ? (roman),
Paris, Le Seuil, 1978.
·
Comment l'homme devint humain,
Éditions Jeune Afrique, 1979
·
Il est encore temps de vivre,
Paris, Stock, 1980.
·
Promesses de l'Islam,
Paris, Le Seuil, 1981.
·
Pour l'avènement de la femme,
Paris, Albin Michel, 1981.
·
Éduquer au dialogue des
civilisations, ouvrage en collaboration, 1983, Québec, Éditions
du Sphinx(ISBN 2-920123-04-1).
·
Biographie du xxe siècle,
Paris, Tougui, 1985.
·
Pour un Islam du xxe siècle
(Charte de Séville), Paris, Tougui, 1985.
·
Mon tour du siècle en solitaire,
mémoires, Paris, Robert Laffont, 1989.
·
Intégrismes,
Paris, Belfond, 1990.
·
Les Orateurs de la Révolution
française, 1991.
·
Les Fossoyeurs : un nouvel
appel aux vivants, Paris, L'Archipel, 1992.
·
À Contre-nuit,
1992.
·
Souviens-toi : brève histoire
de l'Union soviétique, Pantin, Le Temps des cerises, 1994.
·
Vers une guerre de religion ?
Débat du siècle, Paris, Desclée de Brouwer, 1995.
·
L'Islam et l'intégrisme,
Pantin, Le Temps des cerises, 1996.
·
Grandeur et décadences de l'Islam,
Paris, Alphabeta & Gama, 1996.
·
Réponse au lynchage médiatique de
l'abbé Pierre et de Roger Garaudy, Samizdat, brochure de
38 pages, juin 1996.
·
Le Procès de la liberté,
en collaboration avec Jacques Vergès,
Paris, Vent du large, 1998(ISBN 978-2912341105).
·
L’Avenir, mode d'emploi,
Paris, Vent du large, 1998.
·
Palestine Terre des messages divins,
Al Fihrist, Beyrouth-Liban, 1998.
·
Le xxie siècle –
Suicide planétaire ou résurrection, en collaboration,
Paris, L'Harmattan, 2000(ISBN 978-2-7384-9074-2).
·
Qu'est-ce que
l'anti-américanisme ?
·
Plusieurs articles dans la revue À
contre-nuit
João Pessoa,
7 de agosto de 2019.
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