quarta-feira, 20 de março de 2019

PAULO FREIRE EM DIÁLOGO COM A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO: anotações sobre um ensaio cinquentenário da lavra freireana


PAULO FREIRE EM DIÁLOGO COM A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO:  anotações sobre um ensaio cinquentenário da lavra freireana
Alder Júlio Ferreira Calado

A saga do Bolsonarismo não desponta repentinamente, nem precisamos recorrer aos seus quase trinta anos de vida parlamentar estéreo, à parte seu famigerado currículo profissional e político de posições extremadas de incondicional adesismo a posições de extrema-direita, inclusive as de apologia a tortura e a ditadura militar. Restrinjamo-nos à sua desventurada iniciativa de carreirismo político, em direção à presidência da República. Sabe-se que, desde 2015 tratou de semear e de cultivar tal ambição que, não tivesse acolhida pela cegueira anti-petista, não teria obtido qualquer êxito eleitoral. Mas, o que tem a ver a figura do atual Presidente da República com a veneranda figura de Paulo Freire e seu legado? Desde principalmente as manifestações de rua de 2013, nas quais as forças de ultra-direita também acabaram pegando carona, trataram de tirar partido, pode-se observar um crescente movimento contra o legado de Paulo Freire, do qual fazem parte diversos recursos, como as Fake News, a produção de vídeos difamadores sobre Paulo Freire, e até de faixas e cartazes reivindicando a destituição de seu nome como patrono da educação brasileira.    
Em nítido contraste com os (mal)feitos em profusão, de autoria de figuras necrofílicas, emergem produções luminosas de figuras amantes da vida, a exemplo de Paulo Freire, a quem muito bem se pode aplicar um dito da cultura judeu-cristã, sobre os seres humanos justos: “Tudo o que fazem prospera”(sl. 1, 3), ao contrário do destino da estupidez dos necrófilos: o desprezo e o esquecimento. Enquanto a estupidez e o obscurantismo não cessam de atormentar o povo dos pobres, no Brasil e no mundo, consola-nos saborear preciosidades produzidas por figuras como Paulo Freire e outras, cujos escritos seguem alimentando, como fagulhas de esperança, as pessoas e comunidades e movimentos que ousam ensaiar passos de resistência propositiva a esses descaminhos de barbárie. Nas linhas que seguem, alegra-nos revisitar um ensaio escrito por Paulo Freire, intitulado: “O papel educativo das Igrejas na América Latina”, texto que integra seu conhecido livro Ação Cultural para a Liberdade. O referido ensaio, alvo de nossas considerações, foi escrito em 1971, em Genebra, publicado em inglês sob o título “Education, Liberation and the Church”.  Nele, Freire dialoga criativamente com a então nascente Teologia da Libertação, com tal competência que um dos autores de referência da TdL, Clodovis Boff, em seu livro “Comunidade Eclesial – Comunidade Política” (Vozes, 1978), não hesita em incluí-lo no rol dos teólogos da libertação.
No referido ensaio, Paulo Freire começa por desmascarar uma suposta neutralidade, tanto no que fazer educativo, quanto no posicionamento da Igrejas cristãs. Qualquer tentativa de neutralidade é vã, além de acabar por revelar-se a favor da dominação. Em seguida, valendo-se da figura emblemática da páscoa, entendida como travessia na Práxis trata de percorrer criticamente os caminhos da Tradição de Jesus, que conduzem da morte à vida, da escravidão à libertação. E o faz centrando atenção em seus protagonistas, caracterizando suas ações no mundo, bem como no processo educativo vivenciado pelas Igrejas cristãs, tendo como pano de fundo o contexto latino-americano.
Cuida de analisar criticamente o papel educativo, desenvolvido pelas Igrejas cristãs, em seu cotidiano conflitivo. Estas, por sua vez, se vêem desafiadas por um contexto de exploração, de dominação e de marginalização, ao qual está sujeita a enorme maioria da população latino-americana, sobretudo o povo dos pobres. Diante de tal desafio, as cidadãs e cidadãos cristãos se acham interpelados a definirem sua posição – ou de subserviência e cumplicidade com as classes dominantes, ou de compromisso libertador com a causa dos oprimidos, não havendo lugar para meio termo, nem neutralidade, o que objetivamente representaria favorecimento aos “de cima”. A esta altura, empreende uma crítica pertinente aos que teimam aderir a uma postura neutra, impossível. Analisa o comportamento contrastante, de um lado dos “inocentes ou ingênuos”, e, de outro lado, dos espertos. Em relação aos primeiros, trata de problematizar sua postura, buscando desmontar pretextos baseados em sua suposta “pureza”, superioridade, santidade, enfim, imunidade em relação às coisas do mundo, com a vã pretensão de apego exclusivo às coisas celestes, enquanto se atrevem a pensar o povo como inferior, impuro... Dada a força dos argumentos contrapostos aos “ingênuos”, estes se sentem forçados a escolherem – agora, conscientemente – sua verdadeira posição: ou de teimarem enganar a si próprios, e assim passando a defender a causa dos opressores, traindo assim a causa evangélica, ou a de aceitarem correr o risco de aderirem à causa dos “debaixo”.
Pedindo escusas pela extensão da citação, mas ousando fazê-lo pela força dos argumentos utilizados por Freire, permitimo-nos reproduzir suas próprias palavras:
Os “inocentes”, por sua vez, através de sua própria prática histórica, ao desvelar a realidade e sendo nela desvelados, tanto podem assumir a ideologia da dominação, transformando, assim, sua “inocência” em “esperteza”, quanto podem renunciar a suas ilusões idealistas. Neste caso, então, retiram sua adesão acrítica às classes dominantes e, comprometendo-se com as classes oprimidas, iniciam uma nova aprendizagem com elas.

Isto implica na renúncia de seus mitos, tão caros a eles. O mito de sua “superioridade”, o mito de sua pureza de alma, o mito de suas virtudes, o mito de seu saber, o mito de que sua tarefa é salvar os pobres. O mito da inferioridade do povo, o mito de sua impureza, não só espiritual, mas física, o mito de sua ignorância absoluta.

Cedo percebem que a indispensável Páscoa, de que resulta a mudança de sua consciência, tem realmente de ser existenciada. A Páscoa verdadeira não é verbalização comemorativa, mas práxis, compromisso histórico. A Páscoa na verbalização é “morte” sem ressurreição. Só na autenticidade da práxis histórica, a Páscoa é morrer para viver. Mas uma tal forma de experimentar-se na Páscoa, eminentemente biofílica, não pode ser aceita pela visão burguesa do mundo, essencialmente necrofílica, por isso mesmo estática.

A mentalidade burguesa tenta matar o dinamismo histórico e profundo que tem a Passagem. Faz dela uma simples data na folhinha. A ânsia da posse, que é uma das conotações da forma necrofílica de ligação com o mundo, recusa a significação mais profunda da Travessia. Na verdade, porém, não posso fazer a Travessia se carrego em minhas mãos, como objetos de minha posse, o corpo e alma destroçados dos oprimidos. Só posso empreender a Travessia com eles, para que possamos juntos renascer como homens e mulheres libertando-nos. Não posso fazer da Travessia um meio de possuir o mundo, porque ela é, irredutivelmente, um meio de transformá-lo.
Da mesma maneira, aprendem que a consciência não se transforma através de cursos e discursos ou de pregações eloquentes, mas na prática sobre a realidade. (https://www.academia.edu/38319336/Paulo_Freire_-_A%C3%A7%C3%A3o_cultural_Para_a_liberdade_e_outros_escritos.pdf)


Trata-se, como se percebe, de um exercício de diálogo freireano com a abordagem característica da então nascente Teologia da Libertação, a esta altura protagonizada por figuras tais como Gustavo Gutierrez, Hugo Assmann, James Cone, entre outros. Uma abordagem que se tem revelado inovadora, diante de séculos de subserviência das principais forças eclesiásticas à ideologia do sistema dominante. Uma abordagem que, fundada no conhecido método ver-julgar-agir, e inspirada no Movimento de Jesus, se empenha, em recuperar a memória histórica das práticas e dos ensinamentos do Evangelho, do Reino de Deus, que Jesus veio anunciar e inaugurar, de modo profundamente enraizado na vocação libertária dos oprimidos.  
Tentando atualizar tal abordagem, diante da realidade presente, cuidamos de observar que saltam aos olhos pontos de coincidência do que hoje experimentamos com o ensaio Freireano. Durante a última campanha eleitoral, no Brasil, tal situação volta à cena, sob vários aspectos. Dentre os “inocentes”, se acham vários extratos da população, inclusive parcelas expressivas de cristãos e cristãs – católicos e evangélicos. Também estes, ao descobrirem a vã tentativa de neutralidade diante do espectro político-eleitoral, e fortemente atraídos pelas redes sociais comandadas pelos massivos disparos de “Fake News” (fenômeno idêntico ao que se produziu durante a campanha que resultou na eleição de Trump), por parte do pior dos candidatos – o mais despreparado, o que já havia dado provas evidentes de adesismo à Ditadura Militar, após ter feito clara apologia à tortura, ao idolatrar a figura do Coronel Ustra, ao divulgar vídeos de racismo expresso contra Negros, contra povos originários, após dar provas de posturas claramente homofóbicas, misóginas, de idolatria à figura de Trump, ainda assim passam a uma adesão cega e incondicional, mesmo tendo certeza das estúpidas distâncias entre o comportamento do candidato e a fonte principal de sua fé, os evangelhos...
Retomando nosso emblemático ensaio freireano, damo-nos conta de que tal é a força transformadora da memória histórica, que, seja de modo expresso, seja de modo implícito, situações, fatos e acontecimentos do dia-a-dia resultam prenhes de sua presença vivificante. Isto também se dá com escritos emblemáticos, de autoria de figuras de referência, como a de Paulo Freire. Um deles, trazemos ao debate, num contexto sombrio, no qual o texto da lavra de Paulo Freire se revela emblemático e oportuno.
Oportuno, também, do ponto de vista de consideráveis parcelas de nossa população, as que que se confessam cristãs. Referimo-nos ao atual tempo litúrgico celebrado pelo mundo cristão – o tempo da Quaresma, ante-sala da Páscoa, sobre o qual o referido texto finca algumas de suas bases de argumentação, fazendo aí transparecer um de seus trações existenciais: o de sua inserção existencial também como um cristão, aí exercitando argumentos teológicos notáveis, como o da categoria “Páscoa”, “Travessia”.
Em uma tentativa sinótica, que aspectos mais fortes ousaríamos salientar do cinquentenário ensaio da lavra de Paulo Freire, meio século depois de ser escrito? Resumidamente, destaquemos os seguintes:
- a memória histórica, desde que exercitada, não como uma inicitava de saudosismo – de quem interpreta o passado como coisa morta -, segue sendo uma fonte poderosa de reabastecimento e reenergização de nossas forças transformadoras da realidade hegemônica, em busca de permanente alternatividade, isto é, de superação da ordem vigente, em busca de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo, de um novo modo de gestão societal, que se vá processando, ainda que molecularmente, a partir de nossas organizações de base, especialmente dos movimentos populares;
- o ensaio freireano se nos revela de rara oportunidade, nesses tempos de obscurantismo, marcados por uma gestão governamental fundada na mentira, na traição mais perversa dos interesses nacionais, colocados a serviço da barbárie representada pelas sucessivas trapalhadas de uma figura tenebrosa, como a de Trump, feito presidente pela força de “fake News”, de modo muito similar ao que se passou no Brasil;
- o ensaio freireano nos interpela, pessoal e coletivamente – em especial, a nossas organizações de base -, no sentido de que em vão esperamos que a libertação dos “de baixo” venha como presente ou dádiva dos “grandes deste mundo”, mas como protagonismo, como práxis cotidiano de reinvenção da Política, cujos sujeitos , rememorando tempos frutuosos de suas ações, se empenhem incansavelmente em ensaiar passos alternativos à barbárie, seja na esfera organizativa, seja no campo formativo, seja no plano da mobilização, a partir da retomada, em novo estilo, de nosso enraizamento no povo do campo e das periferias urbanas, sem cujo protagonismo falecem nossos ideais de uma nova sociedade.

João Pessoa, 20 de março de 2019

P.S. Hoje, comemoramos 39 anos do assassinato, em El Salvador de Dom Oscar Romero, cuja trajetória de pastor profeta foi também marcada por esta Travessia de que fala Freire, isto é, de uma posição antes ingênua, passa à condição de verdadeiro discípulo de Jesus de Nazaré, alimentado por um profundo aprendizado de compromisso com a causa libertadora de seu povo. Tornou-se uma grande referência para as cristãs e cristãos de hoje.

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