FRANCISCO, PROFETA ITINERANTE PELAS ALDEIAS DO
MUNDO: anotações sobre a viagem do Bispo de Roma ao Marrocos
Alder Júlio Ferreira Calado
Em sua 28a. visita apostólica a povos e comunidades dos cinco
continentes, Francisco se encontra, desta vez, na terra e com o povo marroquino,
nos dias 30 e 31 de março de 2019. Desde sua saudação antecipada (cf. https://www.youtube.com/watch?v=xKMjnS5L3kU)
aos visitados, deixa claro seu propósito: vai como um mensageiro da paz
e promotor de fraternidade. Vai também levar sua palavra de
reconhecimento, de confirmação na fé e de agradecimento à comunidade cristã, no
Marrocos. Trata-se de uma pequena minoria (menos de 1%, em torno de 30 mil
pessoas em meio a uma população estimada em torno de 35 milhões de habitantes)
naquele país majoritariamente de tradição islâmica. Contudo, antes de se
encontrar com os cristãos e cristãs vivendo ecumenicamente, a serviço daquela
gente, não hesita em comprovar seu propósito de compromisso humano, ao visitar,
no primeiro dia de sua viagem, os migrantes, ele próprio sendo um migrante e filho
de migrantes. Sua fala dirigida aos migrantes, ali reunidos para este encontro
de "fratellanza" - e o fazendo, após ouvir atentamente impactantes testemunhos
de migrantes (cf. o "link": https://www.youtube.com/watch?v=2G-buYHR86Y)
Um fenômeno absolutamente insólito, na história da Igreja Católica
Romana, inclusive na história do Papado: o atual Bispo de Roma se mostra protagonista
de uma trajetória improvável, a julgar pela caminhada recente e menos recente
do Papado e da própria Igreja Católica, à medida que
- tem buscado, desde o início da assunção de suas funções, restituir
"a" prioridade da missão cristã: testemunhar o Reino de Deus e sua
Justiça, como fiel discípulo-missionário de Jesus;
- por isto mesmo, cuida, em primeiro lugar, de lançar seu olhar para
toda a humanidade, em sua complexa diversidade, de modo sempre respeitoso e
sempre disposto ao diálogo fecundo, isto é, de aprender com os outros, consciente
de que o Espírito sopra onde quer, donde a necessidade de estarmos sempre
atentos e vigilantes aos Seus sinais, acolhendo-os e levando-os a sério;
- com coração e mente de pastor e profeta, que a todos acolhe, a começar
dos mais necessitados, denuncia corajosamente a cultura amplamente predominante
de uma Igreja "auto-referenciada", ao tempo em que anuncia com entusiasmo
e convicção, a urgência de uma "Igreja em saída";
- seu legado conjuga, de modo fecundamente articulado, gestos, palavras
e escritos: antes de pregar, cuida de dar o exemplo de vida;
- Percorre o mundo - um complexo de aldeias portadoras de uma enorme
diversidade, que ele trata de costurar com um fio de unidade: Deus é de todos,
é Pai de todos os filhos e filhas, razão por que toma corpo e credibilidade seu
apelo ao exercício da fraternidade universal, qual Francisco dos tempos
presentes;
- Revela-se um profeta itinerante, a percorrer incansavelmente as
aldeias do mundo, em cada uma sentindo-se acolhido e acolhendo como Jesus,
profeta-itinerante pelas aldeias da Galileia;
- Mostra-se de tal modo comprometido com a sorte do Planeta, que grandes
especialistas na área ecológica - cristãos e não crentes - avaliam sua
"Laudato sì", encíclica que a todos nos interpela em defesa e
promoção de nossa Casa comum - como um documento do mais alto nível de profundidade,
na contemporaneidade;
- consagra sua vida à causa do Reino de deus, razão por que tem nos
pobres - entendidos em seu sentido amplo - como "a" prioridade dentre
os cuidados dos pastores.
Qual
agulha de diligente costureiro da unidade na diversidade, Francisco também se
mostra um exímio tecelão de tempos, ao costurar criativamente passado, presente
e futuro: ainda na semana passada, num encontro com jovens, ele os incentivava
a serem pessoas apaixonadas, fincando sua memória em suas raízes históricas
(passado) e mantendo seu olhar no horizonte (futuro), com o compromisso de
uni-los, articuladamente, conforme os valores da Tradição de Jesus (presente).
Antes de
prosseguir com o comentário sobre a visita do Bispo de Roma à terra e à gente
de Marrocos, sinto-me chamado a compartilhar um fato deveras intrigante que
sucede, no mesmo dia, entre duas lideranças antagônicas: enquanto o Presidente
Bolsonaro, negligenciando a olhos vistos o risco de complicar ainda mais as
relações do Brasil com o mundo árabe – inclusive do ponto de vista econômico -,
ao aderir acriticamente à perigosa iniciativa de Trump, de transferir de
Telaviv para Jerusalém, a capital de Israel, acarretando grave crise
internacional, o Papa Francisco, por sua vez, viaja, no mesmo dia, para uma
visita apostólica ao Marrocos, onde, dentre vasta programação, consta a
assinatura conjunta com a autoridade do Marrocos uma declaração de defesa de
Jerusalém, como território controlado, não apenas por Israel, mas também por
crentes judeus, muçulmanos e cristãos, apostando por consequência em caminhos
de paz fundada na justiça.
Voltando à viagem do Papa Francisco à terra e à gente marroquinas,
Francisco cumpriu uma verdadeira maratona, tal a intensidade de compromissos
agendados, dos quais tratamos de sublinhar aspectos de alguns deles.
A quem se dá ao trabalho de ver/ouvir com atenção a sucessão de atos
realizados, durante este encontro com os migrantes, resulta impactante a
qualidade do encontro: a calorosa recepção, os diversos depoimentos/testemunhos
prestados por migrantes vindos de várias partes do mundo, sobretudo da África, inclusive
de Camarões, os números artísticos apresentados por crianças, a densa fala do
bispo que o acolheu, além da fala do próprio Francisco.
Dos depoimentos prestados, é tocante o testemunho denso, claro e cheio
de sabedoria expresso pelo migrante Jackson, falando em Francês. Testemunho de
agradecimento a Cáritas local, pelo empenho em ajudá-lo a regularizar sua
documentação; destacou traços emblemáticos, característicos da experiência
vivida pelos migrantes, em geral, aludindo aos migrantes, não apenas aqueles
que conseguem regularizar seus papéis; ressalta a importância do direito de
viver lá onde vive sua família; chama a atenção da relevância de se viver do
próprio trabalho.
Muita plasticidade estética podíamos perceber nos números apresentados
pelas crianças, inclusive com sua alusão aos carregadores de água, em região
desértica. As breves palavras do Pe. Germain, encarregado de fazer a saudação
ao Papa Francisco, carregam uma tocante sabedoria evangélica, de quem se põe a
serviço da causa libertadora dos “de baixo”. Dentre outros aspectos referidos
pelo Pe. Germain, alguns resultaram especialmente impactantes. Muito relevante
e oportuna, a ênfase que deu ao trabalho ecumênico ali realizado, graças à
participação de católicos, ortodoxos, reformados, no atendimento fraterno, no
cuidado solícito a migrantes, às crianças, aos enfermos, aos estudantes
marroquinos, por meio de sua participação no ensino, naquele país. Uma ação
pastoral marcada pela prática de um ecumenismo de base. Lembrou a presença ali
de muitos sacerdotes, religiosos e religiosas, de diversas famílias
congregacionais, a exemplo daqueles ligados à família religiosa ”Fidei donum” (que
também atua no Brasil), da família Charles de Foucauld, bem como da família
franciscana, ora em festa pela celebração dos 800 anos da presença apaziguadora
de Francisco de Assis, em terras marroquinas, num tempo de plenas cruzadas...
igualmente marcante foi o a iniciativa do Pe. Germain, de destacar a presença
de religiosas de diversas congregações, a exemplo de uma missionária
franciscana, italiana, com seus bem vividos 97 anos (com admiráveis condições
de saúde, sem aparentar a idade que tinha). Ocasião em que, tocado pela
apresentação, da irmã franciscana, o Papa se levanta para cumprimentá-la. Vale
a pena conferir o “link” abaixo:
Em resposta a tanta beleza compartilhada, chegou a vez do
Bispo de Roma. Começa ressaltando o caráter ecumênico do Encontro, expressando
alegria e agradecimento pelo que havia visto, ouvido e sentido. Retoma o
sentimento já antes compartilhado da minúscula presença de cristãos entre os
irmãos e irmãs do Marrocos. Algo, porém, que faz questão de expressar que não o
preocupa, ainda que reconheça dificuldades que aquela situação pode ocasionar,
para o trabalho. Prefere sublinhar sua alegria e gratidão pelo testemunho
daquela gente, vinda de tantos países, tornando-se missionários e missionárias
a serviço da Tradição de Jesus, também seguida por ilustres precursores, a
exemplo de Francisco de Assis e de Charles de Fouculd. Do primeiro, chega a
rememorar um episódio marcante: o em que envia àquela terra seus confrades,
dizendo-lhes que cuidem de testemunhar o Evangelho, se necessário também com
palavras! Do segundo – Charles de Foucauld – destaca sua atitude cristã de
universalidade, por meio de o exercício de uma fraternidade radical.
Compartilha o sentimento de alegria, ao perceber que as sementes do Evangelho
estão fazendo seu trabalho, em meio àqueles irmãos e irmãs do Marrocos. E passa
a parafrasear aquela pergunta feita por Jesus, sobre a que compararia o Reino
de Deus: a uma mulher que se vale de uma pequena porção de fermento para
misturá-la a certa quantidade de trigo: a pequena quantidade de fermento é
suficiente para levedar toda a massa. E justifica, a justo título, sua profunda
confiança nas coisas pequenas, desde que fiéis à Tradição de Jesus. Aqui, não
se trata de grandes obras administrativas, feitas à base de estruturas e recheadas
de propaganda, muito menos de proselitismo. Neste jeito de fazer missão o Papa
não acredita: podem estragar a qualidade do sal e pode suceder que a luz já não
mais brilhe...
O terceiro
momento vivenciado, digno de destaque, se dá com a celebração da Missa, na
catedral de Rabat, encerrando esta rica experiência missionária, proporcionada
pela visita apostólica do Papa Francisco ao Marrocos. As imagens da celebração
final permitem perceber o entusiasmo dos participantes, a calorosa acolhida do
Bispo de Roma, a beleza dos cantos executados, a densidade da homilia. (Cf
link: https://www.youtube.com/watch?v=LZ-OtTpODD0 )
Homilia orientada especialmente pelo Evangelho do IV Domingo
da Quaresma, que nos traz à reflexão a conhecida parábola do filho pródigo, que
o teólogo José Antonio Pagola prefere chamar, a justo título, de a “parábola do
Pai bondoso”. Nela, conta-se que um dos dois filhos –o mais novo – dirige-se ao
pai, insistindo em que ele lhe transfira sua parte de herança, e, em seguida,
abandona a casa paterna. Sai pelo mundo, numa aventura irresponsável, a
consumir sua fortuna em farras infindas e na luxúria, ao ponto de perceber que
havia consumido toda a herança recebida. Ao mesmo tempo, sobrevém à região onde
se encontrava um grave período de fome. Impactado e tangido pela penúria, vai
sobreviver recorrendo à lavagem dos porcos, de que lhe foi mandado cuidar. Caindo
em si, pensou: enquanto passo um tempo de extrema penúria, lembro a fartura da
casa do meu pai, que abandonei irresponsavelmente. Aqui não fico mais. Vou
levantar-me e caminhar em direção ao meu pai. Encontrando-o, vou dizer-lhe: Meu
pai, já não sou digno de ser tratado como teu filho. Peço-te que me trates ao
menos como um de teus criados. O pai, por sua vez, que jamais havia deixado de
esperar a volta do filho, apressou-se em abraçá-lo e beijá-lo. Mais: chama seu
empregado e lhe ordena que vista e calce seu filho, confortavelmente, e que
abata o novilho gordo, para brindar com uma grande festa a volta de seu filho.
O filho mais velho, que se encontrava no campo, ao retornar, ouviu de longe o
som da festa, e tratou de perguntar ao empregado da casa, de que se tratava.
Ele lhe conta o ocorrido. O filho mais velho se revolta, e não quer entrar. O
pai vem –lhe ao encontro, e explica as razões de sua alegria e da festa que mandou
preparar para seu irmão. Mas, mesmo assim, o filho mais velho se mantém arredio
e rancoroso, queixoso do pai... Na referida homilia, Francisco cuida de fazer o
que habitualmente está habituado a fazer. Resume didaticamente a parábola, e se
aplica diligentemente a tirar as lições, sempre de modo profético e com o
coração de pastor, fazendo ressaltar sempre a compaixão do Pai para com todos
os seus filhos e filhas.
Eis mais uma viagem apostólica realizada pelo Papa Francisco,
trazendo bem sua marca de pastor, de profeta, de um cidadão do mundo. Não é por
acaso que hoje é avaliado como a mais importante personagem do nosso mundo, uma
verdadeira liderança de novo tipo. Tomara que seu exemplo arraste ou atraia
sempre mais os católicos e católicas, no sentido de se abrirem para uma
verdadeira mudança das estruturas da Igreja, sob o impulso do evangelho, da
Tradição de Jesus.
João Pessoa, 01 de abril de 2019.
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